O Estado de S. Paulo

Marco Aurélio Nogueira: As indefinições do novo PSDB

Dória venceu a luta interna, mas não estão claras as ideias e nem definidos os parâmetros organizacionais do novo PSDB

Estará mesmo nascendo um novo PSDB?

Segundo frase do governador João Dória estampada na coluna da jornalista Rosângela Bittar no Estadão de 28/01/2020, o novo partido estaria apoiado em um grupo de políticos: “Bruno Araújo, Eduardo Leite, Bruno Covas, eu, o Reinaldo Azambuja, esse é o novo PSDB”.

Se de fato o partido se renovou, seria conveniente que alguém o apresentasse formalmente. Política não são somente nomes, por mais expressivos que possam ser eles. Partidos, em especial, precisam de nomes, quadros, organização, marca e ideias. Sem isso, não passam de agregados de pessoas ligas por interesses particulares e circunstâncias episódicas.

A luta interna que estiolou o PSDB foi vencida por Dória. Ponto claro, estabelecido, insofismável. Em decorrência, afastaram-se, discretamente ou com ruído, importantes lideranças tucanas do passado recente, parte delas composta por fundadores da legenda, em 1988, décadas atrás. Foi assim com FHC, Serra, Aloysio Nunes, Tasso Jereissati, José Aníbal. Antes de falecer, o ex-governador Alberto Goldman bateu de frente com Dória.

Explicações e justificativas não faltaram.

Para Dória, era preciso “oxigenar” o partido, afastar a turma mais velha, convencida do valor da social-democracia. Para tanto, cabeças teriam de ser cortadas e um novo grupo dirigente deveria ser imposto.

Os perdedores, que se retiraram do cotidiano partidário, alegaram que Dória joga pesado demais, com poucos princípios e muito personalismo, impedindo qualquer oposição interna de respirar.

Com a divisão, o PSDB ficou à deriva. Foi mal nas eleições de 2018: era a 3ª maior bancada em 2014, declinou para o 9º lugar, 25 deputados a menos. O bunker paulista caiu por inteiro nas mãos de Dória, que passou a atrair políticos de outros estados, formando boa maioria. Ao disputar a reeleição em 2018, o governador fez campanha praticamente abraçado a Bolsonaro, em nome do pragmatismo.

Não estão claras as ideias do novo PSDB, assim como não há indícios de que o projeto inclua alguma iniciativa diferente em termos organizacionais. O abandono da social-democracia se traduziu numa tentativa para enxertar na doutrina do partido alguns princípios mais consistentes de “neoliberalismo”, deslocando a legenda para a direita: mais mercado, menos Estado, retórica fiscal mais aguda, um tipo particular de populismo tecnocrático que flutua conforme a necessidade e uma busca obstinada de visibilidade midiática. Tudo evidentemente bem amarrado pelos barbantes de Dória.

Sobrou entretanto o nome, a marca: PSDB, indicação  clara de um compromisso social-democrático que já não mais existe. O que será feito dessa marca ninguém sabe. O que se sabe é que ela virou algo postiço, que incomoda e não contribui para modelar uma imagem. Pode ser que se espere para ver se o enxerto de Dória vingará e produza, com o tempo, folhagens de outra coloração. Pode ser que não se dê tempo ao tempo e se promova um retrofit radical, que mude a legenda de cima a baixo, com alterações doutrinárias, de linguagem e cultura.

Porque, no fundo, a alma social-democrática do PSDB já subiu aos céus. Ou desceu aos infernos. E sem uma nova alma nenhum partido terá como se renovar e sobreviver, de modo a fazer alguma diferença.


Roberto Macedo: Ampliar ascensão social é menos difícil que desconcentrar renda

Só com o PIB crescendo bem mais voltará a haver condições de ascender socialmente

Continuo a pregar que a situação da economia é ainda pior que a percebida pelo governo, pelos meios de comunicação, pelo tal mercado e pela sociedade em geral. Meu último artigo neste espaço, em 16/1, foi PIB – 2010-2019, a pior de 12 décadas. O texto analisou dados desde 1901 e assim sintetizou a situação atual da economia: teve uma recessão que durou dois anos, embutida numa depressão que já tem cinco anos, e também passa por uma estagnação de quatro décadas.
Hoje relacionarei essa situação com outro enorme problema do País, a desigualdade de sua distribuição de renda, sabidamente enorme, e argumentarei que ampliar a ascensão social é menos difícil do que desconcentrar a renda. Não sou contra essa desconcentração, mas a desigualdade começou com a nossa colonização, com destaque para a escravidão, que vicejou por três séculos, e aliviá-la envolveria imensas dificuldades.

A título de exemplo, entre outras medidas, seria necessária uma profunda reestruturação da estrutura tributária, dando maior peso a impostos sobre a renda e sobre heranças, pois hoje predominam impostos indiretos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que onera relativamente mais os pobres, ao ter forte incidência sobre o consumo, que absorve maior parcela da renda desse grupo que da dos ricos.

Do lado dos gastos públicos, seria importante cortar privilégios das classes de maior renda, como o ensino gratuito nas universidades públicas. A gratuidade deveria ser apenas para os estudantes de famílias de menor poder aquisitivo. E, além disso, eles receberiam bolsas para matrículas em cursos com dedicação integral, como o de Medicina, pois hoje não têm condições de frequentá-los, dada a necessidade de trabalhar para sustento próprio e de suas famílias. Nas universidades públicas paulistas a distorção é mais grave, pois elas são sustentadas por parcela da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Assim, até mendigos, ao gastarem em bens de consumo as suas esmolas, estão subsidiando estudantes que poderiam pagar por sua educação.

Nossa classe política, contudo, não teve ainda a coragem de corrigir distorções como as apontadas, pois, salvo raras exceções, teme o ônus político dessa correção e danos a seus próprios interesses.

E a ascensão social, o que é e por que seria menos difícil de se concretizar? Ela vem quando surgem mais e melhores oportunidades de trabalho que também alcançam famílias de menor renda. Isso dependeria essencialmente de um crescimento do produto interno bruto (PIB) da ordem de 4% ou 5% ao ano, com abertura de muitas novas empresas, forte expansão das existentes e proliferação de novas frentes de negócios. Mas nas últimas quatro décadas, com o PIB crescendo à medíocre taxa média de 2,4% ao ano, essas condições estiveram ausentes, salvo em curtos “voos de galinha” do PIB. A maior parte das oportunidades de trabalho surgidas foram em ocupações de baixa qualificação, que não ajudam na ascensão social. E há que lembrar os elevados números do desemprego, da informalidade e do desalento na procura de trabalho, que seguem o mau estado da economia inicialmente descrito.

