O Estado de S. Paulo

Fábio Alves: O fim da euforia com a recuperação da zona do euro

O crescimento não será tão forte quanto o que se esperava na virada do ano passado

Há, neste momento, uma desconfortável correlação entre o ritmo da atividade econômica e o desempenho da Bolsa brasileira: após um período de euforia, ambos passam por um processo de revisão para baixo das expectativas.

Quanto ao PIB, houve até quem projetasse, em determinado momento, um crescimento de 1% no quarto trimestre de 2019. Agora, depois da decepção dos indicadores de atividade referentes a novembro e de alguns para o mês de dezembro, como a produção industrial, as estimativas de expansão no quarto trimestre migraram para 0,5%.

Em relação à Bolsa, depois de atingir a máxima histórica intraday de 119.593,10 pontos no dia 24 de janeiro passado, o Ibovespa cedeu mais de 7 mil pontos até bater a mínima intraday de 112.134,40 pontos no pregão da segunda-feira.

Contribuíram para esse recuo do Ibovespa fatores ligados à geopolítica mundial, como o ataque aéreo dos Estados Unidos que matou o líder militar do Irã, e também o temor do impacto nas economias global e chinesa com o surto do coronavírus.

Mas é o desempenho aquém do esperado dos últimos indicadores da economia o pano de fundo da consolidação do Ibovespa para um patamar mais abaixo do recorde histórico. Isso porque havia aposta de que um crescimento mais robusto do PIB brasileiro em 2020, por volta de 2,5%, poderia atrair um fluxo maior de investidores para a Bolsa, em especial de estrangeiros, além de turbinar os resultados das empresas.

Não à toa a grande expectativa em relação aos indicadores de atividade referentes a dezembro de 2019 que serão divulgados esta semana: vendas do varejo (hoje), serviços (amanhã) e o índice de atividade econômica do Banco Central, IBC-Br (sexta-feira).

Conforme pesquisa do Projeções Broadcast, as vendas do varejo ampliado, que incluem o setor de veículos e de material de construção, devem cair 0,2% em dezembro ante novembro.

Uma frustração com esse indicador, ou seja, se a queda for maior do que o consenso das estimativas aponta, poderá deflagrar uma nova rodada de revisão para baixo do PIB, uma vez que um desempenho mais fraco da atividade econômica na virada de 2019 para este ano acaba resultando num carrego mais baixo para as estimativas de 2020.

Não se deve esperar, contudo, que as projeções para o crescimento do PIB em 2020 desabem. Por enquanto, a situação é: a economia brasileira segue em recuperação, embora em ritmo mais lento do que o esperado até o início do ano. Em outras palavras: o crescimento não será tão forte quanto o que se esperava no meio da euforia que tomou conta do mercado na virada do ano passado.

Na mais recente pesquisa Focus, do BC, a projeção de expansão do PIB neste ano segue em 2,30%. Se os indicadores de atividade a serem divulgados nesta semana voltarem a decepcionar, é possível que esse consenso das estimativas do PIB na pesquisa Focus comece a recuar, embora de forma gradual.

No entanto, se a fraqueza observada até o momento nos indicadores do quarto trimestre seguir contaminando a atividade econômica no primeiro trimestre de 2020, não se pode descartar que a projeção do crescimento do PIB neste ano possa cair até o patamar de 2%.

Por outro lado, se o resultado das vendas do varejo, serviços e IBC-Br de dezembro surpreender positivamente, o mercado não vai se animar tanto, pois deverá esperar uma consistência maior do desempenho da atividade econômica – se isso perdurar ao longo do primeiro trimestre deste ano – antes de retomar as apostas de crescimento de 2,50%.

De qualquer forma, o que se discute neste momento não é se a recuperação da economia brasileira corre risco de não acontecer, mas sim a magnitude dessa retomada, afinal uma revisão para baixo das projeções do PIB neste ano de 2,30%, atualmente, para 2,0% – no cenário mais pessimista – não é uma diferença que mude o cenário totalmente. Desastre era se o PIB voltasse a crescer apenas 1%, como nos últimos anos.

Afeta, contudo, um pouco o sentimento. Não só dos empresários, como também dos investidores. Fica difícil ver o Ibovespa disparar para novos recordes de alta ou até recuperar os 119 mil pontos se a aceleração da economia perder fôlego. E ainda nem se sabe a magnitude do impacto do coronavírus sobre o PIB brasileiro.


Paulo Delgado: Como as democracias adoecem

Lesões oportunistas são obra de ideologias diversas que enfraquecem uma nação

Para saber como as democracias morrem há legistas mais capazes na autópsia. Mas para diagnosticar como adoecem melhor observar o mal-estar dos fatos polêmicos à luz da ousadia pessoal dos influentes que os cometem e da letargia cívica com que os influenciados reagem a eles. Lesões oportunistas são obra de ideologias diversas que enfraquecem uma nação e comprometem sua saúde democrática.

Neste artigo olho um período cheio de egolatrias em que ficamos à mercê da marca do outro. Assim como a gula, apetite sem limite de quem se sente situado no topo da cadeia alimentar, a voracidade é mecanismo próprio do mau instinto de quem não tem predador natural.

Se todos têm suas próprias razões no que fazem e estão tão mergulhados de interesse nelas, não se trata de liberdade de pensamento e é difícil imaginar reflexão de boa-fé. Existem ficções e existem fatos concretos. Embora pouco praticada entre nós, a psico-história da política costuma ser mais hábil para entender os venenos sutis que alimentam a ambição dos que são notícia.

Anda, evidente, muito mal conduzida nossa democracia. Mas isso não significa que tenha morrido. Lembra mais a lenda brasileira de que ninguém presta e não vai dar em nada. Lenda que impulsiona o caráter arbitrário do tipo que manda ver. Um costume primitivo, institucional, cuja dimensão ainda não compreendemos inteiramente. É onde estacionou a curva da civilização brasileira e dali jamais passou. Ali onde o mundo em que são cometidos crimes e as aberrações legais ameaça ficar parecido com o mundo onde deveria ser possível corrigir suas consequências.

Assim se pode inferir um pouco da hilária história do escritório especialista em convencimento, dissuasão e oferecimento de conduta sobre dívida, confusões financeiras e contábeis de países e instituições enroladas, descuidadas da responsabilidade pública e coletiva. Era uma auditoria nacional ou uma exigência extraterritorial? Bem, depende de onde importa a justiça para o caso. Se é preciso limpar a barra nos EUA, o ônus da prova cabe ao acusador. Eu escolheria Londres, onde o ônus da prova cabe ao acusado e se evita a promiscuidade do advogado com o cliente. Todos sabem que em negócio corrosivo a ferrugem parece não corromper o ferro. E os zelosos guardiões do fundo que ampara o trabalhador acabaram pagando, de fato, um milionário honorário de sucumbência.

