O Estado de S. Paulo

Carlos Pereira: Candidatura avulsa.Ter ou não ter

Presença de candidatos independentes tem potencial de comprometer governabilidade

A convite do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, participei no último dia 09 de dezembro de audiência pública para debater a constitucionalidade da candidatura avulsa no sistema político brasileiro. Ficou evidente uma grande polarização de preferências entre os convidados. Os partidos políticos e colegas cientistas políticos presentes se posicionaram enfaticamente contrários à adoção de candidaturas avulsas. Acreditam que os partidos políticos seriam os verdadeiros veículos da representação em uma democracia e, portanto, deveriam ter o monopólio do acesso ao sistema político. Candidatos avulsos colocariam em risco a própria democracia, já que seriam representantes deles mesmos.

Por outro lado, os movimentos sociais se manifestaram com veemência a favor de candidaturas independentes. A despeito do expressivo número de partidos (30 deles têm pelo menos um representante na Câmara dos Deputados), os movimentos sociais ali presentes se disseram não representados por nenhum dos partidos. Argumentaram que as estruturas partidárias são excessivamente hierarquizadas, viciadas e, muitas delas, corrompidas. A presença de candidatos independentes, portanto, iria oxigenar e gerar maior competitividade ao jogo partidário.

Em estudo que investiga os efeitos de candidaturas avulsas na Índia (Independent Candidates and Political Representation in India), publicado em 2018 na revista APSR, os pesquisadores Sasha Kapoor e Arvind Magesan mostram que a presença de candidatos independentes aumenta consideravelmente o número de eleitores participando do processo eleitoral. Por outro lado, diminuem substancialmente a probabilidade de eleição de legisladores que faziam parte da coalizão de governo.

Em que pese a Índia apresentar diferenças institucionais marcantes em relação ao Brasil (parlamentarismo com voto distrital majoritário e não obrigatório), os resultados dessa pesquisa podem ser úteis para se pensar o caso brasileiro, pois sugerem que alterações no sistema eleitoral, como as candidaturas avulsas, também repercutem na governabilidade de um país ao reduzir o tamanho da coalizão que dá suporte ao governo.

Não existe sistema político ideal em nenhuma democracia do mundo, mas sistemas que combinam diferentes elementos que equilibram governabilidade e representação. Sociedades escolhem o que querem privilegiar e qual custo querem arcar. Esses dois elementos se complementam. Um não pode ser pensado sem o outro.

O legislador constituinte de 1988 optou pela inclusão dos mais variados interesses no jogo político, por meio de sistema eleitoral que combina representação proporcional com lista aberta. Esta escolha gerou a formação de muitos partidos, que entretanto são ideologicamente amorfos e fracos na arena eleitoral, o que em grande parte justifica as críticas a eles feitas pelos movimentos sociais.

Para compensar esses elementos de fragmentação, o mesmo legislador constituinte determinou que os partidos teriam o monopólio da representação e delegou muitos poderes (medida provisória, urgência, orçamentário, de agenda etc.) ao Executivo para que tivesse condições de governar. Partidos passaram a ter interesse em apoiar de forma disciplinada esse Executivo para ter acesso a recursos políticos e financeiros controlados pelo presidente.

A presença de candidatos independentes, portanto, tem o potencial de comprometer a governabilidade na medida em que tende a aumentar as dificuldades de coordenação e os custos de transação do presidente nas suas relações com legisladores. Não é racional parlamentares agirem individualmente no Congresso, como também não é racional o Executivo negociar individualmente com cada parlamentar.

A candidatura avulsa é uma inovação institucional que atende às demandas de maior representação. Porém, deve-se pensar em um mecanismo que equilibre a balança em prol da governabilidade do presidencialismo multipartidário.


Eliane Catanhêde: Um choque no INSS

Faltou ação contra velhos erros e planejamento para enfrentar as novas condições

Além da necessária reforma da Previdência, com mudanças de regras para pensões e aposentadorias, o governo deveria ter tomado um outro cuidado: um choque de eficiência no INSS. O problema é estrutural e conjuntural e, como sempre, faltou ação para corrigir erros antigos e planejamento para enfrentar condições novas.

Tenha ou não “culpa” pela atual crise no atendimento, a reforma da Previdência joga luzes no velho problema do tratamento a idosos, viúvas, mães, doentes e acidentados que buscam não favores, mas seus direitos. E a situação, que já era ruim, se tornou cruel.

De um lado do balcão, funcionários entediados, mal treinados, mal remunerados e em más condições de trabalho, grande parte sem a noção de sua função de servir ao público que paga não só impostos como os seus salários. Do outro lado, pessoas velhas, cansadas, doentes, que esperam horas, semanas, meses, para receber seus benefícios.

A isso some-se a questão conjuntural: o governo criou o INSS Digital, que facilitou os pedidos de aposentadoria às vésperas de uma reforma da Previdência que todos sabiam que viria e muitos temiam. Houve uma avalanche de pedidos ao mesmo tempo, e não foram só do distintíssimo público, mas dos próprios funcionários.

Como o porcentual de determinada gratificação (dessas que abundam no serviço público) atingiu 100% em janeiro de 2019, os funcionários que estavam para se aposentar aguardaram essa “data ideal”. Segundo o governo, pouco mais de 6 mil se aposentaram no ano, em torno de um quarto dos 25 mil que sobraram. Resultado: aumentou a demanda e diminuiu o número de servidores.

Um caos anunciado, mas o governo se envolveu demais com a reforma da Previdência e se esqueceu de se planejar para a rebordosa. As telas de TV estão cheias de pessoas humildes que esperam sua aposentadoria ou pensão há meses, mães amamentando seus filhos de três meses sem o auxílio-maternidade, pessoas doentes, operadas, engessadas, sem auxílio-doença. É mexer com a fragilidade e, principalmente, os direitos dos cidadãos.

Sem prevenir, o governo não sabe como remediar e tudo o que tem a dizer é que daqui a uns seis meses, talvez, quem sabe, o sistema estará normalizado. É uma eternidade para quem tem que comer, morar, se locomover e pagar as contas. E também para um sistema que promete o máximo de 45 dias de espera.

É preciso um choque de eficiência e humanidade, com os programas digitais atualizados, informações corretas e disponíveis, treinamento, fiscalização, cobrança e, eventualmente, punição. Como deveria ser sempre no serviço público, tanto quanto no privado.

Minha mãe foi contadora dos institutos de pensão que antecederam o INSS, sem computador, internet, dados digitais, comunicação virtual. Tudo era à mão. Como pode o sistema piorar, em vez de melhorar, com toda a tecnologia e a modernidade? Ok. O público se multiplicou dezenas de vezes. Mas isso não justifica ineficiência.

