O Estado de S. Paulo

Eliane Cantanhêde: A retroescavadeira

Senador faz política, não guerra. E PM não faz greve, faz motim, um crime militar

Policiais militares, armados e encapuzados, fazem greve ilegal, aquartelam-se e usam mulheres e filhos como escudo. Um senador, exibindo-se pateticamente heroico, aboleta-se numa retroescavadeira, ameaça lançá-la contra o quartel, os policiais e suas famílias e leva dois tiros. Tiros para matar. Típica história em que não há mocinhos e ninguém tem razão.

Todo o enredo ganha ainda mais dramaticidade pelo momento e pela simbologia: policial versus político, justamente no mesmo dia em que emergiu a fala do general Augusto Heleno (GSI) atacando os parlamentares como “chantagistas” e dedicando-lhes um sonoro palavrão.

Como tudo, o conflito no Ceará foi para as redes sociais como Fla-Flu, com a torcida vermelha aplaudindo o senador Cid Gomes (PDT-CE), que é oposição ao governo federal e situação no seu Estado e apresentou-se ensandecido, autoritário e ridículo, dando cinco minutos para os policiais, ou jogaria a escavadeira em cima de todos.

Alguém entre os policiais grita uma pergunta pertinente: “Qual a sua autoridade para exigir isso?” E outro alguém dispara uma, duas vezes, mirando o coração. Não foi para dar susto.

Já para a torcida verde, ou verde-oliva, o único culpado, o único alvo, é o senador cearense, irmão do também destemperado Ciro Gomes (PDT), um dos adversários do presidente Jair Bolsonaro em 2018. Quem atirou agiu em “legítima defesa, para salvar vidas”. Um tiro perfurou o pulmão e o outro, a clavícula, mas o time acha pouco. “Tinha de ser no meio da testa”, diz um torcedor.

De cabeça fria, olhando a Constituição, ninguém ali merece torcida nem perdão. Não existe greve de categoria armada. É motim, não greve; questão militar, não sindical. Como, aliás, destacaram as Forças Armadas quando o então presidente Lula insistia em tratar a rebelião dos sargentos controladores de voo como greve de sindicalistas, não como motim que era. Só quando a coisa fugiu totalmente ao controle Lula autorizou e o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, fez o que tinha de ser feito: enquadrou todos eles e botou ordem na bagunça.

Do outro lado, o que dizer de um senador que não tem cargo executivo nem autoridade para gerenciar greve, muito menos motim, e assume uma retroescavadeira para jogar em cima de pessoas, ou melhor, famílias? Seria cômico, não fosse trágico. Seria surpreendente, não fossem os irmãos Gomes, os valentões de Sobral.

Toda essa história vem num contexto de radicalização política, com o presidente da República jogando sua retroescavadeira verbal contra tudo e todos, enaltecendo armas e empoderando as polícias – que, aliás, conquistaram assentos no Congresso e acabam de receber um aumento de 41% em Minas Gerais, um Estado quebrado.

Aguarda-se agora o efeito, tanto do aumento em Minas quanto dos tiros no Ceará, em outras unidades da Federação, como Paraíba, já em crise, e o Espírito Santo, que já passou por isso em 2017, quando PMs jogaram suas mulheres no teatro de operações para exigir aumentos e vantagens. Sem segurança, o Estado viveu o caos, com centenas de mortes.

A expectativa, porém, é de que se repita no Ceará o que ocorre em geral nesses casos, inclusive no Espírito Santo: julga-se daqui, julga-se dali e nunca dá em nada, com as assembleias também dando cobertura aos crimes e aos criminosos.

Em resumo: policiais cometeram crime, um insano ameaçou jogar uma retroescavadeira sobre pessoas, um senador foi atingido por dois tiros. E o que vai acontecer? Nada. A boa notícia é que o governo Bolsonaro e o governo do PT do Ceará acertaram o uso da GLO, mas tem risco: o confronto do Exército e Força Nacional com PMs amotinados, inconsequentes e perigosos.


Fernando Gabeira: Deportação em tempo de bananas

Se a sucessão de erros de Bolsonaro der certo, creio que estaremos diante de um milagre

Num espaço de dias, Bolsonaro deu uma banana para a imprensa e agrediu com piada de sexo a jornalista Patrícia Campos Mello. Quanto às bananas, Bolsonaro costumava discursar sobre elas, em defesa dos plantadores do Vale do Ribeira.

Andei por lá, entrevistando as pessoas, e percebi um grande potencial, até de industrialização. Mas não constatei nenhuma política de estímulo para o setor. Bolsonaro deixou as bananas concretas e passou a usar as simbólicas. É constrangedor conviver com um presidente que dá bananas e pode até pôr a língua de fora.

Da mesma forma, é constrangedor ver um presidente que se diz evangélico usar os termos que Bolsonaro usou contra Patrícia. Muito provavelmente um evangélico anônimo jamais faria piadas desse teor. Bolsonaro despojou-se da dignidade do cargo e da dignidade implícita numa visão religiosa.

Como ele é o presidente, ainda é necessário falar dele, não no nível que propõe, mas chamando a atenção para problemas sérios, de que se omite. Um deles é a perspectiva de deportação de 28 mil brasileiros que trabalham ilegalmente nos EUA. Um fenômeno inédito em nossa História. A posição de Bolsonaro limitou-se a reconhecer que a lei norte-americana está sendo cumprida.

Sua visão política se alinha com governos com clara política antiemigração, como da Hungria. Não se esperava dele nenhuma tentativa de negociar essa deportação em massa.

Qualquer outro governo dificilmente o conseguiria, sobretudo neste período de eleições nos EUA. No entanto, é possível negociar a forma dessa deportação. Notícias vindas de abrigos no México indicaram que os brasileiros estão sendo maltratados e até as crianças são castigadas com suspensão de comida. É possível constituir um grupo para acompanhar esse processo e negociar com os americanos os termos mais adequados para a nossa dignidade.

Ah, eles são ilegais. É verdade. No entanto, muitos deles trabalham em atividades legais e necessárias na economia americana. Grande parte economiza dinheiro para enviar para o Brasil. Outros poupam para investir quando aqui chegarem.

Tive a oportunidade de visitar Governador Valadares e ouvir muitos deles. A saúde econômica da cidade dependia muito do dinheiro que vinha do exterior. Academias, lanchonetes, lojas foram abertas com a poupança de longos anos de trabalho.