Bem, sobre a turma do entretenimento fácil tivemos um cardápio variado. Permanece a sina de que o lucro velhaco e a guerra pelo mercado brasileiro fazem da internet uma trincheira, com essa mania de viciar idiotas em aplicativos, vídeos e competições arranjadas. Manifestos em forma de ficção política e humorística ofereceram insultos em vertigem à democracia e ao espírito do País. Do mesmo naipe que o empréstimo bancário expatriado saiu pela porta dos fundos. Está fácil açoitar o nazareno, pois romanos sempre gostaram de rir de judeus. Tudo converge para dois martírios: o do sagrado pela piada grossa que quer ser humor e o da opinião pessoal que quer ser história.

E assim, glória do inadmissível, chegamos à encruzilhada de a liberdade de imprensa receber goela abaixo hacker como fonte. Dá vontade de rir recorrer a jornais estrangeiros para ampliar o ilícito! Outra vez o estilo manda ver dando a linha que já destruiu ideais na esquerda por achar que causa justa limpa conduta suja.

Em seguida, em movimento digestivo aquoso e rápido, próprio do apetite de mandar, relembro a amarga definição de um ex-presidente do Supremo, quando saiu a decisão do presidente interino: o STF é uma porta que só abre por dentro. O elo mais alto da cadeia alimentar da Justiça joga no lixo decisão do Congresso exigindo dos representantes do povo o princípio da obediência devida, pois não há mais garantia em juiz. A desordem de princípios e a falta de domínio de si de magistrados são adoecimentos.

Não me parecem dilemas morais ou políticos. Estamos afundados é na era em que os que comem sentem fome. E até Regina, admirada por ser sempre a mesma, é atacada por tutores ideológicos que a querem outra e aproveitam para descarregar sua alma empanturrada de ênfases sobre ela. Bem, a volta ao mundo em 12 dias pelo interino voador, usando um avião da FAB como uber, resume tudo, pois lembra assustadoramente o fastio de viver do filme A Comilança.

Olhando bem, a marca atual é a de que cada um só faz servir a si próprio. Nossa época está melhor se ajustando a um tipo de racismo não estudado pela antropologia, uma etnia específica do cara de pau. O pode-tudo da ficção vivida como realidade é geral. Um jogo de fascismos, essa certa visão de si mesmo que provoca disputa e cria rivais. Mas como o campo gravitacional da luta mudou de lado na última eleição, a autoanálise dos derrotados é mais indicada do que o desencanto ou manipulações.

O poder arbitrário continua um obscurantismo que cumpre a função de agravar ou criar uma fragilidade identitária nas pessoas. Para ganhar adeptos para a fantasia de imperfeição, grosseria, desconfiança e desânimo que adoece a democracia.

* Paulo Delgado é sociólogo.


Vera Magalhães: O clima pesou

Enchentes são outra mostra de que emergência climática não é para ‘daqui a 500 anos

Quem esteve no Fórum Econômico Mundial, em Davos, em janeiro, sentiu que, no intervalo de apenas um ano, a preocupação com a emergência climática e as formas de retardá-la deixaram de ser uma pauta lateral para se tornar uma das prioridades de países e investidores.

No mesmo intervalo de tempo, o governo Jair Bolsonaro deixou de ser uma incógnita em relação à qual havia grande desconfiança, graças às demonstrações de desapreço pela questão ambiental, para se tornar uma certeza de ameaça aos esforços globais para mitigar os efeitos do aquecimento.

Não foi por acaso que até Bolsonaro sentiu que o clima já tinha esquentado e designou uma comissão, liderada pelo vice Hamilton Mourão, para intervir na gestão ambiental da Amazônia.

Se faltavam evidências, ainda assim, de quão atrasados estamos em entender o que a ciência já demonstrou a respeito das consequências da emergência climática, as chuvas violentas que castigaram grandes capitais do Sudeste neste verão vieram completar o álbum.

Ricardo Salles – ainda hoje ministro do Meio Ambiente, embora manietado pela intervenção em sua pasta –, chegou a dizer, quando ainda ostentava o discurso negacionista que agora tenta mitigar, que a preocupação com o clima era algo para “daqui a 500 anos”. Algumas declarações se tornam históricas pela sua clarividência. Outras viram memes pelo seu histrionismo. Esta certamente não se enquadra no primeiro grupo.

Enquanto carros boiavam nas principais avenidas de São Paulo e paulistanos iam trabalhar de bote inflável ou trator, as autoridades municipais se reuniam numa espécie de missa macabra na Prefeitura, convocada às pressas pelo prefeito Bruno Covas, para, visivelmente atônitas, dizer que choveu demais e tudo poderia ser pior se não fosse o bom trabalho da gestão municipal.

Repetiu a linha de argumentação, com uma arrogância e agressividade totalmente fora do tom para alguém que deveria pedir desculpas à população por um dia de caos e barbárie, no dia seguinte em entrevistas ao rádio e à TV.

É evidente que sucessivas gestões, e não apenas a Doria-Covas, falharam em planejar obras para escoar as chuvas, subestimaram o efeito das mudanças no clima e abusaram do direito de encher a cidade de concreto, tornando-a impermeável. Foram, além de tudo, omissas quanto ao adensamento de encostas e áreas de manancial, que ficam mais vulneráveis em ocasiões em que de fato o índice pluviométrico sobe – e ele vem subindo nos últimos anos, e continuará a subir, ninguém pode alegar que os cientistas têm ficado roucos de tanto alardear isso, sendo chamados de histéricos por políticos preguiçosos, presunçosos ou ambos.

Bolsonaro foi eleito e governa com base num discurso que trata ciência como inimiga e promove crendices, interesses de aliados, fake news e ideologia barata a políticas de Estado. No reino de Salles, essa fórmula levou ao desmonte de todo o arcabouço de fiscalização de abusos e crimes ambientais.

Para completar o desastre, Estados e municípios, com governos das mais diferentes vertentes políticas, repetem o descaso com meio ambiente e clima que destrói biomas como a Amazônia também nos grandes centros urbanos.

A preservação ambiental e os esforços para retardar o aquecimento não são coisa de “comunista” ou de “pirralhas”. Trata-se da grande preocupação global hoje. Aquilo que, no fim do dia, será um dos principais fatores para definir se um país será digno de integrar fóruns e organismos multilaterais e receber investimentos ou se será considerado um pária aos olhos do resto do mundo e merecedor de retaliações e boicotes para negócios e acordos. Por enquanto estamos avançando em desabalada carreira para ficar no segundo bloco.


