O Estado de S. Paulo
Adriana Fernandes: Quem compra o Brasil?
Investidores gostam de segurança. E eles estão cada vez mais atentos
O assustador episódio do vídeo com a fala de inspiração nazista do agora demitido secretário de Cultura Roberto Alvim mostra que a melhora econômica de um País não é suficiente e não pode servir de escudo para aberrações em outras áreas do governo.
Não há como negar que o vídeo, que levou o presidente Jair Bolsonaro a demitir o seu auxiliar e provocou tanta indignação (inclusive de apoiadores do próprio governo), manchou ainda mais a imagem do País.
É bem verdade que a visão do mundo sobre Brasil já era ruim por diversas razões: corrupção, violência nas grandes cidades, política ambiental desastrosa... Mas ficou muito pior nesta sexta-feira depois da repercussão do vídeo de Roberto Alvim que parafraseia o ministro da Propaganda de Adolf Hitler.
Choca pensar que uma pessoa com esse perfil estava ocupando um cargo importante na área cultural no governo e sendo pago pelo contribuinte brasileiro.
É verdade que indicadores econômicos estão melhores, depois de um período longo de recessão. Uma reforma robusta da Previdência foi aprovada, os juros caíram de forma significativa, o crédito aumentando e a atividade econômica apontando uma luz no caminho até agora titubeante da recuperação. Outras reformas estão no Congresso para serem aprovadas.
É esse retrato que o ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe pretendem mostrar no Fórum Econômico Mundial de Davos em busca de atração dos investidores para financiar a retoma do crescimento mais forte do Brasil.
No ano passado, depois das primeiras semanas de governo, Guedes chegou a Davos com a reclamação repetida à exaustão nos encontros do fórum que imagem ruim do recém-formado governo Bolsonaro era injusta e provocada pela propaganda externa da esquerda brasileira que acabara de perder as eleições no País.
O frustrante discurso de seis minutos do presidente no palco central do encontro, com a presença de outros líderes não ajudou a mudar a fotografia, como queria o ministro.
Pois bem, o ministro planejava agora viver outro momento para mostrar os resultados. Não há impacto imediato dos investimentos. Ninguém espera encontros cancelados no fórum. Longe disso. Mas há, sim, preocupação para economia. Os ruídos trazem desconforto.
Investidor gosta de segurança. E eles estão cada vez mais atentos, principalmente os grandes fundos de investimento, em indicadores que vão além da situação financeira e do tamanho do crescimento do País. Estão focados também na aplicação de políticas ambientais, sociais e indicadores de governança.
Assim como o cidadão comum está cada vez mais atento ao que come e compra, o investidor começa a fazer o mesmo em temas como diversidade, meio ambiente, liberdade religiosa.
O Brasil está na contramão em muitos desses temas. O futuro que se vê, no momento, para o Brasil é o de um país não só dividido, mas que mantém a corda esticada o tempo todo.
A perspectiva no momento é que esse clima de estresse vai se prolongar e se acirrar ao longo do ano até as próximas eleições. A caminho dos Alpes suíços, Guedes teve que sair a campo. “Estamos indo para Davos para afirmar o vigor da democracia brasileira”.
Quem compra o Brasil? Não dá para dar reset nesta sexta-feira. Não foi coincidência.
O Estado de S. Paulo: Lilia Moritz Schwarcz critica declarações de Roberto Alvim
Lilia Moritz Schwarcz, antropóloga e historiadora Historiadora questiona versão de Alvim de que houve ‘coincidência’ de discursos: ‘Alusão é ofensiva a todos’
Ubiratan Brasil, O Estado de S. Paulo
A antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz repudia as semelhanças entre o discurso do ex-secretário de Cultura Roberto Alvim e o de Joseph Goebbels.
Como avalia a essência do discurso de Alvim no vídeo?
Não há piada alguma no fato de o então secretário da Cultura citar Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, sob uma música de fundo de Wagner, cabelos colados na cabeça e uma cruz ortodoxa da Hungria na lateral (mais informações nesta página). A alusão é ofensiva a todos os cidadãos brasileiros. Inaceitável. Quem namora com o nazismo quer colher tempestade política. É preciso que nossas instituições democráticas repudiem com veemência esse tipo de paralelo histórico.
Alvim disse que foi “coincidência retórica”. Afirmou ainda que “a origem é espúria, mas as ideias contidas na frase são perfeitas e eu assino embaixo”. Não há coincidência. A estrutura das frases é idêntica, não é possível se repetir um parágrafo inteiro sem ser proposital.
Uma coisa é coincidência, a outra é uma citação. O significado se faz em contexto. Na live com Bolsonaro, Alvim disse que ia apoiar projetos conservadores no plano de cultura.
A sra. já disse que ditaduras começam aparelhando a área cultural...
É preocupante o aparelhamento da cultura. Regimes ditatoriais começam atacando artistas, queimando livros, defendendo projetos populistas. Ou se corrompe a grande arte ou se promovem artistas muito engajados com o governo. Esse projeto cultural proposto pelo Alvim é um atentado à nossa Constituição, ao nosso direito de cidadão.
A citação sobre Wagner poderia levar à discussão de que a obra de um grande artista deveria ser avaliada independentemente do contexto histórico?
Nesse caso, não falamos de uma ode ao Wagner. O fato de o ex-secretário se apresentar no vídeo entre uma bandeira e uma cruz húngara, e fazer um discurso em que ao menos um parágrafo é uma citação de Goebbels, não permite uma análise isolada da beleza da música de Wagner. Não estamos para julgar a música, mas o uso que Alvim faz dela.
Elena Landau: Coalas
A receita da Austrália é simples: rigor fiscal, câmbio flexível e economia aberta
Coalas e jornalistas são espécies ameaçadas de extinção, uma pelos trágicos incêndios que atingiram a costa leste da Austrália, outra apenas por um mórbido desejo de um presidente que não convive bem com críticas.
