O Estado de S. Paulo

O Estado de S. Paulo: Bolsonaro diz que a 'chance é zero' de dividir ministério de Moro

Presidente disse não ver possibilidade de divisão do Ministério da Justiça, mas afirmou que 'em política, tudo pode mudar'

Paulo Beraldo, Enviado Especial

NOVA DÉLHI - O presidente Jair Bolsonaro descartou nesta sexta-feira, 24, a chance de desmembrar o Ministério da Justiça e Segurança Pública em duas pastas. As declarações foram dadas em sua chegada a Nova Délhi, na Índia, para uma missão de quatro dias.

"A chance no momento é zero, tá bom? Não sei amanhã, na política tudo muda, mas não há essa intenção de dividir", disse. "Em segurança pública, os números demonstram que estamos no caminho certo. E é a minha máxima, né, em time que está ganhando não se mexe".

O presidente negou ainda a existência de atritos com seus ministros, principalmente Sérgio Moro. "Não existe qualquer atrito entre eu e o Moro, entre eu e o Guedes, eu e qualquer outro ministro", disse. "O governo está unido, sem problemas. Em segurança pública, os números demonstram que estamos no caminho certo. E é a minha máxima, né, em time que está ganhando não se mexe".

Na quarta-feira, 22, Jair Bolsonaro recebeu de secretários estaduais de Segurança Pública cinco sugestões para políticas na área em uma reunião. De todas elas, ele anunciou publicamente apenas uma – a divisão do Ministério da Justiçacom a recriação da pasta da Segurança Pública. A opção de destacar a demanda mais polêmica chamou atenção dos próprios secretários, que viram na iniciativa um endosso de Bolsonaro à proposta.

Interlocutores de Moro disseram que aconselharam ele a deixar o governo caso a mudança se concretizasse. A investida contra o ex-juiz da Operação Lava Jato ocorre no momento em que sua popularidade supera a do presidente e que seu nome passa a ser cotado como eventual candidato à Presidência. Em entrevista ao programa Roda Viva, nesta segunda, 20, o ministro disse que o candidato do governo é o presidente Bolsonaro, mas refutou assinar um documento dizendo que não disputaria a vaga.

No ano passado, o presidente cogitou a recriação da pasta, mas enfrentou resistências justamente devido às críticas de que a medida poderia esvaziar a pasta de Moro.

Se Bolsonaro optasse por repetir o mesmo modelo de Ministério da Segurança Pública do seu antecessor, Michel Temer, Moro perderia o comando da Polícia Federal, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), os três órgãos mais importantes da sua pasta.

Na quarta, ainda no Brasil, ao ser questionado sobre o assunto, Bolsonaro disse que estudava a sugestão dos secretários estaduais.“É comum (o governo) receber demanda de toda a sociedade. E ontem (terça-feira) os secretários estaduais da Segurança Pública pediram para mim a possibilidade de recriar o Ministério da Segurança (Pública). Isso é estudado. É estudado com o Moro. Lógico que o Moro deve ser contra, mas é estudado com os demais ministros”, disse o presidente.

Um dos nomes cotados para a eventual pasta é o ex-deputado Alberto Fraga (DEM-DF), que é próximo de Bolsonaro e um dos políticos que mais frequentam o Palácio da Alvorada. Em entrevista ao Estado, Fraga contestou a capacidade técnica de Moro para cuidar da área de Segurança Pública.


Vera Magalhães: Huck é lançado candidato em Davos, e não refuta

Questionado no Fórum Econômico Mundial de Davos a respeito de uma futura candidatura à Presidência da República, Luciano Huck enrolou, falou de Amazônia, que não tinha nada a ver com a pergunta, mas acabou concluindo, para risos da plateia que acompanha a palestra: “Sua pergunta é muito difícil. Não tenho a resposta nem para mim mesmo”.

Mas o fato é que ele não só não refutou a ideia como, na resposta, deu justificativas de por que pode acabar trilhando este caminho. O “lançamento” de sua candidatura foi feito por Raiam Pinto dos Santos, que estava na audiência do almoço-painel, se apresentou como empreendedor e quis saber que garantias Huck daria de que seu projeto é para valer.

Para o apresentador, há “muitas maneiras” de se engajar nas mudanças que o País precisa. “Entrar para a política é uma delas”, afirmou. Mas também listou outras iniciativas que poderiam ser tomadas, como fomentar, inclusive por meio de financiamento, a qualificação de novos talentos da política –algo que já faz, por meio da parceria com os movimentos de renovação, que, por sua vez, são vistos como a plataforma inicial, anterior inclusive aos partidos, para seu lançamento na política.

“Todas as decisões que tomamos na vida são políticas”, afirmou o apresentador, que está circulando em Davos com uma inédita barba branca. Seria uma forma de testar uma aparência mais “presidenciável”?


William Waack: Momento Greta

Não se sabe o quanto a globalizada elite política, empresarial e financeira acredita em visões catastrofistas sobre meio ambiente, mas esse é um de seus temas mais discutidos, goste-se ou não.

Não acreditem em profetas do apocalipse, disse Donald Trump à fina flor do mundo político e empresarial reunido – como todo ano em janeiro – para o World Economic Forum em Davos, Suíça. Não se sabe o quanto a globalizada elite política, empresarial e financeira acredita em visões catastrofistas sobre meio ambiente, mas esse é um de seus temas mais discutidos, goste-se ou não.

E é praticamente o único assunto pelo qual é avaliada hoje a imagem do Brasil no exterior. Bom conhecedor desse público, o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi à Suíça oferecer um argumento que, na sua essência, afirma que não é a busca do lucro o maior inimigo da proteção do meio ambiente em lugares como o Brasil (que precisa de seus recursos naturais para se desenvolver), mas, sim, o desespero de quem passa fome e destrói para sobreviver. Ou seja, pobreza.

A julgar pelos relatos de boa parte da imprensa internacional, o argumento de Guedes não convenceu, não importa se tem méritos. Ao contrário: alguns dos principais banqueiros internacionais sentiram-se obrigados a responder nesse mesmo evento aos gestores de grandes fundos de investimento, que anunciaram recentemente incluir um “fator de risco ambiental” (leia-se compliance por parte de grandes companhias) ao direcionar alocações de recursos.