Eliane Cantanhêde: Do caos à eleição

Chapa Haddad-Marta contra 'azuis', 'verdes' e 'verdes desbotados' em outubro

Nada como o caos de ontem em São Paulo, com a cidade dramaticamente debaixo d’água, para nos lembrar que as eleições municipais estão logo aí e o quanto é importante acompanhar os nomes, articulações e alianças em construção para disputar a Prefeitura da mais rica e estratégica capital do Brasil. Aliás, não só dela.

Há ainda muitas dúvidas, mas começa a se desenhar uma chapa no campo da esquerda: Fernando Haddad, do PT, com Marta Suplicy na vice, ainda sem partido definido. Na avaliação dos articuladores, Haddad e Marta têm “recall”, já foram prefeitos da capital paulista e são complementares eleitoralmente, ele com classe média alta e academia, ela com as periferias e movimentos sociais.
Marta não diz claramente, mas já definiu que não quer ser cabeça de chapa, ir a debates, fazer campanha de rua. Também não aceita ser vice de qualquer um, ou uma, apenas de Haddad. São decisões ditadas pelo coração, mas encontram sua dose de pragmatismo nas pesquisas de opinião.

Abdicar de disputar a Prefeitura faz sentido para Marta, que fará 75 anos em março, não quis tentar a reeleição ao Senado, não tem mais prazer em campanhas extenuantes e só mantém uma meta política: voltar à Prefeitura de São Paulo, a função mais gratificante que ocupou em sua vida pública.

Mas, como assim? Ela não quer concorrer a prefeita, só a vice... Sim, mas a campanha à Prefeitura será só um trampolim para Haddad entrar na eleição ao governo do Estado daqui a dois anos. Ou seja: em caso de vitória, ele seria prefeito nos dois primeiros anos e Marta, nos dois últimos.

Haddad ainda demonstra resistência ao projeto, mas soldado não foge da guerra e a gente sabe como é a política: nem sempre se faz o que quer, mas o que é preciso fazer. Isso vale particularmente para o PT, onde todos aguardam o que “o sr. mestre mandar”. O sr. mestre, claro, é Lula.

Quanto a Marta, ela ontem jantou com o deputado Paulinho da Força Sindical, principal líder do Solidariedade, assim como tem conversado com a Rede, o PDT e o Pros. Nesses encontros, pede voto para Haddad e dá para apostar que ouve um mar de lamentações contra o PT, o aliado que sempre exige hegemonia, só aceita aliados como coadjuvantes e nunca faz autocrítica.

Em geral, ela ouve convites para ser candidata a prefeita e responde que prefere ser vice. Diante de caretas e má vontade com o PT, joga na mesa um argumento poderoso: pesquisas mostrando que Haddad e Marta têm 80% de chance de chegar ao segundo turno. A partir daí, só pedreira.

Tudo indica que haverá três a quatro forças disputando o primeiro turno. Além da “vermelha”, tem a “azul”, tucana, com o prefeito Bruno Covas e o governador João Dória; a “verde”, bolsonarista, com Datena ou Paulo Skaf, que sonha na verdade com o governo; e a “verde desbotada”, ou dissidente, que pode se lançar solo com a dupla Joice Hasselmann e Janaina Paschoal, ou fechar com a “azul”.

Em todas essas composições há interrogações. E a saúde de Bruno Covas? Datena topa ou vai roer a corda, se preparando para quando 2022 chegar? Se ele desistir, Skaf aceita a vaga? Joice e Janaina têm fôlego para ir tão longe sem o sopro do presidente Jair Bolsonaro? De todo modo, os “vermelhos” parecem mais unidos, os outros se dividem.

Quanto ao segundo turno: é forte a possibilidade de se repetir a velha polarização paulistana, entre direita e esquerda, mas vai ficando inviável os “azuis” de Doria e os “verdes” de Bolsonaro fecharem uma frente contra os “vermelhos” de Lula e Haddad, reforçados por Marta. A ojeriza ao PT continuará sendo um poderoso ativo eleitoral, mas o “Bolsodoria” dificilmente se repetirá. O 2018 já era, o que interessa é 2022.


Almir Pazzianotto Pinto: A era da mediocridade

Por sua causa somos subdesenvolvidos, analfabetos, pobres, sem saúde e educação...

“Sempre há medíocres. São perenes. O que varia é seu prestígio e sua influência”
José Ingenieros

A mediocridade é ardilosa. Não ataca repentinamente. Avança sem pressa, como insidioso câncer. Apodera-se dos partidos, espraia-se pela economia, invade a mídia, explora as redes sociais. Ao nos darmos conta, os espaços públicos e privados já foram ocupados. Sobreviverão ilhas de inteligência e de caráter, habitadas por mulheres e homens capazes, cuja inferioridade numérica lhes dificulta a reação. Derradeiras esperanças são depositadas no aparecimento de alguém disposto a arregimentar o povo para campanha comprometida com a recuperação ética, cultural e econômica da Nação.

José Ingenieros (1877-1925) escreveu: “A psicologia dos homens medíocres caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de formar um ideal. São rotineiros, honestos e mansos; pensam com a cabeça dos demais, compartilham a alheia hipocrisia moral e ajustam seu caráter às domesticidades convencionais (...). Não vivem para si mesmos, senão para o fantasma que projetam na opinião dos semelhantes. Carecem de linha; sua personalidade se borra como um traço de carvão sob o esfuminho, até desaparecer”. Registra Ingenieros que, ao se associarem, tornam-se perigosos, pois “a força do número supre a debilidade individual: juntam-se aos milhares para oprimir quantos desdenham encadear sua mente com os grilhões da rotina” (O Homem Medíocre, Ed. Ícone, SP, 2006).

Como definir o medíocre? Eça de Queiroz traçou-lhe o perfil na figura do talentoso Pacheco, José Joaquim Alves Pacheco. Em resposta à imaginária carta enviada pelo sr. E. Mollinet, interessado em saber quem é esse compatriota “cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais de Portugal”, escreveu Eça de Queiroz: “Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento. Todavia, meu caro Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundezas de Pacheco” (A Correspondência de Fradique Mendes).