Eu mesma vi mesas vazias em posto do INSS. Cadê esse aqui? De licença. E aquele? A mãe está doente. E aquele outro? Problema em família. Como informa a repórter Idiana Tomazelli, do Estado, cerca de 20% do quadro está em licença médica. 20%?! Só pode ser alguma epidemia...

É claro que há funcionários exemplares e que os salários são baixos, as condições precárias, o treinamento e a atualização de sistemas, aparelhos e os quadros humanos, falhos. Só não se pode admitir que o usuário pague o pato, vire vítima do Estado.

O ministro Paulo Guedes se reúne amanhã com o secretário da Previdência, Rogério Marinho, e espera-se um plano de emergência e outro de longo prazo. Não é falta de recursos. É falta de planejamento e de respeito.


Vera Magalhães: Censura está na moda

Veto ao Porta dos Fundos só foi possível porque há no País um ambiente leniente com o arbítrio

E logo na segunda semana da nova década, o Brasil voltou algumas para trás. Nos vimos de novo diante de uma discussão que parecia saída dos porões da ditadura nos anos 1970, quando burocratas decidiam que novelas, peças teatrais ou músicas poderiam ser veiculadas de acordo com circunstâncias políticas, religiosas ou morais.

Mais esse retrocesso não é algo fortuito, ou descontextualizado. Ele se insere no espírito do tempo do bolsonarismo, em que a ascensão de uma elite que teima em bater no peito para se dizer conservadora, quando é apenas reacionária e preconceituosa, permite a pessoas como o desembargador Benedicto Abicair, que já trazia esses fantasmas em sua alma antes da nova era, colocá-los para fora em forma de decisão judicial, uma vez que agora há “mercado” para isso.

É a tal “normalização” de uma série de condutas que a polidez civilizacional mantinha enrustidas até pouco tempo. Eu odeio esta palavra e acho que ela virou um daqueles curingas que a esquerda saca da manga toda vez que não consegue fazer uma autocrítica quanto aos próprios vícios, que permitiram que essa direita reacionária saísse da toca e galgasse o poder.

Mas, de fato, há uma leniência cada vez maior da sociedade com decisões, opiniões e atos que investem deliberadamente contra conquistas sociais, históricas e culturais que vieram a partir da redemocratização.

Direitos que levaram tanto tempo para ser estabelecidos, mas que podem desaparecer num par de anos, caso a sociedade e as instituições não percebam a corrosão rápida do tecido democrático que se dá a partir do Executivo e se espraia pelos demais Poderes, encontra ecos até no Ministério Público, contamina setores da classe artística e aparelha, às avessas, máquinas que antes serviam à agenda da esquerda.

Existe um fator muito poderoso nessa estratégia que tem o condão de potencializá-la: a presença cada vez maior da questão religiosa no debate público. Bolsonaro passou da constante citação a trechos da Bíblia para uma indisfarçada coalizão cristã de governo.

A parceria para a viabilização do Aliança pelo Brasil está sendo paga pelo presidente em forma de promessas de prorrogação de benefícios fiscais já existentes e da concessão de novos, como o escandaloso subsídio de energia para grandes templos, que vem sendo estudado à revelia da equipe econômica.

O proselitismo religioso sem disfarces a que o presidente e seus auxiliares se dedicam vai contaminando todas as esferas decisórias do governo, da política cultural a discussões vitais como o uso do canabidiol para fins medicinais, passando até pela discussão sobre a liberação ou não de jogo de azar no território nacional. Temas que deveriam ser decididos a partir de estudos de viabilidade jurídica, impacto econômico e outros fatores racionais viram debate de porta de igreja.

Diante deste quadro, não é de espantar que um desembargador “terrivelmente cristão” se julgue investido da missão divina de “acalmar” a sociedade, algo que certamente não consta de nenhum código que ele deve ter no gabinete para embasar suas decisões.

Que o presidente e seus principais auxiliares não abram a boca para condenar a censura escancarada a um produto cultural funciona como combustível do incêndio das garantias a que assistimos.

Desta vez coube ao STF colocar a focinheira nos dentes arreganhados do autoritarismo que espreita o País. Que sirva de lição aos ministros daquela Corte de algo que há muito se alerta: cabe a eles serem os bastiões da Constituição, e não mais um fator de instabilidade, como vêm sendo em muitos episódios recentes. É quando a democracia está em xeque que o vigor das instituições é testado.


Pedro S. Malan: ‘Presidencialização’ da política?

O papel de lideranças políticas responsáveis é reduzir – não aumentar – os graus de incerteza...

“Poderão as democracias sobreviver quando são as crenças pessoais e não os fatos que sustentam nossa visão de mundo? Esta é a pergunta que deverá marcar não apenas 2020, mas os anos seguintes.” Ela foi feita neste jornal (27/12) por Pedro Doria e é especialmente relevante no Brasil de hoje, marcado por uma certa presidencialização da política.

Não se trata, está claro, de peculiaridade de nosso país. Em seu último número de 2019, a revista The Economist comenta (pág. 125) o resultado de amplo mapeamento feito pela empresa Chartbeat, que mede audiências para jornalismo online. O universo inclui 5 mil sites e 4 milhões de artigos, divididos em 34 tópicos (pessoas e temas). Assim como no ano anterior, em 2018 o presidente Donald Trump dominou as atenções: foram 112 milhões de horas diárias na leitura de peças jornalísticas, em média mais de 300 mil horas por dia e picos de mais de 600 mil ou 700 mil. Nenhuma outra palavra ou tema rivalizou ao longo do ano, em termos de interesse sustentado, com Trump. Pudera, em apenas um dia de dezembro o presidente dos EUA emitiu nada menos que 123 tuítes. (O evento recordista, mas apenas por um dia, foi o incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris.)

Trata-se da presidencialização da política, versão EUA. O presidente é fonte inesgotável de notícias e de sua multiplicação através das redes sociais – por seguidores, pelos que discordam, por robôs de ambos os lados. O que importa é estar em evidência e ocupar sempre espaços na mídia, a favor ou contra; é manter permanentemente mobilizado o eleitorado.

É natural, compreensível, que o poder incumbente esteja no centro das atenções. Em regimes presidencialistas, o chefe do Poder Executivo ocupa lugar privilegiado. Não é surpresa que Jair Bolsonaro – que, como sabido, tem Trump como modelo – tenha visibilidade na mídia muito superior à de outras lideranças políticas. A Folha de S.Paulo (31/12/2019) listou suas próprias manchetes do ano, 365. Bolsonaro ocupa posição mais de duas vezes superior à do segundo colocado (governo); e está mais de três vezes e meia à frente do terceiro colocado – Lava Jato e Previdência, empatadas.

E quais os traços centrais dessa política presidencializada que caracteriza o Brasil de hoje e tende a predominar ao longo do próximo triênio? Decididamente, o presidencialismo à brasileira não é, desde a eleição de Bolsonaro, o conhecido presidencialismo de coalizão. Além de rejeitar coligações partidárias no Congresso, nosso presidente implodiu o próprio partido pelo qual foi eleito. (As liberações para emendas parlamentares, no entanto, bateram recorde em 2019.) Tampouco tem sido um presidencialismo de cooptação, de animação ou de isolação, como já os tivemos.

