O Estado de S. Paulo

Celso Lafer: Liberalismo/liberalismos

Entende-se o valor da liberdade quando ela é cerceada pelo arbítrio e pelas intolerâncias

São muitas as referências ao liberalismo na pauta do debate público. Poucas as considerações mais satisfatórias e abrangentes sobre seu alcance, como expôs com densidade José Guilherme Merquior em O Liberalismo - Antigo e Moderno (1991).

Na elucidação conceitual do liberalismo, a primeira observação é a de que não se circunscreve ao catecismo simplificador dos seus críticos, que nele identificam, na atual conjuntura, apenas a defesa do pensamento único da liberdade econômica dos mercados.

São muitos os idiomas do liberalismo e múltiplos e diversificados os temas dos seus patronos intelectuais. Entre eles, Immanuel Kant e Adam Smith, Alexander von Humboldt e Alexis de Tocqueville, Benjamin Constant e John Stuart Mill, Friedrich Hayek e Raymond Aron, Karl Popper e Isaiah Berlin.

Todos esses autores têm afinidades. Resultam de uma compartilhada preocupação com a defesa e a realização da liberdade. Partem de uma visão da sociedade concebida como plural, na qual o ser humano, com a sua dignidade própria, não se dissolve no todo.

Pressupõem que o mundo não é uma realidade determinista, mas um conjunto de probabilidades e possibilidades que estão ao alcance do criativo e inovador exercício das múltiplas dimensões da liberdade.

É esse terreno comum que permite inserir esses grandes nomes e suas reflexões no âmbito do liberalismo. Caracterizam-se, no entanto, por diferenças apreciáveis. É por isso que cabe falar em liberalismos, no plural, e pontuar que em contraste com a tradição socialista, na qual avulta a hegemonia de Karl Marx, o panteão do liberalismo, desde as suas origens e nos seus desdobramentos, é plural. Não é por acaso que a palavra liberal, como adjetivo, designa a postura de um espírito aberto e não dogmático.

A dimensão plural do liberalismo provém do fato de que a liberdade não é una, mas múltipla, e passa pela política, pela cultura, pelo social e pelo econômico.

Possui, não obstante suas diversas camadas de significado, uma força de atração motivadora, que Cecília Meirelles ilumina no Romanceiro da Inconfidência: “Liberdade – essa palavra/ que o sonho humano alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda”.

Entende-se o valor da liberdade, que alimenta o sonho humano, quando ela é cerceada ou corre o risco de ser cerceada pelo arbítrio da coerção e da prepotência e pelas intolerâncias discriminatórias.
Foi numa época de avassaladora denegação da liberdade que Franklin D. Roosevelt, em 1941, enunciou a importância do alcance de quatro liberdades essenciais: da palavra e expressão, de crença, de viver sem o império da necessidade e de viver sem medo.

A manifestação de Roosevelt sobre as quatro liberdades foi uma das fontes inspiradoras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que conferiu dimensão normativa à agenda internacional e consagrou múltiplas dimensões de liberdade: de ordem pessoal (artigos 3.º a 11); dos direitos do indivíduo no seu relacionamento com os grupos a que pertence e às coisas do mundo exterior (artigos 12 e 17); das faculdades espirituais, das liberdades públicas e dos direitos fundamentais (artigos 18 a 22); dos direitos econômicos, sociais e culturais (artigos 22 e 27).

Explicita assim tanto a liberdade como espaço próprio delimitador do grau de interferência na vida das pessoas quanto a de participação na vida pública, um dos componentes da democracia.

É a preocupação com as múltiplas dimensões de liberdade que faz com que os pensadores dos liberalismos tenham como um dos seus temas o papel das instituições que a preservam dos que a denegam política, econômica e culturalmente. Anoto, a propósito de liberdade econômica, que os mercados não operam no vazio; por isso o bom funcionamento da economia requer instituições, como aponta, entre outros, Douglass North.

O liberalismo está na origem do constitucionalismo, da divisão de Poderes, do Estado de Direito e da tutela dos direitos humanos. Daí a relevante permanência do seu legado.

Michael Walzer, que enfrentou as múltiplas dimensões da justiça elaborando seu grande livro sobre as distintas esferas da justiça, também deu estimulante contribuição à preservação institucional das liberdades, considerando o liberalismo como a arte da separação. Assim, a separação Igreja-Estado preserva a liberdade religiosa; a do público e privado preserva da interferência estatal a família e o indivíduo e também abre espaço para a liberdade econômica de empreender. A arte da separação enseja a liberdade acadêmica, do ensino e da pesquisa, que sustenta a autonomia universitária, assim como a da cultura e da criação artística. A arte da separação assegura o antidogmatismo que permite a procura da verdade sem o arbítrio da censura e da imposição de uma “verdade oficial”.

Em síntese, velar e combater pela arte institucional da separação, inerente aos idiomas dos liberalismos, é o que nos cabe fazer, com a preocupação do futuro, na atual conjuntura caracterizada por riscos, internos e externos, aos cerceamentos da liberdade.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Eliane Cantanhêde: Onde Huck se encaixa

Huck tira votos do PT, mas precisa ser considerado pelo eleitor de Bolsonaro

Ano eleitoral, nervos à flor da pele e o instinto de preservação da espécie política em alerta. Afinal, para onde vão os ventos da polarização brasileira? E é assim que começam as pesquisas formais e informais, as conversas que extrapolam partidos e os cálculos sobre os investimentos, não só para o outubro como também, ou principalmente, para 2022. O senador Ciro Nogueira, do PP do Piauí, começou a sentir “um declínio muito grande do PT e quis sentir para onde esses votos estavam migrando”. Encomendou pesquisas, ou melhor, levantamentos sem controle de amostra, em cidades representativas, e surpreendeu-se com o resultado. Agora, anima outros partidos, como o PDT, e outros estados, como Tocantins, a fazerem o mesmo: detectar a movimentação dos votos.

No Piauí, foram escolhidas duas cidades onde o PT deu um banho em 2018, refletindo o poder vermelho no Estado e em todo o Nordeste. E esses levantamentos do senador, feitos em dezembro para consumo próprio, sem registro oficial, mostram a entrada em cena de um novo personagem: Luciano Huck, o apresentador de TV que nem partido tem, mas já mostra a cara, monta equipe e prepara plano de governo.

Em Picos, o petista Fernando Haddad teve 74,74% (30.013 votos) no segundo turno e Jair Bolsonaro, 25,26% (10.143). No levantamento agora, Haddad caiu para 38,4, Huck ficou em segundo, com 24,8%, e Bolsonaro recuou para 20,1%. Em Floriano, Haddad teve 74,87% no segundo turno, com 24.011, contra Bolsonaro, 25,13%, com 8.059.

Hoje, pelo levantamento, Haddad despenca para 37,9%, Huck dispara para 27,9% e Bolsonaro reduz o seu teto para 17,7%. Obviamente, trata-se de duas pequenas cidades de um único Estado, mas são assim que as coisas começam: daqui e dali, dando indícios, sugerindo rumos. Com o próprio Jair Bolsonaro, poucos prestaram atenção e acreditaram quando ele começou a pipocar. Deu no que deu.