O macunaíma medíocre não é reservado ou discreto. Além de inútil, é ambicioso e pedante. Alardeia a solução de problemas objetivos com frases feitas e ideias extravagantes. Analisa o povo como massa anônima e submissa. Conserva-se alheio ao mundo real, que lhe é indiferente e desconhecido. É por sua causa que continuamos subdesenvolvidos, analfabetos, pobres, sem saúde, sem educação, apesar de escorchante carga tributária. “O Brasil só não é subdesenvolvido na pretensão”, escreveu o jornalista Carlito Maia (1924-2002).

Analisemos o currículo dos membros da Assembleia Nacional Constituinte, escolhidos nas urnas após 20 anos de autoritarismo. Quando se esperava que o eleitorado atribuísse o ônus de representá-lo à elite ética, jurídica e intelectual, o que se observou foi o oposto. A preferência recaiu sobre maioria tacanha e despreparada. Depois de três décadas – tempo suficiente para a atrasada China se transformar em potência mundial – os resultados são constrangedores. O que esperar das eleições municipais de outubro? Políticos envelhecidos, ultrapassados, desacreditados espanarão a poeira do esquecimento para ressurgirem crentes na falta de memória, de interesse ou de vergonha do eleitorado. Aspirantes à vereança e às prefeituras disputarão o primeiro mandato investindo na fama conquistada como astros do palco e da televisão.

O progresso econômico deve-se a audazes pioneiros que acreditaram no agronegócio. Na indústria, breves lapsos de crescimento são acompanhados de anos de estagnação. O império da mediocridade pode ser avaliado no aumento da pobreza, nas filas do INSS, no desemprego de 12 milhões, na crescente violência, na desilusão dos jovens que buscam fazer a vida no exterior, na falência (para os pobres) dos sistemas de saúde e educação, no declínio da classe média. Escreveu Ingenieros que sob o governo da mediocridade “a política se degrada, converte-se em profissão”; “políticos sem vergonha existiram em todos os tempos e sob todos os regimes, mas encontram melhor clima nas burguesias sem ideais”.

O presidente Jair Bolsonaro derrotou o Partido dos Trabalhadores com o programa de combate à corrupção. Consumiu o primeiro ano do mandato na busca do equilíbrio fiscal e com a reforma da Previdência. Como se conduzirá em 2020? Governará para todos os brasileiros ou se dedicará à tarefa irrelevante de fundar legenda submissa, organizada à sua imagem e semelhança?

Dez meses nos separam de eleições destinadas à reconstrução da base da pirâmide política. Triunfará o desejo nacional de renovação, ou prevalecerá o domínio da mediocridade? É o desafio que pela enésima vez os eleitores serão chamados a decifrar.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Carlos Pereira: Bolsonaro, governe enquanto há tempo

Sem mecanismos de resolução de conflitos, o protagonismo do Legislativo não é funcional no Brasil

Um maior ativismo ou mesmo protagonismo do Legislativo brasileiro durante o governo Bolsonaro tem sido interpretado como uma alternativa positiva para um governo que se recusa a utilizar suas armas legislativas e governar por meio de coalizões majoritárias. Alguns, inclusive, chamam esse modelo de “parlamentarismo informal” ou “semipresidencialismo branco”, situação na qual um presidente minoritário não seria o real chefe do governo, mas os líderes no

Como o Legislativo seria a representação mais direta da democracia, por congregar os mais variados interesses na sociedade, poderia parecer, inicialmente, que o seu fortalecimento seria algo benéfico para a própria democracia.

Mas, no nosso mundo real, de presidencialismo multipartidário, não seria bem assim.

Por que um Legislativo proeminente e proativo não seria funcional?

A concentração de poderes nas mãos do presidente e o protagonismo político do Executivo, que no passado eram vistos como ameaças à democracia, em função dos potenciais riscos de tirania ou de comportamentos autoritários do chefe do Executivo, são, hoje, interpretados como precondições para a efetividade governativa do presidente, especialmente em um ambiente multipartidário.

Por mais paradoxal que possa parecer, o presidencialismo multipartidário requer que o presidente seja constitucionalmente forte para que tenha condições de governar. Influenciar ou mesmo controlar a agenda do Legislativo é uma prerrogativa para o funcionamento adequado desse sistema que privilegia a representação.

Quando o presidente em um ambiente partidariamente fragmentado não faz uso de poderes constitucionais e orçamentários, problemas de coordenação emergem, sua produção legislativa e taxa de sucesso no Congresso diminuem e dificuldades governativas se tornam mais frequentes.

A falta de um líder que coordene e sirva de vetor dos mais variados interesses e partidos no Congresso leva à formação de maiorias cíclicas, esporádicas e não comprometidas com uma política de governo de longo prazo.

Além disso, não existem nos presidencialismos multipartidários válvulas institucionais flexíveis de resolução de conflitos governamentais, comuns em regimes parlamentaristas, tais como voto de confiança, dissolução do Parlamento ou eleições antecipadas.

A passividade do Executivo em relação ao Legislativo tende a deixar brechas políticas e institucionais que fatalmente serão preenchidas pelos legisladores, que, progressivamente, tenderão a diminuir os poderes do presidente. Sinais de enfraquecimento do Executivo já podem ser identificados nas decisões recentes do Congresso de tornar impositiva a execução das emendas individuais e coletivas dos legisladores ao Orçamento. Convém lembrar que essas decisões enfraquecem o Executivo em si, e não apenas o governo de plantão.

Já vimos esse filme antes no Brasil entre 1946 e 1964, quando presidentes minoritários e constitucionalmente fracos enfrentaram graves problemas governativos ou mesmo de paralisia decisória, que os fizeram abreviar seus mandatos seja por renúncia, suicídio ou golpe.

O “milagre” institucional que levou à superação desses problemas foi a decisão da Constituinte de 1988 de delegar uma ampla gama de poderes para que o presidente pudesse agregar interesses em torno da sua plataforma política e sob a sua liderança. Neste desenho, o melhor papel que o Legislativo pode executar é ser reativo ao protagonismo presidencial.

Se existe algum risco para a democracia brasileira, este se localiza na relutância do presidente em utilizar os seus poderes que outrora foram delegados pelos próprios legisladores.


Pedro S. Malan: Peso do passado e pressão para prometer

Na retomada dos trabalhos legislativos, PEC da administração pública é urgência maior.

Avanços na área de sequenciamento de genoma humano indicam a possibilidade de se descobrirem predisposições genéticas a determinados tipos de doenças. Ocorre-me que, se fosse viável o mapeamento genético-cultural de nações, nosso país revelaria, dentre outras, marcada predisposição a tomar por natural a propensão à expansão continuada do gasto público, em descompasso com o comportamento da arrecadação, da inflação e da capacidade produtiva da economia.

