O Estado de S. Paulo

José Pastore: Você perderá seu emprego para a automação?

Entre 2020 e 2022, estima-se que 42% dos conhecimentos requeridos pelas profissões atuais serão modificados

Os estudos sobre os impactos das tecnologias sobre o trabalho são contraditórios. Ao lado dos catastrofistas que preveem uma grande destruição de empregos nos próximos dez anos (Carl B. Frey e Michael A. Osborne, The future of employment, 2013), há os otimistas que enxergam mais empregos gerados do que eliminados (Philippe Aghion e colaboradores, What are the labor and product market effects of automation?, 2020).

Na semana passada, os especialistas reunidos no Fórum Econômico Mundial assumiram duas posições realistas. Na primeira, reconheceram haver um consenso sobre a necessidade de requalificar os trabalhadores para o mundo do futuro. Na segunda, apontaram a importância da participação das empresas nesse processo. E, de modo ousado, lançaram a meta de requalificar 1 bilhão de trabalhadores entre 2020 e 2030!

Durante o encontro foram citados vários exemplos de participação das empresas, tais como o movimento Pledge to America’s Workers, nos Estados Unidos, no qual 400 firmas estão requalificando 15 milhões de trabalhadores; o programa de requalificação da British Telecom (BT), que faz o mesmo com 10 milhões de profissionais; e a empresa PwC, que está investindo US$ 3 bilhões em requalificação de funcionários e usuários de seus serviços.

No processo de requalificação há um componente de urgência, porque as mudanças são meteóricas. Entre 2020 e 2022, estima-se que 42% dos conhecimentos requeridos pelas profissões atuais serão modificados. As exigências aumentarão nos campos do raciocínio, da tomada de decisões, da capacidade para trabalhar em grupo e habilidade para transferir conhecimentos de uma área para outra. Será crucial saber pensar, e pensar bem.

Neste novo mundo o conhecimento tomará lugar do diploma. E a aquisição do conhecimento virá de um processo contínuo no qual os trabalhadores ficarão em treinamento a vida toda. Para tanto, será indispensável uma boa articulação das empresas com as escolas e as ações dos governos. É um processo caro, que exigirá muitos bilhões de dólares. Mas, adverte-se, a inação custará mais caro: a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que, se a requalificação não for feita, os países do G-20 perderão US$ 11 trilhões na próxima década.

Ao lado dessa gigantesca perda econômica, há outra, ainda maior e de natureza política. Na ausência da referida requalificação, os trabalhadores ficarão sujeitos ao desemprego ou ao trabalho precário, com renda baixa e sem perspectiva de melhoria. Isso gera um descontentamento generalizado que deságua frequentemente no questionamento do sistema capitalista e no surgimento de líderes populistas que põem em risco a própria democracia. Não faltam exemplos na atualidade.

Convenhamos, se deixarmos para as próprias pessoas resolverem esses problemas dizendo que elas têm de se ajustar por si mesmas, abriremos a porta para as demagogias e a insegurança. Daí a necessidade inarredável da requalificação como processo contínuo. É um desafio gigantesco.

No Brasil temos, ainda, a missão de melhorar a qualidade do ensino convencional em vários níveis. Entretanto, não podemos parar nisso. Felizmente, já há algumas empresas bem atentas e que vêm implementando programas de requalificação profissional como rotina. Cito como exemplos a Embraer, a IBM e vários bancos. Em Santa Catarina, 260 empresas trabalham em parceria com Sesi, Sesc, Senai e Senac na qualificação e requalificação dos seus empregados (www.santacatarinapelaeducacao.com.br). Esses exemplos precisam se multiplicar. Afinal, a Revolução 5.0 está na esquina.

*Professor da Fea-Usp, membro da Academia Paulista de Letras, é presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP


William Waack: Decidindo o dilema

O Legislativo está decidindo pelo Executivo qual é agora a reforma prioritária

Para um governo que demonstra dificuldades em afinar o foco, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fez um grande favor. Quer que a reforma tributária comece a ser tratada como prioridade já na semana que vem, quando termina o recesso parlamentar. Se o Executivo ponderava ainda com qual começar entre as várias ambiciosas reformas que pretende, o Legislativo definiu.

Encontros para tratar de um texto único (são três conjuntos de propostas, mas a conhecida como PEC 45, do tributarista Bernard Appy) envolvendo relatores, deputados, senadores e especialistas – o cerne de uma Comissão Especial – começaram na terça-feira e vão pelo fim de semana. A ambição: votar até junho. Depois são férias e, na sequência, os senhores parlamentares vão se dedicar às eleições municipais. Ou seja, o prazo é dos mais apertados.

O sentido de urgência aumentou também com as demandas dos governadores, para os quais o socorro financeiro proposto pela União dentro de um novo Pacto Federativo foi por eles declarado insuficiente, e terá de ser reexaminado em função do impacto que simplificação e/ou novos tributos terão sobre arrecadação. Junte-se a isso reforma administrativa e PEC Emergencial, que pretendem, por outras vias, lidar com a questão fiscal, e tem-se o tamanho do trabalho político para o governo.

Embora a reforma administrativa (praticamente pronta, segundo Bolsonaro) figure como seu grande ataque ao aparelho de Estado, que a equipe econômica enxerga como principal obstáculo ao destravamento da economia, o presidente talvez entenda que não tem força política suficiente para tocar de forma simultânea dois ambiciosos projetos no Legislativo. Maia dá sinais de estar decidindo o dilema.

Os esforços para um mínimo de simplificação e ordenamento do sistema tributário brasileiro têm mais de 20 anos e sempre fracassaram diante da incapacidade (ou desinteresse) de sucessivos governos em ordenar os diversos interesses afetados. Ocorre que, passada a batalha da Previdência, a demanda de vários segmentos da economia clamando por algum tipo de jeito na maluquice tributária brasileira sugere uma situação já próxima de um “basta”, algo como uma genuína revolta.

Da mesma maneira como ocorreu com a Previdência, senadores e deputados parecem bem sensíveis à gritaria (plenamente justificada, aliás). Embora só desavisados ainda acreditem que reforma tributária seja sinônimo de redução de carga tributária, economistas e gestores empresariais admitem que a simplificação de tributos (mesmo que não diminua a carga) traria algum alívio às empresas, via redução de custos. No Brasil, manter-se em dia com os impostos também é caro.

As equipes técnicas da Câmara e da pasta de Paulo Guedes estão debruçadas no que seria um texto que incorporaria sugestões do Executivo (seria mais fácil do que o governo enviar projetos separados). Esse texto (o da 45) já “pactuado” passaria pela Comissão Especial, seria levado a plenário e daí ao Senado – rito que depende não só do interesse dos presidentes das Casas Legislativas, mas, também, do empenho do governo em se articular eficazmente no Congresso (reconhecidamente um problema até aqui).