Portanto, é importante detectar tendências, partindo dos votos reais de 2018 e vendo a evolução do humor dos eleitores. Em resumo, a força do PT e de Haddad vem de baixo para cima, concentrada nos menos escolarizados e de menor renda, enquanto Bolsonaro cresceu e venceu no sentido oposto.

Seus votos aumentaram na proporção da renda e da escolaridade do eleitor. Cruzando-se essa constatação com levantamentos que o próprio Luciano Huck mantém sistematicamente, há uma base de análise interessante para 2022. Nelas, o potencial de Huck está justamente nas classes C, D e E, onde se concentram seus telespectadores. Conclusão: Huck compete diretamente com o PT, qualquer que seja o candidato petista. Assim, suas chances presidenciáveis, que ainda são uma incógnita (como a própria candidatura), dependem de sua capacidade de tirar votos do PT, para então ser levado a sério entre os eleitores de Bolsonaro. De baixo para cima.

Um processo de reeleição favorece quem, como Bolsonaro, tem o cargo, a caneta e o excesso de exibição à mão, e não se sabe se Huck terá estômago e coragem para entrar em campanha, mas ele está aí, reúne a boa vontade de um ex-presidente, ex-governadores, economistas de peso e líderes partidários consideráveis.

Logo, convém que não se repita com Huck o que ocorreu com Bolsonaro: enquanto as elites torciam o nariz e nós, jornalistas, considerávamos a pretensão absurda, o capitão foi crescendo, se impondo como realidade eleitoral. A internet e a massificação de uma inverdade – de que só ele bateria o PT - fizeram o resto. São três anos, há muito chão pela frente, mas não vamos fechar os olhos para as possibilidades que se colocam, inclusive considerando que o PT, mesmo ferido e dependente patológico de Lula, tem força, recall e discurso. O tabuleiro está em aberto, mas é preciso prestar atenção nas peças e como elas se mexem.


Luiz Sérgio Henriques: Quando os bárbaros bateram em retirada

Um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é improvável que se repita...

No tempo em que a luta final parecia ser entre sistemas irremediavelmente contrapostos, a cultura bolchevique, tradução arriscada para o “Oriente” político de um pensamento claramente ocidental, como o de Marx, protagonizou não poucos episódios de fechamento sectário sobre si mesma. Exemplar, nesse sentido, o combate prioritário que em certo ponto os partidos comunistas deram aos “social-fascistas” – rótulo infame dado à esquerda social-democrata –, mesmo diante do avanço do nazismo e do fascismo. Ou, ainda nos anos 1930, a política interna da URSS stalinizada, que proclamava estar a caminho do socialismo e contraditoriamente apregoava o acirramento incessante da luta de classes, com processos falsificados, fuzilamento de velhos bolcheviques e afirmação de uma implacável estrutura verticalizada de mando.

Evidentemente, esse poder monolítico não duraria para sempre. Em face da vida política do capitalismo avançado, muito mais articulada e complexa, mesmo a versão atenuada do comunismo no poder, com a queda do ditador e a denúncia (parcial) dos seus crimes em 1956, mostrava-se primitiva e destituída de atração. Como no poema de Kaváfis, aquela constelação de partidos-Estado era como que a fonte e a razão de ser dos bárbaros à porta da cidade, que ameaçavam invadi-la e só provocavam reações irracionais, como a dos macarthistas e demais anticomunistas de profissão. Em 1989, por isso, entre esses setores atrasados da “cidade” capitalista viria a instalar-se um sentimento de frustração: para tais setores, os bárbaros eram uma “solução”, uma motivo de viver, um pretexto para cerrar fileiras e golpear os fantasmas prediletos. E agora batiam em retirada...

Ainda na última década do século 20 um novo e estridente grito de guerra se faria ouvir. É que o inimigo, sempre igual a si mesmo, mas ainda mais insidioso, teria passado a disputar corações e mentes com as armas mais lentas e, decerto, mais letais da cultura. Em consequência, gente treinada na linguagem da guerra fria reciclou-se rapidamente, apetrechando-se para ruidosas e intermináveis “guerras culturais”. Uma situação, aliás, que se agravaria exponencialmente no novíssimo ambiente das redes “sociais”, com sua capacidade inaudita de dinamitar pontes, criar tribos irascíveis e minar o terreno comum da convivência civilizada. E isso a ponto de se poder prever que minas potentes continuarão a explodir e causar danos no futuro, ainda depois de os guerreiros culturais ensarilharem as armas ou deixarem de fazer parte da corrente principal dos acontecimentos, ao contrário do que acontece hoje.

O alvo de tais guerreiros – que dão cobertura ideológica ao “populismo”, palavra ambígua e escorregadia, mas cujo conteúdo essencial consiste num ataque à democracia representativa tal como a conhecemos – deslocou-se: o comunismo perde a dimensão de desafio estatal e identifica-se sumariamente com o legado de 1968 e com a New Left multicultural. O ano que faz questão de não terminar, na frase de Zuenir Ventura, aparece agora como um nó a atar coisas díspares, mas todas muito “perigosas”: a rebelião antiautoritária, o feminismo, o pacifismo, o ambientalismo, tudo isso reunido numa crítica aos modelos de vida e consumo das sociedades desenvolvidas. Para os populistas de direita, eis a nova face do comunismo, empenhado como sempre em destruir a propriedade, mas desta vez, sobretudo, preocupado em corroer os valores familiares e os da tradição.

Como se trata de uma visão marcadamente ideológica, construída para organizar uma extrema direita de cunho anti-institucional, nada importa que o nó representado por 1968, no contexto real das coisas, não tenha muito em comum com a antiga posição comunista. Afinal, a Primavera de Praga também incendiou a imaginação de 1968. No clima da época, o velho ascetismo revolucionário sofreu golpes fatais. E num sentido que, na verdade, os enaltece, os comunistas da tradição se chocaram com uma derivação marginal, mas extremamente problemática, do espírito soixante-huitard, a saber, a trágica sedução da violência política.

Numa avaliação mais realista, um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é altamente improvável que se venha a repetir num mundo interdependente em termos não mais só econômicos. E a New Left “multicultural”, mesmo quando vocaliza exigências essenciais, como o combate ao racismo e a defesa do ambiente, muitas vezes reproduz a própria superfície fragmentada da vida, sem estabelecer conexões entre os variados grupos que poderiam expressar alguma hipótese de ruptura. Se este diagnóstico sumário fizer sentido, então o agressivo populismo de direita dos nossos dias aparecerá como o que de fato é: um desses fenômenos regressivos que de tempos em tempos reagem virulentamente a mudanças havidas na estrutura do mundo e tentam restaurar um passado de papelão pintado. Para quem não aceita tal regresso, trata-se de uma oportunidade e tanto para alianças que defendam e aprofundem a experiência democrática em toda a sua plenitude.

 


Adriana Fernandes: Meta fiscal vai mudar

Governadores e prefeitos pressionam para elevar limite de empréstimos em 2020

O Ministério da Economia vai propor ao Congresso Nacional uma mudança na meta fiscal dos Estados e municípios deste ano. A alteração será necessária para permitir que governadores e prefeitos tenham o mesmo limite do ano passado para contrair empréstimos nos bancos e garantir dinheiro novo no caixa.