Nas últimas décadas o Brasil fez avanços importantes em matéria de reformas e construção institucional. Seu regime fiscal e sua administração pública, no entanto, deixam ainda muito a desejar. Expectativas consistentes de crescimento sustentado exigirão uma percepção menos irrealista das restrições fiscais que se impõem à ação dos três níveis de governo.

A aprovação da reforma da Previdência deve ser comemorada, mas é claro que não equacionou de vez o problema fiscal do País. A população de idosos (mais de 60 anos) passará de 30 milhões em 2018 para cerca de 73 milhões em 2060. A faixa entre 20 e 60 anos cairá de 120 milhões para 95 milhões e a de menos de 20 anos, de 60 milhões para 45 milhões. A taxa de crescimento da população de idosos, cinco vezes superior à da população total (que, de resto, terá parado de crescer em meados dos anos 40), aponta, por sua vez, para aumento expressivo e continuado dos gastos em saúde.

A experiência brasileira com inflação crônica, alta e crescente deveria ter deixado mais clara a relação entre conflito distributivo e déficits orçamentários. Ele se manifestava, como ainda hoje, por disputas entre grupos de interesse, incluídas as corporações do setor público, para manter e de preferência aumentar suas fatias do Orçamento. A inflação não está mais aí (nunca mais, esperemos) para acomodar essas disputas. Mas o conflito distributivo continua vivo, e crescente. Em 2014 o peso das decisões passadas havia se tornado visível a olho nu. 2020 será o sétimo ano consecutivo de déficit primário nas contas fiscais. 2021 deve ser o oitavo. 2022 é ano eleitoral... Não por acaso, Previdência e salários são as duas principais contas nos gastos do setor público. No caso do governo federal, superarão R$ 1 trilhão neste ano de 2020, comprimindo todos os gastos discricionários, particularmente investimentos e prestação de serviços públicos.

Nesta retomada dos trabalhos legislativos, a urgência maior são as PECs emergenciais e a da administração pública. Cerca de um quarto dos 11 milhões de servidores públicos deve se aposentar até 2023. Entre 2017 e 2019 dobrou (para dez) o número de Estados com mais aposentados e pensionistas que servidores da ativa; os valores das aposentadorias do setor público são em geral maiores que a média da remuneração do servidor da ativa. Existem no Executivo federal mais de 200 carreiras distintas, representadas por mais de 150 associações. Em alguns Estados o número chega perto de 100. Multipliquemos por 27, adicionemos as carreiras de municípios – e estará clara a magnitude da tarefa que nos desafia.

Em 30 de janeiro o ministro Paulo Guedes afirmou que a reforma administrativa seria enviada em duas semanas ao Congresso, a quem caberia “dar o ritmo”. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, classificou, por sua vez, de decisivo o envolvimento ativo do Executivo. A experiência mostra, com efeito, que são determinantes empenho e mobilização do Executivo, notadamente quando a agenda legislativa se encontra, como agora, sobrecarregada. E o tempo, curto.

Em seu primeiro discurso de posse, Dilma Rousseff disse: “O Brasil optou (...) por construir um Estado provedor de serviços básicos e de Previdência Social pública. Isso significa custos elevados para toda a sociedade”. Passada uma década, talvez a sociedade possa enxergar com alguma clareza que os “custos elevados para toda a sociedade”, outrora mascarados pela inflação recorde, assumiram a forma de retração de investimentos, deterioração da infraestrutura e de serviços de educação, saúde e saneamento – sentida principalmente pelos mais pobres.

O Estado brasileiro, como disse Rodrigo Maia, “custa muito e serve pouco”. É um grande distribuidor dos recursos que por ele transitam, tarefa que executa mal – sem adequada definição de prioridades, avaliação e controle da qualidade dos serviços prestados. É de Ken Rogoff o diagnóstico: “É lamentável que neste debate sobre os limites das ações do governo haja muito pouca discussão sobre como fazer do governo um provedor de serviços eficiente. Aqueles que desejam um papel mais amplo do setor público estariam fortalecendo sua posição se estivessem preocupados em encontrar formas de fazer o setor público mais eficaz”.

É preciso acreditar que isso não seria impopular. Contrariamente, portanto, à crença ainda predominante entre nós e que tem profundas raízes em nosso inconsciente coletivo. É possível, se conseguirmos reunir e manter juntos, racionalidade, esforço e esperança. Sobre esta última, vale lembrar um velho ditado: “A esperança não morre, mas pode atravessar angustiantes fases de vida”.

* ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM


Eliane Cantanhêde: Guerra Santa

Católicos e evangélicos são sugados para a polarização entre Bolsonaro e Lula

O ex-presidente Lula adiou seu depoimento à Justiça no dia 11 para se encontrar com o papa Francisco no Vaticano. O presidente Jair Bolsonaro deu lugar de destaque no palanque e na foto do 7 de Setembro ao bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. E é assim que as religiões vão sendo sugadas para o centro da polarização política no Brasil.

A Igreja Católica (ou parcela expressiva dela) se aliou a Lula e aos movimentos sociais na resistência à ditadura militar e esteve por trás da fundação do PT em 1980, ao lado de sindicatos, universidades e escolas. A aliança atravessou a Lava Jato sob silêncio e constrangimento.

As igrejas evangélicas, tradicionais e neopentecostais, estão há muitas eleições na base de Bolsonaro, seus filhos e ex-mulheres no Rio e compõem a “bancada da Bíblia”, mais forte e organizada no Congresso do que partidos.

O resultado é que o embate direto entre Lula e Bolsonaro e entre esquerda e direita ameaça se transformar num teste de forças também entre a estagnada Igreja Católica e as emergentes igrejas evangélicas. A tentativa de articular uma fusão desses grupos numa frente única no Congresso até existe, mas é duvidosa.

O que falar de uma foto de Lula com Francisco? Terá uma força política considerável, fazendo o link entre a imagem do papa mais popular e mais humanista em décadas com o discurso histórico do PT (atenção: sem entrar no mérito do que é real e do que não é). O uso político e partidário no Brasil será inevitável, em ano eleitoral.

Já a foto de Bolsonaro com Macedo causou espanto, pelo hábito da Universal de recolher o “dízimo” de seus fiéis e de, não raramente, estimular ingênuos, ignorantes e/ou desesperados a entregarem casas, carros e bens para a igreja, em troca do “reino de Deus”.

Essa prática, sob as nossas barbas e com a leniência dos poderes constituídos, começa a chegar à Justiça, com devolução de valores e indenização de vítimas. Mas é tão consolidada que é difícil combater e já extrapolou fronteiras para diferentes continentes. E Lula já age para disputar as graças (e os votos) dos evangélicos.