Não me parece razoável a omissão do governo só porque eles são ilegais. Muito menos o silêncio da oposição, que não consegue acompanhar os fatos.

Fomos capazes de montar uma estrutura para os venezuelanos, uma Operação Acolhida, algo que sempre elogiei nas minhas reportagens. Não era necessário o mesmo tipo de acolhida. Porém, uma vez que são trabalhadores, muitos deles talentosos, era possível um esforço para realocá-los no mercado.

Nada foi feito, sob o argumento de que se trata de ilegais. Mas são brasileiros, esperavam uma chance de legalização. Nem todos começaram sua trajetória nos EUA de forma legal.

Toda essa indiferença pode custar caro. É possível que o processo de deportação se intensifique. Às vezes, uma foto de uma criança sofrendo pode mudar. Aliás, o New York Times publicou uma longa reportagem sobre o poder dessas imagens. Uma delas era de uma criança nicaraguense chorando diante da polícia.

Acho perfeitamente viável que dois países aliados negociem os termos de deportação de 28 mil pessoas. Exercer a influência nacional para que tenham tratamento digno é tarefa inescapável.

Bolsonaro pode dar uma banana para essa tese, envolto nas lutas ideológicas, num clima eleitoral. Ele supõe que essas agressões o mantenham ligado ao seu eleitorado.

Existe uma parte do eleitorado que, tanto aqui como nos EUA, valoriza o que considera a sinceridade de seus líderes, um contraponto à linguagem política clássica. Mas há limites, mesmo para esse eleitorado. Cada vez que Bolsonaro dá uma banana para a imprensa, ele pode até pensar que a enfraquece. Mas, na verdade, está se desqualificando e rumando para o isolamento.

Afastou os governadores do Conselho da Amazônia e entrou em choque com o governo da Bahia, disputando a versão da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. É uma tática que vai reduzi-lo à dimensão de uma extrema direita no Brasil, sem chances majoritárias. Assim mesmo, a própria extrema direita pode produzir gente mais qualificada.

Quando um presidente trabalha tanto para o próprio isolamento, a melhor tática para combatê-lo é isolá-lo ainda mais, aproveitando o próprio impulso. Com os últimos acontecimentos, torna-se mais fácil mostrar a muitos eleitores de Bolsonaro que ele não está preparado para dirigir o Brasil.

Embora procure tratá-los com frieza, os fatos são impressionantes. Jamais imaginei que um presidente desse bananas, ofendesse jornalistas com piadas grosseiras, iniciasse uma batalha em torno da morte de um miliciano, da qual, teoricamente, deveria distanciar-se.

Se essa sucessão de erros der certo, creio que se estaria diante de um milagre. Os termos de razoabilidade política foram estremecidos com as eleições. Mas não foram destruídos, creio eu.

* Fernando Gabeira é jornalista


Zeina Latif: Freio de arrumação

Com o passar do tempo, vai ficar cada vez mais difícil aprovar reformas estruturais

São conhecidos os pilares da agenda econômica, como reduzir o tamanho do Estado e torná-lo mais eficiente. Ainda não estão claras, porém, as prioridades do governo e sua capacidade de entrega. Governar vai muito além de enviar propostas ao Congresso. É necessário trabalho para aprovação. Capacidade política é tão importante quanto boas intenções.

As dificuldades do governo têm consequências.

A reforma tributária, por exemplo, que deveria ser prioritária, talvez se inviabilize. O momento ideal para seu avanço pode ter ficado para trás, após a aprovação da reforma da Previdência na Câmara. Perder o timing pode ter saído caro. Tem crescido muito a resistência a ela e as eleições municipais este ano atrapalham a discussão do tema. Os setores que perdem com a reforma se mobilizam. Alegam a distribuição desigual do ajuste, mas omitem o fato de, no sistema atual, serem os que menos pagam impostos, sendo necessário reequilibrar o peso tributário.

Pelo cálculo político e de curto prazo de Bolsonaro, ele provavelmente não vai apoiar essa iniciativa, pois quase nada teria a ganhar com a aprovação tardia da reforma, e o custo político seria seu.

A política econômica, no entanto, não se resume a aprovar reforma. Evitar retrocessos e consolidar a disciplina fiscal será importante feito. No contexto atual, não se deve subestimar esse desafio. O menor foco do governo na agenda econômica e o descuido na política têm aberto espaço para iniciativas que preocupam.

Cito alguns exemplos.

Primeiro, o aumento de recursos na proposta de emenda constitucional que prorroga o Fundeb, o fundo para educação básica. Pela proposta, os gastos subirão quase R$ 80 bilhões em seis anos. O problema não é apenas o elevado custo fiscal. A medida é inadequada em um país que envelhece e menos crianças ingressam nas escolas. E há impacto nos cofres estaduais, posto que o aumento do custo por aluno se eleva e implica, pela regra atual, o aumento do piso salarial dos professores. Vai aumentar o custo da folha dos Estados, sendo que muitos já estão violando ou estão prestes a violar a regra de não comprometer mais de 60% da receita corrente liquida com o pagamento da folha.

Segundo, a capitalização de empresas estatais, que, assim como o Fundeb, não está limitada pela regra do teto de gastos. Os valores foram elevados em 2019, abrindo perigoso precedente. A capitalização de R$ 7,6 bilhões da Emgepron, empresa estatal de projetos navais, é polêmica, não sem razão. Caberia o questionamento desse acordo firmado no governo Temer. Adicionalmente, segundo a imprensa, o Ministério da Defesa negocia com o governo ampliar o escopo da empresa, para que ela seja também responsável por projetos estratégicos das Forças Armadas, e não só da Marinha. Seria mais adequado discutir a liquidação da empresa.

Terceiro, associações de juízes e procuradores pedem no STF a suspensão do aumento da alíquota de contribuição previdenciária previsto na reforma da Previdência.

Recentemente, o governo conseguiu demover o líder do governo no Senado da ideia de elevar gastos utilizando recursos a serem liberados por fundos públicos, que pela proposta original do governo seriam direcionados para reduzir a dívida pública.

E por aí vai. Sempre uma novidade. Um perigo em cada esquina.

Um risco a ser acompanhado é o de não cumprimento da regra do teto pelo Judiciário e Legislativo, pois a partir deste ano, o Executivo deixará de compensar o estouro do limite dos demais órgãos, o que ocorreu em 2019. Grande esforço de ajuste será, portanto, necessário.