Há espaço para avanços importantes. Onde o bicho pega? Onde sempre pegou: deputados se queixam de que as promessas que receberam lá atrás em termos de emendas, na votação da Previdência, ainda não foram cumpridas. Assessores do governo discordam das queixas, mas a má vontade existe. Pior ainda: os senhores parlamentares são hoje muito mais conscientes da sua capacidade de negociação, e consequente imposição de derrotas ao governo.

É o famoso limite da atuação de presidentes de Casas Legislativas, mesmo empenhados em reformas. Não são eles que impõem disciplina de voto.


Vera Magalhães: Sabotagem

Se há alguém que conspira contra a Educação é o presidente da República

O ano de 2020 na Educação começou marcado por uma palavra trazida à moda pelo ministro da pasta: balbúrdia. Confusão na correção do Enem e, consequentemente, na divulgação do resultado do Sisu, o sistema unificado que usa as notas do exame para direcionar os alunos para as universidades.

Ontem, com liminar concedida pelo Superior Tribunal de Justiça, estudantes conseguiram ter acesso aos resultados, mas muitas dúvidas ainda pairavam quanto aos critérios de atribuição das notas e escolha de vagas.

Diante de evidente falha técnica e administrativa do MEC, Jair Bolsonaro optou pela sua saída padrão quando as coisas vão mal por ineficiência dos assessores que ele considera leais, ideologicamente alinhados e suficientemente lacradores nas redes sociais: apontou sabotagem, provavelmente da esquerda infiltrada na pasta.

Isso, claro, sem ter qualquer dado ou evidência – uma sindicância, uma auditoria, alguma denúncia em canais oficiais – de que tenha havido algo do gênero. Diversionismo para enganar aquele exército bovino das redes sociais sempre disposto a amparar qualquer absurdo que venha do governo.

Acontece que numa pasta que lida com estatísticas, como a Educação, o sedimento formado pelo aparelhamento ideológico, pela inépcia administrativa e pelo desprezo à ciência vai deixar marcas que ficarão associadas ao governo Bolsonaro para a História. E neste caso não será possível apontar um complô alienígena para culpar.

Enquanto tudo isso acontecia em seu quintal, o ministro Abraham Weintraub ocupava os últimos dias com mais postagens nas redes sociais divulgando fake news contra jornalistas ou brandindo um vidro de água sanitária numa receita caseira para aplacar o suposto mau hálito de outro. Sim, isso mesmo. Dentro do gabinete do MEC. Está no Twitter, com orgulho indisfarçado da própria capacidade de fomentar a “guerra cultural”.

Também se dispôs a encaminhar “diretamente ao Inep” o caso da filha de um apoiador, uma das milhões de estudantes que apontaram erro na correção do Enem, sempre por meio da rede social favorita. Não é só. Nos últimos dias, decreto assinado por Bolsonaro abre uma brecha para que este MEC, assim aparelhado, em que o titular da Capes, responsável por pesquisas, se revela orgulhosamente defensor do criacionismo, produza livros didáticos.

Não foi por acaso o ataque de Bolsonaro aos livros adquiridos por meio do Programa Nacional do Livro Didático, aqueles que, no gosto presidencial, tinham muita coisa escrita.

O filão dos livros didáticos sempre foi uma espécie de galinha dos ovos de ouro dos pupilos de Olavo de Carvalho que foram encastelados no MEC na gestão de Ricardo Vélez Rodríguez, caíram por intervenção do general Santos Cruz, mas continuam orbitando em torno do poder. Vários desses olavetes inflamados têm participações em editoras e esperam só uma chance para abocanhar esse rentável mercado. E, de quebra, fazer aquela doutrinaçãozinha ideológica, porque ninguém é de ferro.

É esse estado de coisas que compromete de maneira séria a Educação brasileira. Exumar Paulo Freire e malhá-lo como um Judas diante de uma massa que não sabe nada a respeito da obra do educador é um jeito de criar uma cortina de fumaça para o verdadeiro plano de utilizar educação e cultura como correia de transmissão do reacionarismo (e nunca conservadorismo, porque os conservadores de fato se contorcem diante dessa marcha batida rumo às piores práticas autoritárias).

O Congresso, que tem em suas cadeiras alguns bons parlamentares com foco nessa área, precisa, no retorno do recesso, voltar os olhos para os desmandos no MEC, já que, pelo jeito, Bolsonaro continuará apontando inimigos imaginários enquanto seu ministro pinta e borda.


Rubens Barbosa: O Reino Unido abandona a Europa

Com o Brexit a União Europeia perde uma voz enérgica e ativa no cenário internacional

A eleição parlamentar de 12 de dezembro resultou na maior derrota do Partido Trabalhista desde 1935 e, de 1987 até hoje, na maior vitória dos conservadores. Apesar da divisão do país, o primeiro-ministro Boris Johnson passou a ter ampla maioria e maior liberdade para operar a saída do Reino Unido da União Europeia (UE).

Com a aprovação do Parlamento britânico, o Reino Unido deverá sair juridicamente da União Europeia na sexta-feira próxima, dia 31, três anos depois do referendo de junho de 2016. Haverá, até 31 de dezembro de 2020, um período de transição que o primeiro-ministro Boris Johnson pretende não prorrogar, mas que poderá estender-se até dezembro de 2022, dependendo da evolução das negociações.

No corrente ano a principal prioridade do governo britânico será abrir negociações comerciais com a UE e aprovar medidas legislativas internas em praticamente todas as áreas, pondo fim a um casamento que durou 45 anos. O Parlamento deverá examinar e aprovar legislação em todas as áreas para substituir normas e regulamentos da União Europeia hoje em vigor. Johnson, na contramão de políticas do Partido Conservador, tem reafirmado que pretende ter mais flexibilidade no tocante à presença do Estado sobretudo nos programas sociais, ao contrário das políticas seguidas até aqui no âmbito da UE.

No período de transição, o Reino Unido deverá seguir respeitando as regras da UE, apesar de não mais participar de sua elaboração. E acertar o pagamento de dívidas resultantes da retirada de diversos órgãos comunitários. A negociação do acordo comercial com a UE parece ser um projeto muito ambicioso, visto que normalmente levaria cerca de dois anos para ser concluído. Se a saída efetiva do Reino Unido se der em janeiro de 2021, como quer Johnson, poderá ocorrer uma retirada sem negociação comercial, o pior cenário para Londres. A futura relação com a União Europeia torna-se, assim, incerta no tocante ao intercâmbio comercial, além de outras áreas, como defesa e segurança, pesquisas, troca de estudantes, agricultura e pesca. Esses e outros acordos, como a presença de cidadãos europeus no Reino Unido e de imigrantes, deverão ser aprovados pelos Parlamentos de todos os países-membros.