No Brasil, os governos não veem, ouvem nem falam sobre esse avanço que levou os “donos” de igrejas (uma filhote da outra, com sutis diferenças de designações) a figurar nas listas das grandes fortunas brasileiras. Nenhum político, ninguém que disputa eleições quer bater de frente com essa máquina de manipulação de almas, que pode trazer ou tirar votos.

Com Lula já era assim e com Bolsonaro tornou-se mais audacioso. Já não há dúvida do uso de cultos evangélicos na coleta de assinaturas para o partido do presidente, que prestigia evangélicos na composição do Ministério e já acenou com um nome “terrivelmente evangélico” para o STF e integra uma tal Aliança pela Liberdade Religiosa com EUA, Polônia e Hungria.

Uma curiosidade: apesar dos vínculos de Bolsonaro e de sua mulher, Michelle, com evangélicos, os militares são tradicionalmente católicos – e praticantes. Uma exceção é o ministro e general da ativa Luiz Eduardo Ramos, da Igreja Batista.

A disputa de Bolsonaro e Lula pelas igrejas tem efeito maléfico, inclusive para elas. Seus “podres” tendem a ganhar visibilidade. Na Igreja Católica, os templos ricos, o gosto pelas elites, até a pedofilia. Nas neopentecostais, os espaços espartanos em centros estratégicos das cidades para atrair e lucrar com o corre-corre de trabalhadores.

O direito à liberdade e à manifestação religiosa é reconhecido em todas as democracias e não se trata aqui de discutir religião, teologia, crenças e dogmas e, sim, alertar para o uso político e eleitoral das igrejas e da fé. Pode ser considerado ilegítimo e, de certa forma, imoral.


Vera Magalhães: Os sucessores

Trocas em postos-chave da República serão cruciais para traçar rota de 2022

Ainda faltam três anos para a eleição presidencial, mas a troca de titulares em alguns postos-chave da República neste ano e no início do próximo será crucial para definir o cenário em que se dará a disputa pela sucessão de Jair Bolsonaro.

O mais estratégico desses cargos é a presidência da Câmara. Bolsonaro e seu entorno já perceberam que Rodrigo Maia fez dela um bunker para frear os projetos prioritários do presidente, aqueles que ele prometeu na campanha e que pretende apresentar como realizações.

Mas Maia não pode mais se reeleger, e não está claro quem será o seu escolhido para manter a coalizão de partidos que conseguiu reunir em torno de si para frear na largada a pretensão de Bolsonaro de governar sem maioria no Legislativo, apenas impondo sua agenda de fora (a partir das redes sociais) para dentro.

Bolsonaro sabe que se deve a essa estratégia brilhante de Maia – elevar a importância do Parlamento justamente quando o presidente planejava escanteá-lo – a maior parte de seus fracassos. E por isso vai se empenhar para ter alguém seu no comando da Câmara.

O Planalto não considera a troca no Senado tão vital porque Davi Alcolumbre é considerado mais disposto ao diálogo e já ajudou o governo.

Atravessando a Praça dos Três Poderes, já estão a pleno vapor dois movimentos, aí, sim, cruciais, para o futuro de Bolsonaro e a eleição de 2022: a troca de Dias Toffoli por Luiz Fux no comando do Supremo Tribunal Federal, que ocorre em setembro, e a campanha aberta pela cadeira do decano Celso de Mello, em novembro.

Toffoli e Fux já encenaram a sucessão à luz do dia. Ao cassar uma liminar concedida pelo atual presidente no recesso, o vice e futuro ocupante do cargo quis, propositalmente, sinalizar que vem aí uma mudança de paradigma.

Em seus dois anos no comando do STF, Toffoli fortaleceu a ala “garantista” da Corte, agiu para conter o poder da Lava Jato e, no plano pessoal, trabalhou para se livrar da imagem de petista, aproximando-se de Bolsonaro com tamanha eficiência que, hoje, é um dos poucos nomes da República que o presidente consulta para questões jurídicas e institucionais envolvendo limites entre os três Poderes.

Sem o “parça” Toffoli e com o lavajatista Fux no comando, Bolsonaro se apavora com o que pode acontecer com casos como o do seu filho Flávio.

A nomeação do sucessor de Celso de Mello também ocupa Bolsonaro, que já não esconde a disputa declarada entre três de seus auxiliares pela vaga. Se o presidente quiser facilitar a rota que o leva a 2022, designará Sérgio Moro para a vaga: limpa, assim, a barra com o público lavajatista, que anda ressabiado com sua dubiedade no combate à corrupção, e tira o mais forte oponente do seu cangote. Mas não é esse seu desejo precípuo: preferiria indicar o “terrivelmente evangélico” AGU André Mendonça ou o absolutamente fiel Jorge Oliveira, o secretário-geral da Presidência recém-formado em Direito e com nenhuma biografia no meio jurídico.

Os bolsonaristas que desconfiam de Moro argumentam que ele poderia ir na segunda vaga, ainda no primeiro mandato de Bolsonaro, mas os moristas alertam: o ministro já foi mordido pela mosca azul da política e, a cada vez que se expõe, tem mais evidências da própria força junto ao eleitorado de Bolsonaro.

A campanha de 2022 já corre a todo vapor, não na desnorteada esquerda do esvaziado Lula ou no pulverizado centro, mas no quintal de Bolsonaro. E a ocupação dos espaços nos postos de mando institucional é a chave que, além do sucesso da economia, definirá se o “capitão” terá travessia mais tranquila ou mais pedregosa para tentar mais quatro anos no poder.


Marco Aurélio Nogueira: A voz dissonante de Risério

Em polêmico novo livro, o antropólogo aponta os limites e contradições da luta identitária e denuncia as polarizações políticas dos nossos tempos

O novo livro do antropólogo baiano Antonio Risério, Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária, veio para desafinar o coro dos contentes. A começar do título, calculado para chamar atenção e provocar. Sem papas na língua, com critério, erudição e domínio do tema, dispara contra a cultura política e teórica pós-moderna, privilegiando em especial os movimentos identitários que, nas últimas décadas, assumiram a dianteira na contestação política e cultural, produzindo, porém, mais ruído e dissonância que hegemonia.

Risério parte do suposto de que a guinada identitária ressignificou a contracultura derivada dos anos 1960 e contribuiu para abalar a ideia de esquerda. Para ele, com a difusão das postulações feministas e racialistas radicais, teria havido um empobrecimento geral da contestação e um apagamento das possibilidades da esquerda democrática. O identitarismo produziu fissuras e divisões justamente onde a unidade democrática mais se mostrava necessária. Fixou mentalidades gregárias fechadas em si, em vez de abertas a interações comunicativas.