A meta fiscal para Estados e municípios de 2020 foi fixada em um superávit de R$ 9 bilhões. Esse esforço fiscal deve cair para próximo de zero para acomodar os empréstimos que serão feitos esse ano. É que, com dinheiro em caixa, os governadores e prefeitos tendem a gastar mais diminuindo o esforço fiscal.

Com a mudança, a meta de déficit de R$ 118,8 bilhões para todo o setor público (União, Estados e municípios) vai piorar. Mas a equipe econômica quer garantir que o limite para a contratação de novos empréstimos com e sem aval da União seja o mesmo do ano passado, entre R$ 20 bilhões e R$ 22,5 bilhões. Nem mais nem menos.

A coluna apurou que a meta de superávit de R$ 9 bilhões dos governos regionais não comporta esse limite. Ela teria que cair para menos de 50% em 2020 para repetir o espaço de empréstimos do ano passado. O argumento da área econômica apresentado aos presidentes da Câmara e Senado para propor a mudança é que, quando a meta foi fixada, no ano passado, havia uma perspectiva de um volume menor de empréstimos.

A expectativa até então era que o chamado Plano Mansueto de socorro financeiro aos Estados e municípios tivesse sido aprovado, permitindo um volume maior de empréstimos no ano passado. O que se esperava era que a demanda deste ano ficasse menor. Como o projeto não foi aprovado, a demanda continua represada e o diagnóstico é que não dá para ter uma queda abrupta já que os planos foram traçados.

Em ano de eleições, a equipe econômica quer evitar que o limite seja expandido para um valor acima do que vem sendo praticado nos últimos anos, justamente no período eleitoral.

Todos os anos o governo estipula um limite para Estados e municípios contraírem empréstimos no setor financeiro. Esse limite é dado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Como esse é um ano eleitoral, governadores e prefeitos só têm até três meses da eleição (início de julho) para contrair os empréstimos e fazer os investimentos. Para 2020, o valor não foi fixado ainda. E é isso que está em jogo.

O governo está fechando os cálculos para calibrar a nova meta e enviar projeto de lei alterando a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que contém as metas fiscais. A negociação em torno do espaço fiscal para os empréstimos dos governos regionais está atrelada ao andamento do acordo do governo com o Congresso para devolver ao Executivo o controle sobre R$ 11 bilhões em despesas discricionárias (que incluem investimentos e custeio da máquina) antes carimbadas pelos parlamentares. Não se sabe como os parlamentares vão reagir. Muitos não querem que adversários políticos sejam beneficiados com o dinheiro.

O projeto de lei terá um dispositivo que vai permitir a mudança nas regras do Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para que Minas e Rio Grande do Sul possam entrar com um prazo maior de 10 anos. Hoje, o regime tem prazo de três anos, prorrogáveis por mais três. O Rio de Janeiro, o primeiro a aderir ao RRF, também será beneficiado com o alongamento. Essa alteração tem de ser feita porque a LDO exige que o governo compense receitas, mesmo financeiras, que deixarão de entrar no caixa do governo com o alongamento do prazo de pagamento da dívida.

A ideia do relator do projeto, deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), é criar um mecanismo para agilizar a captação dos empréstimos por Estados em melhores condições financeiras, uma espécie de fast track com menos burocracia.

Como mostrou o Estado, há uma pressão dos governadores para aumentar o limite dos empréstimos em 2020 neste ano de eleições. Todo cuidado é pouco com esse limite e com a proposta de mudança da meta para que as finanças dos Estados não piorem. No passado, a liberação desenfreada dos empréstimos com aval da União promoveu gastos com aumentos salariais e outras benesses dos governadores. Foi isso que contribuiu para o desarranjo financeiro que o setor público brasileiro vive hoje. Atenção máxima agora é mais do que necessária.

* É jornalista


José Márcio Camargo: A polêmica do Copom

Os efeitos da queda de juros estão por vir. Interromper o ciclo agora não significa parar de forma definitiva

Em sua última reunião, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central do Brasil cortou a taxa básica de juros da economia brasileira (Selic) em 0,25 ponto de porcentagem (p.p.), para o nível mais baixo da série histórica: 4,25% ao ano. No comunicado e na ata da reunião, os diretores anunciaram que, em razão das incertezas quanto à potência da política monetária e das defasagens entre as decisões de política e seus efeitos sobre o nível de atividade e a taxa de inflação, iriam interromper o ciclo de cortes de juros na reunião de março.

A ata deixa claro que uma das preocupações dos diretores do Banco Central é o nível de capacidade ociosa existente hoje na economia brasileira. Após uma recessão extremamente perversa, com grande perda de capacidade produtiva, destruição e má alocação de capital, ainda que a produção e o Produto Interno Bruto (PIB) continuem muito abaixo dos níveis recordes de 2012/2013 e o desemprego em 11,0% da força de trabalho, a pergunta que ficou no ar é quanto de ociosidade ainda existe na economia, após três anos de crescimento de 1,1% ao ano.

Alguns dias após a decisão, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou a taxa de inflação de janeiro de 2020, que surpreendeu positivamente os analistas, mostrando o menor número para janeiro desde a implantação do Plano Real, 0,21%. Ao mesmo tempo, os dados de crescimento da atividade do último trimestre de 2019 mostraram desaceleração em relação ao terceiro trimestre, gerando revisões para baixo das estimativas de crescimento em 2020.

Imediatamente, alguns analistas se prontificaram a anunciar que o Copom havia se precipitado ao anunciar o fim do ciclo de queda da Selic e que, quem sabe já na próxima reunião, tenha de voltar atrás e continuar o ciclo de reduções. Afinal, com desemprego em 11,0% da força de trabalho e a economia crescendo a uma taxa mais próxima de 2,0% do que de 3,0% e as expectativas para a inflação abaixo da meta em 2020 e 2021, certamente há, ainda, muita capacidade ociosa para ser utilizada antes que pressões inflacionárias apareçam no horizonte.

Porém, depois do conjunto de reformas que foram implementadas ao longo dos últimos 3,5 anos – o teto para o crescimento do gasto público, a troca da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) pela Taxa de Longo Prazo (TLP), a reforma trabalhista, a liberalização da terceirização, a Lei da Liberdade Econômica, a reforma da Previdência, entre outras – e das reformas microeconômicas em implementação pelo Banco Central, ninguém sabe com certeza o efeito de uma redução da taxa Selic em 2,25 p.p., ou seja, 35% de seu valor inicial (6,5% ao ano), nem quanto tempo vai levar para que a decisão de política monetária (redução dos juros) comece a ter efeitos sobre o nível de atividade e a taxa de inflação.

O Copom iniciou o ciclo de queda da Selic em 31 de julho de 2019, ou seja, há seis meses. Antes das reformas, as estimativas indicavam que a defasagem era de aproximadamente nove meses. Caso não tenha ocorrido nenhuma mudança, o que é pouco provável, ainda assim os efeitos da queda de juros estão por vir. Portanto, interromper o ciclo de queda neste momento significa parar para ver como vai reagir a economia diante do volume substancial de estímulos já implementados, e não necessariamente parar de forma definitiva.