Com relação aos acordos comerciais, o Reino Unido deverá pedir admissão à Organização Mundial de Comércio (OMC) e negociá-los com a UE e outros parceiros, segundo suas regras, justo num momento em que a OMC vive uma crise de identidade pelo esvaziamento a que é submetida pela ação dos EUA. Cabe notar, porém, que só depois de o acordo com o Reino Unido ser ratificado por todos os países-membros da UE será possível iniciar negociação com outros países, como EUA e Brasil.

Uma das questões mais delicadas será conhecer o pensamento do novo governo já fora da UE no tocante à cooperação no âmbito da defesa. Como será o papel do Reino Unido nos trabalhos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)? É possível antecipar que o Reino Unido deverá respaldar as posições críticas dos EUA quanto aos compromissos financeiros e outros da Otan?

Com relação ao impacto sobre as relações com o Brasil, a saída do Reino Unido representa uma perda nas negociações comerciais com a UE, tendo em mente as políticas mais liberais de Londres, sobretudo nas questões agrícolas. Por outro lado, na época de Theresa May o governo britânico havia indicado, publicamente, interesse em negociar um acordo de livre-comércio com o Brasil quando fosse efetivado o divorcio da UE. O Mercosul certamente deverá tomar posição acerca da negociação de um acordo de livre-comércio com o Reino Unido. Resta saber se Boris Johnson vai manter o interesse em avançar nessas negociações. Outra consequência será a realocação de cotas atribuídas ao Reino Unido na UE em alguns produtos agrícolas. De acordo com as novas cotas anunciadas pela UE na OMC, será preciso compensar a perda de cotas de 11 produtos do setor.

Os desafios do governo Johnson não são pequenos: terá de dissociar uma economia profundamente integrada ao bloco comercial há 45 anos, ao mesmo tempo que terá de executar planos para o pós-Brexit e minimizar os danos imediatos aos interesses das empresas britânicas, já ocorrendo em especial no setor financeiro da City. A saída da UE trará forte impacto sobre o papel do Reino Unido no mundo e ao futuro da união do país. O Partido Nacionalista Escocês, fortalecido nas eleições, já pediu novo referendo sobre a independência da Escócia, de imediato negado por Johnson.

A Europa também sentirá as consequências do Brexit. A saída do Reino Unido deve acelerar a perda de relevância da UE no mundo. Os líderes dos países europeus vêm enfrentando problemas econômicos e a emergência do populismo e do nacionalismo conservador. Alemanha e França, motores do crescimento e principais atores da União Europeia, se veem às voltas com crises econômicas e políticas internas. Sem Londres a UE perde uma voz enérgica e ativa no cenário internacional e o grupo de nações que dominaram o cenário global por tantos anos perderá espaço no mundo e encolherá melancolicamente.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio exterior (IRICE)


Eliane Cantanhêde: Este 2020 promete!

Coronavírus, sacolejo nas Bolsas, chuvas assassinas e, claro, pérolas do presidente

O ano de 2020 começou malvado. A Organização Mundial da Saúde (OMS) demorou, mas admitiu ontem que o coronavírus caracteriza um “alto risco”, não mais só “moderado”. Ou seja: aparentemente afastada a ameaça de uma guerra entre Estados Unidos e Irã, o mundo enfrenta agora o temor de uma epidemia de proporções ainda incertas.

O vírus já atingiu milhares de pessoas e já matou dezenas na China, extrapolou para o resto da Ásia, a Europa e os Estados Unidos e deixa todos os continentes em estado de alerta. O risco é de morte, mas ameaça também a economia dos países. Obviamente, o Brasil não está fora da mira.

Para o bem e para o mal, a globalização veio para ficar. O espetacular fluxo de pessoas entre continentes e países corresponde a uma grande facilidade de exportação do vírus aos quatro cantos do mundo. A extensão e as projeções ainda são incertas, mas, certamente, não dá para dormir tranquilo.

E o risco de globalização do vírus também impacta diretamente as transações comerciais e financeiras, particularmente de commodities. E é exatamente por isso, e preventivamente, que a Bolsa sacolejou fortemente no Brasil. Vale, Petrobrás, Gerdau, CSN e Suzano chegaram a perder R$ 33 bilhões em valor de mercado na manhã de ontem. O vírus nem chegou ao Brasil, mas o medo já se instalou.

O Ministério da Saúde criou um Centro de Operações de Emergência, junto com a Anvisa, para tomar as medidas possíveis neste momento. Não é simples, porque as ações se concentram em aeroportos, portos e pontos estratégicos de fronteira, mas vamos pensar juntos. Como não há voos diretos do Brasil para a China, o monitoramento não tem foco, é dos mais variados voos, que vêm da Ásia, dos EUA e de capitais da Europa, como Madri, Lisboa, Roma, Amsterdã. E as fronteiras? O Brasil não consegue nem monitorar tráfico de drogas, armas e cigarros...

As providências cabíveis estão sendo tomadas: alertas em português, inglês e mandarim, comunicados para empresas aéreas, instrução para as tripulações relatarem a presença de passageiros com sintomas. E há planejamento para isolar casos suspeitos e toda uma rede de técnicos se informando sobre como combater a doença já instalada. No mais, é rezar para a disseminação global ser contida.

Além do vírus assassino, o ano começou com mortes e desaparecimentos por causa das chuvas torrenciais em Minas e no Espírito Santo. Dezenas de famílias destroçadas, milhares de famílias desalojadas. Ok, é verdade que o volume de água em Belo Horizonte, por exemplo, foi o maior em 110 anos. Mas alguém é capaz de jurar que era impossível salvar essas vidas, evitar ou minorar a tragédia?

O ano também começou com a inacreditável história de um secretário nacional de Cultura que cultuava o nazismo e, agora, a aflição de milhares de estudantes com o Enem e o Sisu. O tal secretário foi demitido após profunda rejeição da sociedade, mas o ministro da Educação continua numa boa e vai ficando.

Ninguém sabe, ninguém viu ao menos alguma medida, algum anúncio, algum plano do MEC, e todo mundo vê as lives ridículas do ministro, os erros crassos de português, a ideologia contaminando tudo. Só o presidente não vê. Ou não dá bola.

No início do ano, Bolsonaro escapou da berlinda em Davos e fez viagem produtiva à China, mas caprichou nas “pérolas”: livros cheios de muita coisa escrita, índios mais parecidos com seres humanos, o capitão do Exército versus Gandhi, o secretário nazista “exemplar”. E a reação aos brasileiros deportados por Trump com pés e mãos algemados? Em vez de se solidarizar com os pobres coitados, ele apoiou o “Deus” americano. É... 2020 promete.