Com o passar do tempo, vai ficar cada vez mais difícil aprovar reformas estruturais, especialmente com as dificuldades do governo. Reforçar, porém, a disciplina fiscal e garantir o cumprimento da regra do teto será grande conquista. Além de promover a estabilidade da economia, esse é um instrumento importante para reavaliar políticas públicas que geram injustiças sociais, má alocação de recursos e baixo crescimento.

* Consultora e doutora em economia pela USP


Eliane Cantanhêde: Doria, Gilmar e Maia veem escalada de ‘autoritarismo’ no Planalto

Governador, ministro do STF e presidente da Câmara discutem em jantar o que consideram investidas de Bolsonaro contra instituições

BRASÍLIA – Em jantar na residência oficial da presidência da Câmara, nesta terça-feira, 18, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), o governador João Doria (PSDB-SP), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e dez parlamentares discutiram o que consideram uma “escalada autoritária” do presidente Jair Bolsonaro contra a imprensa, os governadores, o Congresso e outras representações da democracia.

Conforme o Estado apurou, Maia está preocupado em não confrontar Bolsonaro, com quem mantém relações difíceis desde o início do mandato presidencial, mas disse que a “linha dura” continua instalada no Palácio do Planalto e lamentou os efeitos negativos da grave polarização entre direita e esquerda na retomada do crescimento econômico. Garantiu, porém, que o Congresso tocará as reformas tributária e administrativa, mesmo sem a iniciativa ou o apoio do Executivo.

O mais incisivo no encontro foi o ministro Gilmar Mendes, que chegou a reclamar da “bonomia” (bondade, falta de maldade, leniência) com que instituições e setores da sociedade convivem, na sua opinião, com as agressões do presidente, que se tornaram praticamente diárias e dirigidas a um número cada vez maior de alvos. O ministro do Supremo defendeu o “fim dessa bonomia”.

O jantar foi no dia em que Bolsonaro atacou em tom sexista a jornalista Patricia Campos Melo e em meio ao novo mal-estar entre Executivo e Legislativo, pela decisão do governo de romper um acordo fechado pelo Ministério da Economia e as cúpulas da Câmara e do Senado quanto ao Orçamento impositivo. Maia atribuiu a responsabilidade pelo rompimento menos a Bolsonaro e mais ao ministro Paulo Guedes.

Já no dia seguinte, quarta-feira, 19, surgiu o vídeo do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), acusando os parlamentares de “chantagearem” o governo e terminando a frase com um palavrão, como que confirmando a avaliação e as críticas feitas no jantar de Maia, Doria e Gilmar.

Doria é um dos líderes da reação dos governadores aos ataques do presidente e da carta assinada por 20 deles criticando o presidente por manifestações que não contribuem com “a evolução da democracia”. Ontem, depois de encontro com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), cobrou de Bolsonaro “diálogo e entendimento”.

Miliciano
Se o clima da semana já era de tensão, pelos ataques de Bolsonaro a jornalistas e pelo confronto com governadores, esse clima só piorou com as manifestações dele e de seus filhos sobre a morte do capitão Adriano, líder de uma milícia do Rio. No Legislativo e no Judiciário, há perplexidade com as manifestações do presidente.

No fim da tarde desta quarta, o ambiente político ganhou um fator novo e preocupante, com os tiros no senador Cid Gomes, no Ceará, durante protestos de policiais no Estado, o que mobilizou Senado, Câmara e mundo jurídico, justamente no dia em que o Congresso criou a Comissão Mista que buscará um consenso para uma reforma tributária comum.


Raul Jungmann: Combater as causas da criminalidade

Na nossa gestão colaboramos, sem dúvida, para a queda dos homicídios no País

A vida humana é o maior valor de uma sociedade e o menor para o mundo do crime. Essa síntese se materializa de forma mais perversa no sistema operacional do crime organizado que domina territórios e presídios.

Com o primeiro, elege representantes políticos e formaliza sua presença, com todas as prerrogativas do mandatário eleito – incluída a de efetivar nomeações em todos os níveis da estrutura do poder público. No segundo caso, é o juiz do destino da parcela majoritária da terceira maior população prisional do mundo – os mais de 812 mil detentos em nossas prisões. Os presídios, por sua vez, tornaram-se centros de recrutamento das facções criminosas pela brutal razão de que o Estado não garante a vida dos que lá estão. São apenados obrigados a buscar segurança nas facções para não morrerem, trocando proteção por submissão integral.

No Rio de Janeiro, onde essa realidade é mais visível e aguda, milicianos e traficantes controlam 830 comunidades, onde vive 1,5 milhão de pessoas. Os criminosos têm o controle do território, o controle do voto, elegem suas bancadas na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa, até no Congresso Nacional, e garantem a indicação de pessoas para ocuparem cargos públicos, mesmo na área de segurança. É o que venho chamando há tempos de “coração das trevas”.

Como o Estadão já demonstrou, as milícias não são privilégio do Rio, mas são encontradas em 23 dos 27 Estados da Federação. E todas, sem exceção, são formadas e/ou comandadas por policiais da reserva ou da ativa. Isto é, o poder público treina e forma agentes públicos de segurança que adiante se desviam para o crime e lá exercem as competências adquiridas com o dinheiro do cidadão contribuinte.

Tivemos sete Constituições e em nenhuma delas o governo central deteve responsabilidades com a segurança pública – desde a primeira, de 1824, até a última, de 1988.

O peso da segurança pública é dos Estados, que respondem por 81% do gasto total – o governo federal, 12% e os municípios, o restante. Destaque-se que todas as áreas sociais constantes da Carta de 88 se constituíram em sistemas liderados e compartilhados pelo governo federal e se organizaram em ministérios. Menos a segurança pública, salvo nos 11 meses de existência do Ministério da Segurança.

Estado algum, por óbvio, teve ou tem poderes ou recursos para definir e implantar um sistema nacional ou uma política nacional de segurança. Portanto, nunca tivemos nem sistema nem política, até o advento do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), em 2018, no governo Temer.

Enquanto tal “acefalia federativa” se perpetuava, o crime organizado se nacionalizava e internacionalizava. Das mais de 70 facções do crime organizado de base prisional, ao menos meia dúzia é nacional e avança em países vizinhos.

Nosso debate nacional, no entanto, se limita à repressão: mais polícias, mais armas, mais veículos, penas mais duras, etc. Porém uma política nacional de segurança integral começa na prevenção social, passa pela repressão qualificada e não pode desviar os olhos da calamidade que é nosso sistema prisional, que prende muito e mal – 48% dos crimes são de furto, roubo ou receptação e 12%, de homicídio.