Antes da reunião do Copom, nossa avaliação era de que o Banco Central deveria manter a Selic em 4,5% ao ano, exatamente por causa das incertezas levantadas no comunicado e na ata. Nossas estimativas (que, óbvio, não são exatas) apontam para uma taxa neutra (que nem gera pressão inflacionária nem deflacionária) de 2,1% real ao ano e, em decorrência das reformas, caindo 0,31 p.p. por trimestre. Como a previsão de inflação é 3,5% em 2020, a Selic real estaria em 1,0% ao ano, provavelmente abaixo da neutra. Neste cenário, seria mais adequado esperar que os efeitos das quedas já realizadas e as novas reformas em andamento se manifestassem, antes de continuar a reduzir os juros, provavelmente no segundo semestre. A queda de 0,25 p.p. não muda este cenário.

* Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio, é economista chefe da Genial Investimentos


Elena Landau: A Desumanização

Este governo teima em separar, desunir e antagonizar

A Desumanização é o título de um lindo livro de Valter Hugo Mãe. Em tempos de discussão sobre gravidez precoce, sua leitura é imperdível. Mostra numa escrita quase poética as consequências cruéis da falta de acolhimento familiar nesses casos. Roubei para usar aqui no seu sentido literal. Cai como uma luva para ilustrar a falta de humanidade deste governo, intolerante aos diferentes dele.

Presidente, filhos, ministros e colaboradores perderam a censura e com ela a cortesia. Pode ser bom que revelem o que realmente pensam, sem disfarces. Mas choca porque estão no comando de políticas públicas para todos os brasileiros, e não apenas seus eleitores. Políticas que deveriam ser desenhadas para integrar, unir, gerar oportunidades a quem não tem.

Essa é a essência do liberalismo. Mas este governo teima em separar, desunir e antagonizar.
Cada vez parecem se sentir mais à vontade para suas impropriedades, e vão subindo o tom. Não é só o conteúdo que ofende, mas a forma, que amplifica a ofensa. Gestos impróprios na porta do Palácio, # com palavrões, xingamentos a seguidores nas redes sociais. A agressividade dos seus apoiadores é estimulada pelo exemplo de cima, transformando a internet em uma praça de guerra.

Não deveria ser surpresa. Afinal, Bolsonaro começou sua campanha na votação do impeachment homenageando Ustra. Nada mais desumano e covarde que a tortura.

Todo dia é um 7 a 1. Compartilham ataque covarde e sexista a uma jornalista. Outra foi mandada de volta para o Japão. Debocham das aparências das mulheres. Aplaudem vídeos nos quais o homossexualismo é apresentado como origem de perversidades e dizem que portadores de HIV pesam no orçamento. Se divertem quando jornalista do “círculo do poder” faz chacota de brasileiro em palestra.

O Goebbels tupiniquim só foi demitido, a contragosto do chefe, porque se sentiu tão à vontade que saiu do armário. Na Fundação Palmares está alguém que acha que a escravidão foi uma bênção para os negros. Um ministro, que nos remete ao personagem Justo Veríssimo, acha que pobre não sabe poupar, destrói o meio ambiente e não pode ir a Miami. Vivem numa bolha. E partilham das mesmas ideias.

Tudo isso é condenável, não porque atrapalha andamento das reformas ou nos faz passar vergonha em fóruns internacionais. A falta de empatia, combinada com uma tendência autoritária, é perigosa.

Os exemplos desses despautérios são muitos. Vou me concentrar na questão da Aids, porque revela não só preconceito, mas total falta de preparo para analisar e implementar políticas públicas

O programa brasileiro de prevenção e tratamento da Aids é reconhecido mundialmente pela sua excelência. Iniciado em meados dos anos 90, permitiu reverter as projeções mais pessimistas do início daquela década.

O plano se baseia em distribuição gratuita de medicamentos e camisinha; testes gratuitos; profilaxia para a pré-exposição de pessoas que se relacionam com infectados. Há muito preconceito nessa área. A testagem é importante para reduzir o risco de transmissão e fundamental para melhorar a qualidade e expectativa de vida do portador. Exames para diabetes e colesterol são feitos com naturalidade, já HIV não faz parte da rotina, mas deveria. A prevenção é a chave.

Quando o coquetel foi descoberto, em 1995, o Brasil e a África do Sul tinham a mesma porcentagem de sua população infectada pelo HIV. Os dois países seguiram estratégias diferentes. Hoje são 10% de sul-africanos, maiores de 15 anos, portadores. Porcentual que aplicado ao Brasil equivaleria a 17 milhões, em lugar dos 800 mil brasileiros infectados hoje. É resultado da distribuição gratuita de medicamentos, que reduzem a carga viral e a transmissão. São milhões de vidas poupadas.

A distribuição de medicamentos custa aos cofres públicos apenas R$ 1,8 bilhão ao ano. Seria importante registrar também as despesas evitadas para tratamento da doença no SUS. A quebra de patentes e o uso de genéricos permitiu a redução sistemática do custo dos medicamentos antirretrovirais, que significa hoje menos de 0,06% dos gastos públicos anuais.

Apesar disso, o presidente Bolsonaro declarou em entrevista que “pessoa com HIV é despesa para todo o Brasil”. Faz dobradinha com o ataque ao jornalista com “cara de homossexual terrível”.

Todo tratamento, de qualquer doença, é despesa, seja pressão alta, diabetes ou sarampo. Com sua forma peculiar de fazer política pública, a declaração foi baseada no relato de uma obstetra amiga. Palpite caseiro. Ao ser cobrado pela imprensa, deu uma banana para os jornalistas. Por todo conjunto de sua obra, parece evidente que o problema do presidente com o HIV não é o custo do tratamento.

Já é lugar comum apontar as impropriedades ditas por este governo. Às vezes, voltam atrás, mas, na maioria dos casos, colocam a responsabilidade na imprensa. As falas são sempre retiradas do contexto. A culpa é sempre dos outros.

Mas as palavras ficam.

* Economista e advogada


Eliane Cantanhêde: De Guedes para Lula

Ministro devolveu a Lula e ao PT a marca social e o slogan do rico contra o pobre

Durante anos, o PT e o próprio ex-presidente Lula insistiram no que parecia uma fantasia, ou peça de marketing: a de que “as elites” rejeitavam Lula porque era um nordestino retirante e nunca suportaram que pobres viajassem lado a lado com eles nos aviões. Isso sempre soou bobo, ridículo, populista. Desde a quinta-feira, contudo, passou a fazer sentido, a ser levado a sério.

Em geral correto no conteúdo e desastrado na forma, o ministro Paulo Guedes acaba de dar de bandeja uma superbandeira política e eleitoral para o PT e Lula. “Empregada doméstica indo pra Disneylândia? Uma festa danada. Peraí!”, disse o ministro, que acaba de passar férias em... Miami!

Assim como há no Brasil o reino da piada pronta, Guedes introduz agora o slogan pronto de campanha. Só que da oposição, do adversário. Já dá para ouvir Lula e candidatos petistas entoando País afora: “Empregada doméstica indo pra Disneylândia? Uma festa danada Peraí!”. Nenhum marqueteiro maquiavélico faria melhor.