Os ataques à mídia vêm escalando, dos boicotes via propaganda e exclusão de licitação ao desejo de extinguir a classe. É mais uma ameaça desse governo aos pilares da democracia liberal. Essas investidas têm consequências: dão base para os intolerantes saírem do armário nas redes sociais, cometerem atentado terrorista e tomarem decisões judiciais absurdas, como a censura imposta ao episódio de Natal do Porta dos Fundos. A reação da sociedade, em defesa da democracia e liberdade de expressão, ajuda a dar limites ao presidente.
O Congresso teve importante papel ano passado, ao dar andamento a uma agenda econômica relevante, mas também ao recusar iniciativas da Presidência de viés populista ou autoritário. O STF é mais errático, deu suporte inicial à fragilização do Coaf, mas se posicionou claramente contra os rompantes de Bolsonaro. Por enquanto, os pesos e contrapesos da democracia vão funcionando.
Os coalas têm menos sorte. Um verão excepcionalmente quente e seco tem tornado os incêndios, normais nesta época do ano, incontroláveis. Lá, como cá, os governantes não dão muita bola para o meio ambiente e ignoram os perigos do aquecimento global. O fogo consumiu áreas equivalentes nos dois países. Mas as semelhanças param aí: a Amazônia não pega fogo sozinha. Piadinhas com Macron e ONGs mostram o nível de irresponsabilidade de nosso governo. As queimadas em 2019 foram 30% maiores que no ano anterior, por obra de homens, que se sentiram encorajados pelo discurso do próprio presidente. O Dia do Fogo é um exemplo.
Acabo de voltar da Austrália, longe dos incêndios. Estava mais ao norte, nas praias de areias brancas e água transparente, com corais maravilhosos e peixes coloridos. Parece loucura viajar para o outro lado do mundo para ir à praia, se tenho o privilégio de ter o Arpoador logo ali e tantos lugares lindos pelo Rio e Brasil.
Me dei conta nessa viagem que férias para o carioca é achar um lugar para relaxar do estresse permanente que significa viver nesta cidade. A abertura oficial do carnaval mostrou cenas lamentáveis, arrastão e destruição. Difícil encontrar um grupo, de qualquer classe social ou região, que não tenha um parente ou amigo morto num assalto. Só contando com a sorte. Injusto colocar essa pecha só no Rio. Quando fui para uma praia paradisíaca na Bahia, passei a noite de Natal sob a mira de uma espingarda. E só estou aqui para contar porque não havia armas na casa e nenhum cidadão de bem reagiu.
Não falo só da violência, mas também da incivilidade e desrespeito que transformaram o Zé Carioca em um povo mal-humorado e descortês. São os estacionamentos em fila dupla; os cruzamentos fechados; o dirigir pelo acostamento; a mulher grávida e o idoso em pé nos transportes públicos; a bicicleta na calçada e/ou na contramão e o altinho na beira d’água. Sair dessa rotina é férias. Tanto faz se vou apenas à praia. Só não ter uma caixinha JBL batendo estaca aos berros é férias. Beber água limpa é férias.
Não por acaso, em 2018, o Brasil atraiu menos estrangeiros que o Irã e a Ucrânia, e arrecadou apenas R$ 6 bilhões com turismo, um terço do pequeno Portugal. Ano passado ainda registrou queda de 5% por conta da violência e da péssima imagem do País no exterior. Em boa hora Bolsonaro cancelou sua ida a Davos. Iria ser confrontado sobre política ambiental e a estapafúrdia condução do Itamaraty. Um constrangimento a menos.
Por onde andei na Austrália vi o oposto daqui: civilidade e cordialidade. Cidades onde nem sequer há sinais de trânsito. A população se preocupa com meio ambiente e cuida. Estava em um lugar deserto e procurei uma lata de lixo. Não tinha. Só uma placa: “O que você trouxe, você leva”. Simples assim. Educação e cultura têm esses efeitos.
Os economistas gostam de comparar os indicadores de produtividade do Brasil com os da Coreia do Sul e mostrar como perdemos o trem da história. Talvez a Austrália seja melhor referência, já que depende também das commodities e vem registrando déficits em conta corrente por muitos anos.
Como as nossas contas externas voltaram ao noticiário, o interesse no modelo “aussie” aumentou. A receita é simples: rigor fiscal, taxa de câmbio flexível e economia aberta. Já avançamos nas duas primeiras, mas continuamos uma das economias mais fechadas do mundo. É difícil entender como um governo que se diz liberal na economia não tem uma política de abertura comercial no radar. Sem ela e sem reforma ampla do Estado – administrativa e desestatização –, não conseguiremos um salto de produtividade.
Bolsonaro até andou falando de privatização e a venda dos Correios subiu no telhado. Mas isso é assunto para a próxima coluna.
* Economista e advogada
Eliane Cantanhêde: Pau para toda obra
Militares fazem ponte, combatem criminosos, limpam praias e... vão parar no INSS
Nos estertores do regime militar, toda vez que aparecia alguma encrenca, o presidente João Figueiredo ameaçava: “Chama o Pires!” Era uma senha para tentar assustar a oposição. Ou ela se comportava direitinho, ou o governo convocava o ministro do Exército para dar um jeito. No fim, Figueiredo nunca convocou para valer os militares e, afora os percalços e recuos, a transição foi concluída e o poder reassumido pelos civis.
Hoje, quatro décadas depois, numa situação bem diferente, a ordem do capitão presidente Jair Bolsonaro é mais genérica e vale para tudo: “Chama os militares!” E, assim, ele entupiu o governo de militares de diferentes patentes, desde oito ministérios até o segundo e o terceiro escalões de praticamente todas as áreas.
Eles estão na infraestrutura, nos transportes, no meio ambiente, na educação, no turismo, nas agências reguladoras, nas estatais. E as sucessivas demissões de generais, por cima, não desestimularam os colegas de várias patentes, por baixo. Calcula-se que em torno de 80% deles sejam do Exército, mas Marinha e Aeronáutica não ficaram de fora. Pelo menos, não reclamam.