Convencido da necessidade de alertar a opinião pública contra os desacertos identitários, Risério não faz concessões. Não se desvia da rota com digressões acadêmicas: seu livro é um ensaio “de intervenção intelectual e combate político frontal”. Comete excessos nessa operação, mas procura justificá-los o tempo todo: não há porque ter tolerância contra quem é intolerante e não admite divergência.

Risério quer denunciar as polarizações do nosso tempo, que estiolam o campo democrático. Sabe que sempre haverá gente divergindo de gente, um lado contra o outro. Seu problema é a polarização que se converte em intolerância e agressão, como ocorre hoje no Brasil, seja nos confrontos alimentados pelo bolsonarismo sectário, seja nas refregas identitárias. Misturando-se confusamente com as rusgas entre esquerda e direita, com a luta política cotidiana, a ênfase na identidade tornou-se combustível adicional para a exasperação verbal, a fragmentação política e o enfraquecimento da democracia.

Postulações identitárias rapidamente se tornam ideologias de mobilização e leitura do mundo, dando musculatura a pregações morais bastante discutíveis, que menosprezam a história fática e ficam a um passo de cair no fanatismo. Negros passam a hostilizar brancos como resposta a uma hostilidade que remontaria aos tempos da escravidão, feministas radicais condenam todos os homens como expressão de um machismo secular. Risério critica os “racialistas neonegros” por insistirem na negritude dos mulatos e não compreenderem que no sistema escravista brasileiro até escravos compravam escravos. Já as neofeministas radicais, que atacam um Ocidente “patriarcal” que não mais existe, fecham os olhos para a opressão sofrida pelas mulheres no mundo islâmico e nas culturas tradicionais africanas.

A batalha identitária nasceu da luta pelo reconhecimento do outro, pela afirmação da “outridade”. Sua vitória progressiva, porém, produziu o contrário, na visão de Risério. Os neo-identitários passaram a negar o outro, recusando legitimidade argumentativa aos que estão fora das agendas de identidade. O exagero irracional na defesa do “lugar de fala”, por exemplo, levaria a que somente negros pudessem falar de problemas dos negros e somente mulheres feministas pudessem abordar questões femininas.

Identitários radicais querem aceitação plena de seus dogmas. Exigem lealdade incondicional e estigmatizam quem foge de suas teses. Consideram-se donos absolutos da verdade, moralmente superiores ao resto dos humanos. Põem-se da perspectiva de um “oprimido” mais imaginário que real, a partir do qual constroem uma ideologia de autovitimização. Polarizam sempre em termos negativos: por mais que se refiram positivamente às causas e pessoas que defendem, a maior parte da energia que consomem volta-se para desmascarar e “desconstruir” adversários. Com isso, perdem-se muitas possibilidades de interação, diálogo e cooperação. O resultado é fácil de ser imaginado: em vez de avanços consistentes em direitos e políticas públicas, tem-se retração e desaceleração.

É tema central do livro. Risério está interessado em dessacralizar os que põem a identidade como questão principal e atuam como “juízes” do que é certo e errado, fechando-se em “tribos” particularistas, setoriais, que problematizam a unidade política e produzem um apartheid ao revés: para defender os diferenciados, criam mais diferença e segregação, bloqueando o diálogo e as interações. Seu objetivo é fazer com que a esquerda saia da complacência e “denuncie o fascismo em suas próprias fileiras”.

O livro abusa do conceito de “fascismo”. Ciente da reação, Risério esclarece: “emprego a expressão em seu sentido corriqueiro de tentativa de exercer controle ditatorial sobre a postura e o discurso dos outros”. É um risco assumido. Ao qualificar a esquerda identitária como “fascista”, Risério cria uma polarização adicional, que incrementa aquilo que deseja combater. Ele também não deixa espaço para que se pense o tema das identidades de modo democrático. Procede como se se tratasse de uma não-questão. Não esclarece suficientemente que sua crítica se dirige a um pedaço da esquerda que deseja alcançar o radicalismo identitário, não as preocupações com a identidade.

A crítica de Risério merece ser levada em conta, excessos retóricos à parte. Nos dias atuais, há mesmo que se recuperar perspectivas mais totalizantes, que incluam mais que excluam, que privilegiem o que é comum a todos ou à maioria. Nichos corporativistas, partidários, religiosos ou identitários travam a vida democrática, sobretudo quando se põem num círculo moral superior e se apresentam como expressão máxima da democracia.

Muitos torcerão o nariz para o livro. Mas Risério faz o que se espera de um bom ensaio político-cultural: força o leitor a pensar, a rever conceitos e explorar novas pistas.

*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp


Adriana Fernandes: É fake

Governo apresentou no primeiro ano do ministro da Economia, Paulo Guedes, um déficit de R$ 95 bilhões; em qual lugar do mundo um rombo desse tamanho do governo central pode ser apontado como um sinal de contas ajustadas?

A noção de contas equilibrada foi atualizada pelo governo Jair Bolsonaro. Na publicidade de 400 dias da atual gestão, divulgada nas redes sociais, a mensagem transmitida foi a seguinte: “contas equilibradas, inflação controlada e mais poder de compra para os trabalhadores impactam positivamente na economia”.

Nada mais fake news. O governo apresentou no primeiro ano do ministro da Economia, Paulo Guedes, um déficit de R$ 95 bilhões. São “bilhões” e não “milhões”.

Em qual lugar do mundo um rombo desse tamanho do governo central pode ser apontado como um sinal de contas ajustadas?

O ano de 2019 marcou o sexto ano de déficit consecutivo de contas do governo federal. Não são rombos pequenos. Ele caiu, é verdade. Mas é alto e tem impedido o governo de avançar em investimentos – que estão em patamares ridículos há anos.

Na melhor das hipóteses, somente no final de 2022, as contas voltam para o azul. As projeções mais fresquinhas da própria equipe econômica apontam que, no último ano do mandato do presidente, o déficit será de R$ 31,4 bilhões. O mais provável – até o momento – é que o cenário de superávit só venha em 2023.

Esse quadro só muda se a economia crescer muito e muito rápido. O que não é o caso, por enquanto. O Brasil patina no baixo crescimento há anos por razões diversas e estruturais.