Para piorar as coisas para o bolsonarismo e melhorar para o petismo, a declaração foi exatamente na véspera de Lula se encontrar com o papa Francisco no Vaticano, por uma hora e em lugar reservado, para, segundo Lula, discutirem um “mundo mais justo e mais fraterno” e “a experiência brasileira no combate à miséria”.

“Justiça”, “fraternidade”, “combate à miséria” remetem às origens e aos propósitos anunciados na criação do PT, há 40 anos – ou seriam séculos? E, mais do que isso, marcam um contraponto poderoso ao presidente Jair Bolsonaro e ao bolsonarismo, que investem em “família”, “empresários”, “armas” e “combate à corrupção”.

O maior troféu de Lula, porém, foi a foto com o papa. O presidente mais popular da história recente brasileira e o papa mais humanista, inclusivo e generoso em décadas. Às favas os fatos, ora, os fatos: a prisão, a condenação em primeira e segunda instâncias, os processos, o envolvimento de filhos, as relações promíscuas entre público e privado, o favorecimento pessoal. E os erros do PT, sem autocrítica.

Com o foco obviamente no governo, como sempre é, essas coisas vão perdendo interesse e espaço para manifestações surpreendentes do presidente Bolsonaro, dos ministros da Economia, da Educação, das Relações Exteriores, dos Direitos Humanos. E não são só manifestações, mas, às vezes, também ações que chocam e vão escancarando a real alma do governo.

Nesta semana, Paulo Guedes tinha acabado de pedir desculpas publicamente por chamar os funcionários públicos de “parasitas”, como também de apagar um incêndio criado pelo próprio Bolsonaro. Num rompante populista, o presidente tinha desafiado os governadores: se eles zerassem os impostos sobre combustíveis, a União faria o mesmo. Era uma bravata, praticamente impossível. E lá se foi Guedes acalmar os governadores. Segundo ele, foi só um “mal-entendido”.

Tudo parecia estar se acalmando, mas a guerra continua. Ato contínuo, o governo atacou de novo os governadores, desta vez os nove da Amazônia. Depois de excluir a sociedade civil do Conselho Nacional do Meio Ambiente, limou os governos estaduais do Conselho da Amazônia. Se há uma coisa que Bolsonaro não gosta é de conselhos, contraditório, visões diferentes, debates...

Logo, as empregadas domésticas não estão sozinhas. Fazem parte de uma lista longa, e crescente, de alvos de Bolsonaro e de seu governo: jornalistas, ambientalistas, pesquisadores, professores, estudantes, diplomatas, policiais federais, auditores fiscais, políticos e governadores.

Lula e o PT estão fazendo festa. Eles não acertam uma, mas lucram com os erros absurdos do presidente e seu governo. Basta jogar parado.


Simon Schwartzman: A tentação de Goebbels

Devem nos preocupar os que não se importam com meios para chegar a seus fins políticos

Em 1934 o jovem Luís Simões Lopes, chefe de gabinete de Getúlio Vargas e mais tarde criador do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) e da Fundação Getúlio Vargas, vai a Berlim, fica fascinado com o Ministério de Propaganda de Goebbels e manda uma carta entusiasmada para o presidente dizendo que o Brasil precisava de algo parecido. “O que mais me impressionou em Berlim”, escreve, “foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional-socialista. Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diretamente o contato do nazismo ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através da imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido...”.

A carta expressa dúvida sobre a obsessão nazista com a grande conspiração dos judeus para dominar o mundo (“parece-me que através do capitalismo seria mais fácil”), mas é só um detalhe: “A organização do Ministério da Propaganda fascina tanto que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil.

Evidentemente, não temos recursos para manter um órgão igual ao alemão (...), mas podemos adaptar a organização alemã dotando o país de um instrumento de progresso moral e material formidável. A Alemanha, além de outras todas, leva-nos a vantagem de ter um governo praticamente ditatorial”.

“Com todos os tropeços que se nos deparam, devemos ensaiar a adoção dos métodos modernos de administração, de órgãos de ação pronta e eficaz, experimentados em outros países.”

Depois de detalhar as áreas de atividade do ministério, a carta continua dizendo que “a antiga nobreza é contra Hitler, que acabou na Alemanha com as castas”, e “a democratização é um fato. Os ‘dancings’, cinemas etc., que eram frequentados pela elite, estão hoje repletos de povo, que vive satisfeito e distraído, esquecido da política”.

Num apêndice há um resumo das principais áreas de atuação do Ministério da Propaganda: são dez itens, começando com questões gerais da vida social e política, combatendo os adversários dentro e fora do país e controlando todos os meios de propaganda e publicação, da arte e de cultura, e culminando com a organização de manifestações oficiais, festas nacionais, feriados e o hino nacional.

Estávamos em 1934, ano em que uma nova Constituição foi promulgada, com a promessa de marcar uma nova eleição em 1938. Dois anos antes São Paulo havia se insurgido contra o governo central e a nova Constituição foi, sobretudo, uma tentativa de conciliação de Vargas com as elites paulistas, que durou até a implantação da ditadura, em 1937.

Não é por acaso que essa carta tenha sido repassada por Getúlio para Gustavo Capanema, Ministro da Educação, em cujo arquivo se encontra. Na visão de Getúlio, e do próprio Capanema, caberia a esse ministério, em aliança com a Igreja conservadora, administrar o uso do rádio, do cinema, das artes, dos currículos escolares e de grandes eventos cívicos, como os grandes desfiles e o canto orfeônico, mobilizando o povo a favor da Nação, tal como entendida pelo governo.

Ao longo dos anos, o ministério fez o que pôde para cumprir esse papel, ao mesmo tempo que acenava para os intelectuais com a proteção ao patrimônio histórico e a convivência com os modernistas, Em 1939, desistindo do Ministério da Educação, que chegou a ser prometido a Plínio Salgado, Vargas finalmente segue a sugestão de Simões Lopes e cria o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a versão cabocla do ministério de Goebbels. Basta ler os objetivos do DIP no seu decreto de criação para ver que foram praticamente copiados do resumo feito cinco anos antes por Simões Lopes.

Simões Lopes e Getúlio Vargas compartilhavam a ideia de que a democracia representativa era um modelo político fracassado, que precisava ser substituído por regimes que fizessem uso de todos os meios para modernizar a sociedade e instaurar a verdadeira democracia, que para eles significava deixar o povo “satisfeito e distraído”. O que diferenciava o regime de Vargas dos fascismos europeus era que ele via a mobilização ideológica como ameaça, e por isso mesmo se desfez de seus aliados integralistas logo após o golpe de 1937.

Coisas como antissemitismo, nacionalismo, religião, normas constitucionais, direitos humanos, arte, literatura, todo esse mundo de valores e princípios, certos ou errados, eram meras conveniências que podiam ou não ser usadas para conseguir o que importava: a administração “moderna”, a capacidade de ação “pronta e eficaz” e o esperado progresso “moral e material”.