O fato é que, com a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que permitiu o uso das Forças Armadas na guerra urbana de cada dia, os militares são pau para toda obra. Já eram essenciais para a construção de estradas e pontes em locais distantes, por exemplo, apagam incêndio na Amazônia, limpam praias do maior derramamento de óleo da história, estão em todas. E vão parar no INSS.
Entre hoje e segunda-feira deve chegar ao Ministério da Defesa o decreto do Planalto autorizando o emprego de 7 mil militares da reserva para apagar o novo incêndio, o colapso na concessão de aposentadorias, pensões, auxílio-maternidade, auxílio-doença.
Nas Forças Armadas, há uma certeza e muitas dúvidas. A certeza é de que não haverá recuos, como houve na intenção de dar subsídio para a conta de luz de templos evangélicos, ops!, religiosos. A decisão está tomada.
Incertezas: há 7 mil militares da reserva dispostos a descascar o abacaxi por 30% a mais no soldo? Qualquer um pode aderir, sem nenhum tipo de triagem? Subtenentes e capitães, entre outros, vão assumir o balcão de atendimento, cara a cara com idosos, doentes e acidentados legitimamente mal-humorados?
E o treinamento? Supõe-se que os cerca de 23 mil servidores restantes no INSS saibam o que estão fazendo, conheçam os direitos dos beneficiários, as velhas e novas regras, estejam aptos a solucionar dúvidas diligentemente. E os militares que não têm nada a ver com isso, nunca trabalharam nessa área?
Enfim, o que era apenas uma trapalhada, com falta de planejamento e gestão, virou um problemaço que afeta mais de 1,3 milhão de brasileiros e só vai piorando a cada dia. O general Santos Cruz, um dos demitidos por Bolsonaro, opina: “Militares no INSS? Não tem cabimento”. E o governo reage: se não forem os militares, quem vai salvar essa lavoura?
Ok, seria muito melhor deixar os militares na reserva e convocar os recém-formados desempregados. Nunca se esqueçam, porém, da burocracia: militares podem ser arregimentados com gratificações e abonos, mas os desempregados só poderiam entrar por concurso ou por terceirização. E o tempo? E o custo?
Além disso, despreparados por despreparados para essa guerra, tanto faz os militares ou os jovens que saem de universidades ou do segundo grau. Dê no que dê, quem continua pagando o pato é quem está na longa fila, confirmando que a Previdência no Brasil só é eficiente para arrecadar, jamais para pagar o que deve. Militares podem até ajudar numa hora dramática, mas nem se fizessem mágica dariam um jeito nisso.
Vera Magalhães: Toffoli mantém juiz de garantias, mas limita atuação e adia entrada em vigor
Presidente do STF negou pedidos de liminar para suspender o dispositivo, mas disciplinou sua adoção
Meio termo. Dias Toffoli negou os pedidos feitos por partidos como Podemos e PSL e entidades como a AMB para sustar, por inconstitucional, a criação da figura do juiz de garantias, que conduzirá os processos na fase de investigação. Como dissemos no nosso relatório semanal Fique de Olho, no BRPolítico, Toffoli não deixou a questão para o vice-presidente da Corte e relator das ações, Luiz Fux, que tem postura mais contrária ao dispositivo do juiz de garantias. Mas em sua pormenorizada decisão, o presidente do Supremo mitigou em vários pontos a lei aprovada pelo Congresso.
Depois e mais brando. Em primeiro lugar, Toffoli prorrogou em seis meses o prazo para que o Judiciário ponha em prática a divisão dos processos entre dos juízes. Trata-se de uma decisão perfeitamente razoável: era impraticável que uma medida que altera totalmente a rotina da Justiça passasse a vigorar na semana que vem. Além disso, ele excetuou casos que não terão a atuação de juiz de garantias (aqueles que hoje são decididos por tribunais do júri e os da Justiça Eleitoral) e sustou a determinação de que em comarcas com um juiz seja feito um rodízio com outras comarcas.
Consultas antes de decidir. Toffoli conversou com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Também ouviu o ministro Sérgio Moro (Justiça), numa aproximação surpreendente, já que o presidente está na ala de ministros do STF que têm sistematicamente questionado métodos e procedimentos da Lava Jato, operação que notabilizou Moro e da qual ele é um defensor ardoroso. Além do fim do rodízio, vieram do ministro o pedido de adiamento da vigência da lei e da suspensão de uma determinação de que juízes que tiverem acesso a uma prova ilegal sejam impedidos de julgar.
Ele gostou. O resultado foi que Moro elogiou a decisão de Toffoli nas redes sociais. Embora tenha reiterado que, na sua opinião, a simples adoção do juiz de garantias seja um erro, o ministro disse que a decisão do presidente do STF ajuda a corrigir falhas na lei aprovada por deputados e senadores (faltou ele dizer que ela foi sancionada desta maneira por seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro, depois de consulta ao próprio Toffoli).
William Waack: OCDE e resultados
O governo brasileiro comemora um gesto amistoso do governo americano
Dá para entender a empolgação do governo brasileiro com a renovada garantia verbal de Washington de apoiar o Brasil como primeiro da fila para ingresso na OCDE. Trata-se de comemorar algum carinho vindo de Trump, depois de vários tapas.
A OCDE congrega aproximadamente 80% do comércio e investimentos mundiais, e aí estão incluídos os 36 integrantes da organização e seus “key partners”, entre os quais figuram Brasil, China, Índia, Indonésia e África do Sul. Na América Latina, o México faz parte desde 1994, e o Chile, desde 2010. A Colômbia foi convidada oficialmente em 2018 e, desde 2015, a OCDE negocia a entrada da Costa Rica.
A mais recente adesão foi da pequena Lituânia, completando o “cerco” de países bálticos junto à Rússia, cujo acesso foi congelado em 2014 logo após a anexação da Crimeia. É óbvio que é um gesto político a aceitação de países na organização – cuja lista de membros iniciais em 1961 obedecia às principais alianças políticas e militares ocidentais da (mais as então “neutras” Áustria e Suíça).