O nosso é um caso de presidencialismo de confrontação, à moda de Trump, para manter um eleitorado fiel permanentemente mobilizado. Para quê? Para 2022, decerto; talvez já para 2020, se o novo partido estiver regularizado até lá. E para mais também, talvez. O principal mentor intelectual de Bolsonaro, filhos e alguns ministros assim se expressou em vídeo recente(outubro de 2019): “A política não é uma luta de ideias, é uma luta de pessoas e de grupos. Tem que parar com essas concepções ideológicas gerais que não levam a parte alguma. O que você tem que saber é exatamente o que fazer no momento decisivo”. Ainda em outubro de 2019, via tuíte, já havia postado que “só uma coisa pode salvar o Brasil: a união indissolúvel de povo, presidente e Forças Armadas”. O que seria o mencionado momento decisivo? Ainda cumpre esclarecer.

A pergunta feita por Pedro Doria, relembrada acima, faz pensar em Aldous Huxley: “A sobrevivência da democracia depende da capacidade de um grande número de pessoas de fazer escolhas realistas à luz de informação adequada”. A observação, feita em 1958 (Admirável Mundo Novo Revisitado), permanece tão atual quanto relevante. Raymond Aron sempre apontou o fato de que, no mundo da política, crenças prevalecentes numa sociedade podem e devem ser vistas como parte integrante de teias de fatos, percepções e circunstâncias que configuram aquilo que chamamos realidade. Keynes, a seu turno, atribuía grande importância ao que denominou degrees of belief (graus do acreditar) prevalecentes em determinada sociedade. Entre nós, o tema foi tratado com brilhantismo por Eduardo Giannetti em seu livro O Mercado das Crenças, que antecipou os estudos do Prêmio Nobel Jean Tirole sobre produção, consumo e investimento em crenças. São todas, segundo penso, observações mais que relevantes para o Brasil de hoje.

Em Diários Intermitentes (póstumo, recém-lançado), Celso Furtado reflete sobre os políticos profissionais que conheceu de perto: “... um político puro, em última instância, decide em função das chances pessoais que tem para continuar ocupando espaço”. A observação é verdadeira, mas pode ser ampliada: não existe vácuo na política, espaços estão sempre a ser disputados. A estratégia voltada para a sua conquista, manutenção ou ampliação é constantemente revisitada à luz de fatos novos, crenças pessoais e, espera-se, alguns valores, lealdades, princípios e espírito público.

O papel de lideranças políticas responsáveis, em particular do presidente da República e seus principais colaboradores, é o de contribuir para reduzir – e não aumentar – os graus de incerteza sobre o futuro. Não com promessas, bravatas e discursos contra inimigos do País e do povo, internos ou externos. Mas com propostas de políticas públicas, o que exige exercício consistente de abertura ao diálogo, com base em moderação, serenidade, postura e compostura; exercício apto a inspirar um mínimo de confiança e cooperação na busca de (compartilhados) objetivos maiores. Árdua tarefa.

* Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Sergio Amaral: O Irã e os conflitos da diplomacia de Trump

Dificilmente haverá uma escalada milita EUA-Irã, mas tampouco um roteiro para a paz

Nos três anos iniciais de seu mandato, Donald Trump abriu várias frentes de negociação ou de conflito, com adversários e aliados, no afã de promover a revisão de uma ordem internacional que, embora concebida pelos Estados Unidos, começava a ser percebida por assessores como contrária aos interesses americanos. Fiel a seu estilo, Trump ameaça primeiro, adota sanções em seguida, para então denunciar acordos ou chamar os interlocutores à mesa de negociação, sempre bilateral.

As sanções econômicas tornaram-se um componente habitual da diplomacia, tanto que a unidade do Departamento do Tesouro que as desenhava e implementava foi transferida para o Departamento de Estado. Seu escopo foi ampliado, pois o alvo não é mais apenas um país, mas também seus parceiros comerciais ou financeiros (sanções secundárias).

Na Rússia, um dos oligarcas bilionários e próximos de Putin foi obrigado a abandonar a gestão de sua empresa para evitar a falência. Na Europa, membros da Otan foram induzidos a aumentar sua contribuição ao orçamento comum de defesa. Alguns países, como a Alemanha, foram ameaçados de aumento das tarifas de importação no setor automobilístico se não abandonassem o projeto do gasoduto Nord Stream, que levará gás russo aos consumidores alemães. Em alguns casos, as sanções nada tiveram que ver com disputas econômicas, como a penalidade imposta à Turquia para que libertasse um missionário americano. Ou as ameaças ao México por não restringir com mais rigor a passagem dos migrantes centro-americanos por seu território, a caminho dos Estados Unidos. E assim por diante.

Com a exceção do acordo comercial com a Coreia do Sul e da atualização do Nafta – dois arranjos comerciais limitados –, as negociações iniciadas pelo presidente norte-americano alcançaram êxito modesto, a despeito de sua conhecida habilidade de apregoar vitórias. Na maioria dos casos os entendimentos foram suspensos por um impasse, como na Europa; ou por uma trégua, como é o caso da China. Os resultados, até agora, não compensaram o desgaste à imagem dos Estados Unidos provocado pela adoção sistemática de medidas unilaterais.

Entre as negociações em curso, destacam-se duas, por sua relevância estratégica: a Coreia do Norte e o Irã. A primeira representa uma ameaça a Washington, pela suposta capacidade de Kim Jong-un de atingir o território norte-americano com um míssil balístico intercontinental, portador de ogiva nuclear. Apesar de Trump exaltar as conquistas de suas conversas com Kim, o fato é que não conseguiu extrair do líder norte-coreano um só compromisso para o início da desnuclearização. Os dois presidentes alcançaram unicamente a suspensão dos testes dos mísseis coreanos e dos exercícios militares norte-americanos. Esta frágil trégua, no entanto, está ameaçada por declaração recente de Kim de que poderá retomar os testes de mísseis intercontinentais se não forem reduzidas as sanções contra seu país.

O Irã não representa uma ameaça militar ao território americano, mas traz sério risco de uma conflagração, proposital ou acidental, no Oriente Médio. A história das relações entre EUA e Irã compõe um cenário de desconfianças, hostilidades, conflitos localizados ou por grupos interpostos, que já dura há várias décadas. Em 2013, o acordo de salvaguardas nucleares permitiu que, pela primeira vez, EUA e Irã se sentassem à mesa de negociação para celebrar um entendimento e assim pavimentar o caminho para a estabilização na região.