O Estado de S. Paulo: ‘País gira em círculos, sem lideranças e sem projeto’, diz Aldo Fornazieri

 Para sociólogo, o Brasil sofre com a falta de lideranças, esquerda está desorientada e a direita ‘capturou os deserdados da globalização’ e veio para ficar

Gabriel Manzano, O Estado de S. Paulo / Caderno 2, 27/1/2020

O cientista político Aldo Fornazieri, diretor da Escola de Sociologia e Política, não economiza palavras para definir o quadro político-social do Brasil: “A falta de lideranças é uma coisa trágica”. E não só na política: “Faltam líderes de fato – daqueles que inspiram confiança e apontam uma direção à sociedade, como os definia Maquiavel no século 16 – nos meios empresariais, sindicais, industriais, educacionais, religiosos…”

E não é de hoje, acrescenta. “Episódios decisivos da história – independência, proclamação da República, Revolução de 30, o golpe de 1964, mesmo os 13 anos do PT, a rigor mantiveram o jogo e as elites conservadoras no poder. Em nenhum deles houve inovação e mudança”. Esse olhar deu origem a um livro, Liderança e Poder, que Fornazieri deve publicar ainda este ano, no qual fala do “declínio acentuado das lideranças” à luz dos ensinamentos de Maquiavel.

O País, ressalta o professor, “gira em círculos”. A esquerda “está desorientada, não tem projeto, ignora temas como meio ambiente e revolução tecnológica”. E a direita “capturou os deserdados da globalização e veio para ficar”, afirma nesta entrevista a Gabriel Manzano.

A seguir, os principais trechos da conversa.

Como vê hoje o Brasil, com um ano de governo Bolsonaro, Lula solto e uma campanha eleitoral pela frente?
Vejo o País numa continuidade trágica, que faz parte da sua história. Ele gira em círculos, marcado por injustiças, incapaz de construir sua grandeza. E as responsabilidades cabem aos três grandes atores em campo – direita, centro e a esquerda.

A começar pela direita, que balanço faz do atual governo?
Acho que ele frustrou expectativas. Do ponto de vista do crescimento, não conseguiu reduzir o desemprego. Não há até aqui sinais claros de retomada da economia ou políticas públicas que estimulem a pequena e a média empresa, grandes geradoras de emprego. A desigualdade aumenta: o IBGE nos diz que metade da população vive com algo em torno de 400 reais. No meio político, tivemos ataques sistemáticos à democracia – o mais recente levou à queda do secretário da Cultura, há dez dias. E convivemos com atos hostis à cultura, contestação de dados do INPE sobre desmatamento, descaso com o aquecimento global…

E como vê os outros dois lados, centro e esquerda?
Vejo a centro-direita política dando as cartas no País, centrada na figura de Rodrigo Maia. Ele se projetou como grande articulador em nível nacional, fechando com a centro-esquerda na questão democrática e com o ministro Paulo Guedes na economia. É um centro que tem maioria e consegue barrar as bobagens do presidente nas medidas provisórias.

E quanto à esquerda?
Vejo-a numa situação crítica. Ela entrou num defensionismo político lá por 2015, com as primeiras manifestações contra o impeachment de Dilma, e ali continua até hoje. O que me parece é que ela não achou o seu lugar no atual quadro político. Nas suas pautas, tentou mobilizar alguma coisa e fracassou. Um exemplo, a pauta da reforma da Previdência. Olhe as grandes manifestações em toda a França, pelo mesmo tema. E sabe quanta gente havia no protesto na Câmara, em Brasília, contra essa reforma? Vinte pessoas.

Isso se deve a uma dispersão da esquerda, com Lula preso?
Em parte. Mas durante o impeachment de Dilma o Lula estava livre e não conseguiu fazer grande coisa em defesa dela. A esquerda perdeu a capacidade comunicatória. O PT foi se afastando das massas, quando no governo, e não criou raízes nas bases sociais. Essas bases estão nas periferias das grandes cidades, onde quem tem poder de persuasão, hoje, são as igrejas evangélicas.

• Igrejas que estão contra o PT.
Sim. E o PT tem um problema estrutural de mobilização agravado pelo antipetismo que cresceu com o mensalão e o impeachment. A campanha Lula Livre, por exemplo, só mobilizou a militância.

• Qual o peso real da liderança de Lula hoje?
Ele tem capacidade retórica e de aglutinação, mas não suficiente para promover uma virada de jogo. Não fará o governo recuar dos ataques às liberdades, à imprensa, à ciência, ao meio ambiente.

Podem faltar lideranças no País mas a direita e boa parte do centro estão satisfeitas com Bolsonaro. Entendem que seu governo tem, sim, um projeto de País. Como vê isso?
Embora na política não haja quase nada definitivo, é importante considerar que a extrema-direita veio para ficar. Com o fim da Guerra Fria e o advento da globalização, ela se sentiu desbloqueada de constrangimentos – como a herança negativa do nazifascismo e das ditaduras militares em países periféricos. Então, lançou-se na disputa política e eleitoral com fisionomia própria. Mas não dá pra dizer que o governo Bolsonaro, no caso, tenha um projeto para o País. Pode ter elementos. Dou exemplos. Não se vê projeto de política externa. Há uma desconstrução da educação e da ciência. Não se veem políticas públicas para atacar a pobreza e a desigualdade. Mas com o eleitorado dividido em três fatias – centro, esquerda, direita –, é provável que Bolsonaro chegue competitivo em 2022 se a economia crescer.

Você mencionou a desorientação da esquerda, mas isso não se limita ao Brasil. A da Europa está bem enfraquecida, aparentemente pela mesma razão – não dar respostas aos desafios da globalização e da alta tecnologia.
Sim, de modo geral as esquerdas se mostram desorientadas e sem projeto. Em primeiro lugar, acho que há um consenso entre estudiosos de que a democracia foi capturada pelo grande capital. Este não precisa mais do Estado para impor suas pautas. Num certo sentido, a esquerda virou uma “ala esquerda do centro liberal”.

O que isso significa?
É o que vemos no Partido Trabalhista da Inglaterra, no Socialista da França, no PSOE da Espanha. O PT viveu processo parecido, assumindo o lado de lá do balcão e a visão dos palácios e gabinetes. Eu perguntaria: o PT mudou o Brasil, ou não, em seus 13 anos no poder? Eu diria que não. Houve melhorias nos programas sociais mas a estrutura social e econômica anterior permaneceu. Não vimos reformas profundas que eliminassem as desigualdades, grande desafio global dos nossos dias.

Seria possível criar uma outra agenda nas condições de hoje?
Esse é o desafio. A direita tem a agenda dela. Onde é que a direita navega? Exatamente entre os deserdados da globalização, que são em número crescente. Em cada país ela assume um discurso nacionalista radical e lida com o medo.