A Índia tem relutância de caráter doméstico em integrar-se ao grupo, enquanto a entrada da China é parte de uma formidável relação geopolítica com os Estados Unidos, mas os dois gigantes asiáticos são alvo de resistência americana por uma outra questão que envolve o Brasil: é a designação como “país em desenvolvimento” aplicada pela Organização Mundial do Comércio. Essa definição, que garante tratamento preferencial a esse grupo dentro da OMC (e interessa, obviamente, ao Brasil), é alvo de Trump.
Em outras palavras, Trump acha que um país não merece fazer parte da OCDE (“desenvolvidos”) e, ao mesmo tempo, desfrutar de tratamento preferencial na OMC, cujo sistema de regras multilaterais o Brasil se esforçou durante décadas para desenvolver e consolidar e está agora sob feroz ataque do amigão na Casa Branca. Onde teremos de ceder?
Em questões de comércio, aliás, o Brasil recebeu as piores bofetadas verbais do presidente americano, que acusou o País (sem justificativa) de “manipulador da própria moeda”. A quase infantil alegria com que a diplomacia brasileira se alinha a Trump em votações na ONU (como o voto contra resolução anual da ONU que condena o embargo econômico a Cuba, posição que uniu todos os governos civis brasileiros) contrasta com o pragmatismo com que vários setores manobram no amplo e complexo campo das relações bilaterais com os EUA.
Os militares brasileiros, interessados em garantir acesso a tecnologias, não aderiram ao esforço americano (entre outros países) de limitar por princípio o direito do Irã de desenvolver métodos de separação de isótopos (enriquecimento de urânio), pois isso significaria colocar sob risco o próprio sistema de propulsão nuclear do projeto de submarino brasileiro. Os acordos para a utilização da Base de Alcântara pelos americanos não incluem restrições ao desenvolvimento de mísseis pelo Brasil, uma velha e tradicional pressão americana.
Pragmática em relação a Washington tem sido sobretudo a postura dos setores dinâmicos do agronegócio, que frearam arroubos diplomáticos brasileiros de apoio a Trump equivalentes a uma espécie de vassalagem quando se trata de posturas sobretudo na intrincada situação do Oriente Médio. Produtores brasileiros são os principais competidores dos Estados Unidos na produção de grãos e proteínas, num difícil jogo para profissionais que envolve a União Europeia e, claro, o principal parceiro comercial, a China – os interesses do agronegócio foram, até aqui, a principal oposição a alguns aspectos relevantes da política externa de Bolsonaro.
Todo mundo reconhece que relações entre países dependem de gestos também. Mas resultados práticos contam mais ainda.
Vera Magalhães: Passa no Posto Ipiranga
Bolsonaro voltou das férias mão aberta, mas cabe a Guedes assinar os cheques
Nada como uma melhora, mesmo tímida, nas condições financeiras e um verão ensolarado para deixar a pessoa animada e propensa a gastar. Parece ser esse o estado de espírito de um Jair Bolsonaro que, ademais, se esqueceu de levar o protetor solar na mala e voltou das férias na praia tão torrado quanto mão aberta.
Subsídios? Tem de ver isso aí, talkey? Salário mínimo? Dá para pagar um pouco mais. Décimo terceiro para o Bolsa Família? Passa ali no Posto Ipiranga. Teto de gastos? Vocês da imprensa só querem falar de notícia ruim. E Paulo Guedes que trate de assinar os cheques.
Mas existe dinheiro para todas as bondades que o presidente quer praticar em 2020? Assegurado, não. Embora tenha concordado com o reajuste maior que o previsto inicialmente no mínimo, o próprio ministro da Economia deixou claro que ainda não há provisão de receita para bancar seu custo, de R$ 2,3 bilhões neste ano. Diz que em breve será anunciado de onde vai “aparecer” o dinheiro. Aguardemos.
Ou oremos, já que, tudo indica, uma das tendências do ano novo da gastança de Bolsonaro é ajudar a encher as burras das igrejas evangélicas, que, afinal, estão coletando “de graça” assinaturas para a criação do Aliança pelo Brasil.
Depois de aventar o subsídio da conta de luz para templos religiosos, o presidente desconversou. Disse que ainda não decidiu e que está levando “pancada” à toa. Como a desinformação é o método de Bolsonaro se comunicar, convém esclarecer: a seu pedido, o Ministério de Minas e Energia elaborou uma minuta de decreto com a subvenção aos templos. O populismo tarifário-religioso custaria R$ 30 milhões ao ano.
A manutenção de outro desses benefícios, o concedido – por Dilma Rousseff, é bom frisar – à colocação de placas de energia solar em residências, custará algo como R$ 30 bilhões até 2035. O presidente deve achar que o Posto Ipiranga fabrica dinheiro.
Não só ainda não tem essa capacidade como terá limites ainda mais estritos para cumprir neste ano. Não poderá, por exemplo, custear o estouro do teto de gastos por parte do Judiciário e do Legislativo, o que já vai custar uma pressão política e tanto num ano cheio de votações complicadas no Congresso e demandas igualmente complexas no STF.
As privatizações, com as quais Guedes e equipe estimam obter exagerados R$ 150 bilhões em 2020, ainda dependem de uma série de circunstâncias políticas, muito mais complexas quando se sabe que este é um ano eleitoral – portanto com calendário legislativo mais curto e disposição dos parlamentares ao desgaste bastante reduzida.
A venda da Eletrobrás, carro-chefe do pacote, conta com a obstrução ativa do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que tem sido um “facilitador” da vida do governo em outras áreas, mas fez desta pauta um cavalo de batalha.
Por fim, Guedes empenha um otimismo exagerado em que a linha de montagem de reformas que desenhou vá funcionar azeitadinha, mas ela tende a já emperrar na saída, uma vez que Bolsonaro não parece disposto a bancar a reforma administrativa e se indispor de vez com o funcionalismo público. O presidente demonstra crer que já fez sua cota de maldade com a reforma da Previdência, e sua prioridade neste ano, está óbvio, é pavimentar o caminho para o partido de sua família e atravessar o deserto da denúncia contra o filho Flávio, sem muitos solavancos.