Por ora, a redução do déficit – comemorada pela equipe de Guedes – se deve muito à receita extraordinária com leilões de petróleo e dividendos pagos por estatais e bancos públicos. Do lado das despesas, o arrocho foi grande nos gastos discricionários (não obrigatórios), que afetou os programas sociais.

A zeragem do déficit – prometida pelo ministro para 2019 – não ocorreu. E todos sabiam que não iria acontecer no ano passado. Guedes se justifica dizendo que quis subir o sarrafo (da meta) para alcançar o melhor resultado.

Mas o corte nos incentivos setoriais, nos “privilégios” do sistema S, benefícios tributários de todos os tipos... esse ficou a ver navios. A força das criaturas do pântano, citada no discurso de posse como uma frente a ser destruída, continua solta por aí.

O governo não atacou esses privilégios. Pelo contrário, enviou ao Congresso um anexo secreto (sem publicidades) com medidas que “podem ser acionadas”. Cumpriu tabela e escondeu o caminho.

O déficit não começou nesse governo. É verdade. Acabar com ele é obrigação.

Com a mensagem dos 400 dias, a sensação que o governo passa à sociedade e ao Parlamento é que está tudo ok. Os sinais de pressão aumentam nesse ambiente. Um presidente fiscalmente responsável jamais faria um desafio aos governadores de zerar impostos sobre combustíveis.

Impossível não comemorar um déficit menor, conta de juros mais baixa e redução da dívida pública. Avanços ocorreram, sem dúvida. Mas o ajuste só estará completo quando as prioridades orçamentárias estiverem direcionadas para a população que mais precisa. Muito a fazer.

O governo reclama de fake news, mas, com todo respeito, desta vez, ele mesmo espalhou.

* É jornalista


Roberto Macedo: Ampliar ascensão social é menos difícil que desconcentrar renda

Só com o PIB crescendo bem mais voltará a haver condições de ascender socialmente

Continuo a pregar que a situação da economia é ainda pior que a percebida pelo governo, pelos meios de comunicação, pelo tal mercado e pela sociedade em geral. Meu último artigo neste espaço, em 16/1, foi PIB – 2010-2019, a pior de 12 décadas. O texto analisou dados desde 1901 e assim sintetizou a situação atual da economia: teve uma recessão que durou dois anos, embutida numa depressão que já tem cinco anos, e também passa por uma estagnação de quatro décadas.

Hoje relacionarei essa situação com outro enorme problema do País, a desigualdade de sua distribuição de renda, sabidamente enorme, e argumentarei que ampliar a ascensão social é menos difícil do que desconcentrar a renda. Não sou contra essa desconcentração, mas a desigualdade começou com a nossa colonização, com destaque para a escravidão, que vicejou por três séculos, e aliviá-la envolveria imensas dificuldades.

A título de exemplo, entre outras medidas, seria necessária uma profunda reestruturação da estrutura tributária, dando maior peso a impostos sobre a renda e sobre heranças, pois hoje predominam impostos indiretos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que onera relativamente mais os pobres, ao ter forte incidência sobre o consumo, que absorve maior parcela da renda desse grupo que da dos ricos.

Do lado dos gastos públicos, seria importante cortar privilégios das classes de maior renda, como o ensino gratuito nas universidades públicas. A gratuidade deveria ser apenas para os estudantes de famílias de menor poder aquisitivo. E, além disso, eles receberiam bolsas para matrículas em cursos com dedicação integral, como o de Medicina, pois hoje não têm condições de frequentá-los, dada a necessidade de trabalhar para sustento próprio e de suas famílias. Nas universidades públicas paulistas a distorção é mais grave, pois elas são sustentadas por parcela da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Assim, até mendigos, ao gastarem em bens de consumo as suas esmolas, estão subsidiando estudantes que poderiam pagar por sua educação.

Nossa classe política, contudo, não teve ainda a coragem de corrigir distorções como as apontadas, pois, salvo raras exceções, teme o ônus político dessa correção e danos a seus próprios interesses.

E a ascensão social, o que é e por que seria menos difícil de se concretizar? Ela vem quando surgem mais e melhores oportunidades de trabalho que também alcançam famílias de menor renda. Isso dependeria essencialmente de um crescimento do produto interno bruto (PIB) da ordem de 4% ou 5% ao ano, com abertura de muitas novas empresas, forte expansão das existentes e proliferação de novas frentes de negócios. Mas nas últimas quatro décadas, com o PIB crescendo à medíocre taxa média de 2,4% ao ano, essas condições estiveram ausentes, salvo em curtos “voos de galinha” do PIB. A maior parte das oportunidades de trabalho surgidas foram em ocupações de baixa qualificação, que não ajudam na ascensão social. E há que lembrar os elevados números do desemprego, da informalidade e do desalento na procura de trabalho, que seguem o mau estado da economia inicialmente descrito.

Um especialista em mobilidade social, o professor José Pastore, publicou dois livros sobre o assunto, o último com Nelson V. Silva, em 2000, intitulado Mobilidade Social no Brasil, no qual usam dados de 1996 e de décadas anteriores. Concluíram que a mobilidade social se acelerou nas décadas de 1960 e 1970, cujas taxas médias de crescimento do PIB foram as maiores das 12 décadas que analisei. Em média, 7,5% ao ano. Foi uma época em que muitas pessoas ascenderam na escala social, entre outros aspectos, por deixarem a precariedade do trabalho do campo e se mudarem para as cidades, onde as oportunidades de trabalho eram mais amplas e mais bem remuneradas. Isso lhes abriu novos horizontes, matriculando seus filhos na escola, comprando uma pequena propriedade, etc. Foi um tempo de “mercado comprador” de quem desejava trabalhar, ganhar mais e ascender socialmente.

Pondera José Pastore, em entrevista concedida a este jornal em 5 de janeiro: “Hoje tudo mudou. Para os mais jovens, está difícil chegar à posição que seus pais alcançaram (...). E não há perspectivas de subir a escala social no curto prazo, com raras exceções. Muitos ficam frustrados, desanimados, se sentem inferiores em relação aos pais. Essa percepção cria um ambiente negativo, e faz crescer (...) movimentos populistas que se aproveitam dessa camada social que perdeu a oportunidade de ascender”.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, com as reformas que vem propondo, está correto ao dar prioridade ao equilíbrio orçamentário do setor público. Mas as reformas tomam muito tempo, é preciso acelerá-las, e muito. E há muito mais por fazer. Cabe focar todo o esforço do governo e da sociedade na retomada de um crescimento econômico bem mais forte, para que a ascensão social ocorra com vigor e venha a confiança de que terá continuidade.

*ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), PROFESSOR SÊNIOR DA USP, É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR