O Estado de S. Paulo
Vera Magalhães: Golden shower, ano 2
Bolsonaro troca vídeo impróprio por outro em que conclama a população contra o Congresso
Pensei que a coluna mais grave que escreveria para jogar água no chope do carnaval do leitor seria a do último domingo, quando apontei as muitas semelhanças entre os últimos passos do bolsonarismo e o chavismo venezuelano.
A militarização do Palácio do Planalto e o incentivo declarado do presidente Jair Bolsonaro e de sua família a levantes inconstitucionais, com características de motim, das polícias militares eram as evidências mais recentes.
Mas o presidente da República resolveu fornecer mais lenha para a fogueira em que ele e seu governo queimam a institucionalidade um pouco a cada dia.
Usando o WhatsApp de seu celular pessoal, com o brasão da República como avatar, o presidente aproveitou a folga carnavalesca deste ano não para compartilhar vídeo de golden shower, mas para algo mais grave: compartilhar um vídeo em que é apresentado como candidato a mártir, que teria arriscado a vida e quase morrido para salvar o povo, e ao qual o mesmo povo deveria uma recompensa: ir às ruas no próximo dia 15 de março se manifestar contra o Congresso.
Obtive a postagem presidencial e publiquei o print e a íntegra do vídeo de inspiração golpista, que usa o Hino Nacional como trilha sonora, no BR Político nesta terça-feira.
No texto que envia juntamente com o vídeo, o presidente escreve:
“- 15 de março.
Gen Heleno/Cap Bolsonaro.
O Brasil é nosso,
Não dos políticos de sempre.”
Nas legendas intercaladas a imagens entre vitimizadoras e triunfalistas de Bolsonaro, aparecem frases como “Ele foi chamado a lutar por nós. Ele comprou a briga por nós. Ele desafiou os poderosos por nós. Ele quase morreu por nós. Ele está enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós”.
Bolsonaro seria a “única esperança” de dias melhores e, por isso, as pessoas precisariam ir às ruas mostrar que o apoiam e rejeitam os “inimigos” do Brasil.
O ato do dia 15 foi convocado imediatamente após o vazamento, no sistema de som do próprio Planalto, de uma conversa em que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chama os congressistas de “chantagistas”, manda um palavrão e sugere que as pessoas deveriam ir às ruas se manifestar contra o Congresso.
Nas convocações que circulam pelas redes sociais, Heleno, o vice-presidente Hamilton Mourão e outros generais aparecem fardados e textos dizem que eles aguardam “ordens do povo”. E exortam: “Fora Maia e Alcolumbre”.
Responsável pela área de inteligência do governo, é no mínimo irônico que Heleno tenha se “descuidado” sabendo que o evento do qual participava estava sendo transmitido ao vivo.
A rapidez e coordenação da convocação para o ato, bem como a produção bastante cuidadosa do vídeo, mostram uma correia de transmissão que chega ao presidente da República.
Ele faz a convocação em seu nome e de Heleno, mas faz questão de usar suas patentes militares, e não seus cargos civis. O presidente da República se apresenta como “capitão” e estende o convite ao seu ministro mais próximo, chamado de “general”.
É de uma gravidade inaudita até para os padrões bolsolavistas o que aconteceu nesse carnaval. Trata-se de o presidente, sem intermediários das milícias virtuais a soldo, conclamando as pessoas a participarem de um ato contra o Congresso Nacional.
Bolsonaro instiga a rua contra os demais Poderes, algo inadmissível numa democracia e em plena vigência da Constituição.
Não é a primeira vez que escrevo isso, mas insisto: já passou da hora de as instituições colocarem freios não só na língua e no zap do presidente, mas em suas ações. Sob pena de que, quando decidirem fazê-lo, tenham perdido essas condições legais e políticas.
Eliane Cantanhêde: Ceará, caso exemplar
Presidente não pode calar nem governador ceder, para evitar ideia de que motim vale a pena
Se foi rápido no gatilho para falar do capitão Adriano, um dos maiores líderes de milícias do Rio de Janeiro, morto num cerco policial na Bahia, o presidente Jair Bolsonaro até ontem não havia dito uma só palavra sobre os policiais militares que fazem motim no Ceará, aquartelados, armados, encapuzados e atacando carros da própria polícia.
Pode-se pensar que Bolsonaro fala de um caso e ignora o outro em defesa das polícias, mas não se trata disso. Se ele chamasse de “heróis” e defendesse os policiais honestos que têm uma missão difícil, trabalham em condições adversas e arriscam suas vidas em prol da segurança, seria louvável. Mas o foco dele, na fala e no silêncio, é a banda podre, que faz milícia, faz motim, comete crime militar.
Isso é absurdo para um presidente da República, mas condiz com a história de Jair Bolsonaro, acusado e processado por ter planos e croquis para bombardear quartéis militares. Depois, conquistou mandato de deputado com votos de policiais e evangélicos e desperdiçou 28 anos na Câmara com questões corporativistas.
Num dos maiores motins policiais do País, em 2017, no Espírito Santo, Bolsonaro não se limitava a defender os amotinados. Reportagem do Estado de 25 de fevereiro daquele ano, sob o título “Rede de Bolsonaro na teia do motim”, mostra que o grupo do então deputado estava por trás da grande rede de divulgação do movimento. Num vídeo visualizado por dois milhões de pessoas, ele defende os revoltosos e fala da possibilidade de o movimento se espalhar para outros Estados.
O que se espera, agora, é que Jair Bolsonaro entenda que, como presidente, não pode apoiar motins militares nem movimentos que comprometam a Constituição, a ordem pública e as já tão combalidas contas públicas. Não pode aplaudir ou fechar os olhos para os desmandos de uma categoria específica, sabendo que o prejuízo é da sociedade brasileira.
As polícias estão empoderadas, com assentos em governos e legislativos e achando que, com Bolsonaro, podem tudo. O problema começa quando uma parte delas – a pior – sente que tem costas quentes, pode descumprir a Constituição e se recusar a garantir a segurança dos cidadãos. Isso não corresponde a empoderar as polícias, mas sim a dar sorte ao azar com multiplicação de milícias e ataques ao Orçamento público – como o governador Romeu Zema, por medo, inexperiência ou má assessoria, fez em Minas Gerais.