E esse fenômeno produziu líderes como Donald Trump nos EUA, Viktor Orbán na Hungria e agora Boris Johnson na Inglaterra. Como analisa esse novo quadro?
Nos países centrais, na Europa e nos EUA, essas lideranças aproveitam o temor das classes médias e pobres quanto a emprego, renda e chegada de imigrantes. Quem votou na candidata Marine Le Pen, de direita, na última eleição francesa foram os trabalhadores. O Trump também teve o apoio dos deserdados da globalização. Ou seja, a direita capturou o público que em tese seria da esquerda. Fez mais. Posicionou-se melhor no uso das redes sociais e recolocou o debate sobre valores – coisa que a esquerda deixou de lado, como fez também com o tema ambiental.

Também não ofereceu respostas aos desafios sociais da da revolução tecnológica.
Não assumiu essa pauta no Brasil nem em lugar nenhum. Tematicamente, vejo na esquerda três sérias deficiências. Uma, essa alergia à questão ambiental. Outra, não abordar a revolução tecnológica – ela não tem receitas contra a escassez de empregos que virá com a revolução robótica. E a terceira, já mencionada, a desigualdade, hoje em nível planetário.

Você deve publicar em breve um novo livro, Liderança e Poder. Pode falar a respeito?
É uma abordagem das teorias de Maquiavel sobre liderança, com um olhar a partir da política brasileira. Entendo que temos no Brasil um declínio bastante acentuado de líderes. O que é um líder? Alguém que inspire confiança e tenha capacidade de dar uma direção à sociedade – é algo diferente de fama ou celebridade. Aqui, até poderíamos mencionar o Lula, mas ele está na fase final de sua vida política, sem condições de disputar uma eleição, pela idade e até por razões judiciais. Acho essa falta de lideranças algo trágico para a sociedade – porque esta, sozinha, não é capaz de dar a si mesma uma direção.

De que modo se enquadram, no modelo de seu livro, as novas lideranças da direita?
Primeiro, entendo que elas se enquadram, todas, no mesmo figurino: surgem com o fim da Guerra Fria, como citei anteriormente. O que Maquiavel nos ensina é o seguinte: em momentos de crise, abre-se campo para a ascensão de líderes que pregam a mudança. E a mudança, no atual cenário, é a democracia liberal sendo sequestrada pelos interesses do capital global.

O que isso acarreta?
Nesse processo, os partidos mais afetados são os do centro liberal e da centro-esquerda. Líderes da direita perceberam essa situação crítica e se lançaram a campo propondo mudanças – conservadoras – e arrastaram trabalhadores e setores médios. Mas como a extrema-direita não é capaz de oferecer soluções para esses grupos que votam nela, no futuro próximo tende a haver um rearranjo político, que pode ser mais para o centro ou a centro-esquerda, dependendo das situações e das lideranças que se apresentarem.


Carlos Pereira: Há vacina contra iliberalismos?

O Brasil possui anticorpos contra antígenos iliberais tanto de esquerda como de direita

É paradoxal o comportamento iliberal de líderes políticos eleitos democraticamente que, uma vez no poder, tentam subverter e enfraquecer as instituições democráticas.

O que diferencia e qualifica regimes democráticos são as respostas que sociedades e instituições ofertam a tentativas de líderes populistas de usurpá-los.

No Brasil, vários presidentes eleitos apresentaram comportamentos iliberais.

Fernando Collor, por exemplo, vilipendiou direitos de propriedade ao confiscar a poupança de milhares de brasileiros. Lula, por sua vez, interferiu nas agências reguladoras e tentou reduzir sua independência. Ameaçou controlar a mídia por meio do “novo marco regulatório dos meios de comunicação”. Dilma tentou dar nova roupagem ao controle da mídia via regulação econômica. Lula também defendeu o controle externo da Justiça como forma de abrir a “caixa-preta” do Poder Judiciário. Haddad falava abertamente em controle social do Ministério Público e do Judiciário.

Como a chegada do PT à Presidência foi marcada por grande esperança, iniciativas iliberais ficaram camufladas e só se tornaram explícitas quando os sucessivos escândalos de corrupção vieram à tona. Até hoje os atos iliberais do petismo têm sido tolerados com base na crença de que as políticas de inclusão social os justificavam. Raciocínio semelhante pode ser atribuído ao governo Collor, com os efeitos de controle da hiperinflação de curto prazo.

As iniciativas e discursos de conteúdo iliberal também têm sido a tônica do governo Bolsonaro. Elogios recorrentes à ditadura e a torturadores já o condenam. Quando candidato, falava em aumentar o número de ministros da Suprema Corte. Tem atacado jornalistas e órgãos de imprensa. Seu ex-secretário de Cultura plagiou discurso nazista ao lançar edital iliberal que excluía do financiamento público a diversidade de expressões culturais que não se adequasse aos valores nacionais e conservadores.

Entretanto, diferentemente de outros populistas do passado recente, o governo Bolsonaro já teve início sob um intenso escrutínio. Essa atitude vigilante da sociedade e das organizações de controle é consequência direta da retórica belicosa e desrespeitosa desde quando Bolsonaro ainda era candidato à Presidência. Portanto, o espaço do governo de agir de forma iliberal já é menor que o de outros populistas, assim como os riscos de que suas ações enfraqueçam a democracia.

A despeito das inúmeras demonstrações de resiliência a retóricas e ações iliberais de populistas de esquerda e de direita, alguns analistas insistem que os riscos à democracia seriam reais e maiores com Bolsonaro. Citam exemplos de Venezuela, Polônia, Hungria ou Turquia, onde o enfraquecimento da democracia foi possível inclusive com apoio popular. Esse risco seria potencializado em contextos de extrema polarização, em que eleitores estariam dispostos a abrir mão de um sistema democrático para ter um país que se aproximasse de suas preferências extremas.

Entretanto, consentimento popular a saídas autoritárias só é dado em um contexto de terra arrasada do ponto de vista institucional, o que nem de longe é o caso do Brasil. Ao contrário de se esgarçarem, os freios e contrapesos do sistema político brasileiro só se fortaleceram desde a redemocratização, ainda que de forma não linear. Mesmo que parte da sociedade brasileira se seduza com iniciativas iliberais, encontrará organizações de controle já imunizadas contra diferentes cepas de populismos.


Eliane Cantanhêde: Inimigos por toda parte

Moro, Mourão, Doria, Witzel e Huck, sempre na mira de Bolsonaro

Pode espantar os bolsonaristas e preocupar o núcleo militar do governo, mas não há surpresa nos ataques e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao ministro Sérgio Moro, como não há certezas sobre o que vai acontecer com a pasta da Justiça. O Ministério da Segurança Pública será recriado? E o futuro da Polícia Federal e da sua direção-geral? No primeiro escalão e no próprio gabinete de Moro, a resposta é direta: “Tudo é imprevisível”.