É possível que hoje, como nos anos 1930, a grande tentação de Goebbels não seja tanto a ideologia grotesca do nazismo, com o antissemitismo assassino, o nacionalismo doentio, o anti-intelectualismo e o culto macabro da morte e da violência, mas, sobretudo, a indiferença ética e moral dos que colocam seus objetivos políticos, com boas ou más intenções, acima de tudo e não se importam com os meios para chegar a seus fins.

É isso que nos deve preocupar mais.

* Simon Schwartzman é sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciências


Zeina Latif: Economia em vertigem

Dilma terminar o mandato teria ajudado a unir o País, mas a um custo social elevado

O documentário Democracia em Vertigem tem entranhas. Com voz melancólica, a narração de Petra Costa aflora uma esperança ingênua da diretora em um País melhor, com o PT, seguida de grande decepção e visão de um “futuro sombrio”.

Há muito de pessoal no documentário, pois carrega a dor de seus pais perseguidos no regime militar, filhos da elite empresarial, cuja empresa cresceu naquele período e foi condenada nos escândalos de corrupção. O projeto da direita precisou sacrificar membros da elite por meio da Lava Jato para extirpar o PT, segundo relato de sua mãe.

O documentário expõe a dor de muitos, e precisa ser reconhecida, assim como a dor dos seus opositores, por razões diferentes. Ser indicado ao Oscar premia sua qualidade técnica. Há muitos méritos, portanto.

O documentário, porém, é parcial em demasia, incorporando a tal narrativa da esquerda. É o lamento de um segmento da sociedade; não um documentário, de fato, comprometido em traçar um retrato mais fiel da nossa história recente.

Atribui a Lula o dom de “salvador da pátria”. Depois, vem a decepção com as alianças políticas, algumas inevitáveis diante da dificuldade de governar um país tão complexo. Já Dilma, foco de admiração, agiu na “contramão da conciliação lulista”.

Os problemas econômicos no governo Dilma são tratados de forma ligeira e, nem de longe, se dá uma noção dos muitos equívocos na política econômica. O documentário se esquiva dos excessos cometidos e dos manuais rasgados na gestão das contas públicas, especialmente em 2014 visando à reeleição. Foi implementada uma agenda, dita de esquerda, mas que prejudicou os mais pobres. A piora dos indicadores sociais dos últimos anos foi plantada em seu governo.

O desprezo pela disciplina fiscal prejudicou também a chamada nova classe média, pela inflação teimosa e pela necessidade de aumentar os juros, afetando o emprego. Bem intencionada ou não, Dilma protegeu e beneficiou grupos de interesse, como o funcionalismo e segmentos do setor produtivo; justamente a elite. A fatura ficou para a sociedade.

As políticas públicas de transferir recursos a parcela do setor privado e o protecionismo, alimentaram, de quebra, a corrupção.

Para Petra, os protestos de 2013 decorreram de uma insatisfação que vinha de longe, na linha do “gigante acordou”, sendo apenas necessário um gatilho. Na “onda da primavera árabe”, os culpados seriam a repressão policial nas primeiras manifestações e a ação da mídia e das redes sociais. Ela não reconhece a responsabilidade do governo. Naquele momento, a inflação incomodava e a indústria estava estagnada, ambos contrariando as promessas feitas.

De fato, os protestos recrudesceram o quadro político, mas foram consequência, e não causa, da crise de governabilidade. Como muitos políticos, Petra não compreendeu aquele momento do País.

Ao abordar o impeachment, fala-se mais de oportunistas e redes sociais do que de economia, que era o cerne da questão. A decisão foi política, mas refletiu a pressão das ruas. Vale destacar que desrespeitar regras fiscais e camuflar os excessos com truques contábeis não só gera crise, como também ameaça a democracia.

O impeachment alimentou a polarização política, mas ele parecia inevitável diante de tamanha crise econômica, bem como da incapacidade do governo de consertar o estrago produzido. Difícil acreditar que Lula na Casa Civil, com credibilidade abalada, conseguiria reverter o quadro. Culpar o ciclo de preços de commodities, protestos e Lava Jato, e minimizar os erros do governo na economia é diversionismo ou desconhecimento.

Em 2014 já havia razões para Dilma não ser diplomada presidente da República. Instituições de controle e lideranças políticas, inclusive do PT, identificavam as “pedaladas” e outras impropriedades administrativas.

Dilma terminar o mandato teria ajudado a unir o País, mas a um custo social elevado. Unidos, mas por um desastre econômico ainda maior.

Faltou o documentário discutir o principal: a economia em vertigem.

* Consultora e doutora em economia pela USP


José Serra: Mais uma sopa de pedras

Não precisamos de regras heterodoxas para controlar o crescimento do gasto obrigatório

No final do ano passado o governo federal apresentou ao Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 188, cujo propósito é estabelecer novas regras para controlar as despesas do orçamento federal. Mais uma! Será a 12.ª regra fiscal dos últimos anos, num país que não consegue pagar as despesas do dia a dia com os tributos arrecadados. E a nova proposta traz um detalhe perigoso: compromete a estrutura do teto de gastos, até agora uma presumida âncora da política fiscal.

O propósito da PEC 188 é nobre: integrar o pacote econômico endossado pelo Poder Executivo a fim de pôr em ordem as contas públicas. No entanto, dada a falta de consistência, a proposta pode acabar virando uma sopa de pedras. As possibilidades levantadas pela equipe econômica, contraditórias e desarmonizadas, se assemelham a pedrinhas lançadas no caldeirão do sistema de regras que deveriam nortear o nosso processo orçamentário. O gosto é insosso.

Para além de uma distribuição de recursos dos royalties do petróleo mais vantajosa para Estados e municípios, propõe-se uma nova regra de ajuste fiscal no artigo 109 da PEC 188: toda vez que um órgão da administração pública federal gastar mais do que 95% do seu orçamento com despesas tidas como obrigatórias, ficará sujeito a restrições fiscais como proibição de contratar funcionários públicos e de criar novas despesas obrigatórias.

Esse controle do crescimento do gasto obrigatório é estranho. O conceito de despesa obrigatória é um dos mais imprecisos do nosso arcabouço jurídico. Além disso, a matemática rústica que envolve a métrica incentiva o aumento dos gastos e a rigidez orçamentária. Quanto maior for o orçamento total do órgão, maior será o espaço fiscal para se criarem gastos obrigatórios.

Mas o principal problema da PEC é a alteração que propõe na estrutura do teto de gastos, aprovado em 2016 para impedir o crescimento das despesas acima da taxa anual de inflação. Sabe-se que desde 2014 o orçamento federal tem registrado resultados negativos. Ou seja, os tributos e taxas arrecadados pela União não estão sendo suficientes para bancar as despesas da máquina pública. Para combater esse déficit orçamentário o Congresso aprovou a Emenda Constitucional n.º 95, estabelecendo um limite de crescimento para os gastos públicos. Teria sido melhor aprovar naquele momento um limite para a dívida pública federal, por ser a regra fiscal mais efetiva e adotada nas democracias avançadas.

As boas práticas internacionais ensinam que a não observância de regras fiscais deve acarretar sanções. Estas podem ser monetárias, como proibição de se criar novas despesas, ou administrativas, como multas ou tipificação criminal dos responsáveis por atos que violam as regras. A Emenda 95, corretamente, foi aprovada estabelecendo sanções monetárias a serem aplicadas quando o teto é descumprido, sem partir para a criminalização da política fiscal.