No caso do Ceará, o governo federal fez o que tinha de fazer: destacou a Força Nacional, decretou Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e enviou os ministros da Defesa, general Fernando Azevedo, e da Justiça, Sérgio Moro, para verificar a situação in loco. Isso, porém, visa a segurança da população, não os PMs amotinados, que são problema do governo do PT e mandaram o comércio fechar portas, atacaram carros da própria polícia e atiraram no peito de um senador, em ações mais de bandido do que de policial.
A questão tem de ser tratada como ela é: motim militar, com os amotinados sujeitos à lei, à justiça e às devidas penas. O presidente não pode se calar e os governos não podem ceder à quebra da lei e negociar anistia. Senão, o recado estará dado para todas as polícias do País, ou melhor, para a parte ruim das polícias: “façam motim, vale a pena”. A questão, portanto, é exemplar. Chantagem por chantagem, nada é pior do que a chantagem armada, que lida com a vida e a morte.
Quanto ao bate-boca dos irmãos Gomes com os irmãos Bolsonaro, é melhor não ver, não ouvir, não comentar, porque nada de útil sai daí. Perdemos todos, perdem eles, perde a civilidade, já tão rara nesses nossos tempos bicudos. Afinal, o que esses dois lados pretendem?
Pedro Fernando Nery: O mito da auditoria
O bloco da auditoria da dívida desfila com o do criacionismo e o dos terraplanistas
A redução dos superávits primários foram centrais no aumento do endividamento público na primeira metade dos anos 2010. Em trajetória insustentável, o aumento da dívida ameaçaria o crescimento econômico e um “forte ajuste fiscal” seria necessário. Essas são algumas das conclusões da mais recente auditoria da dívida pública do Tribunal de Contas da União (TCU). Se o TCU fiscaliza periodicamente a dívida, por que tantos insistem que a dívida pública nunca foi auditada?
O acórdão 1.084, de 2018, traz o relatório da auditoria mencionada acima. O 1.705 sugeriu que o Congresso institua o teto para a dívida previsto na Constituição, e determinou que Bacen e Tesouro estudem limites para as operações compromissadas e o nível de reservas internacionais.
A dívida, objeto de relatórios mensais do Tesouro, também é analisada pela Instituição Fiscal Independente (IFI) – criada para ser um cão de guarda das finanças públicas. O argumento de que a dívida pública nunca é auditada pode ser mais bem traduzido como “as auditorias da dívida nunca deram o resultado que eu queria”.
A ideia de uma caixa-preta na dívida é acompanhada pela narrativa falaciosa, propagada pela elite do funcionalismo, de que cerca de 50% dos gastos do governo são voltados para o pagamento de juros da dívida, em prejuízo da educação, saúde, previdência. Se de fato metade dos tributos é usada para quitar a dívida, em sacrifício das necessidades da população, seria obviamente sensato dar o calote em vez de fazer as reformas. O problema é que não é verdade.
A narrativa é remanescente do período em que o governo federal produzia superávits primários – isto é, poupava parte da arrecadação dos tributos para diminuir a dívida (parte que chegou a 12% em 2008). Desde 2014 isso não acontece: temos déficits primários, que, mesmo com as reformas, devem continuar até o próximo governo. Significa dizer que a arrecadação de tributos não dá conta de pagar as despesas primárias (educação, saúde, previdência, etc). O déficit é fechado com a ajuda do mercado financeiro, que empresta para o governo. Já a dívida antiga que o governo não consegue quitar com os tributos fica para depois, com a dívida velha sendo substituída por dívida nova.
Como toda despesa precisa transitar pelo orçamento, mesmo a dívida não financiada pela arrecadação de tributos, mas financiada pela dívida nova, consta do orçamento. Daí que sai a narrativa de que metade do orçamento é para a dívida pública, ignorando que do lado da receita a proporção da dívida no orçamento é ainda maior.
A ideia do pote de ouro da auditoria da dívida é tão popular (mais de 60 mil resultados no Google) que neste mês apareceu em nota da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, criticando medidas do ajuste fiscal. A nota alega que “a partir de 2015 aumentou o volume de pagamento dos juros da dívida pública e, desde então, os gastos financeiros representam a maior rubrica individual do gasto do governo federal”.
É falso. O desembolso com juros tem caído, em parte consequência do próprio ajuste (teto de gastos, previdência). É a irresponsabilidade fiscal que bomba os juros: nos últimos anos o ajuste tem reduzido os juros de longo prazo junto com o risco país. Veja que a fantasia da auditoria da dívida não é necessariamente pauta de esquerda: foi defendida por Bolsonaro pré-Paulo Guedes em 2017, e é criticada por economistas do PSOL. Como explica José Luis Fevereiro, da direção nacional do partido, a noção do gasto com juros destacada pelo MPF é “absolutamente errada”. O calote significaria mais ajuste fiscal (porque o déficit primário teria de ser zerado sem a ajuda do mercado).
É exatamente esse o objetivo de uma organização de servidores batizada com o argumento da auditoria. Neste caso, “auditoria” significa o cancelamento de juros compostos, considerados ilegítimos e ilegais. O resultado seria um confisco sobre o patrimônio das famílias poupadoras, que direta ou indiretamente emprestam para o governo por meio de aplicações financeiras, sem que se liberasse recurso para políticas sociais (porque não há superávit primário).
Isso não significa dizer que se deve concordar com o ajuste proposto pelo governo. De fato, um efeito adverso do voluntarismo messiânico da turma da auditoria é turvar a discussão de alternativas mais complexas. Por que, por exemplo, se preocupar com tributar mais os mais ricos, se o subfinanciamento de direitos sociais é causado por supostos gastos gigantescos com a dívida? Se há prontamente disponível um pote de ouro no fim do arco-íris, por que fazer a difícil disputa pela tributação maior das elites? A narrativa é obscurantista: o bloco da auditoria da dívida desfila com o bloco do criacionismo e o bloco dos terraplanistas.
Rubens Barbosa: Novos ventos no Planalto
A recomposição do equilíbrio de poder enfraquece a influência do grupo ideológico
Os ventos no Palácio do Planalto poderão mudar com a nomeação do general Braga Netto para a chefia da Casa Civil e do almirante Flávio Rocha para a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE).
A Casa Civil, que deve coordenar todas as ações do governo federal, sai fortalecida e tem o potencial de transformar a maneira como o Executivo lida com o Legislativo e o Judiciário. Com uma reviravolta nas atribuições ministeriais, a SAE passa a ter a responsabilidade da elaboração de subsídios para a formulação do planejamento estratégico e de ações externas de governo.
Agora vinculada diretamente ao presidente da República, a SAE foi significativamente fortalecida. As atribuições da Assessoria Internacional passam para a SAE, que deverá assistir o presidente da República no desempenho de suas atribuições e, especialmente, na realização de estudos e contatos por ele determinados em assuntos que subsidiem a coordenação de ações com organizações estrangeiras; assistir o presidente da República, em articulação com o gabinete pessoal do presidente, na preparação de material de informação e de apoio, de encontros e audiências com autoridades e personalidades estrangeiras; preparar a correspondência do presidente com autoridades e personalidades estrangeiras; participar, em articulação com os demais órgãos competentes, do planejamento, da preparação e da execução das viagens presidenciais internacionais; e encaminhar e processar as proposições e os expedientes da área diplomática, em tramitação na Presidência. O assessor internacional, Felipe Martins, passa a ser subordinado do chefe da SAE, o almirante Flávio Rocha.
A recomposição do equilíbrio de poder no Planalto enfraquece a influência do grupo ideológico e familiar. Será interessante acompanhar a reação do núcleo olavista palaciano à decisão presidencial. A mudança de cadeiras tem o potencial de facilitar a busca de maior racionalidade e de resultados para as iniciativas na área internacional, além do relacionamento com o Congresso e o Judiciário, sujeitos a fortes turbulências na semana passada.
Cabe ressaltar a volta dos militares ao centro do processo decisório do atual governo. Logo depois da posse, houve a ocupação de importante espaço por militares, que exerceram um papel moderador. Depois de um período de baixa visibilidade, o retorno dos oficiais-generais, três deles da ativa, desperta a expectativa de que algumas ênfases devam mudar. Se a eles se acrescentar o papel do vice-presidente como coordenador do Conselho da Amazônia, tem-se a extensão do poder e da influência da militarização do Planalto. A instituição, contudo, procura se manter independente das ações do governo como um todo.
E de esperar também um discurso mais conciliador com o Congresso e o Judiciário e uma ação menos ideológica do Itamaraty na política externa. O interesse nacional acima da pregação ideológica. Isso não significa que a retórica do atual governo vá mudar. Ela deve continuar para alcançar objetivos políticos internos do interesse presidencial, mas é possível especular que foram criadas condições para que o governo possa desenvolver políticas internas e externas mais pragmáticas com visão de médio e longo prazos.
Os mais de dez militares, nas funções públicas que ocupam atualmente, têm reiterado suas convicções democráticas, apesar de alguns excessos retóricos, e atuam acima de interesses clientelísticos ou partidários, como vimos nesse primeiro ano de governo.
Resta saber como a alta assessoria militar do presidente vai enfrentar os desafios a que está sendo submetida.
A coordenação com o Congresso Nacional no encaminhamento, discussão e votação das reformas tributária e administrativa e as políticas a serem aprovadas em âmbito federal no Conselho da Amazônia serão talvez os desafios mais importantes do grupo militar. A política ambiental e as ações na Amazônia, tendo em vista a mudança no cenário internacional e a vinculação de empréstimos e investimentos e de boicote de consumidores a políticas de desenvolvimento sustentável, deverão estar no centro das preocupações do Planalto nos próximos anos. Até pela necessidade de convencimento de alguns governos e parlamentos europeus para a ratificação do acordo do Mercosul com a União Europeia.
Na área externa, pelos efeitos internos e externos imediatos, podem ser lembradas as tratativas com o novo governo da Argentina, em especial no comércio exterior e no processo de integração regional; com Israel no tocante à mudança da embaixada para Jerusalém, de interesse dos evangélicos; as incerteza acerca do alinhamento com os EUA à luz das eleições presidenciais norte-americanas e de decisões que poderão ter efeito sobre o relacionamento com a China, como, por exemplo, a estratégica e urgente decisão sobre a licitação do 5G; e, pelas relações entre as Forças Armadas dos dois países, a Venezuela, onde o Brasil poderia ter papel relevante nas negociações para a democracia, sem abrir mão da posição crítica ao governo de Maduro – como estão fazendo os EUA e o Canadá.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
Carlos Pereira: Quem tem medo do papangu?
O que tem ameaçado a democracia é, na realidade, apenas uma quimera
Hoje é segunda-feira de carnaval. Estamos em pleno reinado de Momo, quando a irreverência, o excesso e o risco tomam conta das pessoas. Como bom pernambucano, sempre levei o carnaval muito a sério. Lembro, ainda criança, brincando carnaval pelas ruas estreitas do centro do Recife e pelas ladeiras íngremes de Olinda, de várias figuras então “ameaçadoras” do carnaval de Pernambuco. Logo de manhã cedo, ouvia troças carnavalescas com suas orquestras de frevo ou simplesmente batedores de lata. À frente, alguém fantasiado de urso, vestindo um velho macacão de veludo e com uma máscara de papel marche, gritava: “a La Ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro!”.
No Pátio do Terço, à meia-noite da segunda-feira de carnaval, participava da “Noite dos Tambores Silenciosos”, cerimônia de sincretismo religioso que reúne maracatus da região. O que mais me causava espanto era o maracatu “de baque solto”, formado por canavieiros da zona da mata com sua cútis curtida pelo sol. Esses “caboclos de lança” vestem fantasias coloridas, com sinos de metal pendurados nas costas que soam de forma ritmada a cada movimento. Carregam lanças enormes e dançam como verdadeiros ninjas do canavial.
Entretanto, as figuras mais amedrontadoras do carnaval de Pernambuco eram os enigmáticos papangus, cuja definição é homem ridículo, sem compostura, tolo, mané ou otário. Se fantasiam com túnicas que os cobrem dos pés à cabeça, com abertura apenas para olhos e boca. Os mais famosos vêm de Bezerros, no agreste pernambucano. Quando se ouve de longe o barulho das castanholas que anunciam sua chegada, todas as crianças morrem de medo. Acredita-se que o papangu nasceu de uma brincadeira de dois irmãos que comiam muito angu. Resolveram cortar as pernas das calças e cobrir o rosto com capuz para não serem reconhecidos, mas o disfarce não funcionou. Terminaram descobertos pela gula.
Assim como as crianças do Recife, uma boa parte da sociedade brasileira tem temido um enfraquecimento democrático, se deixando atormentar por um papangu com jeito autoritário, que elogia torturadores, ameaça fechar o STF e decretar um novo AI-5, tenta reinterpretar a história dizendo que o regime militar de 1964 não foi uma ditadura, pois não matou o suficiente para extirpar o comunismo. Esse papangu também assusta ao perder o decoro difamando jornalistas, ao dar banana a repórteres, ultrapassando, assim, os limites da boa convivência democrática. Sem maioria legislativa estável, esse personagem é necessário para manter o apoio de seu eleitorado mais retrógrado.
Independentemente da capacidade das instituições políticas e dos sistemas de freios e contrapesos de conter os arroubos autoritários do nosso papangu, as evidências científicas disponíveis (Przeworski e Limongi 1997) mostram, de forma inequívoca, que a chance de reversão da democracia em países com a renda per capita superior à da Tailândia de 2006 (US$ 10 mil) é zero. Vale lembrar que a renda per capita no Brasil é superior a US$ 15 mil.
Outro fator crucial de estabilidade democrática é sua maturidade. Przeworski (2015) demonstra que a probabilidade de uma democracia ruir diminui drasticamente ao mesmo tempo em que o país acumula experiências de alternância de poder de forma pacífica e por meio de eleições. Entre 88 democracias consolidadas, apenas uma em cada dez entrou em colapso quando não testemunhou mais de três alternâncias, e apenas uma (Chile) caiu quando o número de alternâncias passadas chegou a quatro. O Brasil já possui seis alternâncias desde a redemocratização.
Mas, mesmo diante das evidências de que nossa democracia permanece sólida, a sociedade e suas instituições não devem baixar a guarda e diminuir a vigilância a cada afronta à democracia vinda do nosso papangu.
Bom carnaval a todos!
O Estado de S. Paulo: Para se aproximar da Igreja, governo aposta em Damares
Após conflitos de Bolsonaro com líderes católicos e com aval do presidente, a ministra passa a ser a interlocutora da administração com a CNBB e se reúne com bispos
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Com aval do presidente Jair Bolsonaro, a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) assumiu o papel de interlocutora do governo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Primeira integrante da equipe bolsonarista a manter uma reunião de trabalho com a entidade da Igreja Católica, Damares tenta construir pontes e desfazer conflitos que marcam a relação do presidente com os religiosos.
“Ai da política se não fosse a Igreja”, disse a ministra ao sair do encontro com a cúpula da CNBB, na quarta-feira passada. Pastora da Igreja Batista da Lagoinha, uma denominação protestante, a ministra fez uma reverência à importância da Igreja num país de maioria católica, mesmo com o crescimento dos evangélicos, aliados preferenciais do presidente.
Há um histórico de atritos entre a CNBB e Bolsonaro que remonta à campanha eleitoral, quando o então candidato do PSL apareceu em vídeo dizendo que a entidade – comandada pela ala do clero considerada progressista, que atuou contra o regime militar – era “a parte podre da Igreja Católica”.
A pedido de Damares, a CNBB abriu suas portas em Brasília para ouvir explicações sobre projetos do governo. A ministra fez acenos de parceria em ações sociais para crianças, jovens e idosos e afirmou aos bispos que há católicos entre seus principais assessores. Saiu de lá com o texto da Campanha da Fraternidade e um convite para participar do lançamento, na próxima quarta-feira. Um compromisso na Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, porém, impedirá a sua presença.
Agendada de última hora, a reunião de Damares com os religiosos não contou com o presidente da CNBB, d. Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte (MG), que tinha uma viagem marcada. Participaram do encontro o primeiro-vice-presidente da CNBB e arcebispo de Porto Alegre (RS), d. Jaime Spengler, o segundo-vice e bispo de Roraima (RR), d. Mário Antônio da Silva, e o secretário-geral e bispo auxiliar do Rio, d. Joel Portella. “Estabelecemos um canal de diálogo muito positivo e, naquilo que pudermos colaborar, sobretudo na promoção de valores que nos unem, estaremos juntos”, afirmou d. Jaime Spengler.
Planalto
Na prática, a interlocução com Damares desloca o tradicional eixo de relacionamento da CNBB com o Executivo. Após a redemocratização, bispos tinham canal direto no Palácio do Planalto e costumavam ser recebidos por presidentes. No governo Dilma Rousseff, a entidade tinha assento no Conselhão, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
O diálogo da ministra com a CNBB ocorreu uma semana depois de o papa Francisco receber e abençoar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas a conversa não tratou do Vaticano. Bolsonaro, também na semana passada, renovara as críticas ao pontífice por causa da exortação apostólica Querida Amazônia.
No documento, o papa afirma que conferir um status internacional não é “solução” para a crise ambiental e social da floresta, mas diz que toda a comunidade global deve colaborar. Cobra que governos locais não se vendam a interesses econômicos e políticos. Para divulgar o texto “ao mundo inteiro”, o Vaticano escreveu na rede social do papa que ele pretendia “despertar estima e solicitude pela Amazônia, que também é nossa”. Bolsonaro reagiu no dia seguinte: “A Amazônia é nossa, não é como o papa tuitou ontem, não, tá?”.
A resposta do presidente reflete sua desconfiança e também do generalato das Forças Armadas com o que é considerado por eles como desrespeito à soberania brasileira sobre a porção nacional do território amazônico.
A preocupação atravessou, no ano passado, o Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazônia, uma assembleia eclesial para discutir problemas da região. No auge das tensões sobre o Sínodo, o Itamaraty destacou um embaixador para manifestar à Santa Sé a insatisfação do governo.