Um especialista em mobilidade social, o professor José Pastore, publicou dois livros sobre o assunto, o último com Nelson V. Silva, em 2000, intitulado Mobilidade Social no Brasil, no qual usam dados de 1996 e de décadas anteriores. Concluíram que a mobilidade social se acelerou nas décadas de 1960 e 1970, cujas taxas médias de crescimento do PIB foram as maiores das 12 décadas que analisei. Em média, 7,5% ao ano. Foi uma época em que muitas pessoas ascenderam na escala social, entre outros aspectos, por deixarem a precariedade do trabalho do campo e se mudarem para as cidades, onde as oportunidades de trabalho eram mais amplas e mais bem remuneradas. Isso lhes abriu novos horizontes, matriculando seus filhos na escola, comprando uma pequena propriedade, etc. Foi um tempo de “mercado comprador” de quem desejava trabalhar, ganhar mais e ascender socialmente.

Pondera José Pastore, em entrevista concedida a este jornal em 5 de janeiro: “Hoje tudo mudou. Para os mais jovens, está difícil chegar à posição que seus pais alcançaram (...). E não há perspectivas de subir a escala social no curto prazo, com raras exceções. Muitos ficam frustrados, desanimados, se sentem inferiores em relação aos pais. Essa percepção cria um ambiente negativo, e faz crescer (...) movimentos populistas que se aproveitam dessa camada social que perdeu a oportunidade de ascender”.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, com as reformas que vem propondo, está correto ao dar prioridade ao equilíbrio orçamentário do setor público. Mas as reformas tomam muito tempo, é preciso acelerá-las, e muito. E há muito mais por fazer. Cabe focar todo o esforço do governo e da sociedade na retomada de um crescimento econômico bem mais forte, para que a ascensão social ocorra com vigor e venha a confiança de que terá continuidade.

*Economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP, é Consultor Econômico e de Ensino Superior


Zeina Latif: Palavras vazias ou compromisso?

O STF se mostra sensível a pleitos de Estados e municípios contra a União

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, em seu discurso de abertura do ano do Judiciário defendeu a responsabilidade da Corte com o ambiente econômico, afirmando: “Gerar confiança, previsibilidade e segurança jurídica: esse é o objetivo primordial do Poder Judiciário na atual quadra da história do país, em que se anseia pela retomada do crescimento econômico e do desenvolvimento social sustentável”.

O Judiciário com frequência mostra-se insensível à racionalidade econômica em suas decisões, beneficiando alguns em detrimento da sociedade.

Um exemplo recente é que depois de quase 20 anos da promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, o STF retomou no ano passado a análise de dispositivo (suspenso desde 2002) que permite que Estados e municípios reduzam temporariamente a jornada de trabalho e salário de servidores quando os gastos com pessoal ultrapassarem o teto previsto em lei, de 60% da Receita Corrente Líquida. A votação não foi concluída e será retomada em abril. O placar, porém, está em 6 a 4 (falta apenas 1 voto) para proibir um dispositivo essencial para o ajuste fiscal desses entes, diante do rápido envelhecimento populacional que pressiona a Previdência, em que pese a necessidade de evitar o sacrifício excessivo do funcionalismo.

A Corte também se mostra particularmente sensível a pleitos de estados e municípios contra a União. Informações levantadas pelo Jota, com fontes do Executivo, mostram que o governo federal perde aproximadamente 95% dos casos no STF que envolvem disputas com esses entes. Porcentual tão elevado sugere viés nas decisões.

Vale destacar as liminares concedias ao longo de 2015/16 para reduzir o pagamento dos juros da dívida com a União, utilizando o cálculo por juros simples, e não composto (o que representaria um calote; se o Tesouro fizesse o mesmo, ninguém iria se interessar pelo Tesouro Direto). Posteriormente, o STF estabeleceu prazo para solução do impasse, o que culminou em mais um beneficio aos Estados que não fizeram seu dever de casa.

Pode-se argumentar que a crise econômica do País exigia algum acerto nas dívidas dos Estados, por conta da queda da arrecadação e do menor poder para emitir dívida pública. Isso não justifica, porém, as liminares. Premia-se os entes perdulários e desincentiva a disciplina fiscal de todos.

Olhando para frente, o potencial de perdas do erário é elevado. Segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020, há 21 processos tributários no STF, com potencial impacto de R$ 1,1 trilhão.

Destaca-se a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, com custo estimado de R$ 229 bilhões. O tema é antigo e a demora no julgamento implica insegurança jurídica e maior número de disputas com contribuintes. Há quase 3 anos o STF decidiu que a inclusão é inconstitucional. O tema será retomado este ano para decidir sua retroatividade. A União pleiteia que aplicação seja a partir de janeiro de 2018.

Faz sentido não cobrar imposto sobre imposto, mas a questão é complexa. O efeito retroativo representaria um ganho indevido às empresas, uma vez que o custo tributário foi repassado aos consumidores, como ensina Bernard Appy. O pleito das empresas é, portanto, injusto, apesar de a elevada carga tributária pesar sobre os preços finais e, assim, poder prejudicar as vendas de seus produtos.

Mesmo que não haja impacto retroativo, será necessário compensar a perda de arrecadação envolvida. Melhor seria deixar esse tema para a futura reforma tributária.

O Judiciário precisa levar em consideração os impactos econômicos de suas sentenças de forma a preservar contratos, a responsabilidade fiscal e eficiência no uso dos recursos públicos. O compromisso com as várias regras que regem o orçamento público – regra do teto, regra de ouro, LRF – não deveria ser apenas do Executivo.

Agora é torcer para que o compromisso do ministro Toffoli não se revele palavras vazias, sendo, sim, um sinal de novos tempos.

* Consultora e doutora em economia pela USP


William Waack: Zeitgeist com Twitter

Forças profundas favorecem a reeleição de Trump, além da incompetência dos adversários

É evidente a consternação com que parte muito relevante da imprensa americana constata a sucessão de fatos que sugerem um grande impulso para a reeleição de Donald Trump em novembro. Livre do impeachment, comemorando o mais longo período recente de expansão da economia americana e até aqui sem adversários do Partido Democrata capazes de enfrentá-lo, “não tem mais coleira alguma que segure Trump”, resignou-se o The New York Times.

De fato, as mudanças que Trump já provocou no sistema político americano e, mais ainda, na visão que os americanos têm de si mesmos e seu papel no mundo parecem irreversíveis – se são benéficas para o futuro do país e a ordem internacional é outra questão. Pois essas transformações têm causas muito mais amplas do que o comportamento que se possa considerar desprezível e ilegal de um indivíduo (Trump). Elas têm de ser vistas como parte de uma revolta mundial contra a democracia liberal. O nosso “Zeitgeist” (espírito de uma época) com Twitter.