Diante disso, a polêmica sobre quem tem o crédito pela queda dos homicídios é pobre e desnecessária. Ela se iniciou em 2018 (ano eleitoral, em que, sabiam os governadores, a segurança seria decisiva) e seguiu caindo em 2019. Porém o protagonismo não é do governo federal, anterior ou atual, é dos Estados.

Na nossa gestão colaboramos, sem dúvida, para a queda dos homicídios, com ações como o Susp, a criação de um sistema e uma política nacionais de segurança, que nunca tivemos anteriormente.

Ainda fizemos a vinculação de recursos das loterias ao Fundo Nacional de Segurança e alocamos R$ 90 milhões para a digitalização dos 2 milhões de processos da Justiça penal, idem para a biometria de toda a população carcerária, dentre muitas outras ações.

São fundamentos importantes, mas para enfrentar o problema na sua amplitude é preciso focar a política pública de segurança nas seguintes questões:

1) implantar um amplo programa de prevenção social focado na juventude das periferias, sobretudo jovens negros e pardos, fora da escola e sem trabalho, vivendo em famílias desestruturadas;

2) reformar o nosso caótico sistema prisional, reduzindo o superencarceramento, ampliando as unidades do semiaberto, dando chance de estudo e formação profissional aos apenados e ampliando programa nacional de egressos que nós deixamos;

3) extirpando as indicações e promoções políticas nas polícias, instituindo efetivamente a promoção por mérito, tornando as corregedorias autônomas e com estrutura, fortalecendo o controle externo e instituindo processo eficiente e rápidos nos casos de crimes violentos e corrupção, além de focar na inteligência policial;

4) rever a atual política de drogas, em especial definindo o quantum limite para o porte de drogas por usuário.

* Raul Jungmann foi ministro da Defesa, da Segurança Pública e da Reforma Agrária


William Waack: Mais do mesmo

O teatro da política no Brasil sugere que pouca coisa vai mudar

É um dos movimentos mais “naturais” na política alguém ocupar o lugar que um outro deixou. No fundo, é o que está acontecendo na mais recente manifestação de queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o Legislativo em torno da manutenção ou não do veto do chefe do Executivo a itens da peça orçamentária votada pelos parlamentares.

Traduzido: o que está em disputa é quem manda quanto no Orçamento. E, se Jair não percebeu antes, nesse ano e pouco de seu mandato, o Legislativo encurtou bastante a capacidade do Executivo de dispor da alocação de verbas por meio do Orçamento – além de limitar consideravelmente a utilização de medidas provisórias.

Trata-se de pura e simples redução de poder do presidente. Que se pode aplaudir ou detestar, mas não ignorar que esse fato resulta em boa parte do que se aponta há meses: a incapacidade ou o desinteresse (ou ambos) do governo em montar no Legislativo uma tropa bem coordenada. Bolsonaro não se livrou da regra do jogo do sistema de governo brasileiro, que opõe a um chefe de Executivo forte um Legislativo cheio e cada vez mais cheio de prerrogativas.

Sem ter nunca contado com uma articulação política eficaz, Bolsonaro agora escalou militares de cabeça bem organizada e acostumados a método e disciplina (além de hierarquia) para cuidar de acordos políticos que o próprio presidente propõe, depois se arrepende. É o caso nesta mais recente disputa: Bolsonaro achou que podia deixar o Congresso derrubar seu veto (ou seja, entregaria mais uns R$ 30 bilhões do Orçamento aos parlamentares), num grande “acordo” do qual foi convencido a se arrepender.

O que neste momento o move a peitar o Congresso é a exasperação da equipe econômica e mais o general Heleno, cansados das chantagens da política e das dificuldades para seguir adiante com uma ampla ação de reformas que dependem do Legislativo. O ministro Paulo Guedes está com sangue nos olhos, e promete não liberar dinheiro para deputados se eles seguirem no propósito de tolher o Executivo em questões orçamentárias. Para efeitos práticos, colocou Bolsonaro diante de “ou eles ou eu”.

Ocorre que a efervescência do teatro político brasileiro “estabilizou-se” e não surpreende nem comove mais ninguém. Virou normal. Um exemplo: por vários motivos, sendo o principal deles obter vantagens eleitoreiras das mais imediatas, o presidente abriu conflito com os governadores quando depende em boa medida deles para a grande articulação política de um projeto de enorme peso, que é o da reforma tributária. Para que mais uma briga, boceja-se.

E a cafajestice, injustificável sob qualquer ponto de vista, proferida contra uma profissional da imprensa (frente à qual obviamente ele tem o direito de manifestar todas as queixas, críticas e reclamações que quiser), reafirma que o estilo é o homem, e não vai mudar. Não está no seu horizonte ser chefe da Nação. É uma das sólidas constantes no nosso teatro político (a outra é a força do lavajatismo), e esse tipo de atuação será considerado a causa do seu êxito ou fracasso, dependendo fundamentalmente de como a economia se comportar.

Neste contexto vale a pena conferir como plateias de investidores estrangeiros estão apreciando nosso espetáculo. Tal como reportado por diversas instituições financeiras, visto de fora, o Brasil se tornou monótono. Não se consegue discernir, depois da aprovação da reforma da Previdência, qual é, afinal, o ponto prioritário para o governo. Considera-se que o País (em contraste com alguns emergentes, como a Argentina) está no “caminho certo”, mas não se disfarça certo ceticismo quanto à capacidade de “entrega” no necessário ritmo mais acelerado por parte da equipe econômica.

Diante de um país que teria tanto para oferecer, e para crescer, e para resolver, os estrangeiros estão dizendo que estamos nos esforçando para sermos um pouco mais do mesmo.


Vera Magalhães: Quebra de decoro

Ataque de Bolsonaro a jornalista degrada Presidência e revela busca por cortina de fumaça

Diz o artigo 9.º da Lei 1.079/50, que embasou o impeachment de Fernando Collor de Mello e de Dilma Rousseff, que são crimes de responsabilidade contra a probidade na administração várias condutas, entre as quais “proceder contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.

Senadores, deputados, advogados, ministros do Supremo Tribunal Federal, cientistas políticos, jornalistas e cidadãos em geral discutiram nesta terça-feira, 18, pela primeira vez de forma aberta, com enquadramento legal, se Jair Bolsonaro incorreu em crime de responsabilidade no ataque frontal, vil, pusilânime e abjeto que desferiu contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, em coletiva improvisada na frente do Palácio da Alvorada, ao repetir insinuações de cunho misógino, sexista e já desmentidas por documentos.