Já o presidente da CNBB demonstrou contrariedade com os planos de exploração econômica das terras indígenas propostos pelo governo. Organismos católicos, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ambos presididos por bispos, são os mais críticos a projetos de Bolsonaro. Damares, inclusive, já acusou bispos de atuação “político-partidária”.
Vaticano
A ministra construiu uma aproximação com a Igreja ao longo de 2019. Sua equipe costuma receber assessores da CNBB, como o padre Paulo Renato Campos. Em dezembro, Damares visitou o papa Francisco no Vaticano. Na ocasião, elogiou o pontífice e admitiu que a postura do líder da Igreja era a de buscar o “diálogo”, até com outras religiões. Diálogo, aliás, tem sido a palavra-chave de bispos brasileiros quando questionados sobre o governo Bolsonaro.
A interpretação corrente no clero, porém, era a de que até então o presidente não tinha interesse em conversar e mostrava predisposição ao conflito com o clero. Embora costume receber com frequência líderes evangélicos e participe de cultos nos fins de semana, Bolsonaro só recebeu uma única vez o presidente da CNBB, logo após a eleição de d. Walmor, em maio de 2019.
Outros governos
Desde a redemocratização, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) cultiva relações diretas com o Palácio do Planalto, com momentos de calmaria e tensão. Anualmente, a Igreja publica análises de conjuntura, mas também costuma se pronunciar, por meio dos bispos que ocupam a presidência e a secretaria-geral, a respeito de projetos e políticas sociais e econômicas dos governos. Veja abaixo alguns dos embates entre a CNBB e ex-presidentes:
Collor
Os bispos foram contra as políticas econômicas neoliberais do governo Fernando Collor de Mello desde o início da administração, como os acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e apontavam para a informalidade no mercado de trabalho interno. Em 1992, no processo de impeachment que culminaria na renúncia de Collor, a CNBB apoiou demais entidades civis que lideraram manifestações pela saída do então presidente. No Congresso Nacional, o então presidente da CNBB, d. Luciano Mendes de Almeida, falou que o povo estava atônito com abusos, corporativismo, desvio de verbas, clientelismo e fisiologismo.
FHC
Em 1997, a CNBB foi contra a política de privatizações do governo tucano, especialmente, contra a venda da Vale do Rio Doce. Fernando Henrique Cardoso reagiu dizendo que privatização da Vale não era matéria para os bispos opinarem. A CNBB deu apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em atos pela reforma agrária. Órgãos da CNBB também acusaram o governo FHC de comprar apoio para aprovar a emenda da reeleição. A CNBB chegou a dizer que o tucano perdeu a credibilidade junto a sociedade.
Lula
Em 2006, após o escândalo do mensalão, a CNBB passou a cobrar que o governo Luiz Inácio Lula da Silva não convivesse com a corrupção e, num ano eleitoral, criticou alianças partidárias do presidente, embora tenha se oposto a um impeachment. Lula diria, em 2009, que Jesus faria aliança com Judas para aprovar projetos no Congresso, o que ofendeu o episcopado. Outro atrito era a política econômica de Lula. Os bispos cobravam que ele não privilegiasse o capital. A CNBB também se posicionou contra o avanço de pesquisas sobre células tronco, incentivadas durante o governo do petista, e reclamou da distribuição de preservativos e outros métodos contraceptivos, como pílulas do dia seguinte e DIU (dispositivo intra-uterino).
Dilma
O aborto seria a marca da relação de Dilma Rousseff com os bispos com debates de cunho moral presentes nas campanhas eleitorais de 2010 e 2014, vencidas pela petista. Em 2012, durante o primeiro mandato, a CNBB se manifestou contra a escolha de uma ministra pela presidente. Dilma decidira nomear como ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres a professora universitária e pesquisadora da temática Eleonora Menicucci, defensora da descriminalização do aborto.
Temer
A CNBB manifestou ressalvas ao afastamento de Dilma, em maio de 2016, que levaria Michel Temer ao Planalto. Em 2017, a CNBB se opôs frontalmente à reforma da previdência e pediu mobilização dos cristãos contra a proposta elaborada pelo governo Michel Temer, que ficaria parada no Congresso Nacional por causa das investigações criminais e da delação da JBS contra o emedebista. Diante de denúncias de corrupção, o porta-voz da CNBB, secretário-geral d. Leonardo Steiner disse que Temer não tinha "condições éticas" de seguir no cargo.
'Divergência do bolsonarismo com Igreja é barulho de rede social', diz Damares
Ministra afirma que pretende estabelecer mais cooperação entre cúpula católica e o governo
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - A ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), que assumiu o papel de interlocutora do governo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o governo, disse ao Estado que acredita que a relação está boa e promete mais cooperação de pautas e políticas públicas: "Em alguns momentos, em alguns lugares, a Igreja chega o Estado não chega".
A senhora visitou a CNBB em nome do presidente Bolsonaro, com a ciência dele, representando o governo?
A visita se deu com conhecimento do presidente. Ele sabia da visita e da agenda. Não representei o governo como um todo, mas apenas o ministério. Nossas pautas foram muito pontuais.
A senhora é capaz de melhorar a relação do governo com a CNBB, após episódios como a divergência sobre o Sínodo da Amazônia e críticas frequentes do presidente e seus apoiadores ao Papa Francisco?
Eu me coloco à disposição para ser ponte, se necessário for. Mas acho que essa relação está boa. Não vejo esses ruídos todos. Acho que é mais barulho nas redes sociais do que de verdade a relação entre CNBB e Estado.
É um dos objetivos do governo reatar com a CNBB em 2020?
Isso nunca foi conversado, mas não vejo essa questão de não reatar ou rompimento. Esse rompimento nunca houve. A primeira visita que o atual presidente da CNBB (d. Walmor Oliveira de Azevedo) fez, assim que tomou posse, foi ao presidente da República. A CNBB tem inúmeras atividades ligadas a diversos ministérios. Quando a gente pensa no CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a gente associa à Funai (Fundação Nacional do Índio) e política indigenista. Quando a gente pensa em Pastoral da Criança, a gente já associada aos ministérios da Saúde, da Cidadania e ao nosso próprio ministério.