Ao assumir o governo, em 2018, contudo, Trump denunciou unilateralmente o tratado, sob o argumento de que suas cláusulas eram insuficientes, reintroduziu sanções e se ofereceu para negociar um novo instrumento, mais abrangente e rigoroso, o que Teerã se recusou a fazer. Mais recentemente, a morte de um contratante americano e as demonstrações e ameaças em frente da embaixada americana em Bagdá podem ter precipitado o atentado ao general Suleimani. Certamente, porém, haverá outras razões para essa decisão arriscada.

Ao início do governo, Trump delegou a Jared Kushner, seu genro, assessor de confiança e uma liderança na comunidade judaica americana, a missão de preparar um plano de paz para o Oriente Médio. Esse plano foi anunciado diversas vezes, mas nunca apresentado. Possivelmente uma das razões para o adiamento sucessivo do plano foi a de que, na prática, o plano já estava sendo executado, pela transferência da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém; pelo corte da ajuda aos palestinos; pela divisão no mundo árabe/muçulmano, pela qual um grupo de países, como a Arábia Saudita e os Emirados, já vinha tecendo uma estreita cooperação econômica com Israel; pela benevolência para com a colonização dos territórios ocupados. Tais políticas jamais seriam aceitas por setores do mundo muçulmano mais próximos de Teerã. O Irã é um “trouble maker”, um adversário dos Estados Unidos e um obstáculo à paz no Oriente Médio, disse-me certa vez o coordenador da política americana para o Irã.

Passados alguns dias do atentado a Suleimani e do clamor que provocou, os dois lados, junto com a ameaça de represálias recíprocas, começam a emitir sinais apaziguadores. Na verdade, nenhum deles tem interesse na agravação do conflito e numa eventual escalada militar. O Irã está ciente da superioridade militar dos Estados Unidos e da ameaça que essa superioridade representa para a sua própria sobrevivência. Trump tem presente que o atentado a Suleimani, num primeiro momento, poderá unir boa parte da sociedade norte-americana. Uma guerra, no entanto, seria um desastre eleitoral.

Dificilmente haverá uma escalada militar entre Estados Unidos e Irã, mas tampouco haverá um roteiro para a paz. O atentado a Suleimani reacende desconfianças e hostilidades e continuará a alimentar conflitos localizados e ataques terroristas.

*Ex-embaixador do brasil em Washington


Vera Magalhães: Os obstáculos de Guedes nesse início do ano

O noticiário do início do ano está coalhado de situações em que Jair Bolsonaro e alguma outra área do governo se contrapõem à diretriz de austeridade, corte a subsídios e combate ao populismo fiscal e tarifário da equipe do ministro Paulo Guedes (Economia). Trata-se de uma queda de braço que por ora passa meio batida pelo radar, uma vez que Guedes está em férias no exterior e só retorna ao Brasil brevemente para uma escala antes de Davos. Mas os focos vão se multiplicando.

O Estadão desta sexta-feira informa que Jair Bolsonaro quer conceder subsídio na energia elétrica para templos religiosos de grande porte, em mais um aceno político aos evangélicos, que têm sido um importante esteio de seu governo. Encomendou inclusive uma minuta de decreto ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque.

Subsídios tarifários e fiscais estão sendo combatidos pelo Ministério da Economia, que tenta, quase sempre sem sucesso, revogar vários que foram concedidos pelo governo da petista Dilma Rousseff.

O episódio dos templos não é o único a opor a área de Minas e Energia e o time de Guedes: há ainda a polêmica da revogação do subsídio às placas de energia solar em residências, pretendida pela Economia e pela Aneel e sustada por ordem de Bolsonaro, e a discussão sobre um colchão para os preços dos subsídios, esboçada por Bento Albuquerque e à qual a equipe da Economia tem sérias restrições, conforme informa o colunista Lauro Jardim em O Globo desta sexta.

Por fim, na cesta de problemas do início de ano que aguardam a volta de Guedes estão o caos no INSS, agora sob o guarda-chuva de seu superministério, a negociação com Bolsonaro sobre a reforma administrativa, que o presidente quer atenuar ao máximo, e a busca por recursos para a expansão prometida do Bolsa Família, conforme mostra reportagem da Folha nesta sexta.

Caos do INSS depõe contra discurso das reformas
As cenas de caos na análise de concessão de benefícios previdenciários, com estoque de mais de 1 milhão de pedidos não analisados e filas quilométricas com velhinhos, pessoas com necessidades especiais e crianças aguardando por horas para não serem atendidas, depõem contra o convencimento, por parte da sociedade, tanto da reforma da Previdência quanto da reestruturação do Estado, com sua redução –ambas medidas virtuosas e necessárias, mas que precisam ser implementadas com a necessária competência e com cuidado para com os cidadãos.

O governo perde a narrativa de que a reforma da Previdência foi bem estruturada quando o responsável pelo atendimento do INSS vai a uma rede nacional para admitir que o sistema não está ainda programado para calcular os benefícios pelas novas regras. Como defender que a informatização garantirá “conforto” aos usuários, palavra que ele usou, se as imagens mostram um colapso de atendimento?

Da mesma forma, essa impossibilidade de atender a demanda contradiz o discurso de enxugamento do atendimento humano na Previdência e sua troca por serviços informatizados, já que, da forma como estão estruturados, eles claramente não estão dando conta do recado.

A redução do Estado é algo desejável diante do caos fiscal do Brasil, mas ela tem de vir acompanhada de um choque de eficiência que não torne os serviços públicos, que já são de péssima qualidade diante de uma carga tributária das maiores do mundo, ainda mais caóticos.


Eliane Cantanhêde: Ricardo Galvão no MEC!

O governo que demite Galvão do Inpe é o que nomeia Vélez e Weintraub para o MEC

Depois os bolsonaristas de internet reclamam, sejam eles robôs de carne e osso ou meramente robôs, mas que jeito? Como deixar de comentar as falas, os posts e os vexames do governo, se o presidente Jair Bolsonaro e um ministro daqui, outro dali, dão a chance de mão beijada?

O mesmo presidente que demitiu o cientista Ricardo Galvão do Inpe – e de forma humilhante, antecipando pela imprensa – nomeou o curioso e meteórico professor Ricardo Vélez Rodríguez para o MEC e o substituiu em meses por outro “olavista”, o igualmente curioso, mas aparentemente não tão meteórico Abraham Weintraub.

Galvão é formado em Engenharia, tem doutorado em Engenharia Nuclear nada mais nada menos no MIT e, não satisfeito, ainda é livre-docente em Física. Depois de demitido por Bolsonaro, encerrou 2019 como um dos dez cientistas do ano na revista Nature.

Mas o principal troféu do professor foi outro, ainda bem mais objetivo, concreto: a ratificação dos dados do Inpe sobre o desmatamento na Amazônia. O governo, que demitiu Galvão após desacreditar e desqualificar os dados do Inpe, agora confirma, acredita e qualifica os mesmos dados. Bolsonaro vai readmiti-lo por justa causa?