Pela primeira vez em um ano e dois meses de governo, a palavra impeachment começou a ser proferida ao lado do sobrenome Bolsonaro em alto e bom som, e não pela oposição petista, mas por vários partidos e setores da sociedade.

E, de novo, foi um ato deliberado do presidente que gerou uma crise que macula ainda mais sua já dilapidada imagem e degrada e rebaixa a instituição da Presidência da República.

Bolsonaro parece buscar uma cortina de fumaça para o tema que virou obsessão sua e de sua família: o assassinato do capitão Adriano da Nóbrega, ex-policial militar do Rio de Janeiro, que era procurado por ser um dos acusados de participar da morte da vereadora Marielle Franco e apontado como um dos chefes da milícia mais perigosa do Rio, o Escritório do Crime, no último dia 9.

O presidente e o filho Flávio, que empregou familiares do miliciano e cujo gabinete usou suas contas bancárias como intermediárias de inexplicadas transações financeiras entre assessores, demonstram excessivo nervosismo com o desenrolar das investigações a respeito do assassinato e do que a perícia nos vários telefones celulares de Adriano pode revelar.

Já denunciaram de antemão a possível fraude em perícias. Eles, que sempre defenderam que “bandido bom é bandido morto”, demonstram súbita preocupação com direitos humanos e eventuais abusos da polícia ao denunciar tortura a que Adriano teria sido submetido.

Tudo isso por quê? O que pode aparecer daqui para a frente para que Bolsonaro e os seus precisem fazer uma vacina, um hedge, ou obter um habeas corpus preventivo?

No vale-tudo para desviar o foco do caso rumoroso, vale assacar contra a honra de uma jornalista séria, que já forneceu ao público, à CPMI das Fake News e ao Ministério Público cópias de conversas escritas e áudios trocados com uma fonte, o ex-funcionário de uma empresa de disparos em massa de WhatsApp, que mentiu em depoimento no qual jurou dizer a verdade.

Mas a falta de tato é tamanha que, na tentativa de criar uma cortina de fumaça, o presidente quebra o decoro e fornece munição para que se comece a montar um pedido de impeachment, que pode avançar caso ele insista em continuar violentando a democracia, a liberdade de imprensa e as instituições.

O Parlamento e o jornalismo já deixaram claro que lutarão para que Bolsonaro respeite os limites do mandato que lhe foi dado não por unção divina ou por designação de generais, mas pelo voto popular. E que é regido por leis, entre as quais a Constituição e a do impeachment, que já foi usada para conter abusos de outra natureza, de corrupção a pedaladas fiscais.

Bolsonaro precisa ser informado de que não tem licença para tudo no estado democrático de direito. Os que calarem a cada vez que ele empurrar os limites com a barriga podem se ver mais adiante manietados em suas prerrogativas de reagir. Enquanto pensam se é cedo para defender a democracia, pode ser tarde demais.


Monica De Bolle: Alegoria sem adornos

Analisando os dados da Latinobarômetro em anos diversos, constata-se que quando perguntados como avaliam a situação econômica do País em relação ao passado recente, mais de 80% dos entrevistados dizem que está pior

Há poucos dias do Carnaval e pensando em alegorias e desfiles mostrando o que há de melhor e pior no Brasil, retomo tema abordado nesse espaço há 4 meses. Trata-se da alegoria do túnel formulada por Albert O. Hirschman nos anos 70 para descrever as tensões sociais provenientes dos processos de desenvolvimento e mudanças na mobilidade social. Convido os leitores interessados a ler a coluna “Dentro do túnel”, publicada em 20 de novembro de 2019. Nele discuti como fileiras de engarrafamentos dentro de um túnel em que algumas se moviam mais rapidamente do que outras – a alegoria de Hirschman para a mobilidade social e sua tensões – davam uma boa dimensão do que acontece nas sociedades quando parte da população progride, enquanto parte permanece estagnada.

O efeito túnel prevê, entre outras coisas, que a população tende ao otimismo quando percebe o progresso de algum segmento da sociedade, ainda que as condições econômicas em geral não sejam favoráveis – ou percebidas como tal. Tal efeito é mensurável em pesquisas de opinião. Analisando os dados da Latinobarômetro em anos diversos, e em 2018 especialmente, constata-se que quando perguntados como avaliam a situação econômica do País em relação ao passado recente, mais de 80% dos entrevistados dizem que está pior. Contudo, quase 60% afirmam que sua situação econômica pessoal e familiar haverá de melhorar. Embora esses dados se refiram a 2018, em todos os anos é possível observar algo semelhante. Não se trata de um comportamento irracional, mas de um reflexo da previsão de Hirschman de que se alguma parcela da população está se beneficiando mais rapidamente do que outras, em algum momento todos haverão de colher os frutos dessa melhoria. Ou seja, os atores econômicos – trabalhadores, empresários, classe média, classe alta, ou os mais pobres – fazem julgamentos a respeito de sua situação pessoal de modo relativo, não absoluto. Essa simples observação é fonte de enormes tensões sociais esteja o País crescendo muito ou relativamente pouco.

Tomemos os anos Lula como exemplo. Sem querer desmerecer de forma alguma a corrupção espantosa com a qual seu partido, e outras agremiações partidárias se envolveram durante os seus governos, os mandatos consecutivos de Lula tentaram atender dois anseios em aparente contradição: agradar os empresários por meio do crédito farto e barato, além das práticas clientelistas de praxe e da corrupção em nome dos “amigos”, e dar aos trabalhadores e às pessoas de renda baixa acesso a diversos bens e serviços dos quais antes não podiam compartilhar. Ao tentar conciliar os desejos desses dois segmentos da sociedade em constante tensão, o Estado teve crescentemente de adaptar suas políticas desaguando na farra do crédito público e na gastança que marcaram os anos Dilma – Lula teve a sorte de mascarar políticas inconciliáveis em tese devido ao ambiente externo ineditamente favorável. A corrupção, que muitos ainda entendem como um projeto de poder – não que não o tenha sido – foi também a forma encontrada de agradar gregos e troianos mantendo a ilusão de que todos se moviam dentro do túnel brasileiro.