Pesa o fato de ser uma pastora conhecedora dos valores cristãos?
Eu não fui como pastora, fui como ministra e como sou militante em defesa da vida e da família e há muitos anos trabalhando com idosos, com criança... Todas as pastorais ligadas à CNBB de uma forma ou de outra uma vez na vida eu já participei. E essas pastorais todas têm uma relação muito grande entre os temas que elas lidam e os do ministério. Era apenas para apresentar à CNBB a formatação do ministério que estamos fazendo. Era uma visita que deveria ter acontecido ano passado.
Pode haver mais cooperação e parcerias do governo Bolsonaro com a Igreja Católica?
Com certeza, muita parceria entre governo e Igreja. Foi uma das coisas que nós falamos lá (na visita). A Igreja tem a Pastoral da Juventude que faz um trabalho espetacular e nós estamos construindo uma política nova para a juventude no Brasil. Dá para fazer muita coisa junto. A Igreja Católica cuida com muito carinho de alguns segmentos, como as famílias no cárcere - presidiários, mulheres, até mesmo as unidades socioeducativas, a população carcerária. A Igreja como um todo tem um trabalho social extraordinário, incrível. Em alguns momentos, em alguns lugares, a Igreja chega aonde o Estado não chega.
Marcelo de Azevedo Granato: Democracia dos cliques
É temerário que eles substituam os políticos, ainda que os políticos assim se substituam
A grande renovação do Congresso nas eleições de 2018 reforçou um modo peculiar de representação política, em que alguns políticos fazem enquetes nas redes sociais para definir seus votos. A ideia parece ser a de dar voz ao cidadão (especificamente ao cidadão que acompanha o político nas redes sociais) no momento da tomada de decisão política. Ou tornar mais direta a democracia representativa, que é indireta, já que nela elegemos representantes que tomam decisões políticas em nosso lugar.
Essa iniciativa suscita a pergunta: se fosse possível a todo cidadão “transmitir seu voto a um cérebro eletrônico sem sair de casa e apenas apertando um botão” (Bobbio), estaríamos dispostos a assumir, no lugar dos políticos, a responsabilidade de decidir sobre questões importantes para o País? Seria bem-vinda essa onipresença da política em nossa vida?
Já há alguns anos a política assumiu um lugar central na sociedade brasileira, tornando-se seu elemento marcante até na forma como nós mesmos enxergamos a nossa sociedade. Daí que, à hipotética pergunta acima, talvez muitos respondam que aceitam assumir, no lugar dos políticos, a decisão sobre o maior número possível de questões importantes do País. Argumentariam, por exemplo, que ninguém melhor do que nós mesmos para definir assuntos que nos dizem respeito: o foco da democracia, afinal, é o autogoverno. Ainda mais diante dos representantes políticos que temos.
Essa seria uma resposta respeitável para um problema real. Mas não nos parece ser essa a melhor resposta. Ou seja, não nos parece que uma hipotética democracia “total” ou mesmo uma democracia das lives e dos cliques seja um remédio para a nossa democracia representativa.
O fato inegável de que a prática política brasileira frequentemente não se orienta pelo interesse da sociedade não será reparado pela simples retirada do poder de decisão das mãos de pessoas incumbidas da identificação, discussão e maior acomodação possível dos interesses nacionais e sua atribuição a todas as pessoas, que não precisam ter outro interesse senão o próprio.
É verdade que os políticos e seus partidos têm sido incapazes, até por desinteresse, de realizar essa identificação, o direcionamento, a conciliação de demandas sociais. Mas entender que a solução para isso está na simples agregação das preferências do maior número possível de pessoas é ignorar que democracia sem paciência, diálogo, compromisso, baseada só na contagem de votos, em “quem ganhou” e “quem perdeu”, é falsa democracia.
Nela é preciso parlamentar, ou seja, “conversar em busca de um acordo” (Houaiss); um acordo que a política meramente aritmética, de pulsão e imposição, não poderá atingir. E assim nossas divisões político-ideológicas – que já contaminam outras esferas da vida social – se perpetuarão, em prejuízo da nossa comunidade.
É temerário, portanto, substituir políticos por cliques, ainda que os próprios políticos assim se substituam, como no caso das enquetes que definem votos. É preciso recordar que o político não é mero porta-voz de seus eleitores; a relação entre eles é de confiança, de modo que o representante político age, sim, em nome dos representados, mas, ao fazê-lo, deve tutelar não só os interesses dos que o elegeram ou de algum grupo, mas os de toda a sociedade.
Daí a verdadeira “gororoba representativa” encenada nas enquetes: de um lado, o político orienta/vincula seu voto ao parecer da maioria de seus seguidores virtuais, talvez vendo aí a expressão de uma opinião pública, que, porém, é a simples soma de cliques mais ou menos informados/refletidos de sujeitos (e robôs?) privados. De outro, é o próprio político que decide quais questões serão tratadas dessa maneira.
A crítica desse estado de coisas não significa adesão a “tudo o que está aí” nem oposição ao envolvimento direto da população em assuntos de interesse público. O que emerge do que está acima é a necessidade de repensar os partidos 1) em sua organização, para que não continuem sendo o playground de suas inamovíveis lideranças nem partidos de um homem só; 2) em seus perfis e ideias para o País, o que dificilmente justificará as mais de 20 agremiações representadas no Congresso; 3) em seu distanciamento dos filiados, proporcional à sua proximidade com profissionais de marketing; 4) em sua seleção de quadros, para que propostas como a de candidaturas avulsas sejam desnecessárias.
Certamente, essas indicações não se farão presentes sem a persistente intervenção dos eleitores, da militância partidária e das instituições, nem serão o remédio para todos os males da nossa democracia representativa, mas constituem, a nosso ver, um projeto mais promissor que o da democracia “total” ou dos cliques. A atitude do bom democrata, disse Bobbio, “é a de não se iludir com o melhor e a de não se resignar com o pior”.
* DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO (ITÁLIA), INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FACAMP
Rolf Kuntz: Se governar atrapalha a reeleição, melhor mesmo é evitar esse risco
O critério é claro: baixaria é permitida, mas cuidar de reformas pode ter custo político
Quarta-Feira de Cinzas poderá ser difícil, mas a grande ressaca virá uma semana depois, principalmente para os mais sóbrios, quando sair o balanço econômico do primeiro ano do governo Bolsonaro. Todas as prévias apontam crescimento abaixo de medíocre, parecido com o de 2018 ou até inferior ao desse ano infeliz, quando a crise no transporte e a incerteza política interromperam uma recuperação promissora. Algum desfile extemporâneo poderá chamar a atenção, no início de março, mas o mais fascinante será ouvir as explicações de Brasília sobre as contas nacionais de 2019.
Não se esperam novidades animadoras com a divulgação, no dia 4, do produto interno bruto (PIB) do ano passado. Segundo a prévia mais confiável, produzida pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o PIB cresceu apenas 1,2%, pouco menos que no ano anterior, quando o avanço chegou a 1,3%. O presidente e seus auxiliares parecem conformados com os números pífios do começo de mandato. Mas o chefão do Planalto já se mostra nervoso, segundo se comenta em Brasília, com o risco de um novo fiasco em 2020, ano de eleições municipais e de construção de uma base para a busca de a reeleição presidencial.
Baixaria está longe de ser problema para o presidente, pelo menos diante de seus eleitores mais fiéis e dos apoiadores no charco digital. Esse comportamento, levado a novo recorde com as ofensas à jornalista Patrícia Campos Melo, pode ser visto como ponto positivo por esse público. Mas até esse auditório poderá ficar inquieto e menos favorável se a economia continuar em marcha lenta e o dinheiro permanecer curto. Por enquanto, os mais otimistas contam como feito importante a redução do desemprego.
Mas a redução, em um ano, foi de 11,6% para 11% da força de trabalho, com elevação para 11,8% durante o trajeto (no terceiro trimestre de 2019). A taxa média de desocupação recuou de 12,3% em 2018 para 11,9% no ano passado. Considerados só os extremos, os desocupados passaram de 12,1 milhões para 11,6 milhões, com melhoras muito limitadas no quadro geral.
No trimestre final de 2019, os trabalhadores subutilizados (os desocupados, os subocupados por insuficiência de horas e os pertencentes à força de trabalho potencial) eram 26,2 milhões. Em um ano houve redução de apenas 2,5%. Os informais chegaram a 38,4 milhões, 41,1% da população ocupada. Desde 2016 foi o maior número de pessoas ocupadas sem documentação.
As péssimas condições do mercado de trabalho combinaram com o baixo ritmo da atividade econômica, assunto desprezado pelo governo durante a maior parte do ano. Os primeiros incentivos entraram em vigor em setembro, com a liberação de recursos do Fundo de Garantia e do PIS-Pasep. Houve alguma aceleração do consumo, com reflexo moderado na indústria, mas em dezembro a atividade perdeu impulso, segundo os dados conhecidos até agora.
Com a perda de impulso no fim do ano e poucos sinais de reação em janeiro, economistas do mercado reduziram, neste mês, suas projeções de crescimento econômico em 2020. Na pesquisa Focus, publicada semanalmente pelo Banco Central (BC), a mediana das projeções de aumento do PIB caiu em quatro semanas de 2,31% para 2,23%. Para o período entre 2021 e 2023 essa estimativa está há muito tempo estacionada em 2,5% ao ano. Até esse número é um tanto otimista, porque envolve o pressuposto de um crescimento em torno do potencial da economia brasileira.
Há vários anos a expansão tem ficado bem abaixo desse padrão. Há até razões muito boas para se perguntar se o potencial será esse mesmo. Com tantos anos de investimento insuficiente para cobrir a depreciação do capital fixo – máquinas, equipamentos, instalações e infraestrutura –, a capacidade de crescimento pode ter diminuído. Nem se fale nas condições da mão de obra, agora dependentes, em boa parte, do ministro Abraham Weintraub, um dos principais, e mais inquietantes, indicadores de qualidade do governo Bolsonaro.
Dúvidas sobre o avanço da pauta de ajustes e reformas inquietam o mercado, como informou o Estado na quinta-feira. Já se fala em medidas para romper o teto de gastos. Multiplicam-se os atritos com o Congresso, agravados pelo general Augusto Heleno quando acusou parlamentares de chantagear o Executivo. Mas o fator mais importante é o horror do presidente às funções de governo. Ocupado quase só com a reeleição, ele tenta adiar ou evitar todo ato administrativo com potencial custo político.
O Congresso ainda espera o projeto da chamada reforma administrativa. Talvez seja enviado depois do carnaval. A hesitação, assim como as intervenções presidenciais em assuntos como esse e a reforma tributária, só se explica pelo interesse eleitoral. Por isso, e sem argumento técnico, ele rejeitou a ideia (ruim, a propósito) de recriação da CPMF. Por isso ele se opôs à inclusão da cerveja na base do “imposto do pecado”. Governar dá galho, deve pensar o presidente. Pode estar certo, mas é a função presidencial. E governar é diferente de cometer baixarias, assinar medidas provisórias inaceitáveis e dar prioridade à reeleição desde o primeiro ano de mandato.
Eliane Cantanhêde: O controle do mundo
Recado dos EUA: opção pelo 5G chinês pode comprometer negociações na área de defesa
O Brasil está sofrendo pressões dos dois lados de uma guerra pós-contemporânea que tende a ter grande impacto na humanidade e tem nome curto, na verdade, uma sigla: 5G. Por trás desse avanço revolucionário há uma disputa entre Estados Unidos e China pela dominação do mundo no futuro.
Parece exagero? Pode ser, mas os estrategistas dos países desenvolvidos se debruçam sobre o tema e o governo brasileiro, providencialmente cauteloso, criou um grupo de trabalho para analisar a questão sob os vários aspectos que ela abrange: financeiro, tecnológico, econômico e político, considerando a segurança de dados públicos, privados e individuais. Não é pouco. E não é fácil.
Tanto os chineses pressionam o Brasil a favor do 5-G da Huawei, alegando preços menores e capacidade maior, quanto os americanos trabalham em sentido contrário, alertando para a “ameaça” que pode representar para a soberania nacional uma empresa estatal da China na área de dados.