A resposta foi uma cobrança a governos – banqueiros em momento Greta, talvez? – exigindo mais coordenação de políticas de combate a mudanças climáticas, para evitar que a “culpa” caia sobre o setor privado. Em outras palavras, também o setor financeiro está sentindo a pressão, e foi o chefe do Bank of America quem defendeu em Davos a adoção de um padrão internacional de contabilidade para averiguar como companhias privadas estão cumprindo metas fixadas em conferências sobre clima da ONU, por exemplo.

No que parece ter sido uma tática coordenada, o governo brasileiro ofereceu a apocalípticos ou não reunidos em Davos duas boias para se abraçar. Anunciou a criação de um Conselho da Amazônia chefiado por um general, o vice-presidente Hamilton Mourão, que conhece bem o lugar e também sabe como funciona um Estado-Maior. E a criação de uma Força Nacional Ambiental voltada exclusivamente para a repressão ao desmatamento da Floresta Amazônica.

Além de ser uma resposta óbvia, ainda que tardia, ao tipo de pressão internacional que o governo brasileiro de forma inepta conseguiu acelerar contra si mesmo, o anúncio oferece dois outros reconhecimentos implícitos. O primeiro é o da falta de uma instância de coordenação dos vários ministérios e órgãos do governo vinculados à Amazônia. O tal Conselho parece equivaler a uma “Casa Civil” da questão ambiental.

O segundo reconhecimento, implícito na Força Nacional, refaz o argumento de Guedes. Para qualquer pessoa com um mínimo de vivência na Amazônia, especialmente nas chamadas “zonas de fronteira” (aquelas nas quais se expande rapidamente algum tipo de atividade econômica), a chegada de contingentes populacionais cria realidades incontroláveis que duram já décadas (a degradação de vastas áreas do sul do Pará é um dos grandes exemplos). A destruição “formiguinha” torna-se formidável, e irreparável também, pela ausência do Estado.

É o que está no fundo da questão: a notória incapacidade do Estado brasileiro de dominar o próprio território e impor suas leis. O desastre de comunicação internacional na questão ambiental é marca do governo Bolsonaro, mas os avanços e recuos do desmatamento, a menor ou maior velocidade na ocupação de territórios, a força maior ou menor de atividades predatórias (especialmente extração de madeira e garimpo) parecem seguir ciclos que têm fugido ao controle de qualquer governo central brasileiro.

Pobreza ou não, o problema ambiental sempre foi o de autoridade.


Vera Magalhães: 'Cadeia de comando'

Desafios postos diante de Moro vão além da disciplina e da hierarquia: são políticos, éticos e institucionais

“Eu não contrario publicamente o presidente. Existe aí, evidentemente, uma cadeia de comando.” A frase, dita por Sérgio Moro já no primeiro bloco do programa Roda Viva, foi a tônica da entrevista do ministro da Justiça. É claro que num regime presidencialista os ministros seguem o presidente da República. Mas os desafios postos diante de Moro vão além da disciplina e da hierarquia. São políticos, éticos e institucionais.

Os políticos são óbvios, estão na mesa e tanto ele quanto o presidente os compreendem muito bem. Moro é o único a ombrear com Bolsonaro nas pesquisas hoje. O chefe não pode demiti-lo, sob pena de criar um adversário. E ele não pode sair do governo agora, sem antes traçar um caminho. O jogo de ver quem pisca primeiro continuará, e Moro parece ainda ter apetite para engolir alguns sapos.
Os conflitos éticos dizem respeito aos quase diários ataques às liberdades e às minorias por parte de Bolsonaro e de seus auxiliares.

Até quando será possível ao ex-juiz calar sobre assuntos como o atentado à produtora Porta dos Fundos e falar apenas em privado sobre absurdos como a performance nazista de Roberto Alvim? Ou silenciar quanto aos ataques à liberdade de imprensa? Não se trata, como diz ele, de ser um “comentarista-geral” da República. Mas de cumprir o papel de ministro da Justiça: o de guardião da democracia e da Constituição.

Por fim, os dilemas institucionais são os decorrentes do fato de que Moro convive no governo com acusados de irregularidades que, como juiz, não hesitaria em investigar. Isso afeta a imagem de “herói do Brasil”, hashtag que liderou o Twitter mundial durante o programa.

O ministro tem o maior cacife político do Brasil hoje. Ganha de Bolsonaro e eclipsou Lula. Resta saber o quanto desse patrimônio está disposto a queimar enquanto aguarda saber se vai para o STF ou se parte para uma candidatura. Pode parecer que há muito tempo até 2022, mas a corrosão que a exposição ao bolsonarismo é capaz de operar é incerta.

Denúncia contra Glenn é arbitrária e será rechaçada pelo STF
O enquadramento do jornalista Glenn Greenwald por interceptação ilegal de conversas telefônicas e invasão de dispositivos eletrônicos na denúncia oferecida pelo procurador da República Wellington Divino Marques de Oliveira contra os hackers investigados na Operação Spoofing será rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Os ministros consideram que a denúncia não prova a participação de Glenn nos crimes, pois seu contato com os hackers é posterior à sua execução. Além disso, a maioria do STF entende que a denúncia viola a garantia dada aos jornalistas pela Constituição de manter o sigilo da fonte. Por fim, ministros avaliam que o procurador contrariou decisão de Gilmar Mendes que exclui Glenn do rol de investigados da Spoofing.

Ao agir de forma corporativista, como para “vingar” os procuradores da Lava Jato, o MPF expõe ainda mais a instituição e abala a já depauperada imagem do Brasil no exterior no que diz respeito à liberdade de imprensa.


Eliane Cantanhêde: Brasil na berlinda

Com Bolsonaro remendando estragos, Doria, Huck e Moro se mostram ao mundo

Sem o presidente Jair Bolsonaro, mas com seus rivais João Doria e Luciano Huck, o Fórum Econômico Mundial deste ano, em Davos, pode jogar o Brasil na constrangedora situação de país digno de uns bons puxões de orelha por maltratar o meio ambiente, ameaçar a mídia, provocar líderes mundiais, enaltecer ditadores e, agora, ultrapassar todos os limites trazendo Hitler e o nazismo ao ambiente.

O puxão de orelhas deve começar com a Greta, a menina que virou personalidade internacional pela defesa da natureza, foi chamada de “pirralha” por Bolsonaro e devolveu com ironia. Uma adolescente dando lições em Davos a poderosos cheios de pretensão e ideias equivocadas, não raro perigosas. Delicioso.