Por ser Trump um anti-intelectual a ponto do analfabetismo cultural e errático em seus pronunciamentos, a mesma parte relevante da imprensa americana e internacional assume que ele não tem projeto coerente que precise de uma teoria para ser explicado. Mas é óbvio que visões de mundo podem ser “intuitivas” em vez de “ideológicas” ou “filosóficas”, e que estratégias podem ser instintivas em vez de claramente delineadas e sistematizadas (Bolsonaro entraria nessa última categoria).

É provável que Trump nem entenda direito o tipo de forças que representa. Pois não são apenas radicais as mudanças que ele já provocou – como o fim da percepção do papel “excepcional” de seu país no mundo. Elas refletem um padrão que se constata no sucesso em outras regiões do mundo de regimes autoritários pós-Guerra Fria, o de um profundo ressentimento “provinciano” por parte de camadas significativas de eleitores diante do “mundo cosmopolita” (os tais “globalistas”) defendido por elites econômicas, intelectuais e políticas que perderam a conexão com essas forças subterrâneas, mas decisivas.

Um dos “feitos” de Trump, de forte apelo psicológico, é ter convencido nacionalistas americanos (sempre abraçados na “star and stripes”) a abandonar a ideia de que os EUA sejam moralmente superiores. E que seu país possa ser “great again” sem precisar ser um líder mundial, sem ter o que ensinar a outras nações. É uma mudança monumental em relação ao que foi até aqui o papel representado pelos EUA na ordem mundial que instituiu e liderou após a Segunda Guerra.

Para esse interessante paradoxo que Trump transformou em sucesso eleitoral – a visão de que os EUA são “vítimas” da americanização do mundo – a resposta dos democratas é um presente para a campanha do atual presidente. Um autodenominado “socialista” é até aqui um de seus principais candidatos. O chamado “centro” ideológico do Partido Democrata não foi capaz de escalar até agora alguém de forte apelo eleitoral para reconquistar parcelas que, em 2016, abandonaram o partido em pequenos Estados decisivos para a composição do colégio eleitoral (não custa repetir que é indireta a eleição do presidente americano).

Os democratas demonstraram em Iowa, de forte valor simbólico no começo oficial da campanha, assustadora incompetência no uso de tecnologias digitais. Utilizadas com grande eficácia por republicanos, que há mais de década encontraram nas redes sociais uma alternativa ao que identificavam como “bias liberal” da imprensa tradicional. Já usam “geofencing” para abordar grupos específicos de eleitores (católicos, por exemplo) enquanto democratas não conseguem tabular resultados de primárias.

A reeleição de Trump não é inevitável. Isso não existe em política e história. Mas se tornou mais provável.


Everardo Maciel: Litígio tributário, o problema

Dívida ativa e contenciosos administrativo e judicial dos Estados chegam a superar metade do PIB brasileiro

Problemas existem em todos os sistemas tributários, em virtude de sua natureza intrinsecamente imperfeita combinada com elevada volatilidade das circunstâncias econômicas e políticas. O que muda é o tipo de problema.

As grandes discussões tributárias são, hoje, a taxação da economia digital, o enfrentamento da erosão tributária associada a paraísos fiscais e a identificação de novas fontes de financiamento da previdência social.

No âmbito da taxação da economia digital, a União Europeia não hesitou em cogitar um imposto sobre a receita bruta das empresas de economia digital, de caráter cumulativo, para surpresa dos que professam o dogma da não cumulatividade. De igual forma, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) começa a admitir a tributação na fonte, em lugar da residência, por força do crescente esvaziamento do conceito de estabelecimento permanente.

Tudo isso decorre da evidência de que sistemas tributários devem ser pragmáticos e resilientes para enfrentar uma revolução tecnológica cada vez mais veloz. Quem não entender essa realidade vai ficar para trás.

Aqui, permanecemos em debate estéril sobre modelos tributários que vão se tornar obsoletos, sem cuidar dos verdadeiros problemas e, muito menos, olhar para a frente.

Alguns preferem o copismo indolente, em que se abdica de pensar. Parafraseando Nelson Rodrigues, complexo de vira-latas não se improvisa. É obra de séculos.

O principal problema tributário é o litígio permanente que fulmina a segurança jurídica, inclusive para o Fisco.

Os litígios, compreendendo a dívida ativa e os contenciosos administrativo e judicial dos entes federativos, alcançam valores superiores à metade do PIB brasileiro. Eles só incidentalmente se associam à natureza dos tributos. Na essência, dizem respeito ao processo.

Há três fontes de litígios: o lançamento sem culpa, o questionamento da matéria tributária pela via do controle difuso de constitucionalidade e a grande indeterminação de alguns conceitos.

A legislação processual tributária brasileira é demasiado claudicante. Nem sequer temos normas gerais de processo tributário.

Autos de infração insubsistentes não geram custo para o Estado, porém infernizam a vida do contribuinte, envolvendo desde danos reputacionais até custos advocatícios, daí passando à exigência de vultosas garantias na esfera judicial.

Não raro me deparo com autos de infração de bilhões de reais. Não é crível que uma empresa com ações em Bolsa pratique evasão fiscal desse porte. Trata-se apenas de um sintoma de gravíssima doença processual, que fulmina a pretensão de investir.

Para enfrentar esse delírio fiscal, os tributaristas Gilberto Ulhôa Canto, Geraldo Ataliba e Gustavo Miguez de Mello conceberam, há décadas, a integração entre os processos tributários administrativo e judicial, de que resultariam equiparação de forças entre o Fisco e o contribuinte, sucumbência na hipótese de insubsistência do auto de infração, eliminação da exigência de garantias em recursos e, por consequência, eliminação da execução fiscal judicial, responsável por mais de 38% dos 80 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira. Em outras palavras, uma revolução.

As teses sobre inconstitucionalidades tributárias, quando suscitadas em primeira instância, geram processos que podem se arrastar por décadas para, afinal, resultar em incontornáveis problemas arrecadatórios, sem falar da possibilidade de quebra de isonomia por repercussões diferenciadas sobre contribuintes.

Esse é um problema que demanda muita criatividade para ser resolvido. Uma pista seria a instituição de um incidente de constitucionalidade que remetesse decisões de primeira instância diretamente para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Quanto à indeterminação conceitual, os mais relevantes problemas estão vinculados aos limites do planejamento tributário e à presunção de dano ao erário. Em ambos os casos, é visível que se fundam em legislações obscuras e lacunosas que dão lugar a esdrúxulas arbitrariedades. O espantoso é que nada se faz para corrigir essas distorções.

*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)


Fábio Alves: Subestimando o vírus

Há ainda muitas incertezas sobre a magnitude e duração da crise do coronavírus

É crescente o temor de que analistas internacionais tenham subestimado o impacto do surto do coronavírus nas economias chinesa e global nas suas projeções iniciais e que os investidores não tenham precificado totalmente esse impacto nos ativos de risco, como as bolsas de valores.