É assim porque o presidente da República é imprevisível. Pode até momentaneamente voltar atrás, mas no Alvorada, no Planalto, no avião presidencial, ele certamente fica ruminando sobre como baixar a crista desse tal de Moro e como botar alguém “de confiança” no lugar do delegado Maurício Valeixo na poderosa (e, para alguns, ameaçadora) PF. Afinal, “quem manda sou eu”.

Assim como tem fixação em enfraquecer Moro, Bolsonaro já partiu para cima dos governadores do Rio, Wilson Witzel, e de São Paulo, João Doria, do apresentador Luciano Huck e até do vice-presidente Hamilton Mourão, general de quatro estrelas. O que há em comum entre eles? São os nomes que se colocam, ou são colocados, como opções do centro à direita para a Presidência. Ou seja: adversários potenciais de Bolsonaro. No mundo dele, inimigos.

Moro já levou para casa a desfeita com Ilona Szabó, a cara de tacho enquanto Bolsonaro espanava para o lado o pacote anticrime, o não veto ao juiz de garantias. Só não voltou para casa em 2019 porque, finalmente, ganhou uma: manter Valeixo na PF. E ganhou porque os generais do governo entendem e tentam convencer Bolsonaro da importância política, simbólica e objetiva de Moro. Mexer com ele é rachar drasticamente a base bolsonarista.

“Se demitir Moro, seu governo cai”, alertou o general Augusto Heleno, em agosto passado, depois de esgotar o seu estoque de convencimento na base do bom senso. A passagem é relatada no livro Tormenta, da jornalista Thaís Oyama, que não traz revelações novas, mas acrescenta ambientes e frases a momentos decisivos e capta algo essencial: a psicologia do presidente.

Ficam claras as fragilidades intelectuais, políticas e pessoais de Bolsonaro, mas sobretudo seus vícios. Se não fuma e bebe pouquíssimo, ele tem mania de perseguição. Não confia em ninguém, vê esquerdistas e inimigos em toda parte e não se sente seguro nem nos jardins do Alvorada. Vai que apareça um drone... O gesto de simular uma arma com as mãos não foi só de campanha e não é só para defender a população armada por aí. É também para mirar os “inimigos”, como os adversários potenciais de agora e de 2022, estejam eles de costas ou bem ao lado do presidente.

Mourão leva tudo na esportiva, com a postura superior de cara culto, leitor voraz, mas também leva suas lambadas. Ele está saindo dos meses autoimpostos de sombra e voltando à luz do sol, com enormes vantagens sobre os “concorrentes”. Diferentemente de Moro e Heleno, não é subordinado nem demissível. Diferentemente de Doria e Witzel, não precisa de verbas federais para seus Estados e pretensões políticas. Diferentemente de Huck, tem espaço político garantido. A única coisa que Bolsonaro pode fazer é suportá-lo.

Enquanto, claro, 2022 não vem. Aí, o jogo recomeça do zero e Mourão pode ser forçado a guerrear pela vaga na chapa, Moro terá de decidir o que quer ou catar o que sobrou, Doria e Witzel precisarão medir seu tamanho e Huck, sair do “ser ou não ser”. Até lá, o comando bolsonarista atualiza a ameaça de 2018: ou engolir qualquer absurdo de Bolsonaro ou trazer o PT e Lula de volta. Isso, porém, não depende dos inimigos, das esquerdas e da mídia. Depende do “capitão” e das assustadoras bobagens que ele não para nem de falar nem de fazer.


Vera Magalhães: Currículo x vassalagem

Moro e Guedes têm biografia anterior a Bolsonaro; outros ministros, não

A semana que passou serviu para comprovar algumas características da Presidência de Jair Bolsonaro que já ficaram óbvias em seu primeiro ano de mandato e que terão profundas consequências para o saldo final deste período, numa perspectiva histórica.

Bolsonaro não quer auxiliares, mas súditos com lealdade cega e irrestrita. A paranoia com possíveis traições é total, e levada ao paroxismo quando envolve ameaças (reais ou virtuais) à sua reeleição em 2022.

E alguns ministros terão sempre de analisar se vale a pena submeterem sua biografia a esse jugo, uma vez que têm uma história anterior ao bolsonarismo, diferentemente de outros. Mas isso também faz com que Bolsonaro não consiga apenas descartá-los ao primeiro sinal de “deslealdade”, como fez com Gustavo Bebianno e Santos Cruz. O que torna o jogo mais complexo e imprevisível.

Sérgio Moro passou a semana na frigideira presidencial, na qual já esteve em diversas ocasiões em 2019. Foi parar lá a despeito de ter declarado lealdade publicamente a Bolsonaro em rede nacional no Roda Viva, mas porque o presidente não o achou suficientemente enfático, viu alguns contrapontos indesejáveis entre a própria conduta e as ideias do ministro da Justiça e, principalmente, porque sentiu que Moro está mais político, mais solto e mais popular do que nunca.

Paulo Guedes, outro dos que têm um currículo que precede a associação com o bolsonarismo, foi a Davos sozinho. Ricardo Salles fugiu da raia, pois não seria possível enrolar no Fórum Econômico Mundial como faz nas entrevistas em série que dá para convencer a opinião pública do impossível: que sua política ambiental não é um fracasso, tanto que o próprio Bolsonaro colocou o vice-presidente, Hamilton Mourão, para intervir nela e tentar limpar a barra do Brasil no exterior.

Coube ao ministro da Economia falar sobre tudo em Davos, já que o próprio presidente também preferiu se ausentar para não responder pelas promessas que fez há um ano, mas não executou. Guedes aproveitou o ensejo para jogar a ideia do imposto sobre o “pecado”, e foi mais um a entrar na lista de desautorizados de Bolsonaro. De leve, com carinho, porque também aqui o presidente sabe que não pode prescindir do Posto Ipiranga.

Enquanto toureia os ministros que têm mais popularidade que ele, ou que têm uma vida própria quando resolverem sair, Bolsonaro pode ter o alento de contar com a vassalagem daqueles que só podem ser ministros em seu governo, pois não eram nada antes e voltarão a não ser nada depois.

Podem ser campeões na esperada lealdade, mas são candidatos a ser entraves no caminho da tão sonhada reeleição.

O “imprecionante” Abraham Weintraub, na semana de colapso do Sisu e do Enem, e enquanto a solução para o Fundeb segue longe de ser alcançada, entregou ao público mais performances bizarras nas redes sociais, se ocupando de atacar colunistas críticos ao seu chefe. Nota 10 na régua bolsonarista, pode respirar aliviado na cadeira, mesmo colocando a Educação do País de cabeça para baixo.