Do outro lado, Vélez Rodríguez virou motivo de piada e Weintraub tem demonstrado uma certa birra com a língua portuguesa. Errar uma palavra pode acontecer nas melhores famílias, mas o ministro da Educação errou a primeira vez, a segunda vez e, agora, a terceira vez. É reincidente. E, cá para nós, não foram errinhos banais.

“ParaliZação”? “SuspenÇão”? “ImpreCionante”? Sem falar em crases...
Já que os Bolsonaros têm uma milícia digital bastante ativa, poderiam destacar uns três ou quatro soldados para fazer a revisão do que o ministro escreve. Ou, quem sabe?, criar um corretor ortográfico particular para ele.

Afora esses erros crassos contra a língua pátria, o ministro já atacou as universidades que, segundo ele, são focos de balbúrdia e de plantio de maconha. Enquanto isso, o presidente Bolsonaro chama o patrono da Educação brasileira, Paulo Freire, de energúmeno, e anuncia a “descentralização (essa é com Z mesmo) de investimentos da área de Humanas, como filosofia, sociologia e, deduz-se, antropologia.

Nesse contexto, faz todo o sentido que o presidente tenha nomeado quem nomeou para a Secretaria Nacional de Cultura, um órgão que pula de galho em galho, está cada vez mais contaminado pelo viés evangélico e foi empurrado bruscamente para o Ministério do Turismo. O que uma coisa tem com a outra? Não se sabe. Perguntem ao presidente, por favor.

Universidades, filosofia, sociologia, antropologia, cultura, cinema, teatro e ortografia estão, portanto, dentro de um mesmo saco: o das desimportâncias, dos que não servem para nada e estão dominadas pelas esquerdas internacionais que só pensam naquilo: destruir o Ocidente cristão.

Assim como Paulo Freire é um “energúmeno”, os livros didáticos são também um horror, “um montão, um amontoado de muita coisa escrita”, como definiu Bolsonaro. E vem aí uma reforma para “suavizar” esses livros. A tal “raça em extinção” está de olho...

Com Bolsonaro xingando Paulo Freire e criticando livros com muitas “coisas escritas”, mais o ministro da Educação escrevendo “paraliZação, suspenÇão e impreCionante”, dá um frio na barriga imaginar as políticas de educação e cultura e como ficarão os livros didáticos.

Mas ainda há tempo. O presidente não nomeou o professor Mozart Neves Ramos para a Educação, mas por que não Ricardo Galvão? Professor, homem da ciência, belo currículo, cidadão do bem. E, aliás, com um português claro, direto e... correto.


Eliane Cantanhêde: Governo Bolsonaro agora tenta recuperar equilíbrio na relação com Teerã

Planalto, Itamaraty e Forças Armadas esperam que venha um 'período de calma' depois do ataque americano que matou o líder militar Suleimani

Depois da nota de sexta-feira passada, claramente alinhada aos Estados Unidos e contra o Irã e o Iraque, o governo Jair Bolsonaro tenta agora recuperar um bom equilíbrio entre os EUA e o Irã. Ao mesmo tempo em que o Planalto considerou o discurso do presidente Donald Trump “conciliador”, o Itamaraty enviou sinais para o Irã de que tem todo o interesse em manter boas relações diplomáticas e comerciais com o país.

A decisão de cancelar a reunião que haveria entre diplomatas brasileiros e iranianos ontem, em Teerã, foi tomada pelo Itamaraty na noite anterior. Motivo: o embaixador do Brasil no país, Rodrigo Azeredo, que está de férias no Rio e deveria ter voltado a Teerã assim que estourou a crise, contraiu uma pneumonia e foi internado num hospital carioca.

O Itamaraty avalia que, ao sugerir manter a reunião, que estava pré-agendada e tinha como pauta a cooperação bilateral na área de cultura, o governo do Irã havia dado um sinal positivo a favor das boas relações entre Teerã e Brasília e não seria adequado enviar a encarregada de Negócios, Maria Cristina Lopes, que substitui o embaixador, mas é apenas primeira secretária. Ou seja, uma diplomata “júnior”.

Cristina havia sido chamada pela chancelaria iraniana para explicar a nota brasileira de sexta-feira, o que, do ponto de vista diplomático, aponta para um descontentamento do Irã em relação ao Brasil. Depois do encontro dela com os iranianos no domingo, porém, houve um certo alívio no Itamaraty e no Planalto, que classificaram a reunião como “pacífica”.

Num momento de grande tensão, porém, o Itamaraty considerou que seria inadequada uma nova reunião diplomática bilateral sem o próprio embaixador, que é, oficialmente, o representante do presidente da República no país. Um embaixador é indicado pelo presidente, sabatinado pelo Senado e tem, portanto, um status muito diferente de uma mera substituta, uma encarregada de negócios.

Na expectativa do governo, unindo Planalto, Itamaraty e Forças Armadas, vem aí um “período de calma”, depois do ataque americano que matou o líder militar Suleimani e da reação do Irã, que foi bem menos feroz do que temiam setores diplomáticos e militares mundo afora.

Os ataques não visaram a cidadãos ou militares americanos, abrindo uma brecha para que Trump fizesse um discurso “conciliador” e trocasse ameaças bélicas por retaliações comerciais. Ou seja: na avaliação de altos representantes do governo brasileiros, os dois lados deram sinais claros de que não querem ir “às últimas consequências”, leia-se, ir à guerra.

Uma alta fonte militar brasileira, porém, faz três ressalvas em conversa com o Estado: 1) é cedo para haver previsibilidade, porque a tensão continua e qualquer palavra ou ato fora do lugar pode reacender a beligerância; 2) mesmo sem mortes de americanos, o Irã usou 22 mísseis, “que não são 22 bombinhas de São João”, conforme o oficial; 3) não se trabalha com a hipótese de atentado na queda do jato com 176 mortos, mas no Brasil foi mal recebida a recusa de ceder as caixas-pretas para investigadores internacionais. Logo, nenhuma hipótese deve ser liminarmente afastada.


William Waack: Trump matou ‘Dr. Evil’

Desde o fim da Guerra Fria o Irã expandiu-se no Oriente Médio, e os EUA encolheram

A ordem do presidente Donald Trump para matar o general iraniano Qassim Suleimani expressa o fim da hegemonia americana no Oriente Médio. Estabelecida com grande abrangência desde o fim da Guerra Fria e a primeira Guerra do Golfo, em 1991, essa hegemonia foi perdida em grande parte por ações e erros dos próprios americanos, involuntariamente os principais responsáveis pela inédita expansão política e militar do Irã naquela região.