Há ainda muitas incertezas sobre a magnitude e duração da crise com o surto do coronavírus, que vão desde a confiabilidade dos dados reportados pelo governo chinês até a taxa de disseminação e de controle do vírus, o que poderá afetar o tempo em que o comércio e a indústria ficarão fechados, assim como a extensão das restrições de circulação de pessoas e de produtos.

O feriado do Ano Novo Lunar, por exemplo, foi estendido oficialmente pelo governo da China em uma semana até o domingo passado, mas as autoridades de, pelo menos, 24 províncias chinesas ordenaram que escolas e fábricas seguissem fechadas até a próxima segunda-feira, dia 10. Nos cálculos da rede de TV americana CNBC, essas 24 províncias respondem por 80% do PIB e 90% das exportações chinesas.

Até a segunda-feira, conforme dados da Comissão Nacional de Saúde da China, foram confirmados 20.438 casos de coronavírus e o total de mortes aumentou para 425. Na atualização anterior, haviam 17.205 casos confirmados e 361 óbitos. Fora da China, foram registrados 162 casos em 24 países, com duas mortes.

Mas pesquisadores da universidade americana Johns Hopkins estimam que, até o dia 31 de janeiro, havia 58 mil pessoas infectadas pelo coronavírus apenas na China continental. Esse número inclui os casos não reportados às autoridades de pessoas sem sintomas ou com sintomas leves da doença. Ou seja, o surto pode ter uma magnitude muito maior do que o imaginado.

Na semana passada, os analistas do banco JPMorgan reduziram sua projeção do PIB mundial no primeiro trimestre de 2020 em 0,3 ponto porcentual, mas alertaram, em nota a clientes, que essa revisão inicial pode ter sido “muito pequena”.

Mais ainda: os analistas do JPMorgan dizem que, diante da interrupção nos gastos dos consumidores e da produção nas fábricas, em razão da extensão dos feriados e do fechamento de espaços públicos e de empresas, a desaceleração da economia chinesa poderá ser maior do que o 1,4 ponto porcentual de redução prevista por eles na projeção para o PIB chinês neste primeiro trimestre de 2020.

Por enquanto, os analistas do JPMorgan consideram o surto do coronavírus um choque de demanda, afetando vendas no varejo e gastos com turismo, mas se as fábricas permanecerem fechadas por muito mais tempo do que o previsto, especialmente nas províncias com indústrias integradas nas cadeias globais de produção, a doença também resultará num choque de oferta. Os analistas do banco americano dizem ainda que, como mais de 25% das exportações brasileiras vão para a China, cada 1 ponto porcentual de queda no PIB chinês reduz o crescimento do PIB brasileiro em 0,2 ou 0,3 ponto.

“Espero novas revisões para baixo das projeções do crescimento do PIB global, com o mercado convergindo para um impacto negativo de 1 a 2 pontos porcentuais no crescimento do PIB chinês (no trimestre)”, diz o estrategista macro sênior da Nordea Asset Management, Sebastien Galy. “Suspeito que muito pouco desse choque no crescimento global tenha sido precificado nos preços das ações negociadas em bolsas.”

Todavia, os indicadores de atividade econômica para o mês de janeiro em vários países, incluindo China e Estados Unidos, ainda não refletiram o impacto do surto do coronavírus no consumo ou na produção. Isso significa que a reação dos mercados globais, especialmente em bolsa e câmbio, tem ficado a reboque unicamente do noticiário sobre novos casos e mortes do vírus – ou de anúncios de restrição de voos e de circulação de pessoas, através da não concessão de vistos, por exemplo.

Quando os indicadores de atividade ao redor do mundo começarem a fraquejar, a partir de fevereiro, em razão do impacto do surto do coronavírus nas economias chinesa e global, não se pode descartar uma nova rodada de forte correção nos preços dos ativos de risco. No Brasil, a pesquisa Focus, do Banco Central, ainda não captou revisões para baixo do desempenho da economia, com o consenso das estimativas apontando um crescimento de 2,30% do PIB. Mas isso pode mudar em breve.


Humberto Dantas: Pequenos negócios - Motor do desenvolvimento sustentável ou política social?

Cézar Rogelio Vasquez é Engenheiro de Produção pela UFRJ, Mestrado em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ e MBA em Finanças pelo IBMEC/RJ. Pós Graduado no Master em Liderança e Gestão Pública – MLG do CLP – Liderança Pública, com módulo internacional na Harvard Kennedy School. Ao longo de 30 anos de carreira atuou na administração pública Federal, Estadual e Municipal, bem como na Câmara de Deputados e no Senado Federal, em cargos executivos e de assessoria política. Ex-Diretor-Superintendente do SEBRAE/RJ. Atua atualmente como consultor de empreendedorismo e políticas públicas para pequenas empresas.

Neste artigo, Cezar fala sobre o universo do empreendedorismo no Brasil e a produtividade brasileira. Segundo o autor, o país precisa priorizar um ambiente favorável ao seu desenvolvimento e inovação. Confira:

No que pensar para atuar com as pequenas empresas? No apoio aos muito pequenos, com destaque para o crescente universo dos por conta própria (incluindo o MEI)? Ou no estímulo às empresas com potencial de crescimento e capacidade de inovação?

A baixa produtividade média da economia brasileira. A reduzida capacidade de inovação das empresas nacionais. A queda na participação de produtos de maior valor agregado na pauta das exportações. A redução do peso da indústria no PIB. O aumento da precariedade do emprego. Informalidade. São assuntos associados. Um faz pensar no outro e vice-versa. Mas não são uma coisa só. Não têm a mesma causa. Muito menos uma explicação só.

A precarização do trabalho tem a ver com as altas taxas de desemprego atuais. Mas também com as mudanças no mundo do trabalho na era digital. A proliferação de pessoas trabalhando para aplicativos é uma faceta das duas coisas. Menor participação da indústria pode levar a pensar em baixa produtividade, em empregos com salários mais baixos em outros setores e também em problemas no campo da inovação. Assuntos entrelaçados que podem confundir na hora de desenhar políticas públicas.

Vamos ao universo empreendedor brasileiro. Em maio de 2019, havia aproximadamente 16,3 milhões de empresas formais no Brasil. Os pequenos negócios, com porte informado (Pequenas – EPP, Micro – ME, e Microempreendedores Individuais – MEI), eram cerca de 15 milhões. Desses, 725 mil eram EPP com faturamento anual entre R$ 480 mil e R$ 4,8 milhões. Menos de 5% do total. Há muitos pequenos negócios. Mas poucos com potencial de crescimento e geração de novos postos de trabalho de qualidade. O Brasil tem altas taxas daquilo que os estudos denominam “missing midle”.