Idem quanto a Damares Alves e sua canhestra política de abstinência sexual para jovens, e a Ernesto Araújo indo à Índia pregar contra a globalização pela enésima vez. Agora até um criacionista apareceu para cuidar da Capes, ligada ao MEC do ministro “imprecionante” e responsável, vejam só, por pesquisa.

E é neste time que Regina Duarte se prepara para entrar. Ela tem um currículo brilhante, uma trajetória exitosa e uma coragem imensa, pois a chance de arriscar tudo isso num “namoro” furado com Bolsonaro é enorme. Ainda assim, pode se juntar a Moro e Guedes no time dos que têm a perder, mas representam algum alento diante do resto do pessoal. Boa sorte para ela.


Adriana Fernandes: Militarização do serviço público

Entrou no radar o risco do avanço do aparelhamento militar no funcionalismo

A judicialização da lei que permite a contratação temporária de militares da reserva para trabalhar em atividades de servidores públicos civis é dada como certa em Brasília.

Lideranças políticas avaliam como equivocada a decisão do Congresso de ter aprovado a inclusão do artigo 18 na Lei 13.954, que trata das mudanças nas carreiras e aposentadoria das Forças Armadas.

O artigo permite que o militar da reserva (inativo) seja contratado para o desempenho de atividades de natureza civil com o pagamento de um adicional igual a 30% da remuneração que estiver recebendo na inatividade.

Com a lei, o risco do avanço do aparelhamento militar do serviço público no governo Jair Bolsonaro entrou no radar. Esse já era um tema recorrente no período de transição de governo, antes mesmo de o presidente ter tomado posse no cargo.

O movimento só ficou mais claro depois que o governo anunciou que iria contratar uma força-tarefa de 7 mil militares que já estão na reserva para acabar com a fila de mais de 1,3 milhão de pedidos de benefícios do INSS.

Ele acontece no momento em que o Ministério da Economia anunciou que não haverá concursos públicos tão cedo por causa da necessidade de reduzir os gastos da folha de pessoal, um dos itens de despesas obrigatórias que mais pesam no Orçamento da União. Só concursos muito pontuais e estratégicos, como o da Polícia Federal, vão ocorrer até o final da administração Bolsonaro.

Com uma mão, o governo aperta os concursos e com a outra chama os militares da reserva pagando a gratificação. Situação que poderá se repetir em outras áreas do serviço público federal, sobretudo, nas chamadas atividades-meio. Atribuições de carreiras de Estado, como auditores fiscais da Receita, não poderão ser alcançadas porque têm regras mais rígidas incluídas em lei.

De certo é que a nova lei dos militares, que apertou as regras de aposentadoria, mudou a estrutura das carreiras militares e reajustou os salários, acabou abrindo o caminho para uma maior militarização do serviço público.

A ficha caiu só agora.

A lei foi aprovada no fim do ano passado, no rastro da aprovação da reforma da Previdência, e em meio à negociação final do Orçamento deste ano.

Agora, há uma articulação para a apresentação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF) depois do fim do recesso do Legislativo.

As negociações do governo com o Tribunal de Contas da União (TCU) para fechar um acordo para a contratação temporária para acabar com a fila podem dar um parâmetro, um limite, para o movimento da militarização.

O ministro Bruno Dantas do TCU analisa pedido de liminar do Ministério Público junto ao tribunal para suspender a contratação. O TCU tem a competência de barrar contratos considerados ilegais e exigiu do governo que ampliasse a contratação para civis para trabalhar no INSS temporariamente.

O Ministério da Economia propôs como solução a contratação de servidores aposentados do INSS. O acordo vai sair na próxima semana. Em jogo, os planos do presidente Bolsonaro. Por isso, a importância da decisão.

Antes disso, o Palácio do Planalto, que não gostou da resistência do TCU, correu para publicar em edição extra do Diário Oficial da União decreto que regulamenta a contratação de militar. O decreto foi assinado pelo presidente em exercício, Hamilton Mourão, e não se restringe ao caso do INSS. A contratação dos militares poderá ser feita por outros órgãos.

Mourão foi um dos integrantes do alto escalão do governo que botou lenha na fogueira na polêmica com o TCU. Sem estar muito a par das negociações com o tribunal, entrou em campo para avisar que, em vez de contratar, o governo convocaria os militares para trabalhar na fila do INSS. O presidente em exercício recuo logo em seguida. Mas a fala dele teve eco na Esplanada. A conferir cenas dos próximos capítulos.

 


Marco Aurélio Nogueira: São Paulo, a metrópole e o futuro

Na azáfama cotidiana, paulistano sofre sem compreender as razões de tanto sofrimento

As cidades dos dias atuais intrigam, causam perplexidade. Os humanos fizeram delas seu principal hábitat a partir da revolução moderna. A vida urbana generalizou-se, mas não a urbanidade. Faltam coisas demais para que as cidades possam ser tratadas como ambientes de plena civilidade, onde todos vivam com igual dignidade. Umas mais, outras menos, estão todas atravessadas por desafios e imperfeições, que avançaram à medida que avançou o capitalismo, se mundializou, ganhou maior ímpeto tecnológico, mas não conseguiu ser democraticamente regulado.

São Paulo, que em 2020 comemora 466 anos de existência, não é exceção. Instalada na periferia do mundo, coração de um país continental, dinâmica e superpovoada, com uma evolução que não conseguiu amalgamar adequadamente as populações que nela buscaram abrigo e que convive com problemas que parecem imunes à ação humana racional, a cidade é uma metrópole pujante, síntese expressiva dos problemas, promessas e virtudes da modernidade.

Metrópoles são espaços de ritmo acelerado, impessoalidade, isolamento e encontro. Sempre fascinaram os estudiosos, atraíram as massas e desafiaram os gestores. Foi nelas que a política moderna ganhou face e corpo. São lugares de muitos lugares, onde se combinam excessos e carecimentos, inclusões e exclusões, gente variada, múltiplos projetos existenciais.

O modo de vida industrial e pós-industrial turbinou as cidades. As maiores conheceram a conurbação, formando um gigantesco tecido de municípios unificados em termos socioeconômicos, ainda que preservando autonomias no plano jurídico e político. As cidades ficaram ainda mais vibrantes, heterogêneas, repletas de empresas e ofertas culturais, sobrecarregadas de automóveis e deslocamentos, só em parte atenuados com o avanço das tecnologias de comunicação. Nas grandes cidades o movimento e a circulação de pessoas, ideias, mercadorias são a regra.

As cidades encontram-se agora com a era digital. Precisam se adaptar a ela, aproveitá-la para melhorar a qualidade de vida e os parâmetros da gestão pública. A informatização geral, as novas tecnologias, o uso ampliado de energias alternativas, a reconfiguração do trabalho, o transporte movido a eletricidade, os “carros voadores”, a otimização do tempo, tudo isso já bateu às portas. Não são mais meras tendências.