Guedes estará em Davos na semana que vem, onde deve desfilar os relativamente bons resultados da economia no primeiro ano e propagar perspectivas mais animadoras para o segundo. Diante da diferença de tom entre ele e Bolsonaro nesta largada, a melhor notícia é que o presidente tenha desistido de acompanhá-lo na viagem.
Monica De Bolle: Ah, o liberalismo...
Como qualquer outra filosofia ou pensamento, o liberalismo deve evoluir e mudar com o passar do tempo
Não há nada mais libertador do que possuir algum conhecimento sobre a história econômica. Ela ajuda a remover amarras ideológicas, pensamentos pré-fabricados, noções equivocadas. Em um mundo em que dogma e fé reinam supremos sobre a ciência e fatos, a história está lá, registrada, para revelar que nenhum modelo econômico atravessa a história intocado pela mudança social. Se atravessa assim é porque o trabalho de reavaliar conceitos em épocas de profundas mudanças não está sendo feito, e isso em nome de algo. É preciso perguntar então: em nome do quê? A resposta depende do país e das circunstâncias.
Tomemos o caso brasileiro. Reina no País visão pueril do liberalismo, uma visão vitoriana, digamos. A Inglaterra do século 19 é a referência histórica para parte desse puritanismo, ainda que os que defendem a visão vitoriana não o façam conscientemente. A Inglaterra vitoriana é o exemplo mais puro do laissez-faire, da atuação da mão invisível dos mercados, o berço do liberalismo em sua forma castiça. Ao menos, essa é a maneira como muitos enxergam o país em que a filosofia de Adam Smith, de David Ricardo, de John Stuart Mill foi testada com estrondoso sucesso. A história econômica sustenta a tese? Ou teria a ilha flertado com o protecionismo e o nacionalismo econômico no alvorecer do liberalismo?
A história econômica mostra que o que houve foi muito mais do que um flerte. A Inglaterra abraçou o protecionismo com vigor por 31 anos, de 1815 a 1846. O enredo é fascinante. Em 1815, a economia britânica se recuperava das guerras napoleônicas. Durante a guerra, barreiras de todo tipo foram erguidas para evitar que a ilha sucumbisse ao continente; entre elas, uma proteção maciça ao comércio de grãos e outros produtos agrícolas. Tarifas elevadas aplicadas a esses produtos conferiram ganhos aos produtores e donos das terras, já que os preços subiram significativamente. Quando a guerra acabou, a pressão para que o protecionismo não fosse eliminado foi enorme e o Partido Conservador, representante dos grandes latifundiários, sucumbiu. As Leis dos Cereais entraram em vigor em 1815 e se mantiveram vigentes por três décadas. Durante esse período, o mercado britânico para determinados grãos ficou completamente fechado, para espanto dos seguidores de Smith e Ricardo. Economias essencialmente agrárias e periféricas, como os EUA e o Zollverein – o conjunto de regiões que viriam a formar a Alemanha, mas que então funcionavam sob uma união aduaneira – já não podiam exportar para o centro da economia global.
Seguindo o pensamento de Alexander Hamilton e Friedrich List, sabemos que os países emergentes da época não viram outra saída para o próprio desenvolvimento senão abandonar o livre-comércio e adotar práticas de substituição de importações para se industrializar. Quando o Partido Conservador britânico rachou em 1846, produzindo a revogação das Leis dos Cereais, os EUA e as regiões do Zollverein haviam conseguido erguer algumas indústrias internacionalmente competitivas, como a têxtil. Assim, quando a Inglaterra resolveu pôr fim à sua era protecionista, seu setor de manufaturas já não tinha mais o monopólio global em diversos produtos. Essa situação haveria de se agravar nas próximas duas décadas, época em que os preços dos grãos e cereais também seriam impactados negativamente. Ou seja, não só a indústria britânica estaria em situação menos privilegiada do que antes da adoção das Leis dos Cereais, como também os setores agrícolas estariam sofrendo com os preços em declínio. Não é surpresa, portanto, que às vésperas da unificação alemã, em 1871, o debate sobre as vantagens do protecionismo na terra de David Ricardo estivesse novamente a pleno vapor.
Há várias maneiras de interpretar as escolhas do Reino Unido no século 19. Uma delas é afirmar que o protecionismo acabou dando impulso à industrialização na periferia à época, prejudicando a Inglaterra, o que é em parte verdade. Contudo, a industrialização desses países ocorreria mais cedo ou mais tarde com ou sem as Leis dos Cereais. Outra maneira, mais controvertida, é afirmar que a ilha do liberalismo castiço errou ao abandonar o protecionismo agrícola. Afinal, se tivesse mantido as restrições ao comércio teria ao menos preservado uma parte de sua economia. Não tenho lado nem tese nessa história. Conto-a apenas para que os leitores tenham claro que o liberalismo teórico, sobretudo o puritano, é muito diferente na prática. Conto-a para ilustrar de forma indireta o equívoco cometido por muitos no Brasil de amarrarem-se a ideias sem entender o contexto em que as medidas por elas suscitadas haverão de ter lugar e sem compreender que, como qualquer outra filosofia ou pensamento, o liberalismo deve evoluir e mudar com o passar do tempo.
* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Rubens Barbosa: França dividida
Depois de 18 meses de governo, Macron parece isolado e com crescente dificuldade política
De passagem por Paris, procurei entender a controvérsia em curso hoje na França sobre a reforma da previdência social. O país está dividido entre a pressão de parte da sociedade para preservar regimes especiais de aposentadorias e a necessidade de se ajustar a um mundo em rápida transformação.