A PEC 188 rompe com essa ideia. Se aprovada como pretende a equipe econômica, o presidente da República passa a cometer crime quando a despesa pública crescer a uma taxa superior à inflação. Esse tipo de sanção, vale dizer, também pode derrubar chefes dos Poderes Judiciário ou Legislativo que estejam gerindo despesas inercialmente crescentes por causa de administrações anteriores imprudentes do ponto de vista fiscal. Na prática, o risco de se criminalizar a política fiscal é o início do fim do teto de gastos.

Mal desenhadas, as regras fiscais não são cumpridas nos países que mais precisam delas. É curioso perceber que no Brasil a elevação do endividamento público acompanha um mosaico de leis para controle de gastos. Pesquisas do economista francês Charles Wyplosz mostram que o mesmo fenômeno se verifica em diversos países europeus – Espanha, França, Grécia e Itália –, onde a dívida pública cresce persistentemente ainda que esteja em vigor, na zona do euro, um amplo leque de regras fiscais.

Nota-se também que no Brasil a elevada fragmentação partidária promove um processo orçamentário caótico. O grande número de atores com poder de influência acaba beneficiando grupos de interesse específicos, que no mais das vezes prevalecem em detrimento dos direitos dos demais contribuintes. Nesse contexto, não podemos criar regras constitucionais de curto alcance.

O Senado deve ter presente que vai assumir a grande responsabilidade de analisar as propostas apresentadas pelo governo para pôr em ordem as contas públicas. Se queremos ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), devemos apostar no que deu certo por lá: limitar o montante da dívida pública e institucionalizar processos de revisão periódica de gastos (spending reviews) – que está pronto para ser votado na Câmara dos Deputados há mais de um ano e estranhamente não foi considerado prioritário pelo atual governo. Essas medidas tornariam o teto de gastos mais efetivo no longo prazo e garantiriam o ajuste fiscal sem comprometer investimentos sociais em saúde e educação. Não precisamos ingerir sopas de pedras na forma de novas regras heterodoxas para controlar o crescimento do gasto obrigatório ou para criminalizar a política fiscal.

* José Serra é Senador (PSDB-SP)


Eugênio Bucci: ...e os ataques do poder contra a imprensa se rebaixam ainda mais

Esta campanha aberta e contumaz é um fato objetivo. E desastrosas são suas consequências

Com presteza jornalística e dignidade profissional, o Estado noticiou em sua edição de ontem, na página A8, os insultos dirigidos na terça-feira passada contra a repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Esses insultos vêm carregados de matéria infecta; a simples tentativa de narrá-los causa engulhos, mas, sem recapitulá-los nos seus aspectos mais enojantes, não há como ter a dimensão precisa da campanha difamatória que o poder deflagrou contra a imprensa neste país. O tema é nauseante e repulsivo, mas obrigatório.

Desde 2018, quando revelou esquemas de impulsionamento ilegal de mensagens de WhatsApp nas eleições de 2018 em favor do candidato da extrema-direita, a jornalista Patrícia Campos Mello se tornou alvo preferencial do bolsonarismo de bueiro, capaz das piores torpezas. Os ataques covardes contra ela não cessam. Agora, o palco da agressão foi a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), no Congresso Nacional. Lá pelas tantas, um sujeito de nome Hans River do Rio Nascimento, que depunha para os parlamentares, passou a acusar a repórter de ter proposto – isto mesmo – trocar sexo por informação. O despautério factual e moral estarreceu a parcela civilizada dos presentes (outra parcela riu e festejou). Era notória a intenção de humilhar, de espezinhar, de torturar com palavras a condição feminina, como numa reedição do “eu não estupro porque você não merece”. Só quem entende que a mulher é (ainda) uma minoria política identifica o horror contido nessa fala. O acusador se aproveita daquilo que o machismo considera uma fragilidade e, fustigando esse “ponto fraco” (a condição feminina), investe contra a imprensa.

Não foi só isso. Pouco depois da cena deplorável na CPMI, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi às suas redes sociais e postou nada menos que o seguinte: “Eu não duvido que a senhora Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o senhor Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro. Ou seja, é o que a Dilma Rousseff falava: fazer o diabo pelo poder”.

A mensagem do deputado consumou, com total explicitude, mais uma investida do poder contra a mulher e contra a imprensa. Portanto, o que se passou em Brasília na terça-feira não foi apenas mais um surto de misoginia abjeta dando mais uma prova cabal da falta de decoro e de preparo das autoridades que encontram abrigo nos palácios da República; o que se passou lá foi o novo lance da cruzada fanática do governo federal contra os jornais. Enfim, o que se passou em Brasília na terça-feira era (e é) notícia do mais alto interesse público.

Em sua edição de ontem, a Folha repudiou oficialmente a mentira do acusador e as “insinuações ultrajantes” do deputado Bolsonaro. Quanto ao Estado, ao dar o devido destaque ao assunto, deixou claro que o tema não se reduz aos interesses do jornal concorrente e cumpriu o dever de levar ao seu leitor o que há de mais preocupante no País: o empenho alucinado do poder em destruir o jornalismo. A vítima desta vez foi uma repórter da Folha, mas o objetivo final deste coro de intolerantes – e mentirosos – é desacreditar não apenas a Folha, e sim todos os jornais. O objetivo é desmoralizar as redações profissionais independentes, todas elas.

Vistos em conjunto, esses ataques contra a imprensa, sucessivos e crescentes, conformam este fato irrefutável do nosso tempo: o poder que aí está, mais do que não gostar, rejeita visceralmente a função investigativa dos jornalistas e, se pudesse, gostaria de sumir com eles. Outro dia mesmo o presidente se referiu aos jornalistas como “espécie em extinção”. Não há um só momento em que um representante do governo federal tenha saído em defesa da liberdade de imprensa.

Quando muito – e isso rarissimamente –, uma autoridade governista reconhece alguma utilidade nos jornais para, logo em seguida, com a ajuda de uma conjunção adversativa, de preferência um “mas”, disparar um desaforo qualquer, como “jornalista tem de ir para a cadeia” ou “a imprensa só produz fake news”.

Esta campanha aberta e contumaz é um fato. Não é uma questão de opinião do observador. É fato objetivo. Suas consequências são desastrosas. Quem consegue aquilatar os efeitos de tamanha prepotência na formação das mentalidades das novas gerações? Essa postura animalesca ajuda ou atrapalha a cultura política no Brasil? Promove ou inibe a compreensão dos direitos? Se a autoridade, em lugar de ensinar a liberdade, dá exemplo de calúnia, de infâmia e de intolerância, o que acontece com os princípios democráticos? Ficam mais fortes ou mais fracos?