Ninguém diz, mas Bolsonaro teve dois bons motivos para não ir a Davos. Um é que certamente baixou uma baita insegurança depois do vexame na estreia no fórum em 2019. Se mal conseguiu falar coisa com coisa quando ainda era cercado de expectativas, imaginem agora, depois de tudo?

O segundo motivo é que Bolsonaro achou que Donald Trump não iria. Se Trump não vai, esse encontrinho de grandes líderes internacionais, megainvestidores, homens das finanças e do pensamento não serve pra nada. Mas a aposta foi errada: Trump anunciou que vai, mesmo acossado pelo processo de impeachment – ou até por causa dele.

Assim, o governo brasileiro é representado pelo ministro Paulo Guedes, integrantes de sua equipe e os presidentes do BNDES e da Eletrobras, que têm o que oferecer e o que pedir a investidores. Só que eles querem falar em privatizações e concessões, mas muitos dos interlocutores preferem ouvir sobre algo mais abstrato, mas potente: democracia.

Assim, a presença de Doria e Huck tem uma simbologia especial. O governador leva na mala um portfólio de oportunidades e deve ter ensaiado bem o personagem moderno, de braços abertos para investimentos, que se coloca como alternativa a Bolsonaro. Alternativa também à direita e conservadora, mas menos beligerante e de mais bom senso. Nem pró-Pinochet e Goebbels nem terraplanista. Ou seja, “normal”.

E Huck? Devagar, com uma viagem daqui, uma palestra dali, agora uma ida a Davos, ele vai construindo um nome, uma imagem, uma candidatura. No mínimo, vai perdendo o pânico de quem pulou de véspera da campanha de 2018, depois de aprender que o mundo de celebridades é muitíssimo diferente do mundo hostil, ácido, da política.

E que personagem Huck apresenta no teatro de Davos? O do cara que deu certo, quer dar sua contribuição para um Brasil melhor e está contra “tudo o que está aí”, principalmente a pobreza, a desigualdade, a exclusão de gerações, uma atrás da outra.

Com Doria e Huck lá, um terceiro personagem vai metendo a cara cá, aprendendo a enfrentar curiosos, críticos ou inimigos ferozes e se preparando para o futuro. Pode não estar claro nem para ele mesmo, mas com o troféu de personagem mais popular do governo, mais do que o presidente, Sérgio Moro pode não estar em Davos hoje, mas está no jogo de 2022.

Enquanto isso, Bolsonaro vai convivendo com as próprias fragilidades, tentando remendar o que ele mesmo esgarçou. Começa a testar a atriz Regina Duarte na Cultura, já esqueceu as denúncias contra o ministro Marcelo Álvaro Antonio, assiste de camarote à tragédia no Ministério da Educação e fecha olhos e ouvidos para as peripécias do seu homem da Comunicação.

Autodeterminado exterminador das esquerdas, Bolsonaro é todo aplausos para Ernesto Araújo, Ricardo Salles e Damares Alves – como era com Roberto Goebbels Alvim – e já tem o culpado n.º 1 por todas as mazelas do governo: a mídia. Bolsonaristas tupiniquins estimulam, mas o mundo, e não só o mundo de Davos, está de olho. Huck, Doria e Moro, também.


O Estado de S. Paulo: 'O grande inimigo do meio ambiente é a pobreza', diz Guedes, em Davos

Ministro da Economia discursou na manhã desta terça-feira, 21, em Davos, na Suíça, durante o Fórum Econômico Mundial

Célia Froufe, enviada especial, O Estado de S.Paulo

DAVOS - O ministro da EconomiaPaulo Guedes, disse, na manhã desta terça-feira, 21, durante o painel "Shaping the Future of Advanced Manufacturing", realizado durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), que o grande inimigo do meio ambiente é a pobreza. "Destroem porque estão com fome", justificou o brasileiro.

Em outro momento do mesmo evento, ele disse que o mundo precisa de mais comida e salientou que é preciso usar defensivos para que seja possível produzir mais. "Isso é uma decisão política, que não é simples, é complexa", afirmou. Ainda sobre o tema, Guedes disse que a busca dos humanos é sempre pela criação de vidas melhores. Ele ressaltou, porém, que "somos animais que escapamos da natureza".

O ministro disse que o Brasil está criando um ambiente melhor para os negócios e que é preciso agora qualificar as pessoas para terem um emprego no sistema, que está mais tecnológico. "Num país como o Brasil, que está um pouco atrás (em relação às inovações), temos um pouco de preocupação", lamentou, acrescentando que a primeira ação a ser feita é acabar com os "obstáculos".

Ele também falou sobre os três centros que o Brasil está criando para se aproximar das atividades do Fórum Econômico Mundial. Um é ligado à promoção da educação, da pesquisa acadêmica e a ligação com as pessoas de negócios. O outro é um acelerador de qualificações. "Há habilidades para ampliar como as coisas estão se colocando no mundo. Estamos aderindo ao comitê do Fórum e basicamente trazendo pessoas que estão na fronteira", comentou.

Para Guedes, a inovação vem ocorrendo no mundo por meio de um processo descentralizado, mas a busca é fazer com que o País se integre a esse sistema. "Para um País como o Brasil é ainda mais crucial, pois precisamos ter a certeza de que teremos um ambiente de negócios, acadêmico, que permita conhecimento", salientou.

Durante o evento que falava sobre as inovações tecnológicas da última geração, Guedes citou que, ao contrário do que os americanos dizem, foi o Brasil que criou o avião, pelas mãos do inventor Santos Dumont. Ainda sobre descentralização, ele citou que Israel se desenvolveu em tecnologia, mas que o país não conta com escala. "Nós temos escala, agora precisamos investir em educação", afirmou. "Podemos atingir isso se tivermos educação e mais conexões."

Para trás na globalização 

Brasil ficou para trás em relação ao acompanhamento das modernidades do mundo, na avaliação do ministro da EconomiaPaulo Guedes, expressa no painel “Shaping the Future of Advanced Manufacturing”, realizado durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). “Perdemos a grande onda da globalização e da inovação, então essa mudança vai levar um tempo (para ocorrer no Brasil), mas estamos a caminho”, afirmou.

O ministro fez um trocadilho com um neologismo em inglês sobre o futuro da indústria no mundo. “O futuro da manufacture (indústria, que tem origem na palavra mão em Latim) será a mindfacture (uma expressão que funde as palavras mente e indústria)”, afirmou. O principal, de acordo com ele, será instruir os trabalhadores para que estejam preparados para um novo mundo no mercado de trabalho.

Antes de seu discurso, o ministro ressaltou que teve uma reunião “muito positiva” com o engenheiro alemão fundador e CEO do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab. “Dissemos a ele que queremos estreitar o relacionamento do Brasil com o Fórum Econômico Mundial. Queremos lançar pelo menos umas três iniciativas”, disse ao Estadão/Broadcast rapidamente, sem entrar em detalhes.


José Goldemberg: O ‘fim da História’ e da inovação

Analistas questionam se não atingimos os limites do nosso conhecimento científico

Em 1992 Francis Fukuyama, um renomado cientista político norte-americano, publicou um livro intitulado O Fim da História, que teve enorme repercussão. Nele o autor argumenta que a queda do Muro de Berlim e o fim do império soviético significavam a vitória final do capitalismo com liberalismo econômico e democracia. A globalização da economia mundial nas últimas décadas e a redução dos conflitos provocados pelo nacionalismo exacerbado, que levou às grandes guerras mundiais do século 20, parecem confirmar a análise de Fukuyama.

O único desafio real a essa visão da História foi a ascensão do Estado Islâmico, que, apesar do grande impacto que teve, não abalou a estrutura mundial. Até a China, que poderia mudar o curso do desenvolvimento da História com um novo socialismo, se incorporou à grande corrente mundial da globalização, apesar das suas restrições internas à democracia.

Em outras palavras, parece plausível a visão de Fukuyama de que o desenvolvimento social e econômico mundial teria atingido um nível tal que evitaria as grandes revoluções e guerras do passado, que, em geral, são o objeto do que se chama de História.

Mais recentemente surgiram outras análises que mostram que o mesmo pode estar acontecendo com a tecnologia e até com a própria ciência. Estudos sobre o “fim da tecnologia” e mesmo sobre o “fim da ciência” estão se tornando populares.

O primeiro desses estudos, feito por Robert Gordon, professor de uma universidade americana, atribui a estagnação da economia dos EUA nas últimas décadas ao fato de que a produtividade deixou de crescer na segunda metade do século passado. O professor Gordon argumenta que isso se deve ao fato de que os avanços tecnológicos mais recentes – principalmente na área da computação e informática – não são tão impressionantes como os que ocorreram na primeira metade do século 20, quando máquinas de lavar roupa, geladeiras, ar-condicionado, automóveis e aviões mudaram o mundo de uma maneira revolucionária e o que estamos presenciando hoje são apenas pequenos aperfeiçoamentos, muitos dos quais de caráter puramente comercial.

As ideias que captam hoje as manchetes dos jornais são inteligência artificial, automóveis sem motorista e viagens espaciais, que ainda não tiveram grande impacto na vida das pessoas e até sua necessidade está sendo questionada.

A qualidade de vida de boa parte da humanidade melhorou tanto no século 20 em comparação com as condições do século 19 que é o caso de perguntar se a tecnologia necessária para garantir um nível de vida adequado a todos não teria também atingido seus limites.

Mais recentemente, outros analistas começaram a questionar também se não teremos atingido os limites nos nossos conhecimentos científicos sobre a natureza.

John Horgan, em livro recente, O Fim da Ciência, argumenta que a física avançou de forma tão dramática na primeira metade do século 20 que não é razoável esperar que esses avanços continuem depois que desenvolvemos transistores, lasers, GPS, energia nuclear e tantas outras tecnologias baseadas nas descobertas revolucionárias da mecânica quântica e da relatividade.

Haverá, ainda, inúmeras investigações em ciência dos materiais ou biotecnologia que nos permitirão fazer fotossíntese artificial e substituir petróleo por novos combustíveis. Além disso, a captação da energia solar em painéis fotovoltaicos ou a energia dos ventos poderão gerar toda a eletricidade de que necessitamos, mas nada de fundamentalmente novo.

A visão de Horgan é contestada por muitos porque, por incrível que pareça, depois de todos os progressos alcançados pela física ainda não está claro o que se entende por matéria, já que a maior parte do universo é formada por “matéria escura” que não conseguimos detectar.

Há poucas dúvidas também de que este não seja o caso no que se refere à identificação das causas e da cura de doenças como malária ou câncer. Entender completamente como funciona o código genético e como modificá-lo parece ser a nova fronteira, o que pode até nos ensinar o próprio processo de criação da vida.

As ideias sobre o fim da História, da inovação e até da física têm, contudo, um traço em comum: elas se baseiam em descrições que são feitas com base em realizações de grandes personagens. A produção de bombas atômicas, que foi conseguida num tempo recorde de dez anos após a descoberta da fissão nuclear, em 1935, sob a direção do físico americano Oppenheimer, é um bom exemplo.

No caso da História, elas giram em torno de Alexandre, o Grande, no século 3.º antes de Cristo, Júlio César, Napoleão Bonaparte, Lenin, Hitler e Stalin. No caso da inovação, Watt, Darwin, Faraday, Ford, Gates. E no caso da física, Newton, Einstein, Planck e Heisenberg, entre outros.

Essa, a nosso ver, é uma maneira incorreta de analisar a evolução em todas as áreas: os grandes líderes, as grandes invenções e as grandes descobertas científicas não ocorrem apenas em ações dramáticas, como as realizadas por Alexandre, o Grande, que destruiu o exército dos persas numa batalha, ou quando Einstein propôs a Teoria da Relatividade. Em geral, elas são apenas o ato final de esforços que foram feitos ao longo de muitos anos por muitas pessoas (generais no caso das guerras, tecnólogos no caso da inovação, pesquisadores na área de ciências) que vão construindo exércitos, desenvolvendo máquinas ou formulando teorias e realizando experiências que eventualmente têm consequências extraordinárias.

É por essa razão que não há um fim da história da inovação e da ciência. Essa história poderá ser mais monótona, sem emoções como as provocadas pelo assassinato de César ou a tomada da Bastilha pelo povo de Paris na Revolução Francesa, em 1789. Ela se tornará talvez mais monótona, mas nem por isso menos interessante, como é a vida de todos nós.

*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo


Eliane Cantanhêde: Goebbels na era digital

Alvim sai, mas Bolsonaro fica e Goebbels, Bannon e Olavo continuam pairando no ar

Poderia ter sido apenas uma papagaiada chocante, mas o que o secretário nacional de Cultura Roberto Alvim fez foi muito pior: uma performance bem construída e ensaiada. Ator e diretor de teatro, ele encarnou o gênio do mal Joseph Goebbels, plagiando seus textos e usando o mesmo cabelo, o mesmo olhar, o tom solene e, como fundo musical, a ópera preferida de Hitler.

Poderia também ter sido um surto individual, um fato isolado, um ponto fora da curva, mas o arroubo nazista foi num habitat onde, vire e mexe, um protagonista acena com a volta do tenebroso AI-5 e o presidente Jair Bolsonaro se delicia fazendo loas aos ditadores sanguinários Pinochet e Stroessner.

A própria trajetória de Roberto Alvim no governo já diz tudo. Ele foi premiado com o principal cargo da Cultura nacional por ter atacado Fernanda Montenegro como “sórdida” e “mesquinha”, convocado artistas para uma “máquina de guerra cultural” e planejado ceder espaços culturais para teatros evangélicos. Nomeado com carta branca numa secretaria de cultura jogada como estorvo no Ministério do Turismo, ele teve passagem tão rápida quanto devastadora. Na Fundação Palmares, um negro racista. Na Funarte, um terraplanista que identifica rock com drogas e satanismo. Na Casa de Rui Barbosa, alguém muito distante de ser personalidade e alheio aos meios acadêmicos. Na Biblioteca Nacional, um monarquista. Verdadeiro strike.

Pelos elogios feitos ao secretário, o presidente da República parecia bem satisfeito com esse desmonte macabro da Cultura, que é a alma de uma nação e um dos mais calorosos orgulhos brasileiros, mas acaba de atrair o Brasil para mais uma onda de manchetes vexaminosas pelo mundo afora.

O culto ao nazismo foi parar nos principais jornais dos Estados Unidos, da Europa, da América Latina, aprofundando a deterioração da imagem do País no exterior às vésperas de mais um Fórum Econômico Mundial em Davos. Eu não queria estar na pele do ministro Paulo Guedes e dos integrantes da delegação brasileira. Vão ouvir poucas e boas. E o que responder?

A performance nazista de Roberto Alvim compõe bem um todo em que pululam noções muito particulares (ou falta de noção?) sobre meio ambiente, educação, política externa, direitos humanos e mídia, em que prevalece o culto às armas e o governador de um dos principais Estados defende um peculiar combate à criminalidade: “mirar a cabecinha do bandido e pou!”. O resultado é que as cabecinhas na mira são outras, dentro de casa, na escola, no parquinho ou passeando com a avó nesse mesmo Estado: as das crianças. Todas negras e pobres.

No caso de Alvim, Bolsonaro, pelo menos, foi rápido no gatilho. Antes das 11h ele já havia decidido a demissão, sob pressão dos presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo, de amplo arco político da esquerda à direita, de toda a opinião pública e até da embaixada da Alemanha. Mas o xeque-mate foi da comunidade judaica. Tal como Donald Trump, ele é daqueles: “Mexeu com Israel, mexeu comigo”.

A partir daí, começou outra tortura nacional: quem seria o sucessor ou sucessora? Veio o medo. Alvim sai, mas Goebbels, assim como Steve Bannon e Olavo de Carvalho, continua pairando sobre o governo Bolsonaro. E não apenas na Cultura, mas na área mais eficaz do nazismo: a propaganda.

Nem “a guerra ao marxismo cultural” nem máxima de que “uma mentira repetida mil vezes vira verdade” foram demitidos. Continuam vivos, fortes, entranhados na alma do governo. Aliás, desde a campanha, quando o “gênios do mal” modernos conseguiram massificar como verdade a mentira de que só Bolsonaro derrotaria Lula e o PT. Uma mentira repetida não mil, mas milhões de vezes. Goebbels reencarna na era digital.

Alvim sai, mas Bolsonaro fica e Goebbels, Bannon e Olavo continuam pairando no ar

Poderia ter sido apenas uma papagaiada chocante, mas o que o secretário nacional de Cultura Roberto Alvim fez foi muito pior: uma performance bem construída e ensaiada. Ator e diretor de teatro, ele encarnou o gênio do mal Joseph Goebbels, plagiando seus textos e usando o mesmo cabelo, o mesmo olhar, o tom solene e, como fundo musical, a ópera preferida de Hitler.

Poderia também ter sido um surto individual, um fato isolado, um ponto fora da curva, mas o arroubo nazista foi num habitat onde, vire e mexe, um protagonista acena com a volta do tenebroso AI-5 e o presidente Jair Bolsonaro se delicia fazendo loas aos ditadores sanguinários Pinochet e Stroessner.

A própria trajetória de Roberto Alvim no governo já diz tudo. Ele foi premiado com o principal cargo da Cultura nacional por ter atacado Fernanda Montenegro como “sórdida” e “mesquinha”, convocado artistas para uma “máquina de guerra cultural” e planejado ceder espaços culturais para teatros evangélicos. Nomeado com carta branca numa secretaria de cultura jogada como estorvo no Ministério do Turismo, ele teve passagem tão rápida quanto devastadora. Na Fundação Palmares, um negro racista. Na Funarte, um terraplanista que identifica rock com drogas e satanismo. Na Casa de Rui Barbosa, alguém muito distante de ser personalidade e alheio aos meios acadêmicos. Na Biblioteca Nacional, um monarquista. Verdadeiro strike.

Pelos elogios feitos ao secretário, o presidente da República parecia bem satisfeito com esse desmonte macabro da Cultura, que é a alma de uma nação e um dos mais calorosos orgulhos brasileiros, mas acaba de atrair o Brasil para mais uma onda de manchetes vexaminosas pelo mundo afora.

O culto ao nazismo foi parar nos principais jornais dos Estados Unidos, da Europa, da América Latina, aprofundando a deterioração da imagem do País no exterior às vésperas de mais um Fórum Econômico Mundial em Davos. Eu não queria estar na pele do ministro Paulo Guedes e dos integrantes da delegação brasileira. Vão ouvir poucas e boas. E o que responder?

A performance nazista de Roberto Alvim compõe bem um todo em que pululam noções muito particulares (ou falta de noção?) sobre meio ambiente, educação, política externa, direitos humanos e mídia, em que prevalece o culto às armas e o governador de um dos principais Estados defende um peculiar combate à criminalidade: “mirar a cabecinha do bandido e pou!”. O resultado é que as cabecinhas na mira são outras, dentro de casa, na escola, no parquinho ou passeando com a avó nesse mesmo Estado: as das crianças. Todas negras e pobres.

No caso de Alvim, Bolsonaro, pelo menos, foi rápido no gatilho. Antes das 11h ele já havia decidido a demissão, sob pressão dos presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo, de amplo arco político da esquerda à direita, de toda a opinião pública e até da embaixada da Alemanha. Mas o xeque-mate foi da comunidade judaica. Tal como Donald Trump, ele é daqueles: “Mexeu com Israel, mexeu comigo”.

A partir daí, começou outra tortura nacional: quem seria o sucessor ou sucessora? Veio o medo. Alvim sai, mas Goebbels, assim como Steve Bannon e Olavo de Carvalho, continua pairando sobre o governo Bolsonaro. E não apenas na Cultura, mas na área mais eficaz do nazismo: a propaganda.

Nem “a guerra ao marxismo cultural” nem máxima de que “uma mentira repetida mil vezes vira verdade” foram demitidos. Continuam vivos, fortes, entranhados na alma do governo. Aliás, desde a campanha, quando o “gênios do mal” modernos conseguiram massificar como verdade a mentira de que só Bolsonaro derrotaria Lula e o PT. Uma mentira repetida não mil, mas milhões de vezes. Goebbels reencarna na era digital.


Vera Magalhães: Mudança x concessão

Demissão de Alvim não sinaliza que Bolsonaro vá mudar, mas que foi obrigado a recuar

Como tudo no Brasil de hoje, o filme Dois Papas foi tragado pela polarização rasa e redutora que engolfa da política às artes, passando pelo esporte e pelas relações familiares. Direita e esquerda “adotaram" cada uma um Papa, alheias à complexidade de uma Igreja de milhares de anos e aos aspectos sutis da obra.

Numa das cenas mais marcantes do filme, os dois monstros Anthony Hopkins (Bento 16) e Jonathan Pryce (ainda Bergoglio) discutem a diferença entre mudança e concessão. “Eu mudei”, diz o argentino ao Papa, diante de cobranças sobre a revisão que ele fez de dogmas e ritos da Igreja. “Não, você fez concessões”, replica Bento. “Não, eu mudei. É algo diferente.” De fato.

Em mais um episódio de espantosa gravidade, o País foi dormir na quinta-feira e acordou na sexta assombrado por um pesadelo: num vídeo de composição macabra, o então secretário nacional de Cultura, Roberto Alvim, recitava com excitação indisfarçada e olhos vidrados um texto com trechos copiados de Joseph Goebbels, o mais fanático dos ideólogos do nazismo, que foi com Hitler até o final e morreu e matou a mulher e os seis filhos para não fazer nenhuma concessão e não abdicar da ideologia mortífera que ajudou a implementar.

A reação foi avassaladora, mas não unânime. Num sinal de deterioração profunda do tecido social, houve quem defendesse o discurso tresloucado de Alvim pela necessidade de uma cultura que ou será nacional ou “não será nada”, alinhada aos valores cristãos e da família, e lamentasse sua demissão. Outros contemporizaram, celebrando a “rapidez” com que o presidente demitiu Alvim. E é aqui que entra a diferença entre mudança e concessão a que aludi no início do texto.

O presidente de fato se indignou com o que o auxiliar disse? Não, de forma alguma. Menos de 24 horas antes de demiti-lo e poucas antes de ele publicar sua ópera bufa, Bolsonaro o saudou numa das lives semanais – também elas obra da estética autoritária do bolsonarismo, não nos enganemos – como o redentor da cultura nacional. Finalmente, disse o presidente do Brasil, tínhamos um secretário da Cultura digno do posto. E ali Alvim já desfiava sua política cultural sectária, anunciando um prêmio que contemplaria apenas os alinhados com o regime.

Bolsonaro mudou entre os dois atos, o da louvação e o da demissão? Não, fez uma concessão. A contragosto, momentânea. Que não muda o caráter francamente autoritário de seu projeto de poder para a educação, a cultura, a política externa e os costumes, para ficar em poucas áreas.

Na manhã de sexta o presidente ainda relutava em rifar Alvim. Tanto que a primeira nota do Palácio diz que ele já havia se explicado, e o fã de Goebbels se pôs a dar entrevistas em que reiterava o conteúdo da frase copiada. O que levou Bolsonaro a fazer sua concessão foi a evidência de que a comunidade judaica, aliada política importante de seu projeto, não aceitaria uma demonstração tão violenta de antissemitismo vinda de um auxiliar direto do presidente.

Portanto, não haverá mudança. As manifestações racistas, autoritárias e francamente persecutórias a vários setores da sociedade continuarão vindo diariamente do presidente e da ala ideológica do governo.

Mas foi riscada mais uma linha no chão. A sociedade não tolerará mais esses arroubos e nem as tentações de aparelhar e tutelar a vida nacional num projeto que é tudo, menos liberal e democrático. Quantos e quais setores ainda estarão dispostos a fechar os olhos para essa evidência em nome da política econômica é algo que será definidor dos próximos anos.

Mas Bolsonaro foi avisado: pode xingar, ofender, tentar calar a imprensa, que não vai adiantar. Ele não vai mudar. Mas terá de fazer concessões. É democracia que chama.


Luiz Sérgio Henriques: Guerras falsas, guerreiros de fancaria

A atual generalizada redução das classes a massas não prenuncia nada favorável

Guerras culturais têm uma aparência kitsch e costumam girar em torno de monstros fabulosos, a tal ponto que nunca se sabe muito bem se os contendores argumentam de boa-fé ou estão mesmo perdidos entre sofismas que inventaram com intenções pouco claras. Quando ouve falar da ameaça rediviva do bolchevismo mundial ou de inimigos imaginários apontados à execração pública - inimigos que, a depender da latitude, podem ser um milionário judeu, como George Soros, um pedagogo brasileiro, como Paulo Freire, ou ainda o demoníaco Antonio Gramsci de mil faces -, qualquer pessoa formada segundo padrões racionais e contemporâneos haverá de torcer o nariz com certo enfado. “Paranoia ou mistificação?”, poderá perguntar a si mesma, ecoando talvez Monteiro Lobato, grande intelectual moderno paradoxalmente reativo à modernidade artística que abria caminho há cem anos.

Esse nosso personagem de formação razoável sabe, entretanto, que com ideias não se brinca. Elas podem ser abstrusas e até divertidas, se consideradas com distanciamento, mas num tempo ideologicamente confuso e agitado, que a tantos chega a lembrar a crise dos anos 1930 e as soluções totalitárias então engendradas, têm o poder de formar convicções e sentimentos de grandes massas, tornando-se por isso mesmo uma força material tão densa e concreta quanto qualquer fato bruto da economia ou mesmo da realidade natural. Ideias podem matar ou, no mínimo, propiciar catástrofes históricas. Podem configurar aquele “assalto à razão” que um grande filósofo marxista do século passado denunciou com vigor na cultura alemã e que seria a antessala do nazismo - o mesmo filósofo que, no entanto, não viu acontecer o assalto semelhante que iria corroer por dentro a experiência do socialismo inaugurada em 1917.

Este não será um tempo de partidos - oficialmente em crise, eles que foram moldados segundo os requisitos da sociedade industrial, hoje em trânsito acelerado para a digitalização -, mas continua a ser de homens partidos e de má política. Expliquemo-nos sobre esta última expressão: a política é má quando, por deficiência subjetiva dos atores ou pela natureza inédita das transformações que varrem o mundo, não dá conta dos fenômenos, vê-se atropelada por eles, sem conseguir identificar as boas possibilidades existentes mesmo durante os processos mais tumultuosos. E não se trata, obviamente, de uma condição fatal: ela, a política, é má quando ainda não compreende tais processos e deixa homens e mulheres comuns sem a capacidade, tanto intelectual quanto emocional, de tomar conta das forças que dirigem sua vida. Como se costuma dizer, em tais momentos os fatos, e não os sujeitos, parecem estar no comando. E os resultados em casos assim são, no mínimo, sofríveis, se não desastrosos.

A política, quando parece ausentar-se nos momentos de crise aguda, “orgânica”, logo se vê substituída pela ideologia no pior sentido da palavra. Ágnes Heller, a dileta aluna do acima mencionado Georg Lukács, cujo horizonte se abriu para além do marxismo, incorporando, entre outros, o pensamento de Hannah Arendt, insistiu exatamente nesse ponto às vésperas da sua morte, no ano passado. Não é que a sociedade de classes seja um momento luminoso do passado ou que a política havida no seu âmbito seja um farol da razão ou um modelo inalcançável. Houve ditaduras, e ditaduras cruéis, no século 20; mas a atual redução generalizada das classes a massas não prenuncia nada particularmente favorável. Ontem e hoje, as formas totalitárias de poder medram exatamente quando essa redução se consuma.

A ideologia torna-se o alimento de má qualidade manipulado demagogicamente pelos tiranos ou aspirantes a tiranos. Na Hungria, a pátria de Heller, um nacionalismo étnico invade o espaço público e sufoca a vida democrática: a retórica xenófoba toma conta de um país que praticamente não tem imigrantes. A vida institucional sofre continuadas agressões da parte do Executivo todo-poderoso. A imprensa vê-se comprada pelos amigos ou apaniguados do poder - ou calada. Uma estratégia “hegemônica” rudimentar - uma espécie de “gramscismo” da extrema direita -, baseada em agressivo conservadorismo pseudorreligioso, limita os espaços de liberdade individual, vistos como o lugar por excelência do perigoso comunismo cultural e suas sedutoras “teorias de gênero”, sua anarquia espiritual, seu espírito globalista e apátrida.

Tudo isso, dizíamos, é um tanto kitsch, ou, para falar a verdade, tem a marca registrada do mau gosto e da mediocridade, da paranoia e da mistificação. Alguns ainda argumentarão que a pequena Hungria tem uma história democrática modesta, reduzida, como lembrava a própria Heller, ao tempo da primavera dos povos em 1848 ou da rebelião antissoviética de 1956. E que, por isso mesmo, os maus ventos que lá sopram não poderiam empestear as casamatas e as trincheiras mais robustas que são próprias do Ocidente, a começar pela mais antiga das democracias modernas, apesar de hoje assolada pela vulgaridade de um Trump. E mesmo o Brasil, depois de 1988, teria trocado os parênteses democráticos da sua história por uma democracia estável, amparada estruturalmente numa sociedade civil e econômica complexa e diversificada, que não mais autoriza aventuras autoritárias.

Há verdade neste último argumento, mas não convém subestimar os perigos do caminho. Entre eles, e não em último lugar, as belicosas guerras de cultura, que têm o condão de corromper a sociedade, dividi-la e empobrecê-la. A viva dialética da cultura, com seus combates e desafios, com seu lento e molecular trabalho de construção de valores e ideais comuns, é uma coisa. Bem ao contrário, as guerras e os guerreiros culturais, não importa a bandeira que ostentem ou o motivo que os agite, são um decalque simultaneamente farsesco e trágico de tal dialética. Há que evitá-los.

 


Fernando Reinach: As calorias dos oceanos

A queda dos níveis de oxigênio prejudica os seres vivos nos oceanos e a maior evaporação é uma das causas do aumento de tempestades, secas e furacões

Chineses e americanos concordam em poucas coisas. Uma delas é a quantidade de calor que vem se acumulando nos oceanos. Foram publicadas medidas feitas por americanos e chineses em 2019 e elas são idênticas. Em 2019, a quantidade de calor acumulada nos oceanos bateu o recorde, foi a maior desde 1950. Aliás, nos últimos cinco anos, a cada ano esse valor bate o recorde histórico e, nos últimos 20, a cada ano esse valor aumenta.

Esse dado, obtido usando milhares de termômetros espalhados por todos os oceanos, é a mais sólida evidência experimental de que a Terra está aquecendo. Quando pensamos em aquecimento global o que vem à mente é o aumento da temperatura do ar, mas na verdade 90% do superávit de calor acumulado no planeta é absorvido pelos oceanos.

Para entender o balanço energético do planeta basta imaginar uma panela fechada, cheia até a metade com água, colocada em cima de um fogareiro, no local mais frio da Antártida. Se o fogareiro estiver apagado, a panela esfria e a água congela. É isso o que aconteceria com o planeta (a panela) se o Sol (o fogareiro) não existisse. Por outro lado, se o fogareiro estiver com a chama no máximo, apesar de a panela perder calor continuamente para o ar gélido da Antártida, ela esquenta e mantém uma temperatura alta. É o que acontece nos planetas muito próximos ao Sol, como Vênus.

A vida só existe na Terra porque a quantidade de calor que recebemos diariamente do Sol (nosso fogareiro) e a quantidade de calor que a panela Terra perde para seu entorno são aproximadamente iguais. Por isso, a temperatura da água na panela (os oceanos) e do ar na panela (a atmosfera) permanecem dentro da faixa em que a vida pode existir. Como nos últimos bilhões de anos nosso fogareiro solar tem enviado quantidades constantes de calor em nossa direção, e a Terra perde para o espaço essa mesma quantidade de calor, tudo o que entra é perdido para o espaço sideral. E por isso a Terra permanece com aproximadamente a mesma temperatura. É como uma conta bancária em que os depósitos equivalem aos saques e o saldo não muda.

O que vem acontecendo nos últimos 150 anos é que a queima de combustíveis fósseis liberou na atmosfera os chamados gases de efeito estufa. Esses gases (o principal é o CO2) dificultam a saída do calor recebido pela Terra do seu fogareiro. É como se colocássemos sobre nossa panela um cobertor que dificultasse a saída do calor, mas não impedisse sua entrada. Nessas condições, o saldo da conta corrente começa a aumentar. E a Terra esquenta. É o tal aquecimento global.

O que os cientistas medem todo ano é a quantidade de calor que se acumula tanto no ar quanto nos oceanos, ou seja, quanto o saldo dessa hipotética conta aumenta a cada ano. E o que eles descobriram é que esse saldo aumenta cada vez mais rápido (se calor fosse dinheiro estaríamos felizes). O gráfico mostra quanto calor se acumulou nessa conta corrente a cada ano, ou seja, quanto ficou depositado (ou retido) nos oceanos. O eixo vertical é a medida em zeta joules (ZJ) por ano e o eixo horizontal é o ano da medida. A linha horizontal é a média entre os anos de 1981 e 2010.

Em 2019, a quantidade de calor acumulada nos oceanos aumentou 228 ZJ. Um ZJ são 102²¹ joules (o número dez seguido por 20 zeros). O joule é uma medida de calor como a caloria (aquela dos rótulos de alimentos). É uma quantidade absurda de calor.

Faça a conta: aproximadamente 4,2 joules equivalem a uma caloria e uma caloria é a quantidade de calor necessária para aquecer um mililitro de água em 1°C. Ou seja, no ano de 2019 os oceanos acumularam 54.000.000.000.000.000.000.000 calorias (ou 54 ZCal). Não é por acaso que a temperatura dos oceanos está aumentando. E, pior, o aumento está ocorrendo cada vez mais rápido.

Com o aumento da temperatura dos oceanos, a quantidade de oxigênio que pode ser dissolvida na água diminui e a evaporação aumenta. A queda dos níveis de oxigênio prejudica os seres vivos nos oceanos e a maior evaporação é uma das causas do aumento de tempestades, secas e furacões. Além disso, o aumento da temperatura provoca o degelo e o aumento do nível dos oceanos.

Essa série de medidas experimentais (não são modelos matemáticos, mas medidas diretas) são a prova cabal de que o aquecimento global é real. Sabemos que ele existe, sabemos as causas, mas seremos capazes de mudar a maneira como vivemos? Tenho minhas dúvidas.

MAIS INFORMAÇÕES: RECORD-SETTING OCEAN WARMTH CONTINUED IN 2019. ADV ATMOS. SCI. VOL 37 PAG. 137 (2020)

*É BIÓLOGO


Marco Aurélio Nogueira: O desafio de Huck à esquerda

Apresentador incomoda porque manifesta posições avançadas, faz propostas e busca viabilizar uma ideia de articulação democrática que explora caminhos não usuais

Lula pontificou: “Luciano Huck não representa a centro-esquerda. Representa a Central Globo de Televisão”.

Reverbera o que vários petistas e parte da esquerda falam. Ao mesmo tempo, dá o tom para que se continue com a campanha de desconstrução de Huck.

É do jogo. Lula faz o que dele muitos esperam. Quer limpar a área, não ser desafiado, fazer com que as coisas girem em torno dele. Sua frase sobre Huck pode até mesmo ser um chega-prá-lá no governador Flavio Dino (MA), que andou conversando com o apresentador dias atrás.

Chama mais atenção a conduta dos que seguem cegamente a catilinária lulista. Destruir Huck tornou-se a diversão preferida de tantos que se proclamam democratas. É um veto bem pouco democrático, que parte de supostos falsos, hipócritas, politicamente atrapalhados.

A associação Huck-Globo é uma bobagem oportunista, que intenciona carimbar o apresentador como direitista, um empresário servil aos interesses da “mídia conservadora” e do grande capital. Trabalhar numa empresa significaria, para essa turma, incorporar automaticamente a cultura, o modo de ser, o pensamento e os projetos do empregador.

Acrescente-se a isso a ideia de que Huck não tem experiência, como se antes dele, em 1994, 1998 e 2002, Lula a tivesse, por exemplo. Se o cara é jovem e não integra um partido tido como de esquerda ou centro-esquerda, não presta. Ora…

Fala-se ainda que Huck nada tem a propor, que é um ventríloquo, um pau-mandado, fato ostensivamente desmentido por suas recorrentes intervenções públicas.

Age-se segundo a máxima “não importa o que é dito, mas sim quem o diz”, postura no mínimo burra e preconceituosa. Bem típica de quem se recusa a olhar o todo e a analisar textos e contextos, pessoas que se sentem assim desobrigadas de avaliar o que criticam, tipo não li e não gostei.

Ninguém sabe se Luciano Huck será candidato a algum cargo. O que se sabe é que ele está se posicionando, e não de hoje. Tem manifestado posições avançadas e bem concatenadas. Ousa fazer propostas e tenta por de pé uma ideia de articulação democrática que explora caminhos não usuais. Talvez seja precisamente isso que incomoda os guardiões da pureza de esquerda.

Em vez de se ficar tachando seus movimentos e suas iniciativas como se fossem a expressão de um bolsonarismo light, “neoliberal”, todos ganhariam muito mais se passassem a decifrar o que ele fala e propõe, o circuito que percorre, os compromissos que está assumindo, os apoios que agrega.

Huck tem potência midiática e juventude. Pode ajudar a injetar sangue novo na política nacional, a bloquear a ascensão da extrema-direita e a desafiar uma esquerda que insiste em repisar terreno esburacado e não traz qualquer ideia de futuro nas mãos. Por que não levá-lo a sério? Deixá-lo circular em paz e ver o que tem a propor?

O veto, o preconceito, o medo e a discriminação são as piores armas com que se pode entrar numa batalha política.