Velocidade
Contudo, os movimentos se davam em velocidades diferentes, sobretudo nos anos Dilma quando a bonança externa acabou. Ressentimentos se agravaram e tensões começaram a borbulhar, como vimos em 2013. O desfecho fica para a interpretação de cada um. No entanto, alguns fatos são inescapáveis: a política da gastança para agradar empresários e trabalhadores desaguou numa imensa crise fiscal e no desmonte de alguns pilares básicos da economia. Abalado também pela corrupção generalizada, o País não resistiu e caiu em profunda recessão entre 2015 e 2016. Anos e mais anos tentando manter todos em movimento dentro do túnel sem dar a devida atenção às suas saídas – a melhoria da educação, da infraestrutura do País, entre outras medidas – foram responsáveis pela perda de dinamismo da economia e pela situação atual, em que difícil é achar um argumento razoável para defender a tese de que o crescimento brasileiro vai pegar no tranco, é só esperar as reformas.

As tensões descritas e o profundo descontentamento também ajudam a entender esse Brasil do ódio que vem surgindo há algum tempo. Há ressentimentos velados e explícitos contra aqueles que conquistaram alguns ganhos sociais – sim, penso na fala de Paulo Guedes sobre as empregadas domésticas. Na mesma linha, não existe um senso de urgência suficiente, seja no governo ou no empresariado que o apoia de forma mais fervorosa – não falo de todos os empresários, evidentemente – de que o Brasil não crescerá sem que haja uma retomada da mobilidade social que testemunhamos recentemente. Essa é a alegoria sem adornos, as alas que se movimentam de modo quase catatônico pelo túnel escuro em que se transformou o Brasil.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Eliane Cantanhêde: Evolução da democracia

Quem se lembra de 20 governadores reagindo unidos a ataques de um presidente?

Quem planta chuva colhe tempestade, como diz um velho ditado que, hoje, cabe perfeitamente no presidente Jair Bolsonaro. Pode ter havido, mas é difícil lembrar se algum dia, em algum momento da história, 20 governadores se reuniram para reagir à chuva de ataques de um presidente como uma tempestade em forma de carta aberta. Não é trivial, nem foram poucos.

Os líderes dessa reação foram eleitos na onda bolsonarista, como João Doria (SP), Ibaneis (DF) e Wilson Witzel (RJ), mas agora exigem do presidente da República algo que não faz parte da personalidade, da cultura e dos costumes políticos dele: “Equilíbrio, sensatez e diálogo”.

Qual a última do Bolsonaro? Essa perguntinha ácida que não quer calar virou uma constante no dia a dia de Brasília – e não só de Brasília. Pois a última foi, simplesmente, jogar no colo da PM da Bahia, frisando que é “do PT”, a queima de arquivo do capitão Adriano, aquela figura sinistra que tanto fez que acabou sendo preso, expulso da PM no Rio e finalmente morto numa emboscada policial na Bahia.

Para Bolsonaro, antes de dar uma nova “banana” para os jornalistas, um cara com tal currículo em algum dia foi “herói”. E foi nessa condição que ele foi homenageado três vezes pelo então deputado Jair Bolsonaro e pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, primogênito do atual presidente.

Flávio homenageou o capitão Adriano duas vezes, uma delas com a medalha Tiradentes, principal honraria da Assembleia do Rio. Em que ano foi isso? Em 2005. E onde estava o “herói” Adriano naquele momento? Preso! Era suspeito de ter matado um pobre e jovem guardador de carros que tinha tido a coragem de denunciar achaques da turma de Adriano na PM do Rio.

Responda rapidamente: quem é mais herói, o pobre coitado que denunciou abusos da polícia, ou o policial acusado de matá-lo torpemente?

O atual presidente da República já deu sua resposta. Na época, em sintonia com o filho, ele fez um discurso no Congresso Nacional defendendo o crápula. Hoje, insiste em que, naquele momento, tratava-se de um “herói”. Cá entre nós, o Brasil já teve heróis melhores, menos sanguinários.

Bem, essa história já é horrorosa por si só, inclusive porque o gabinete de Flávio quebrou o galho de Adriano, quando ele caiu em desgraça, contratando sua mãe e sua ex-mulher. Não satisfeito, o presidente Bolsonaro resolveu tirar o corpo fora, passar a mão na cabeça do filho e empurrar a culpa por uma eventual queima de arquivo para o colo de um governador, que, não por acaso, é de oposição e do PT.

Responda rapidamente de novo: onde o capitão Adriano liderava a milícia conhecida como “Escritório do Crime” e onde passou a vida inteira, no Rio ou na Bahia? Onde ele virou PM, “herói” e foi preso e expulso da corporação, no Rio ou na Bahia? Afinal, era um arquivo vivo no Rio ou na Bahia? E quem tinha interesse em sumir com ele, a polícia e os poderosos do Rio ou o PT da Bahia?

Assim, Bolsonaro transformou a questão numa chuva que virou tempestade política. Até porque ele é reincidente. Já foi grosseiro e preconceituoso ao dizer que “daqueles governadores de Paraíba (sic), o pior é aquele do Maranhão (Flávio Dino, do PCdoB). Depois chamou todos os governadores para a briga quando lançou um desafio impossível, de zerarem os impostos sobre combustíveis, e assim jogou os governadores contra a opinião pública. E, por fim, excluiu os nove governadores da Amazônia do Conselho da... Amazônia.

Na carta, os 20 governadores destacam que essas declarações e o confronto constante “não contribuem para a evolução da democracia no Brasil”. Muito difícil, por essas e outras, não concordar com eles.


Denis Lerrer Rosenfield: Os evangélicos e as eleições

Sua estratégia consiste em captar o maior número de eleitores em diferentes partidos

Os evangélicos estão no centro do debate nacional. Tornaram-se atores políticos, pautando sua ação em valores conservadores, incluindo desde costumes até questões dogmáticas, como a mudança da Embaixada do Brasil em Tel-Aviv para Jerusalém. Ao contrário dos católicos, que não seguem normalmente os dizeres políticos de seus padres, eles tendem a observar as orientações de seus pastores. É bem verdade que os católicos são numericamente superiores aos evangélicos, porém tal diferença não tem relevância eleitoral.

Ademais, por muito tempo os católicos abandonaram posições religiosas em benefício de posições esquerdistas da Teologia da libertação, apoiada pela CNBB. Criou, por sua Pastoral da Terra, o MST e sempre o apoiou desde então. Não mais respeitou o direito de propriedade, afastando a Igreja dos empreendedores rurais. Esses setores da Igreja foram firmes apoiadores dos governos petistas.