.Há uma correlação positiva entre o tamanho das empresas e a produtividade. Portanto, é preciso um cuidado especial com as pequenas e médias, para melhorar a produtividade da economia, e o desempenho em termos de inovação. No estudo citado acima, são ensaiadas algumas respostas do porquê existe um número menor do que o esperado de empresas robustas de pequeno e médio porte.

  1. “A baixa propensão das empresas de pequeno porte de transitarem para uma categoria superior”. (seja por características do empreendimento, do empreendedor ou do próprio ambiente de atuação).
  2. “Uma sub-representação de empresas médias (e sobre representação de pequenas) entre as empresas que nascem”.
  3. “A possibilidade de esse quadro ser alimentado por uma probabilidade de sobrevivência artificialmente alta entre as pequenas empresas. Apesar de raramente comentado, esse último ponto deve ser considerado ao se avaliar a eficácia de políticas voltadas para as pequenas empresas. Embora o objetivo primordial de tais políticas tenda a ser o crescimento e o desenvolvimento daquelas que têm alto potencial produtivo, pode haver um efeito colateral no sentido de prolongar o tempo de atividade de outras com menor potencial”.

 

A Taxa Total de Empreendedorismo no Brasil, segundo a pesquisa é de 38%. É alta. Isso significa que 51,9 milhões de pessoas de 18 a 64 anos têm um negócio ou estão envolvidos na criação de um.Na Taxa de Empreendedorismo Estabelecido, o Brasil está na 2ª colocação no grupo dos 11 países classificados com “média renda”, e na 3ª colocação geral dos 49 países pesquisados.

Em termos de Taxa de Empreendedorismo em Estágio Inicial, o Brasil está na 6ª colocação na “média renda” e na 10ª colocação geral. Há muitas pequenas empresas e empreendedores por conta própria que, apesar da baixa produtividade, sobrevivem. Empreendedores que em sua maioria são resultado da necessidade. Do desemprego, da dificuldade de recolocação, dos baixos salários e da necessidade de complementar a renda familiar.

Há também mudanças no mundo do de trabalho. Empregos temporários, com horário parcial e a prestação permanente de serviços a outras empresas como Microempreendedores individuais. Um novo e crescente universo demandando orientação empresarial e também requalificação profissional.

Um problemão para os gestores e formuladores de políticas públicas para as pequenas empresas. De um lado uma pressão natural para atender ao enorme e crescente número de empreendedores de pequeno porte, por necessidade ou não, que são e continuarão pequenos. De outro, a necessidade do país de melhorar sua produtividade e índices de inovação, o que requer foco em pequenas e médias empresas com vocação para o crescimento.

Em 2015, foi criado o projeto FIRES – Financial and Institutional Reforms for the Entrepreneurial Society uma série de pesquisas sobre os elementos necessários para construir, no âmbito da comunidade europeia, uma sociedade mais empreendedora. Diversos estudos e livros foram lançados na sequência dos trabalhos. No livro The Entrepreneurial Society – A Reform Estrategy for the European Union, os autores partem da premissa de que a “ampla pesquisa acadêmica sustenta a hipótese de que regiões e países mais empreendedores inovam mais e tem perspectiva de grande crescimento econômico. Além disso, empreendedorismo oferece oportunidade para muita gente e é instrumental na moldagem da transição do país para um futuro mais sustentável”(tradução livre).

Em outra passagem sugerem que “o que importa são os aspectos qualitativos do empreendedorismo, e as evidências empíricas sugerem que uma economia que promove (algumas) empresas de alto crescimento e empresas de alto impacto cresce mais rapidamente do que uma economia que tenta maximizar o número de pequenas e médias empresas (PME) ou a taxa de auto emprego. Mas para que esse crescimento seja tanto inclusivo como inovativo, outros autores enfatizam a importância de uma ampla base de empreendedores ativos” (tradução livre). Não se trata, portanto, de focar apenas num grupo de empreendedores escolhidos. Mas de estimular mais empresas produtivas e inovadoras.

É preciso separar. A promoção do empreendedorismo requer uma política centrada no aumento da produtividade e da inovação, cujo foco serão as micro, pequenas e médias empresas com vocação para o crescimento. Aqui o tema é desenvolvimento, inserindo no DNA da política econômica a pequena empresa. O Empreendedorismo e os pequenos negócios ajudando a modelar o futuro do país.

Isso não é a mesma coisa, nem pode se confundir, com o suporte a milhões de pequenos empreendedores por meio de uma política ativa de caráter social e compensatória. O universo empreendedor abarca cerca de 1/3 da população economicamente ativa. Algo próximo de 50 milhões de pessoas (incluindo formais e informais), como dito anteriormente. Por mais que o país reencontre um caminho de desenvolvimento sustentável, esse enorme contingente terá dificuldades para ser absorvido por empregos formais. Precisam de apoio, acesso a serviços e crédito. Aqui o foco é o empreendedor em si, e a geração de trabalho e renda.

São duas agendas. Que não competem entre si, é verdade, mas cujos objetivos e a ações podem ter direções bem diferentes. Incentivos tributários, desenhados para a redução da informalidade, por exemplo, podem ter um efeito contrário quando a questão é o crescimento.

É claro que um empreendedor que comece como MEI consegue se tornar um grande empresário. Há inúmeros exemplos disso. Essa não é a questão. A questão é que o país precisa de mais empresas produtivas e inovadoras. E esse processo é seletivo. Ainda que a seleção seja feita pelo mercado, os empreendimentos, atuais e futuros, com essas vocações precisam de ambientes favoráveis para seu desenvolvimento e clareza nas políticas públicas.


Vera Magalhães: ‘Capitalismo social’

Passada a 'primeira fase' das reformas econômicas, governo Bolsonaro passa a mirar o social a partir deste ano; a intenção, como sempre, esbarra na realidade: dificilmente sobrará dinheiro para o 'capitalismo popular' sair do discurso

Paralelamente à fase dois das reformas econômicas, o governo Jair Bolsonaro começa a mirar o social a partir deste ano. A preocupação é da ala política, mas já chegou à equipe de Paulo Guedes, que passa a usar expressões como “capitalismo social” para designar um conjunto de propostas que começam a ser desenhadas para tirar da oposição o discurso de que Bolsonaro não combate a desigualdade.

O capitalismo “social” ou “popular”, como vem sendo chamado nos briefings do governo, significa “transferir riqueza para as pessoas, não só renda”. Vem aí, nesse espírito, o anúncio do remodelamento do Minha Casa Minha Vida, que já começou a ser debatido entre os ministérios do Desenvolvimento Regional e da Economia e representantes das construtoras. O nome-fantasia que vem sendo usado nesses encontros é Casa Amada Brasil, que remete ao slogan de pegada “militar” do governo. Não é definitivo, me dizem os participantes das conversas.