Como resultado de grandes acontecimentos, como a derrota do Taleban no Afeganistão, a desagregação do Iraque pós-invasão americana de 2003, a “primavera árabe” (que sacudiu monarquias sunitas), o acordo de potências (Rússia, China e as europeias) sobre o programa nuclear iraniano, o fim do Estado Islâmico e a restauração do poder de Assad na Síria, até o momento da liquidação do general, o Irã exibia uma posição política e militar no Oriente Médio mais forte do que possuía havia cinco anos. Levou uns 20 anos para chegar lá. O que muda agora?

A execução de Suleimani nada parece alterar na postura dos EUA diante da complexa situação do Oriente Médio: objetivos erráticos, concentração (uma quase obsessão) no conflito na Palestina, pouca vontade de se envolver em guerras, abandono de aliados (de militares egípcios a curdos). E não saber lidar com uma fratura fundamental na região: xiitas são apenas 10% entre os muçulmanos no mundo, mas quase a metade dos muçulmanos no Oriente Médio, o que ajuda a entender o peso dessa milenar disputa cultural, política e sectária em todos os vizinhos do Irã.

Boa parte da capacidade de expansão que o Irã registrou desde a Revolução de 1979 está no suporte sectário que recebeu de populações xiitas quase sempre tratadas como minorias perigosas em países árabes sunitas (alguns importantes para os EUA, como Arábia Saudita) – e não tanto o aspecto ideológico, embora o “feito” da revolução conduzida pelos aiatolás tenha sido o de virar de cabeça para baixo a relação entre religião e Estado no mundo islâmico.

A coligação levada adiante pelo Irã, num arco que vai do Afeganistão ao Mediterrâneo, passando pelo “coração” da região (norte do Iraque e Síria), mostrou-se razoavelmente coesa, enquanto o bloco “anti-iraniano” de aliados dos americanos tem motivos diversos, é mais fragmentado geograficamente e, pelo menos nas aparências, é adversário da principal potência militar amiga dos EUA na região, Israel, inimiga do bloco xiita também.

Embora bem menos poderoso, o Irã pode ser comparado à Rússia e à China no papel de “revisionistas” da ordem de segurança e poder vigentes desde o fim da Guerra Fria. Como russos e chineses, iranianos se consideram herdeiros de civilização milenar que teria “primazia” sobre seu entorno, mas, ao contrário do que aconteceu na Rússia e na China, no Irã a ideologia como eixo de ação do regime não cedeu e tem como objetivo expulsar do Oriente Médio o inimigo “Grande Satã”, tal como o líder revolucionário Ruhollah Khomeini batizou os EUA – o grande corrompedor, que o digam Adão e Eva.

Ocorre que a visão “estratégica” de Trump vem direto de filmes nos quais um “Dr. Evil” precisa ser eliminado. Pena que roteiros de Hollywood se preocupem menos com coisas como o fim de uma ordem hegemônica, isto é, quando outros ocupam o lugar de quem antes podia fazer ou desfazer. Do ponto de vista político e militar, Rússia e Irã derrotaram os EUA e na guerra civil da Síria. O Irã é o virtual “ocupante” do Iraque. A Turquia, integrante da Otan, faz o que quer.

Até a monarquia saudita olha hoje com mais cuidado para Moscou e mesmo Teerã, enquanto a China não esconde a intenção de, se puder, incluir o Irã no seu estratégico projeto de uma nova Rota da Seda. Mas Trump acha que matou o facínora.


O Estado de S. Paulo: O que tem que ser criticada é a má política, não a 'velha', diz Roberto Freire

Há quase 30 anos presidente de partido, ex-deputado fala em renovação e diz que já fez contatos com Luciano Huck por candidatura em 2022 pelo Cidadania

Matheus Lara, O Estado de S.Paulo

Aos 77 anos e há quase 30 na presidência de um partido político, o ex-deputado constituinte Roberto Freire, hoje sem mandato e dedicado exclusivamente ao comando do Cidadania (ex-PPS), se vê na vanguarda da renovação política no País. Um paradoxo do qual ele próprio ri e que tenta explicar: para ele, não há que se falar em "velha" ou "nova" política, mas sim de "boa" ou "má".

Ao Estado, Freire fala sobre o que entende ser esta mudança: uma estratégia que passa por aproximar seu partido dos chamados movimentos cívicos, de formação e renovação política, como o RenovaBR, Agora!, Acredito e Livres, que têm atraído e alavancado novas lideranças no País. Mas ele reconhece que se adaptar ao novo momento da política é uma questão de sobrevivência para os partidos. "Existe hoje uma nova formação política que não vem dos partidos tradicionais. O partido que queira continuar existindo tem que se adaptar ao que acontece na sociedade", afirma.

Em 2019, o Cidadania definiu seu novo estatuto ouvindo esses grupos. O partido definiu que não fechará mais questão em pautas no Congresso, por exemplo - uma forma de não constranger parlamentares que venham desses movimentos e que eventualmente tenha posição diferente da do partido. Esse tipo de tensão aconteceu este ano (2019) na reforma da Previdência, quando deputados como Tabata Amaral (PDT) e Felipe Rigoni (PSB) contrariaram suas siglas e agora respondem internamente.

Freire sonha em ter um dos principais nomes ligados a estes movimentos, o apresentador Luciano Huck, como candidato do Cidadania à Presidência em 2022, mas diz não querer apressar as coisas. "Não tem que precipitar nada", afirma. Veja os principais trechos da conversa.

Confira, abaixo, a entrevista:

Por que o Cidadania se abriu para os chamados movimentos cívicos?
São movimentos espontâneos formados por jovens que se interessavam por política e começaram a debater. Como no Brasil, para participar do processo político, há determinação legal de que só se pode fazer isso através de partidos, nós passamos a olhar para essa movimentação e tentar com eles dialogar para integrá-los. Existe hoje uma nova formação política que não vem dos partidos tradicionais. O partido que queira continuar existindo tem que se adaptar ao que acontece na sociedade.

Como evitar desencontro de pautas entre o que lideranças desses movimentos querem e o que o partido quer?
Não tem problema o desencontro de pautas. Eles têm a autonomia deles. O movimento não deixa de existir porque seus membros estão filiados ao partido.

Isso não coloca as bandeiras que o partido defende em 2º plano?
Não. O partido continua tendo suas bandeiras. Respeitará aqueles que vêm dos movimentos e seus filiados antigos. O partido continuará tomando posição (apesar de não fechar questão, que é a formalidade de orientação para voto da bancada no Congresso). O fato de alguém não votar com a posição do partido será respeitado.

Onde o Cidadania quer chegar com isso?
O mundo já não comporta mais paradigmas do passado. Estamos vivendo num processo em que instituições que foram fundamentais na sociedade industrial não são mais instituições que respondem às necessidades do novo mundo. Essa nova sociedade muda a política e não adianta imaginar que a atuação política vai ser a mesma. O Cidadania quer ser contemporâneo desse futuro. Não quer ficar perdido lá atrás. Queremos recuperar o diálogo entre sociais-democratas e liberais.