O eleitorado evangélico considera os costumes sob uma ótica religiosa. Aí não entra em questão uma discussão propriamente racional, pois o seu fundamento se encontra num texto bíblico, que fornece os critérios do juízo e da ação. Assim é o caso do aborto, do casamento homoafetivo, dos textos didáticos sobre gênero e do que o PT considera politicamente correto. Aliás, esse partido começou a perder seu eleitorado evangélico ao contrariar essa pauta de valores. Quando Bolsonaro se manifesta sobre a pauta de costumes, tem em mente precisamente esse eleitorado.

Outro ponto de princípio dos evangélicos diz respeito à mudança da embaixada brasileira para Jerusalém. Trata-se de uma questão dogmática, não sujeita a discussão: Jesus ressuscitará quando Jerusalém se tornar a capital do Estado judeu. Passa, então, a correr outro tempo, o do processo de conversão dos judeus, passando ambas as religiões a ser uma, sob os princípios do cristianismo, principalmente o reconhecimento de Jesus Cristo como Messias.

Bolsonaro comprometeu-se com esse seu eleitorado a fazer tal mudança. Seu compromisso continua, embora por questões conjunturais tenha sido adiado. Muito provavelmente realizará essa mudança em 2021, um ano antes da eleição presidencial. Ao cumprir sua promessa, terá apoio maciço da comunidade evangélica. Note-se que Trump assim conquistou o apoio do eleitorado evangélico, ganhou as eleições e cumpriu a sua promessa.

O PT está aqui mal colocado, pois optou pelo politicamente correto de forma esquerdizante e se chocou de frente com os evangélicos. As contrariedades e os ressentimentos se traduziram no apoio ao candidato Bolsonaro em 2018. As posições antissemitas/antissionistas do PT igualmente tiveram papel importante no distanciamento. Lula tenta uma reaproximação, porém suas dificuldades são imensas. A visita ao papa tampouco atenua o problema, ao dirigir-se a outro eleitorado, além de seu caráter manifestamente inapropriado ao envolver o santo padre numa questão política, a da corrupção e do roubo em seus governos, sem arrependimento nem confissão.

Tomemos o exemplo da Assembleia de Deus. Essa confissão tem no Brasil em torno de 20 milhões de membros. São pessoas acima de 14 anos de idade, capazes de fazer a escolha de sua religião, quando então se tornam parte integrante dela, em sentido pleno. Considerando a idade eleitoral de 16 anos, quase todos são eleitores, em sentido estrito. Não barganham com questões dogmáticas, como certos preconceitos veiculam contra os evangélicos. Foram missionários suecos que a introduziram no País. São pessoas extremamente sérias e comprometidas com sua religião. A Igreja Universal do Reino de Deus, numericamente menor, tem, por sua vez, enorme importância midiática, por ser proprietária da Rede Record. Trata-se de uma rede de comunicação que abarca principalmente as classes C e D.

Qualquer PEC ou projeto de lei, para ser aprovado na Câmara dos Deputados, necessita passar pelo crivo da bancada evangélica. Após a bancada da agricultura e da pecuária, é a segunda em importância. A Câmara tem 513 deputados federais e a bancada evangélica, 86. Outras estimativas chegam a 106. O Senado tem 81 parlamentares e a bancada evangélica, 9. Outras estimativas chegam a 14. Qualquer articulação parlamentar de governo deve passar por tratativas com essa bancada, que sempre sustentará suas questões de princípio, mesmo quando não forem objeto específico de negociação.

Os evangélicos estão distribuídos em vários partidos, embora votem alinhados entre si. A sua estratégia consiste em captar o maior número possível de eleitores em diferentes configurações partidárias, atendendo a conveniências regionais. Ademais, escolhem candidatos preferenciais em cada Estado, concentrando neles os seus votos. Os candidatos escolhidos são pessoas próximas das lideranças religiosas e delas dependem, agindo organicamente. Muitos são “filhos espirituais”, assessores e discípulos.

Bolsonaro extraiu bem essa lição. O PT não a levou em consideração. Os demais candidatos deverão enfrentar essa questão.


José Goldemberg: A Conferência de Madrid, fracasso ou sucesso?

Revolução silenciosa no mundo está evitando um aumento assustador das emissões de gases-estufa

A 25.ª Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP 25), que se realizou em Madrid, na Espanha, em dezembro de 2019, tem sido descrita frequentemente como um completo fracasso, porque as decisões mais importantes a serem tomadas foram adiadas para a COP 26, neste ano de 2020, em Glasgow, na Inglaterra.

Essas decisões dizem respeito, basicamente, a recursos financeiros, tais como a transferência de recursos dos países mais ricos para os países em desenvolvimento para ajuda-los a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e reconhecer créditos por ações já realizadas no passado por esses países.

Há anos que as discussões sobre esses temas se arrastam. A impressão que se pode ter, portanto, é de que os temas essenciais estão sendo transferidos de ano para ano e que as reuniões da COP são realmente convescotes em que se reúnem diplomatas, ativistas ambientais, celebridades e ministros do meio ambiente, nos quais a retórica é elevada, mas não tem consequências práticas.

A realidade é bem mais complexa: apesar das emissões estarem aumentando, elas teriam aumentado muito mais sem as decisões tomadas pela Convenção do Clima assinada no Rio de Janeiro em 1992 e pelas COPs subsequentes, realizadas desde então, que alertaram o mundo todo para os problemas do aumento das emissões de carbono e o consequente aumento da temperatura global.

Essa conscientização estimulou inovações tecnológicas (e sua adoção) que tornaram a economia mundial mais eficiente e, por conseguinte, reduzindo as emissões de carbono. Por exemplo, automóveis produzidos hoje podem rodar 15 quilômetros com um litro de gasolina, os produzidos há 20 anos atrás necessitavam 1,5 litro para rodar a mesma distância. Lâmpadas LED iluminam muito mais com menos consumo de eletricidade.

O sucesso da globalização da atividade industrial que se verifica no mundo contribuiu para a redução das emissões: não existem mais automóveis produzidos no México, no Brasil ou nos Estados Unidos, mas uma cadeia internacional de componentes que permite que eles sejam fabricados em vários países.

Em outras palavras, enquanto os diplomatas se reúnem nas COPs durante duas semanas, todos os anos, e parecem não chegar a um acordo – como não chegaram na Conferência de Madrid –, uma revolução silenciosa está acontecendo no mundo e evitando um aumento assustador das emissões de carbono e de outros gases responsáveis pelo aquecimento global.