A assimilação da era digital pode ser um importante fator de renovação das cidades, ajudando-as, no mínimo, a combater a praga da poluição ambiental, que ameaça a saúde e compromete o bem-estar. São Paulo convive intensamente com isso: a poluição encarece o dia a dia, o ar pesado e o barulho incessante dificultam o descanso, a cidade é a cada dia mais quente, o trânsito enlouquece e impacta o consumo, a produção, a cultura. Pouco se faz para equacionar essas questões. Há reclamações e promessas, mas a sensação é de que se está sempre no mesmo lugar, piorando.

A poluição ambiental é tóxica, visual e sonora. Torna feio o que poderia ser bonito. Segrega e distingue bairros, fazendo com que pouquíssimas regiões usufruam o que uma cidade deveria oferecer a todos. Na azáfama do cotidiano, a maioria dos paulistanos sofre sem compreender as razões de tanto sofrimento: no ar que se respira, no tempo desperdiçado, na tensão inerente às interações, na brutalidade de tantos comportamentos, no silêncio escasso.

O ruído é uma marca de São Paulo, produto da efervescência urbana e do tumulto por ela provocado. Diferentemente do ruído político, que confunde e distrai, os ruídos urbanos demarcam um espaço, exprimem a “potência” de quem os produz. Não são inocentes. Repetindo-se sem intervalo e sem controle, convertem-se em barulho. Fazem parte de um mesmo pacote, misturam-se com o ar contaminado, a falta de regras, o frenesi urbano, a multiplicação dos negócios, a concorrência, a orgia de informações, o extravasamento. Como escreveu a socióloga Isla Antonello, nos grandes aglomerados urbanos dá-se uma “ocupação através do barulho”, vontade de deixar tudo dominado.

Vivendo numa estrutura social definida por códigos morais que valorizam mais a liberdade individual do que a solidariedade cívica e o espaço público, o cidadão paulistano aceita como fatalidade o que o incomoda: um “custo do progresso”. A problematização da urbanidade vem na esteira, impulsionada pela pressa, que impede que se veja e sinta a cidade como “coisa sua” e de todos.

Desse ponto de vista, há um quê de terra de ninguém em São Paulo. A certeza da impunidade convive com a falta de consciência cívica e a ineficácia governamental. A poluição ambiental potencializa a confusão urbana, dificulta o encontro de culturas, a reposição de energias, atirando o paulistano num looping em que sempre se volta ao tumulto de que se deveria escapar.

Não é algo que diminua a grandeza de São Paulo, sua riqueza como locus de experiências, experimentação e oportunidades. Mas é um item estratégico da agenda com que a cidade ingressará no futuro.

*Professor titular de Teoria Política da UNESP


Eliane Cantanhêde: Moro, de troféu a alvo

Sem Coaf, PF e Segurança Pública, o que sobraria para o ‘superministro’ Moro?

Ao aceitar um ministério no governo Bolsonaro, o juiz e real mito Sérgio Moro tinha clara noção de todos os riscos, mas encarou como missão e como oportunidade de somar o combate à corrupção (agora em nível nacional) e ao crime organizado. Logo, uma super-Lava Jato. Valia a pena. E agora?

Os dois objetivos de Moro, anti-corrupção e anticrime organizado, significaram, na prática, reunir novamente os ministérios da Justiça e da Segurança Pública. Moro contava com isso e Bolsonaro anunciou que assim seria. Pois é. Já presidente, ele voltou atrás e está seriamente empenhado em separar as duas pastas.

É assim que Moro, mito da Lava Jato, símbolo do combate à corrupção, personagem mais popular do governo – mais do que o próprio presidente –, perde uma atrás da outra. Em bom e claro português, engole sapos.

Com personalidade fechada, contida, é homem de poucas palavras e menos sorrisos ainda e sempre evitou, no primeiro ano de governo, reagir, reclamar ou fazer muxoxos ao ser atropelado pelo chefe e até se ocupa de elogiá-lo pelas redes sociais. Tudo, porém, tem limite. Qual é o limite do paranaense de Maringá Sérgio Fernando Moro? Essa é a pergunta que não quer calar.

Perder o Coaf já foi uma pancada, porque o órgão de inteligência financeira identifica movimentações atípicas, aciona o sinal amarelo e detona investigações – que podem ou não dar em nada. Mas, depois de apresentar ao Brasil um tal de Queiroz, o Coaf virou uma bolinha de pingue-pongue, pulando de lá para cá, e acabou virando UIF e pendurado no Banco Central. Logo, longe da Polícia Federal e de Moro.

Perder o Coaf já não foi fácil, mas o que dizer da possibilidade de perder a PF? Essa seria, ou será, uma consequência direta e imediata da recriação do Ministério da Segurança Pública. Com o Coaf no BC e a PF em outra pasta, o que Moro ficaria, ou ficará, fazendo no abstrato Ministério da Justiça? Articulando politicamente com o Congresso, como foi obrigado a fazer no pacote anticrime? Não é a dele.

Aí entra uma terceira derrota daquele que adentrou o governo Bolsonaro como “superministro”: depois de acertar com o Senado que Bolsonaro vetaria o juiz de garantias – uma nova figura claramente “anti-Moro” –, o ministro foi solenemente desautorizado pelo presidente da República. O veto não veio, Moro ficou falando sozinho.

Assim, o ministro ficou no meio de um imbróglio envolvendo os três Poderes, ou melhor, os presidentes do Executivo, que não vetou o juiz de garantias; o do Supremo, Dias Toffoli, que foi atropelado pelo vice, Luiz Fux; e o da Câmara, que classificou de “desrespeitosa com o Congresso” a decisão de Fux de suspender a implantação da mudança sem prazo.

Fux causou um fuzuê institucional, com críticas de todos os lados, mas com a comemoração explícita de alguém diretamente interessado: o próprio Moro. Segundo ele, uma medida assim precisa ser amplamente debatida e não é uma questão para o Judiciário, mas para o próprio Legislativo. No fundo, quer jogar o juiz de garantias para as calendas.

Assim, aquela primeira desfeita de Bolsonaro com Moro ficou não apenas distante, como bem pequena: o desconvite para a pesquisadora Ilona Szabó ser uma mera suplente num mero conselho da Justiça. Foi horrível, mas só um aviso.

E ainda vem mais: Moro perdeu o Coaf e pode perder a PF e a Segurança, justamente a área de sua pasta que rende bons índices e boas notícias. Só sobraria a vaga no STF, mas ela já tem dono: alguém “terrivelmente evangélico”. Moro é?

Por trás de tudo isso, uma só explicação: Jair Messias Bolsonaro, que tem mania de perseguição e não suporta competição. Moro era um troféu, virou competidor. E alvo.