O senhor está há quase três décadas na presidência do partido. Como falar em renovação? Parece um paradoxo.
Sou responsável por liderar as mudanças no partido. Tem outros (partidos) que mudam todo ano e não renovam nada. Estou mostrando a você que quem está tendo diálogos com esses setores (movimentos) somos nós. Você pode até dizer que é um paradoxo (risos), mas na realidade, apesar de estar há tanto tempo, esse processo de mudança está sendo feito por nós. Eu estou comandando esse processo de mudança desde o PCB (de onde se originou o antigo PPS, que virou Cidadania em 2019). Não estou me acomodando, não.

A chamada 'velha política' tem sido bastante criticada nos últimos anos...
"Velha política"... O que tem que ser criticada é a má política. Não é a velha ou a nova, isso é um conceito equivocado. Tem que saber se é bom e acabou. A má política pode ser nova ou velha. Tem novos políticos que praticam a péssima política.

Mas o senhor ficou sem mandato justamente nesta onda de ataques à velha política...
Eu não tive voto. Respeito e não discuto a escolha do cidadão. Posso ter a visão de que foi feita uma escolha política equivocada, posso discordar, mas respeito. A política continua presente na minha vida. Trabalho em tempo integral à presidência do partido em Brasília.

O senhor pretende ser candidato de novo?
Não estou pensando nisso, não. Depois de um rechaço desse, tem que analisar bem se tem que voltar ou se encerrou o tempo de atividade parlamentar. Não me aposentei da política. Das urnas, também não, mas não está no meu horizonte. Estou num projeto concreto com o Cidadania de tentar que sabe articular uma alternativa democrática para 2022 para disputar a Presidência.

O senhor tem falado do apresentador Luciano Huck. Acha que ele será candidato pelo Cidadania?
Nao sei nem se ele vai ser candidato. Isso está no horizonte dele. Mas ele não decidiu ainda (por qual partido). Estamos muito distantes da eleição. Não tem que precipitar coisa alguma. Quem precipitou isso foi (o presidente) Jair Bolsonaro falando de reeleição em menos de um ano de governo. Tem muito tempo ainda. Não tem que ter pressa.

Mas o convite está feito a ele, certo?
Claro, há muito tempo já tivemos conversas.

Acha que ele teria chance nesse cenário polarizado? Qual o diferencial dele?
Não tem cenário polarizado. Tem extremos.

O senhor se refere a extremos que chegaram ao segundo turno em 2018, imagino. Huck tem chance nesse cenário de 'extremos'?
Não era na eleição. Bolsonaro se transformou em extremo depois que ele ganhou. Bolsonaro não foi eleito majoritariamente com voto da extrema-direita. Não foi isso. Teve voto de setores democráticos em Bolsonaro não porque era o grande candidato, mas por ser uma opção de 2º turno. Era um ou outro. A rejeição ao PT e não um apoio majoritário ao Bolsonaro.

Mas e Huck? Não acha que ele está demorando para se filiar a um partido e aparecer como pré-candidato?
Aparecer mais do que ele aparece? Ele é uma celebridade. Tem três anos ainda. E temos a eleição de 2020. Precisamos ver São Paulo, Rio, Campinas, cidades. Temos que estar preocupados com as cidades. É uma etapa. Vou tentar firmar nosso projeto político olhando para nossas cidades.

Falando em cidades, quem é pré-candidato a prefeito pelo Cidadania em capitais?
Queremos lançar pelo menos 15 candidatos em capitais. São pré-candidatos (os deputados federais) Marcelo Calero no Rio, Daniel Coelho em Recife, (e os estaduais) João Vitor Xavier em Belo Horizonte e Any Ortiz em Porto Alegre.

Muito se falou da fusão do partido com outros. Ainda existe essa possibilidade?
Não antes da eleição de 2020. Não sei depois. O Cidadania não exclui discussões com dois partidos: Rede e PV.


José Serra: Que o ano novo mereça esse nome

É hora de o Parlamento assumir efetivamente suas responsabilidades e partir para a ação

Este é o meu primeiro artigo de 2020, ano de muitos desafios e, espero, de muita dedicação para obtermos consensos nos principais temas de nossa agenda política. Num país continental e populoso como o Brasil, com tantos problemas sociais e desigualdades, mas com tanto potencial, não nos podemos contentar com os pequenos avanços na economia e, muito menos, com grandes retrocessos em áreas estratégicas como educação, cultura, meio ambiente e relações exteriores.

A frase de Otto von Bismarck “a política é a arte do possível” não se aplica aqui e agora. No Brasil de hoje precisamos de muito mais do que parece plausível. A política precisa ampliar os limites do possível e patrocinar uma verdadeira revolução em nossa sociedade. Nos últimos anos a política tem produzido crises e divisão na sociedade. Um processo que parece agravar-se a cada ano e precisa começar a ser revertido em curto prazo.

Não é fácil, mas também não é impossível. Aprendi ao longo dos meus anos de vida pública que se formos pessimistas no diagnóstico, mas otimistas na ação, encontraremos o caminho. Mais ação e menos retórica, mais diálogo e menos disputas, mais planejamento e menos improviso. É preciso tirar as coisas do papel.

A política econômica deste governo avançou na agenda fiscal e dos juros. O déficit público abaixo da meta legal e o controle da dívida são pontos importantes. O efeito das devoluções antecipadas de créditos concedidos ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) entre 2008 e 2014 explica boa parte do nível mais modesto da dívida bruta. Esse e outros fatores atípicos, como o volume expressivo de receitas extraordinárias, a exemplo das provenientes dos leilões do pré-sal, escondem o fato de que há ainda um longo caminho a percorrer no controle das despesas públicas, sobretudo as obrigatórias.

A aprovação da reforma da Previdência foi, sem dúvida, o destaque de 2019, mas as medidas de ajuste de curto prazo só vieram no final do ano, com as chamadas PECs fiscais, que ainda terão de tramitar e ser corrigidas pelo Legislativo.

Na área da educação, preocupa a inação do governo e do Congresso Nacional. Em 2019 não avançamos na discussão sobre o Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb). Além de assegurar os repasses desses recursos para 2020, precisamos dar caráter permanente ao fundo, melhorar a sua distribuição e aumentar os recursos de forma responsável. Paralelamente, precisamos garantir a correção do piso salarial nacional do magistério público da educação básica pela inflação.

Criado no governo Fernando Henrique e ampliado em 2006, no governo Lula, o fundo representa 80% do investimento em educação em mais de mil municípios brasileiros, como demonstra levantamento da organização Todos pela Educação. É utilizado para o pagamento de salários, merenda, transporte escolar, material didático e reformas em escolas. Neste ano, a previsão é de que alcance R$ 173 bilhões.

O Fundeb, que está aguardando decisão da Mesa do Senado há sete meses, perderá sua validade no final deste ano. Portanto, deve ser a prioridade na volta do recesso parlamentar.