A eleição presidencial de 2017 trouxe uma forte renovação na vida política da França. A vitória do presidente Emmanuel Macron contra o establishment e contra os extremos de direita e de esquerda deu-lhe um mandato para reformar o país. Criou-se uma grande expectativa pelo anúncio de reformas muito semelhantes à da atual agenda brasileira: reforma das relações trabalhistas, da previdência social, tributária e da educação, redução de privilégios corporativos e do gasto público, mudanças na economia para melhorar a competitividade dos produtos franceses. Depois de dois nos e meio de governo, não houve muitos avanços: nem os impostos nem o desemprego (8,5%) foram reduzidos, o déficit comercial é crescente e poucas reformas chegaram a ser efetuadas (as 35 horas de trabalho semanal continuam). A crise política e social vivida pelo governo Macron tem como substrato uma rápida deterioração da dívida pública, que em setembro alcançou seu recorde histórico de 100,2% do produto interno bruto (PIB), sem perspectiva de redução do gasto.
As medidas iniciais provocaram forte reação e manifestações dos coletes amarelos. A resposta do governo foi a organização de “grandes debates” para abordar todas as reivindicações populares e as reformas propostas. O resultado dos encontros mostrou algumas áreas de consenso nacional, como a urgência de providências relacionadas à mudança do clima e à redução dos impostos, a melhoria dos serviços públicos e a desburocratização com a redução do papel do Estado. No fim de janeiro Macron apresentará o conteúdo do que chama de “pacto produtivo”. Nele estarão mencionados, entre outros itens, dispositivos fiscais a favor de investimentos no que denominou transição ecológica da economia, o que incluirá pedido para que a União Europeia adote um mecanismo de taxação para evitar a importação de produtos com forte teor de carbono e um programa de investimento voltado para o futuro da indústria 4.0. São esperadas também a redução do Imposto de Renda, medidas na saúde e educação e maior autonomia para governantes eleitos regionalmente.
A apresentação da reforma da previdência levou ao maior movimento grevista depois da 2.ª Guerra Mundial. O país está paralisado há 40 dias e viu ressurgir o poder dos sindicatos, abalado pela ação espontânea dos coletes amarelos, o movimento social mais sério e complexo desde as manifestações estudantis de maio de 1968.
O sistema previdenciário francês mantém muitos privilégios e vantagens, obtidos durante os chamados gloriosos 30 anos que começaram logo depois da guerra e se estenderam durante os anos mais positivos da globalização, de 1989 a 2008. Nesses momentos, reforma significava progresso, avanços sociais para melhorar a vida das pessoas: proteção contra as incertezas, maiores salários, melhor aposentadoria, redução da duração do trabalho. Hoje transformação ou reforma, na visão da oposição a Macron, significa sacrifício e recuo social, isto é, salários reduzidos, mercado de trabalho liberalizado, ortodoxia financeira, orçamentos apertados, aposentadorias retardadas.
A proposta de Macron previa mudanças significativas, em especial o aumento da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos a partir de 2027, a fusão num só dos 42 fundos de pensão, administrados independentemente e o fim dos regimes especiais (ferroviários, militares, policiais, bailarinos da Ópera de Paris, por exemplo, se aposentam com menos de 60 anos e maiores pensões). Propõe também um regime de pontuação pelo qual quanto mais tempo um trabalhador ficar no mercado, mais pontos ele acumula e maior será sua pensão. Hoje 18% da força de trabalho se aposenta pelos regimes especiais com pensões maiores do que a média.
Depois de 18 meses de governo, Macron parece isolado e com crescente dificuldade política. O primeiro-ministro Édouard Philippe continua a negociação com os sindicatos para poder avançar com a reforma da previdência. No fim de semana, para tentar desbloquear as negociações, o governo cedeu e ofereceu retirar provisoriamente a proposta da idade mínima de 64 anos (dependendo de acordo com os sindicatos sobre o equilíbrio e o financiamento das aposentadorias). Com isso é difícil que a reforma consiga reduzir o custo crescente previdenciário (14% do PIB). Essa significativa concessão aos sindicatos contraria o pronunciamento presidencial de fim de ano, no qual Macron reafirmou que não recuaria no tocante ao fim dos regimes especiais, mas admitiu que o caráter universal da reforma não significa uniformidade (concessões foram feitas aos militares, policiais e bombeiros, entre outros). A versão final da reforma será submetida à votação da Assembleia Nacional em fevereiro.
O resultado da queda de braço com os sindicatos determinará o futuro do governo Macron e se a França pode ser reformada e modernizada. Tudo indica que, prevalecendo a força dos sindicatos, a reforma saia bastante diminuída. Macron se enfraquecerá e o centro, representado pelo movimento criado pelo presidente francês, tenderá a desaparecer, a exemplo do que aconteceu no Reino Unido.
A crise interna vai debilitar as ações externas do presidente francês. Defensor do fortalecimento da soberania da Europa, Macron vê a unidade europeia diminuir com a saída do Reino Unido da União Europeia, com a emergência de movimentos nacionalistas e populistas de direita em muitos países europeus e com a saída de cena de Angela Merkel, sua principal parceira. Nesse quadro, com a Europa fragilizada, “à beira do precipício”, num mundo hostil, entre os Estados Unidos e a China, é difícil Macron realizar sua ambição de liderar a União Europeia, como ficou claro agora na crise EUA-Irã.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
Pedro Fernando Nery: A economia de Petra
'Democracia em Vertigem' analisa a polarização no País, sem esconder que tem um lado
Democracia em vertigem de Petra Costa foi ontem indicado ao Oscar de melhor documentário. Petra é a 1.ª diretora brasileira indicada à premiação. Se vencer em 9 de fevereiro será a 1.ª vez que o Oscar será recebido por um brasileiro. Mas desta vez haverá muita torcida contra.
Tom Jobim famosamente afirmou que no Brasil sucesso é ofensa pessoal, mas a grita contra Democracia em vertigem é de outro tipo. E é também natural: o filme se propõe a analisar a polarização no País a partir de 2013, sem esconder que tem um lado. No Twitter, a conta oficial do PSDB já ironizou o feito do filme, parabenizando Petra pela indicação na categoria “melhor ficção e fantasia”. O proeminente crítico Kenneth Turan, do Los Angeles Times, já concebera que o filme é “mais um ensaio do que um documentário clássico” (o que não impediu de tecer elogio à obra).