Também ainda não há consenso sobre o modelo de financiamento das novas moradias: se mantendo o que vigorava no Minha Casa Minha Vida, ou adotando os vouchers, saída que é defendida pelo ministro Gustavo Canuto, mas tem resistências na equipe econômica e nas próprias empreiteiras.

A intenção, como sempre, esbarra na realidade: se nem as reformas que vão aprofundar o ajuste fiscal estão garantidas, e o teto de gastos é ainda mais restrito neste ano, dificilmente sobrará dinheiro para o capitalismo social sair do discurso.

Congresso volta cobrando os ‘boletos’ de 2019
Não são poucos os queixumes regionais de deputados e senadores na “volta das férias” do Congresso. Acumulam-se nos ouvidos dos ministros queixas de que emendas prometidas não foram liberadas, e soluções encaminhadas para problemas de prefeitos e governadores ficaram esquecidas nas promessas de ano-novo. Nesse clima, o governo pode até ter uma trégua para aprovar medidas emergenciais como a da quarentena do coronavírus, mas as reformas tendem a dormitar em algum escaninho.

Ministros ‘tocadores’ tentam minar poder dos ‘combatentes’
Uma nova divisão vai se configurando na Esplanada dos Ministérios, à medida que avança o mandato de Jair Bolsonaro e alguns resultados vão se consolidando. Existe hoje o grupo que se autointitula dos “tocadores”, e se contrapõe ao dos “combatentes”, cuja influência junto a Bolsonaro é inversamente proporcional à capacidade de gestão.

Ministros da primeira ala, que inclui militares, técnicos e políticos, aconselharam Bolsonaro a demitir Abraham Weintraub (Educação), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Onyx Lorenzoni (Casa Civil). Bolsonaro chegou a ser convencido a tirar Weintraub, mas mudou de ideia diante do “combate” (daí o apelido do grupo) que ele trava com “inimigos” do presidente.

Um ministro dá o código da lógica bolsonarista: quanto mais a imprensa bater, mais Bolsonaro fortalecerá o grupo, ainda que haja problemas concretos. O temor dos ministros do outro lado é de que o desastre seja debitado depois na conta reeleitoral de Bolsonaro.


Paulo Hartung: No fomento de novas lideranças, a chance do Brasil

País não merece ser refém de uma arcaica vida política com visões estreitas de mundo

Na arena política, o País experimenta uma carência que descora a democracia e empalidece o horizonte nacional. Há muito o Brasil não vem sendo capaz de renovar substancialmente o conjunto de suas lideranças. Na superação dessa comprometedora falha republicana se encontra exatamente uma das melhores chances de promovermos um outro tempo para a Nação, distante dos erros do passado, antenado nas questões do presente e conectado às oportunidades do futuro.

Há décadas o País atravessa um deserto quanto ao surgimento de líderes que inspirem, pautem e ensejem o novo, a inovação e a vanguarda em termos socioeconômicos e político-culturais. Uma demanda que, se não bastasse o acúmulo gigantesco de dívidas históricas quanto à prosperidade compartilhada, é radicalmente potencializada pelo terremoto político, tecnológico e comportamental que redesenha o planeta sem forma nem esboço.

O Brasil preparou muita gente de todas as posições políticas no entorno de 1964. Depois veio o vácuo instaurado pela ditadura militar. Com a redemocratização o País voltou a formar lideranças em todos os campos do pensamento político – é daí que venho, meu treinamento foi na luta pela volta das liberdades. Nesse meio tempo se instalou um vazio quanto ao surgimento de líderes políticos.

As motivações desse hiato podem ser inúmeras, desde o tsunami sociotécnico e cultural que varre o planeta, passando pela ocorrência de tormentosos escândalos de corrupção mundo afora, até o ataque ideológico à política democrático-republicana como via de se projetar e constituir a dignidade humana sob os paradigmas da liberdade, igualdade, fraternidade, diversidade e sustentabilidade.

Em meio a essa conjuntura planetária, que dialoga perfeitamente com a nossa realidade, uma questão nacional deve ser destacada na produção desse deserto de novas lideranças: um país que tem mais de 30 partidos não tem representação partidária. Só uma efetiva reforma do sistema político promoverá mudanças que possam dar uma direção racional e programaticamente assertiva à vida político-partidária no País, contribuindo até para que os próprios partidos retomem a função de formar lideranças – tarefa que não é sua exclusividade, mas é um de suas mais fortes razões de existir.

Nessa cena desoladora, onde vicejariam as novas lideranças políticas? No vácuo das agremiações partidárias, mas não em sua substituição, obviamente, encontram-se movimentos cívicos a dar vazão à demanda por formação de líderes. Temos o RenovaBr, de que sou conselheiro, como parte de minhas atividades voluntárias, o Livres, o Raps. Esses e outros exemplos são importantes iniciativas a abrir espaço a uma meninada arejada, independentemente se à direita, à esquerda ou ao centro do espectro político, usando a velha linguagem.

O fundamental é que novas lideranças surjam, tenham boa formação e estejam capacitadas a operar com os desafios e os propósitos da vida política, habilitadas a debater ideias, conviver com a diferença, negociar, construir consensos, etc. Não se nasce com as capacidades e habilidades da liderança. Não é só questão de vocação. Boa parte é treinamento, aprende-se a fazer, como já ensinou a Grécia clássica.

O RenovaBR foi fundado em outubro de 2017. Já em 2018 foram 4 mil inscritos, com 133 alunos formados. Dos participantes, foram 17 eleitos (9 deputados federais, 7 estaduais, 1 senador). Em 2019 o movimento teve 31 mil inscritos, com 1.400 alunos matriculados e 1.170 formados; 40% não tinham filiação partidária e dentre os filiados havia representantes de 30 dos 33 partidos existentes hoje no Brasil. Dada a forte demanda, abrimos no início de janeiro uma turma, com inscrições até este 7 de fevereiro.

“Arte de pensar as mudanças e torná-las efetivas.” O saudoso geógrafo Milton Santos deixou-nos como um de seus mais importantes legados a definitiva conceituação do que seja a política, considerando que a civilização é um projeto em constante movimento, permanentemente desafiado pela conjuntura socioeconômica, tecnológica e político-cultural.

E a política de verdade não se faz sem lideranças capazes de inspirar e mobilizar a cidadania. Segundo o historiador Paul Johnson, a vida de Winston Churchill passa ao menos cinco lições importantes sobre liderança: pense sempre grande, nada substitui o trabalho árduo, nunca deixe que erros e desastres o abatam, não desperdice energia com mesquinharias e, por fim, não deixe que o ódio o domine, anulando o espaço para a alegria na vida.