Na cultura houve esvaziamento da Agência Nacional de Cinema (Ancine), com a não indicação de membros para sua diretoria, que hoje conta só com um diretor dos quatro do colegiado. Além de que a possível redução de atribuições e orçamento, no contexto da reforma administrativa a ser encaminhada pelo governo, tem causado instabilidade e desemprego no setor.

Em relação ao meio ambiente, a possibilidade de o Brasil abandonar o Acordo de Paris ou os ataques do governo brasileiro à Noruega e à Alemanha – que interromperam o recebimento de recursos importantíssimos do Fundo Amazônia – não podem ser ignorados. O Brasil pode ter de devolver cerca de R$ 1,5 bilhão destinado por esses países a combater queimadas, além dos R$ 130 milhões já suspensos em agosto. Paralelamente, as queimadas na Região Amazônica cresceram 30% em 2019 – o pior resultado desde 2008. O desmonte de sistemas de fiscalização ambiental é um retrocesso inadmissível, com consequências negativas para a imagem do País no exterior, dificultando nossas exportações e provocando uma forte fuga de investimentos externos.

De todo modo é importante esclarecer que os doadores do Fundo Amazônia não impõem condicionalidades à destinação dos seus recursos, não havendo, portanto, perda de soberania.

A questão do meio ambiente é apenas um exemplo do distanciamento do tradicional e reconhecido papel da nossa política externa. Deixando de lado o perfil conciliador e defensor dos interesses nacionais, sem amigos ou inimigos, optou-se por adotar um alinhamento incondicional com os Estados Unidos, para citar um caso. Adotou-se um discurso ideológico, com a prevalência das relações com os governantes, e não com as políticas de Estado dos países parceiros.

As polêmicas, os amadorismos e recuos marcaram o ano de 2019. É papel do Congresso acompanhar de perto as opções adotadas pelo governo na área externa e contribuir para que volte ao equilíbrio. Não podemos ver passivamente o Executivo tomar partido em rivalidades que não nos pertencem, pondo em risco parcerias, relações políticas e comerciais importantes. É urgente abandonar a política em que o tom belicoso sempre precede o pragmatismo, em que concessões são feitas em troca de pequenos afagos, mas sem nada que atenda efetivamente aos interesses do Brasil.

É hora de o Parlamento assumir efetivamente suas responsabilidades e partir para a ação. Parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade, não precisamos de uma lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Para ganhar um ano novo que mereça esse nome temos de merecê-lo, temos de fazê-lo novo. Sei que não é fácil, mas tentaremos, experimentaremos, lutaremos incansavelmente. É dentro de nós que o ano novo cochila e espera.

*Senador (PSDB-SP)


Fábio Alves: O petróleo e o PIB

Cada 10% de alta no preço do petróleo, PIB mundial perde 0,15 ponto em um ano

O temor de um conflito militar entre americanos e iranianos levou à alta no preço do petróleo e reacendeu dúvidas sobre a recuperação da confiança de consumidores e do investimento global neste ano.

Isso depois que a expectativa com a assinatura da fase 1 de um acordo comercial entre Estados Unidos e China, para dia 15, e também com uma saída (Brexit) negociada do Reino Unido da União Europeia injetou um maior otimismo em relação ao crescimento da economia global em 2020, após o ano passado ter sido marcado por uma desaceleração sincronizada do PIB mundial.

Após o ataque aéreo ordenado pelo presidente americano Donald Trump que matou o general iraniano Qassim Suleimani em Bagdá, na sexta-feira, o preço do barril do petróleo Brent chegou a superar a barreira de US$ 70, mas ao fim da sessão de negócios da segunda-feira, a cotação já havia cedido para o patamar de US$ 68, ou apenas US$ 2 acima do patamar negociado antes do ataque.

Ou seja, o estrago causado pelo ataque que matou o líder militar do Irã tem sido relativamente limitado até o momento e reflete a aposta de investidores de que o conflito não desembocará numa guerra em larga escala entre os EUA e o Irã. Todavia, os iranianos já prometeram vingar a morte do seu general. Uma retaliação é amplamente esperada. A dúvida é se um ataque iraniano a alvos americanos será de tal magnitude que ficaria inevitável uma guerra entre os dois países, arrastando aliados no Oriente Médio.

Nesse cenário, uma disparada no preço do petróleo não poderia ser descartada. Isso teria um impacto significativo sobre o consumo e o investimento global neste ano. É bom lembrar que, desde que bateu no patamar de US$ 58 no início do outubro, o preço do barril de petróleo já subiu mais de 17%.

Nos cálculos de Joseph Lupton, economista do banco JPMorgan, a cada 10% de aumento no preço do petróleo cerca de 0,15 ponto porcentual é retirado do PIB mundial em um ano. “A recente alta no preço do petróleo deve provavelmente elevar a inflação e reduzir o gasto dos consumidores.”

James Sweeney, economista do banco Credit Suisse, lembra que cinco das últimas seis recessões nos EUA foram precedidas por uma alta no preço do petróleo. “Houve várias mudanças dramáticas que devem tornar a economia americana mais resiliente a choques de petróleo”, diz Sweeney. “O gasto de consumidores com gasolina é historicamente baixo e as taxas de poupança estão elevadas, o que ajudam a acomodar preços mais altos.”

Por outro lado, o crescimento do setor de energia nos EUA fez com que o país deixasse de ser importador líquido de derivados de petróleo e que, portanto, a alta no preço dessa commodity pode ter até o efeito de elevar investimentos no setor. “Um choque global no preço do petróleo é um risco ao crescimento e se os preços continuarem subindo, a preocupação é com os efeitos não lineares na confiança e nas condições financeiras”, argumenta Sweeney.

Todavia, a expectativa ainda é de que o crescimento da economia global melhore neste ano em relação a 2019. Isso se deve a percepção de que a postura ainda acomodatícia dos principais bancos centrais vai absorver o impacto negativo de riscos geopolíticos, com o conflito EUA e Irã tomando o lugar do nervosismo com a guerra comercial entre americanos e chineses ou um Brexit duro. O Federal Reserve (Fed) já sinalizou que deve manter inalterados os juros americanos ao longo deste ano. O Banco Central Europeu (BCE) segue mantendo as taxas negativas. A China deve seguir injetando estímulos monetário e fiscal.

Ainda resta dúvida, especialmente nos EUA, se a fraqueza na indústria, que foi a mais afetada pela guerra comercial, poderia se espalhar para outros segmentos da economia americana, contaminando o setor de serviços. Mas a aposta dos analistas é de que o pior já passou em termos de confiança dos empresários e consumidores globais. E que o desempenho da economia mundial ganhe fôlego até o fim deste primeiro semestre. Isto é, se o conflito entre EUA e Irã não descambar para uma guerra em grande escala e se as negociações comerciais entre americanos e chineses continuem avançando.