Esse é um filme sobre a crise política, mas é também sobre a nossa crise econômica: e essa coluna é sobre o confuso olhar de Petra na economia. Assim, não vamos discutir outras controvérsias já debatidas nos últimos meses (elas incluem dúvidas sobre o passado clandestino de seus pais; alterações deliberadas das imagens usadas; e a total omissão quanto a tentativa de assassinato do líder da corrida eleitoral, estranha em um filme sobre polarização e enfraquecimento da democracia).
De início, já há um problema factual quanto ao desemprego, consoante com a narrativa de Petra de que o governo inclusivo de Lula e, depois o de Dilma, teriam levado a um golpe (após a presidente ter enfrentado as elites econômicas). Segundo Petra “a taxa de desemprego atinge o menor índice da história” na Era Lula.
Com boa vontade, pode-se dizer que a diretora se confundiu: nos governos do PT o desemprego alcança o menor índice da série histórica. Falamos em série histórica quanto à série feita com a mesma metodologia que a pesquisa corrente, o que no caso da atual começa em 2012 (a Pnad Contínua). Antes dela, a mais usada regredia só aos anos 90.
Mas tanto nos anos 80 quanto na ditadura militar se identificaram taxas de desemprego menores que as do período de Lula ou Dilma. O IBGE chegou a registrar menos de 3% no governo Sarney em outra versão da Pnad. Outras fontes registraram ainda menos na ocasião do milagre dos anos 70. O economista Rafael Baccioti fez exercícios de retropolação da Pnad Contínua e estimou resultados no mesmo sentido. Já o Censo chegou a registrar menos de 2% diversas vezes desde os anos 50. Em suma, Petra poderia ter dito “a taxa de desemprego atinge o menor índice da história desde o governo Fernando Henrique”.
O que são mesmo marcas incontestes do áureo período petista são as mínimas históricas nas taxas de pobreza e a queda na desigualdade de consumo.
Já o argumento de que o “golpe” teria sido causado porque Dilma, contrariamente a Lula, enfrentou as elites, envelheceu mal. De outro prêmio, o Jabuti, o livro do ano mostra como o 1% mais rico manteve sua altíssima participação na renda nacional durante os governos do partido.
Particularmente fora de lugar é a tese de que o impeachment seria decorrência da tentativa de Dilma de reduzir os juros. A Selic bateu sucessivas mínimas históricas desde Temer, e os bancos projetam juro real próximo de zero neste ano. Os juros transferidos pelo governo por conta da dívida pública caíram de mais de 8% do PIB no último ano de Dilma, para menos de 5% no ano passado. No caso das famílias, o governo Bolsonaro acaba de impor um teto aos juros do cheque especial.
Mas mesmo Petra não parece botar fé no argumento, e é por isso que sua visão é confusa: a crise ora foi causada pela queda nas commodities e “erros econômicos”, ora por ações conspiratórias das elites (com direito a fala de Jean Wyllys). Ora os donos do dinheiro desligaram a economia para estimular o impeachment, ora precisam do impeachment para transferir a conta da crise para os pobres.
A trama pelos juros altos também não faz sentido diante daquele que para Petra seria um dos vencedores do golpe: a Bolsa de Valores (a relação é tipicamente a contrária). O leilão recente de Libra, sem interessados, vai de encontro à versão de entrega do petróleo às multinacionais. E o fígado fala mais alto no argumento nonsense de que o mercado financeiro celebrara uma suposta flexibilização do trabalho escravo.
Mas ficamos por aqui: ninguém merece economista falando de cinema. Um documentário ainda é um filme, que provoca emoção pelas suas qualidades artísticas e não por ser um trabalho acadêmico. Petra deixa claro sua parcialidade. Reações semelhantes às do Brasil devem ter sido observadas em outros documentários políticos que o Netflix emplacou no Oscar recentemente, como Winter on Fire (Ucrânia) e The Square (Egito). Econosplaining à parte, boa sorte Petra.
* Doutor em economia
Eliane Cantanhêde: Favoritos e rejeitados
Aos amigos evangélicos, tudo; aos adversários indígenas, nada. Ou melhor, as migalhas
Com o presidente Jair Bolsonaro viajando e o Judiciário e o Legislativo em recesso, vão surgindo as bombas a serem lançadas em 2020 sobre a opinião pública, senadores e deputados e ministros do Supremo, a quem cabe a última palavra em questões polêmicas.
São bombas em forma de medidas provisórias ou decretos em elaboração nas áreas técnicas do governo. Um projeto prevê subsídios para a conta de luz de templos evangélicos, ops!, religiosos. Outro escancara reservas indígenas às mais diversas formas de exploração, sem dó nem piedade. Resta saber o que o Ministério da Economia acha de um, e a comunidade internacional, do outro.
Em resumo: aos evangélicos, tudo; aos índios, as migalhas. Estes não terão direito a veto ao que for imposto para suas terras, mas poderão ser recompensados pelas atividades ali instaladas. Assistirão à devastação de camarote, estendendo o pires para colher as moedas. Quando abrirem os olhos, cadê as suas reservas? Puff! Evaporaram.
Um dos mantras de Bolsonaro é que ele acabou com o “toma lá, dá cá” com o Congresso, mas a verdade é que, além de as emendas parlamentares terem sido liberadas diligentemente em 2019, a troca de favores corre solta especialmente com os aliados e amigos, inclusive de fora do Congresso.
Funcionou na reforma da Previdência dos militares, que perderem na aposentadoria, mas ganharam no soldo, e tem sido recorrente com as polícias, os evangélicos e as bancadas ligadas a ambos. Bolsonaro não esconde os privilégios para seus preferidos, que estão na sua base de apoio no Congresso, na sua base eleitoral no Rio de Janeiro e nas suas relações de amizades.
Segundo levantamento do Estado, 30% da agenda pública de Bolsonaro no seu primeiro ano foi dedicada a militares e evangélicos. Ele pôs o bispo Edir Macedo no primeiro plano da foto do Sete de Setembro, vai a toda solenidade militar pelo País afora, anunciou indulto de Natal para policiais condenados por “excessos” em serviço e contrariou o ministro Sérgio Moro com o excludente de ilicitude, apelidado de “licença para matar”.
E não são apenas gestos, gentilezas e fotos. Depois de contrariar o superministro da Justiça, Bolsonaro pinga más notícias nos planos do outro superministro, Paulo Guedes, da Economia. Numa hora, proíbe taxação da produção e consumo de energia solar. Noutra, quer subsídio para a energia dos templos evangélicos, ou, se preferirem – mas não é o que ocorrerá na prática –, dos templos das diferentes igrejas. Ou seja, tira receita com uma das mãos e gera despesa com a outra.
Por trás desse toma lá, dá cá ampliado, está o futuro: o novo partido do presidente e as eleições de 2022. Quem poderia ser melhor do que evangélicos, policiais e militares para estimular assinaturas do Aliança pelo Brasil? Quem mais tem tanta ramificação no País?
Quanto aos índios, pobres, distantes, desarticulados, eles estão entregues à própria sorte. Nada contra a discussão sobre a extensão, o grau de preservação e o uso de áreas indígenas para o desenvolvimento – do País e das próprias comunidades indígenas. O problema é que, no atual governo, que rejeita ONGs e conselhos, trata críticos como inimigos, vê esquerdismo em tudo e em todos e só olha para o próprio umbigo (ou a própria ideologia), as discussões são muito restritas.
E lá vem um projeto que não apenas abre a mineração, como já esperado, mas autoriza a construção de hidrelétricas, extração de petróleo e gás e exploração de agropecuária e turismo nas reservas indígenas. Ou seja, tudo. Se o mundo já recebe com espanto as políticas do governo e as manifestações do próprio Bolsonaro para meio ambiente, imaginem o que vai achar da novidade?
Carlos Pereira: Ih... a democracia brasileira não ruiu...
As chances de erosão da democracia brasileira são quase nulas
Nove em cada dez cientistas ou analistas políticos, no Brasil e no exterior, esperavam o pior da chegada à presidência de um populista de direita. Com bazófia autoritária e retórica belicosa e polarizada, Jair Bolsonaro colocaria em risco a sobrevivência da democracia.
Afirmavam que a derrocada da democracia não se daria por rupturas institucionais drásticas, golpes, tanques nas ruas, censura à imprensa, e o fechamento do Congresso. A ruina viria de forma insidiosa. Como se um miasma de espectro autoritário fosse se apoderando de maneira imperceptível de uma sociedade indefesa e fosse solapando as frágeis instituições democráticas, até ser tarde demais.
Até que ponto líderes populistas, sejam eles de direita ou de esquerda, ameaçam democracias?
Em pesquisa que acaba de ser publicada no periódico Perspective on Politics, com o título “Populism’s Threat to Democracy: Comparative Lessons for the United States”, o professor da Universidade do Texas, Kurt Weyland, demonstra que os riscos que a democracia liberal corre com a eleição de populistas têm sido superestimados.
Weyland argumenta que líderes populistas conseguem sufocar democracias apenas quando duas condições cruciais estão presentes.
A primeira seria a fraqueza institucional. Em alguns países, as instituições são razoavelmente abertas a mudanças, sem pontos de veto robustos e, portanto, incapazes de resistir a interferências de executivos poderosos, podendo assim ser facilmente desmanteladas ao longo de um ciclo eleitoral. Entretanto, mesmo em ambientes institucionais mais frágeis, iniciativas iliberais só teriam sucesso diante de uma segunda condição: a presença de crise econômica aguda que tenha sido rapidamente resolvida ou, seu oposto, bonança exagerada, que tenha o potencial de proporcionar apoio político massivo para o governo.
Como nenhuma dessas condições é encontrada no Brasil, um retrocesso antidemocrático, mesmo que soturno, como temem alguns, seria muito improvável.
Em primeiro lugar, o sistema de freios e contrapesos na Constituição permanece operando em pleno vapor. O Brasil, na realidade, possui um mosaico muito sofisticado de organizações de controle com graus variados de independência das escolhas do Executivo e com força de impor limites ao presidente – Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Polícia Federal, Banco Central, agências reguladoras, dentre outras.
O STF, por exemplo, tem imprimido derrotas expressivas ao governo, envolvendo a extinção dos conselhos, a transferência da demarcação de terras indígenas da Funai, publicação de editais de licitação em jornais, compartilhamento irrestrito de dados coletados pela Receita Federal e pela UIF, manutenção do DPVAT e do Conanda etc. Além do mais, estando à frente de um governo minoritário e sem uma coalizão estável, Bolsonaro vem acumulando derrotas importantes no Congresso, tais como, reforma da previdência sem regime de capitalização, orçamento impositivo, decreto das armas, Coaf no Ministério da Economia, Funai no Ministério da Justiça, decreto sobre informações em sigilo, medidas provisórias que caducaram e perderam a validade etc.
Bolsonaro também não encontrou crises agudas, já que o pior já havia sido sanado no governo Temer. Nem teve grande e súbito ganho econômico. Consequentemente, seu apoio junto à população tem sido limitado. Também tem enfrentado forte resistência de uma sociedade civil vibrante e de uma imprensa vigilante para denunciar desvios ou excessos do governo.
Portanto, as chances de o populista brasileiro destruir a democracia são mínimas. Em vez disso, é possível que as reações da sociedade às transgressões de Bolsonaro às normas de civilidade democrática possam fortalecer ainda mais a democracia.
Mas, os descrentes na resiliência das instituições brasileiras não precisam se desesperar... Ainda há três anos de governo para que suas profecias alarmistas de erosão sorrateira da democracia possam se concretizar.
Correções
A versão anterior, que foi publicada às 3h desta segunda, 13, já estava no site do 'Estado' desde o dia 16 de dezembro de 2019.