Pode haver vários caminhos para pôr o País novamente no rumo do desenvolvimento socioeconômico inclusivo e sustentável, mas parece impossível vislumbrar novos horizontes sem a formação de uma nova geração de líderes, algo indispensável à superação da aridez que vem assolando a política nacional. O Brasil não merece e não pode ser refém de uma arcaica vida política baseada em visões estreitas e ultrapassadas, quando não incivilizadas, de mundo.

*Economista, presidente executivo Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos Pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)]


Eliane Cantanhêde: Em guerra

O coronavírus é grave e ameaça, mas, por ora, não há motivo para pânico no Brasil

Desde pelo menos o governo do general Ernesto Geisel, no início da transição da ditadura para a democracia, o Brasil tem uma cultura de saúde pública exemplar e quadros de sanitaristas respeitados no mundo todo. Logo, é capaz de reagir à altura numa ameaça global como o coronavírus, que vem da China e se espalha por todos os continentes.

Aliás, a política de saúde pública de Geisel e seu ministro, sanitarista Paulo Almeida Machado, era baseada na interiorização, no olho no olho, nos “médicos de pés descalços” da... China! O regime brasileiro era obviamente de direita, e o chinês, comunista. Mas pesou menos a ideologia e mais a saúde de massas. Assim foram definidas a política e as equipes que influenciam gerações até hoje.

Na época, o Ministério da Saúde era voltado especificamente para a saúde pública: atenção às famílias, aos bebês, crianças e idosos, planos de vacinação em massa – prevenção, enfim. Hospitais eram outro departamento. Daí, talvez, o gap atual entre as duas frentes.
Graças a essa história, e posteriormente ao ministro José Serra, no governo FHC, o Brasil, país continental e tão desigual, virou referência no combate à pior epidemia da era moderna, a aids. Tanto que, já com Lula e George W. Bush, o Brasil e os EUA trocaram informações, acordos e ações na África, onde a aids fez milhões de mortos.

É por isso que, agora, não há motivo para pânico no Brasil. A situação é preocupante, com a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarando emergência internacional e o governo brasileiro replicando com emergência nacional. Mas todas as medidas possíveis estão sendo tomadas: a detecção de casos suspeitos, o monitoramento, as pesquisas. Todo o ambiente da saúde, no ministério, nos órgãos de pesquisa, na área privada, é de alerta e presteza.

A crise, inclusive, joga no cenário político o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ele demorou a entrar em cena, mas agiu nos bastidores e gabinetes e já está devidamente seguro e bem informado para enfrentar holofotes e perguntas. Quanto ao envio de um avião fretado para resgatar brasileiros no epicentro da epidemia, na China, foi amadurecido desde a sexta-feira por Defesa, Itamaraty, Saúde e GSI.

A decisão final ficou com o presidente Jair Bolsonaro. Em seu cálculo, o custo político de largar os brasileiros à própria sorte seria muito mais alto do que o custo financeiro de pagar avião, tripulação, quarentena. A pressão dos que estão confinados em Wuhan já estava insuportável pelas redes. São 55 ao todo, mas 15 deles têm família, negócios ou bases sólidas na China e preferem ficar por lá. Os outros 40 já estão sendo preparados para voltar.

Por sorte, o Brasil não tinha nenhum caso confirmado até ontem. Mas, se aparecer, não dá para contar com a sorte, mas, sim, com a competência, o treinamento, a rapidez, a dedicação e o principal: planejamento. Esse não é o forte do nosso país, mas na saúde pública tem sido, porque prevenção e planejamento são indissociáveis.

Além de adoecer milhares e matar centenas até agora, o coronavírus tem efeitos colaterais graves numa economia global já em desaceleração, no confinamento de populações de cidades inteiras, na interrupção no fluxo internacional de mercadorias e – o mais cruel – de pessoas.

Há, porém, um efeito muito positivo. Num momento em que os EUA estão para reeleger Donald Trump, o Reino Unido faz festa para o nocivo Brexit e o neonacionalismo carimba a globalização e o multilateralismo como inimigos da humanidade, é um vírus letal, o coronavírus, que vem demonstrar o quanto os continentes, regiões e países precisam uns dos outros. E o que seria do mundo sem a OMS, para coordenar a guerra contra a epidemia? O multilateralismo está sob ataque, mas sobrevive e tem força. Ainda bem.


Ana Carla Abrão: Primeiro dia do resto das nossas vidas

Após os longos dias de recesso, o que se espera é a retomada das reformas

O ano legislativo começou ontem (mas de fato hoje). Após os longos dias de recesso, o que se espera é a retomada da agenda de reformas, numa ansiedade que se divide entre o ritmo e a ordem de prioridade que será dada às reformas que já estão no Congresso Nacional e às outras que o governo promete apresentar nos próximos dias.

As três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que chegaram ao Senado Federal no final do ano passado precisam ser apreciadas e urgentemente discutidas e votadas. Uma delas até atende pelo nome de “emergencial”, tamanha a necessidade que se tem de que seus dispositivos sejam discutidos e aprovados rapidamente. Afinal, será essa PEC a responsável por definir um outro padrão fiscal, exigindo mais responsabilidade e zelo com os gastos públicos no âmbito do governo federal, mas principalmente por Estados e municípios em casos de emergência fiscal – situação em que se encontra boa parte dos entes subnacionais brasileiros.

No mesmo pacote estão a PEC dos Fundos e a PEC do Pacto Federativo. A primeira traz alguma flexibilidade (e racionalidade) ao já conhecido excesso de vinculações dos recursos públicos. São tantos fundos com tantos recursos carimbados, que ao final sobra dinheiro em alguns potes enquanto falta em outros. Como resultado, tem-se um descolamento entre as necessidades da população e a disponibilidade de recursos que gera, ao final, um grande desperdício de recursos em detrimento do atendimento de necessidades básicas lá na ponta, onde as demandas da população estão.

Finalmente, a PEC do Pacto Federativo deverá iniciar sua tramitação ajustando expectativas. Ao longo de mais de uma década, revisar o Pacto Federativo era sinônimo de uma única coisa: distribuir mais recursos para Estados e municípios – obviamente sem nenhuma contrapartida. A PEC apresentada pelo governo parte de outro conceito – até porque, a distribuição de recursos já se deu, com a cessão onerosa garantindo um fôlego aos subnacionais no apagar das luzes de 2019 – e sem contrapartidas. Embora também acene com alguma descentralização de recursos (repartição das rendas do petróleo), a maior parte dos dispositivos dessa corajosa PEC, trata da maior independência – mas também de muito mais responsabilidade, por parte de Estados e municípios. Se aprovada conforme foi proposta, mesmo que não na sua totalidade, esse novo pacto federativo corrige boa parte das distorções e liberalidades que levaram ao colapso a grande maioria dos entes subnacionais brasileiros.