Não entender essa realidade é que tornou difícil a implementação das medidas acertadas no Rio de Janeiro em 1992 e em Kyoto em 1997 para reduzir as emissões de carbono. Esse não é apenas um problema ambiental, mas um problema de política industrial e comercial, que só foi resolvido com a adoção do Acordo de Paris, em 2015, na COP 21. Nesse acordo ficou acertado que cada país decidiria de forma soberana o que pretende fazer no que se refere à redução das suas emissões, adotando metas e prazos para cumpri-las. Apesar de voluntárias, elas se tornariam mandatórias uma vez comunicadas ao Secretariado da Convenção das Partes e seriam revisadas a cada cinco anos. O Brasil fez isso sem exigir recursos para cumprir suas metas, como, por exemplo, reflorestar 12 milhões de hectares.

A China, o maior emissor mundial e cujas emissões estão crescendo, comprometeu-se a reduzi-las substancialmente substituindo o uso de carvão por gás natural e estimulando o uso de energias renováveis. Ao fazê-lo, o governo chinês pretende resolver também o problema urgente da poluição urbana, cuja causa principal é o uso de combustíveis fósseis.

Transferência de recursos para ajudar os países mais pobres a tomar medidas para reduzirem emissões se destina, realmente, a países da África, do Sudeste da Ásia e das ilhas do Oceano Pacífico, e não a países mais avançados e aspirantes a membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como o Brasil.

Essas promessas – que inicialmente eram muito vagas – tomaram a forma de um aporte prometido de US$ 100 bilhões anuais na COP de Copenhague, em 2009. Mas esses US$ 100 bilhões se referem a “investimentos relacionados ao clima”, como os que o Banco Mundial faz todos os anos e atingiriam US$ 43,1 bilhões em 2012. A Índia e outros países argumentam que esses recursos seriam transferidos para os seus governos, o que é considerado um entendimento equivocado.

Além disso, foi criado o Fundo Verde para o Clima, em 2015, que levou anos para ser estruturado e só tem desembolsado alguns bilhões de dólares por ano em 123 projetos – apenas três deles no Brasil. Acelerar a apresentação de projetos a esse fundo é a principal ação que o Brasil deveria tomar, além de insistir para que ele se torne mais ágil.

Esse parece ser um caminho muito mais promissor do que se envolver em intermináveis discussões sobre a expectativa de receber créditos por ações realizadas no passado, que parece muito problemática. Esse programa de créditos foi mal formulado e o seu valor de mercado se tornou irrisório. Insistir neles parece ser uma estratégia pouco construtiva.

*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro do Meio Ambiente


Vera Magalhães: Tristeza não tem fim

Euforia da virada do ano com a economia esmorece antes da Quarta-Feira de Cinzas

“A felicidade do pobre parece/ A grande ilusão do carnaval/ A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia/ De rei ou de pirata ou jardineira/ E tudo se acabar na Quarta-Feira.”

Os versos acima são da pungente A Felicidade, de Tom Jobim, e me voltaram à mente de forma recorrente nesta semana depois da fala de Paulo Guedes a respeito dos malefícios do real sobrevalorizado.

O ministro da Economia atravessou o samba e acabou por contribuir com uma fantasia candidata a hit do carnaval de 2020: além de reis, piratas e jardineiras, vem aí uma legião de empregadas com malas etiquetadas para a Disney.

Porque a tal “festa” das domésticas no exterior só é imaginável em blocos e carros alegóricos, uma vez que, ainda que o real estivesse na base do “um para um” com o dólar, não sobra dinheiro para a grande maioria dos empregados domésticos viajar.

Então, por que raios o homem mais importante do governo, aquele em quem o “deus mercado” aposta todas as fichas, a ponto de tapar o nariz para os despautérios do presidente e a incompetência gerencial em quase todas as outras áreas, se põe a fazer perorações sem nexo dia sim, outro também?

Talvez Guedes esteja percebendo que a pauta que idealizou para 2020 vai deslizando como a felicidade do pobre, e que a euforia com o “boom” da economia brasileira neste ano 2 da gestão Bolsonaro já passou antes mesmo da Quarta-Feira de Cinzas que anuncia a tristeza sem fim da música de Jobim.

Diante das dificuldades, o ministro viaja na maionese ao tentar fazer o jogo do contente da Pollyana. Sim, existem várias razões de teoria econômica para defender o dólar apreciado sobre o real. E nenhuma delas passa nem perto da fictícia festa das domésticas na Disney. Guedes sabe disso, percebeu por onde estava indo quando já era tarde demais e, em vez de encerrar a fala ali, se pôs a tentar emendá-la.

Não pode ser atribuída só à falta de tato retórico a reiteração de declarações atravessadas do ministro: ele está claramente pressionado e desgostoso com o ritmo dos seus projetos, e não pode culpar quem deveria.

Guedes imaginou que a tal linha de produção de reformas estaria mais azeitada neste ano. Depois de segurar a reforma administrativa, Bolsonaro começou 2020 enaltecendo sua urgência. Para, logo em seguida, engavetá-la de novo. E que aqui ninguém tente culpar sua fala comparando servidores a “parasitas”, outro meme instantâneo pela referência ao grande ganhador do Oscar deste ano. A má vontade com a reforma já havia sido replantada na cabeça do inseguro presidente pelos seus assessores palacianos, com os quais o titular da Economia vem se estranhando não é de hoje.

Sem poder mandar ao Congresso a reforma tributária que gostaria, com a administrativa engavetada, tendo de apagar incêndio de Bolsonaro com os governadores depois do ridículo “desafio” de zerar o ICMS dos combustíveis, tendo sido bucha de canhão em Davos para ouvir as críticas que deveriam ser destinadas ao colega do Meio Ambiente, Ricardo Salles, há de se convir que o Posto Ipiranga está numa fase “tristeza não tem fim”.

O duro é que a conjuntura internacional, com um surto do novo coronavírus cujos alcance e duração não são possíveis de estimar, e o calendário local, com eleições logo ali, não prenunciam que as coisas vão melhorar depois da Quarta-Feira. Dependerá da articulação política, que, por ser naturalmente desconjuntada, precisa da atuação direta de Guedes. Se ele não sair dessa maré braba, e rápido, a euforia da virada de ano terá sido como a felicidade do pobre. Ou das domésticas, que não conseguem viajar nem para Cachoeiro do Itapemirim, quem dirá para a Disney.