Será tão difícil perceber esse fato notório? O Brasil ainda não está numa ditadura, é óbvio, mas a democracia brasileira vai mal, e vai mal porque o bolsonarismo de bueiro, com o apoio do Planalto, milita para fazê-la sangrar diariamente. O fato é que o governo não cessa de trabalhar contra a imprensa, contra os valores democráticos, contra as mulheres, contra a razão.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP


William Waack: A bomba acima de todos

O governo está em dificuldades para tocar um projeto político central

A ação do governo em torno de um grande eixo estratégico – reduzir o balofo Estado brasileiro – tem sido em parte uma lição de oportunidades perdidas. Vendo o Estado brasileiro como principal entrave ao crescimento, a equipe de Paulo Guedes colocou a reforma administrativa no centro do foco. Tratar do funcionalismo público seria a maneira direta de lidar com contas públicas, eficiência e gestão.

Conforme já assinalado aqui, está na elite do funcionalismo público brasileiro (especialmente federal), por sua capacidade de organização e influência, o grande adversário da proposta de Paulo Guedes de uma ampla reforma do Estado, começando pela administrativa. Nesse sentido, do ponto de vista político, a operação toda começou mal.

Em parte pelo próprio ministro, que parece subestimar como se propagam na esfera legislativa e político-partidária (fortemente influenciada pelo funcionalismo em Brasília) palavras que ele profere em público sem calcular consequências. Ao adversário neste momento ele entregou a bandeira de “vítima”, que é nas narrativas políticas sempre uma posição confortável.

No fundo está, porém, uma outra questão política mais abrangente e profunda. É o tamanho do empenho do Executivo em levar adiante de forma coordenada e organizada no Legislativo uma operação para alterar substancialmente o serviço público, que justamente ali tem um de seus mais importantes pilares de sustentação. É difícil fugir à constatação de que o problema central é a dificuldade do próprio presidente em ditar a agenda política (aliás, seu grande e pouco usado instrumento de poder).

Por detrás da “fumaça” sobre o campo de batalha da reforma administrativa, está uma realidade crítica. Que deveria robustecer o governo com argumentos imbatíveis. De fato, existe no Brasil um “prêmio salarial” pago pelo contribuinte ao servidor público, prêmio que não encontra comparação nas principais economias.

Os números são de diversas instituições, como Banco Mundial, FGV ou Ipea, que compararam remunerações nos setores público e privado levando em consideração a semelhança entre funções. No Brasil, esse prêmio chega a 96%, enquanto a média mundial (setor público melhor remunerado que o privado) é de 21%. Nos Estados esse “prêmio” é menor e, nos municípios, praticamente se equivalem as remunerações.

O problema, assinalam esses estudos, não está no atendente do posto de saúde ou no agente penitenciário, mas, sim, na elite do funcionalismo. E vem de longe, não pode ser atribuído a um só governo. Servidores públicos no topo conseguiram até melhorar seu rendimento em período de grave crise econômica: durante a recente recessão, a diferença a favor dessa categoria frente ao setor privado aumentou (segundo o Ipea). É o resultado evidente alcançado pela sua capacidade de articulação política.

Em estudos do Banco Mundial, a equipe de Guedes foi buscar recomendações que parecem sensatas: as mais de 300 carreiras do funcionalismo público brasileiro necessitam ser sistematizadas e reorganizadas; o tempo médio para que um funcionário chegue ao topo da carreira precisaria ser esticado; a taxa de reposição deles precisaria ser reduzida. A situação só se agravou nos últimos tempos. A pressão desse setor sobre as contas públicas se juntou ao precário estado delas: 12 dos Estados brasileiros não vão conseguir respeitar um dos dispositivos essenciais da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe gastos acima de 60% com folha de pessoal.

Com o que chegamos à famosa bomba fiscal – no fundo, o fator central condicionando os acontecimentos. Não é apenas uma questão técnica. É política no seu significado mais amplo, como ficou mais uma vez demonstrado para Guedes e Bolsonaro.

O governo está em dificuldades para tocar um projeto político central

A ação do governo em torno de um grande eixo estratégico – reduzir o balofo Estado brasileiro – tem sido em parte uma lição de oportunidades perdidas. Vendo o Estado brasileiro como principal entrave ao crescimento, a equipe de Paulo Guedes colocou a reforma administrativa no centro do foco. Tratar do funcionalismo público seria a maneira direta de lidar com contas públicas, eficiência e gestão.

Conforme já assinalado aqui, está na elite do funcionalismo público brasileiro (especialmente federal), por sua capacidade de organização e influência, o grande adversário da proposta de Paulo Guedes de uma ampla reforma do Estado, começando pela administrativa. Nesse sentido, do ponto de vista político, a operação toda começou mal.

Em parte pelo próprio ministro, que parece subestimar como se propagam na esfera legislativa e político-partidária (fortemente influenciada pelo funcionalismo em Brasília) palavras que ele profere em público sem calcular consequências. Ao adversário neste momento ele entregou a bandeira de “vítima”, que é nas narrativas políticas sempre uma posição confortável.

No fundo está, porém, uma outra questão política mais abrangente e profunda. É o tamanho do empenho do Executivo em levar adiante de forma coordenada e organizada no Legislativo uma operação para alterar substancialmente o serviço público, que justamente ali tem um de seus mais importantes pilares de sustentação. É difícil fugir à constatação de que o problema central é a dificuldade do próprio presidente em ditar a agenda política (aliás, seu grande e pouco usado instrumento de poder).

Por detrás da “fumaça” sobre o campo de batalha da reforma administrativa, está uma realidade crítica. Que deveria robustecer o governo com argumentos imbatíveis. De fato, existe no Brasil um “prêmio salarial” pago pelo contribuinte ao servidor público, prêmio que não encontra comparação nas principais economias.

Os números são de diversas instituições, como Banco Mundial, FGV ou Ipea, que compararam remunerações nos setores público e privado levando em consideração a semelhança entre funções. No Brasil, esse prêmio chega a 96%, enquanto a média mundial (setor público melhor remunerado que o privado) é de 21%. Nos Estados esse “prêmio” é menor e, nos municípios, praticamente se equivalem as remunerações.

O problema, assinalam esses estudos, não está no atendente do posto de saúde ou no agente penitenciário, mas, sim, na elite do funcionalismo. E vem de longe, não pode ser atribuído a um só governo. Servidores públicos no topo conseguiram até melhorar seu rendimento em período de grave crise econômica: durante a recente recessão, a diferença a favor dessa categoria frente ao setor privado aumentou (segundo o Ipea). É o resultado evidente alcançado pela sua capacidade de articulação política.

Em estudos do Banco Mundial, a equipe de Guedes foi buscar recomendações que parecem sensatas: as mais de 300 carreiras do funcionalismo público brasileiro necessitam ser sistematizadas e reorganizadas; o tempo médio para que um funcionário chegue ao topo da carreira precisaria ser esticado; a taxa de reposição deles precisaria ser reduzida. A situação só se agravou nos últimos tempos. A pressão desse setor sobre as contas públicas se juntou ao precário estado delas: 12 dos Estados brasileiros não vão conseguir respeitar um dos dispositivos essenciais da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe gastos acima de 60% com folha de pessoal.

Com o que chegamos à famosa bomba fiscal – no fundo, o fator central condicionando os acontecimentos. Não é apenas uma questão técnica. É política no seu significado mais amplo, como ficou mais uma vez demonstrado para Guedes e Bolsonaro.