Mas há bem mais do que isso na fila do Congresso Nacional de 2020. Conforme promessa do governo, estão batendo à porta do Parlamento as propostas de Reforma Administrativa e de Reforma Tributária. A primeira finalmente coloca em pauta o debate fundamental da melhora dos serviços públicos e da eficiência da máquina. Antes tarde do que nunca! A segunda, agora mais tímida (e realista), deve focar na unificação dos impostos federais. Mas há também projetos de lei de extrema relevância em outras áreas, quicando ali na área e só esperando sua vez chegar: ainda no fiscal, o Plano Mansueto anda meio empacado e precisa ressuscitar pois as mazelas de Estados quebrados continuam aí.

Já se fala também em revisão do Regime de Recuperação Fiscal, mais um projeto de lei a atravessar, caso venha. No campo da política monetária e sistema financeiro, a independência do Banco Central parece um debate já maduro. Adicionalmente, a revisão da Lei de Recuperação de Empresas, a nova Lei de Resoluções Bancárias e a nova legislação cambial são avanços institucionais muito importantes que precisam andar. No campo da educação, há o novo Fundeb, que travou com uma proposta inicial inviável e que agora deverá ganhar novos contornos. Finalmente, e não menos importante, há o novo marco do saneamento, urgente para um país que não consegue prover o mais básico dos serviços à grande parte da sua população.

Uma agenda cheia, sem dúvida. Para um Congresso reformista, acreditamos. Como no filme que inspira o título desta coluna – do qual apenas alguns leitores mais velhos se lembrarão, findada a adolescência, quiçá estejamos vivendo hoje o primeiro dia da nossa transição para um pais institucionalmente mais adulto. Se é realidade ou excesso de otimismo desta colunista, somente o andar das propostas do governo e o avanço da agenda legislativa de 2020 poderão dizer.

* Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.


Pedro Fernando Nery: Crentefobia

Evangélicos ainda parecem muito longe de obter os privilégios da Igreja Católica

Amanpour é uma das mais reconhecidas jornalistas do mundo. Seu programa na americana PBS recebeu no sábado Petra Costa, nossa documentarista buscando o Oscar para 'Democracia em Vertigem'. Petra relacionou a eleição de Bolsonaro a “enormes ondas de evangélicos que são contra os direitos dos gays, feminismo e pessoas de cor”. A apenas 3 dias das eleições Bolsonaro passou a crescer “exponencialmente”. É que fake news sobre rituais satânicos e bebê-diabo envolvendo a vice de Haddad teriam feito muitos mudar o voto no último minuto: “Ninguém sabia que havia uma onda”.

Para Petra, os evangélicos parecem ser uma massa de zumbis preconceituosos e manipuláveis. Como esses idiotas podem votar, estão ameaçando a democracia.

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Uma menina estuprada por anos decidiu se matar. Subiu em uma árvore para ingerir veneno, mas uma experiência religiosa (ou “um amigo imaginário” segundo ela) a faz desistir e sobreviver. O relato novamente é ridicularizado, agora em uma marchinha de carnaval, festejada por feministas como Zélia Duncan. Mexeu com uma, mexeu com todas. Mexeu com Damares, vamos mexer também. Ainda nos últimos dias, o advogado Kakay atacou com grosserias a ministra por suas ideias, aproveitando para ofender seus pais.

O machismo do bem é liberado, porque a ministra tem um defeito insanável: Damares é crente.

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Fora da bolha das nossas elites intelectuais, Damares é a ministra mais popular do governo depois de Moro. Pesquisas sérias se dedicam a entender o grupo que ela representa, as tais “enormes ondas de evangélicos”.

José Eustáquio, do IBGE, projeta que nesta década eles ultrapassarão os católicos na população. Estão sobrerepresentados entre eles os jovens, as mulheres, os negros. Ou “pessoas de cor”, e Petra criou as mulheres negras racistas e antifeministas.

Já estudo publicado ano passado na Review of Social Economy mostra que os evangélicos pentecostais ganham menos do que os católicos com o mesmo nível de escolaridade e experiência: o gap é maior para as mulheres, de 6%. O economista Luan Bernardelli, um dos autores, não descarta que preconceito possa explicar a diferença, e aponta haver ainda muitas lacunas para pesquisas investigarem.
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O sociólogo de coque acha bacana o primeiro-ministro do Canadá fazer história nomeando muçulmanos, hindus e siques para seu ministério, mas ai de uma minoria religiosa ocupar espaços no Brasil. Para parte dos progressistas brasileiros, é descolado ser intolerante com uma religião com maiores proporções de pobres, negros, mulheres e jovens – categorias que há pouco tempo ensejavam representatividade. Essa intelectualidade precisa olhar para além do estereótipo do pastor preconceituoso ávido por dízimos (um registro: pentecostais doam maior proporção de sua renda do que outros grupos, segundo a FGV).

Também na última semana, o PSOL fez um convite: “se você é evangélico e defende o respeito ao próximo, a tolerância e as liberdades individuais, seu lugar é no PSOL”. O estigma é evidente: depreende-se que evangélicos normalmente não possuem essas qualidades. Imagine o Partido Republicano convidando muçulmanos, desde que não sejam terroristas.

A própria campanha de Damares pela abstinência na adolescência, que motivou os ataques, foi de pronto taxada de obscurantista. A evidência, porém, é que iniciativas como essa, acompanhadas de informações sobre outros métodos contraceptivos, podem ter efeitos positivos sobre a gravidez na adolescência, a transmissão de DSTs e o bem-estar psicológico (das meninas). A lista de trabalhos para os EUA e África é extensa, e o leitor interessado pode pesquisar pela estratégia ABC (A é abstinência, C é camisinha).

Se a proximidade dos evangélicos com o poder preocupa alguns por ofender a laicidade, eles ainda parecem muito longe de obter os privilégios da Igreja Católica. Destaco as centenas de milhões em renúncias do INSS em favor de faculdades e escolas de mensalidades caras que atendem o 1%. PUCs e redes como Marista e Santa Marcelina não pagam centavo algum para a Previdência sobre o salário de seus funcionários, por serem “entidades beneficentes”.

José Eustáquio estima que 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro: maior diferença em favor de um candidato em qualquer grupo, superando a preferência de ateus e sem religião por Haddad. O “superávit” do presidente nos evangélicos é equivalente à diferença total de votos entre os dois candidatos.

David Plouffe, coordenador da campanha que elegeu Obama, reflete em sua biografia sobre o papel da demografia: o “santo graal da política” seria “um eleitorado fundamentalmente mudado”. Nos próximos anos, a transição religiosa continuará. Mulheres, jovens, negros e pobres evangélicos seguirão votando de acordo com seus valores éticos, que podem não ser os mesmos das elites intelectuais. Alguns dirão que a democracia está em vertigem.

*Doutor em economia