Em resumo, há temor de que a China, hoje segunda maior potência, possa usar o 5G para não só coletar, mas manipular dados de defesa, comunicações, energia elétrica, estradas, controle aéreo e florestas.
Além de reunir o maior banco de dados de indivíduos do mundo. O governo chinês, que não é exatamente uma democracia, teria o controle de algo preciosíssimo nas disputas entre potências: informação. E, pior: poderia ter o controle remoto do funcionamento de todo o País. Com um botão, desligar uma hidrelétrica.
Evidentemente, nenhum dos dois lados é santo e os Estados Unidos não estão preocupados em preservar dados e bases estratégicas brasileiros, mas sim sua própria hegemonia. Aliás, faz pouco tempo, uns cinco anos, que se descobriu que a NSA, agência de espionagem americana, grampeava a presidente Dilma Rousseff, 29 membros do governo e estatais, como a Petrobrás.
Já que o presidente Jair Bolsonaro vai aos EUA em março, é bom lembrar que a diplomacia, a economia e a agricultura brasileiras têm recolocado no eixo as relações com a China, que haviam sido ameaçadas pelo presidente, mas a prioridade das prioridades é a parceria com os EUA, ou melhor, com o governo Donald Trump.
Essa parceria vai bem, com pelo menos dez pontos prioritários. Trump lota aviões de brasileiros ilegais (que aumentaram entre 700% e 1000% em 2019) para despejá-los de volta, mas Bolsonaro lava as mãos e até estimula, considerando que esse é um problema menor. Quem arrisca que se vire. O importante é o interesse nacional.
Brasil e EUA, que se unem a regimes como o da Hungria e Polônia tendo como pretexto uma tal de “Aliança pela Liberdade Religiosa”, estão na verdade construindo um eixo internacional ideológico, de direita. E isso serve de liga para uma aproximação bilateral crescente em comércio, investimentos, energia, uso da Base de Alcântara (MA), pesquisa, tecnologia, cooperação em diferentes áreas, inclusive defesa, tão cara a Bolsonaro.
E é precisamente aí, nesse pacote, que o governo americano tem mandado um recado nada sutil para o brasileiro: as negociações e acordos vão de vento em popa, mas uma eventual adesão do Brasil à tecnologia 5G da China terá consequências e poderá prejudicar a aproximação, principalmente na área de defesa.
As guerras já foram com soldados em terra, passaram a ser por mísseis, resvalaram para uma fase nuclear e agora caminham para ser mais sofisticadas. A nova guerra é digital, pelo controle do mundo via dados. Não tem jeito: o 5G veio para ficar e, assim como todos os países, o Brasil vai ter que optar pelo modelo que melhor lhe convier, estrategicamente. Mas todo cuidado é pouco na hora de decidir. Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.
Vera Magalhães: Bolsochavismo
Motim de policiais com apoio do presidente pode ser embrião para milícia paraestatal
A semana pré-Carnaval foi marcada pelo violento motim da Polícia Militar do Ceará, que ameaça se espalhar por outros Estados, desafia a autoridade dos governadores, conta com a simpatia e o incentivo declarados do presidente Jair Bolsonaro e de seus filhos e asseclas nas redes sociais e pode ser, caso se alastre, o embrião da criação de uma milícia paraestatal bolsonarista inspirada na criada por Hugo Chávez e inchada por Nicolás Maduro na Venezuela.
Não é de hoje que o bolsolavismo bebe na fonte da criação bolivariana, replicando seus métodos de organização e lhes dando uma roupagem ideológica de extrema direita.
A proliferação de escolas cívico-militares, impostas a partir de Brasília aos Estados, a militarização total do Palácio do Planalto, a convocação, feita por um desses militares do gabinete, o general Augusto Heleno, de manifestações de rua em apoio ao presidente e para emparedar o Congresso são todos movimentos combinados que têm clara inspiração na escalada chavista a partir de 2005.
O movimento dos policiais militares é o mais ousado e controverso desses movimentos, porque inclui o incentivo, que era tácito e vai se tornando cada vez mais implícito, a motins já classificados como inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e cuja ilegalidade foi reiterada pela Justiça, no caso do Ceará.
Bolsonaro e os filhos oscilam entre a brincadeira simpática e o apoio escancarado ao movimento dos amotinados cearenses, que perpetraram na última quarta-feira a tentativa de homicídio do senador Cid Gomes – que, em outro ato tresloucado muito representativo dessa polarização patológica da política brasileira, havia investido com uma retroescavadeira contra um grupo que tomava um batalhão da PM em Sobral.
Não se ouviu do presidente da República, do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e de nenhum dos militares do governo, que deveriam ser os primeiros a serem intransigentes na defesa da hierarquia e da disciplina militares, nenhum pio condenando o movimento ilegal dos PMs cearenses, cobrando o imediato desligamento dos amotinados nem a investigação e prisão dos autores dos disparos que alvejaram um senador da República.
No lugar disso, Bolsonaro estendeu sua fanfarronice, demonstrada dias antes na piada sexual de botequim com uma repórter, ao brincar que Cid Gomes não tinha habilitação para dirigir retroescavadeira, na sua última live. Flávio Bolsonaro foi mais explícito, ao chamar os amotinados que fazem uma greve ilegal de pessoas em busca de “melhores salários”, mais parecendo um sindicalista petista.
O movimento dos PMs não começou agora. Teve uma primeira onda em 2017, quando o levante violento no Espírito Santo teve incentivo explícito do então deputado Bolsonaro. Agora, os líderes da greve ilegal no Ceará são todos políticos com patentes militares – outra onda que veio na esteira do bolsonarismo em 2018.
A Milícia Nacional Bolivariana da Venezuela foi criada por Hugo Chávez em 2007, e hoje conta com mais de 1 milhão de cadastrados. Maduro quer chegar a 2 milhões. Seus homens e mulheres armados recebem salários de fome e uniformes cáqui para defender o governo, encher comícios, espionar a oposição e evitar a deposição do ditador.
Insuflar em policiais militares um sentimento de louvor político, passando por cima dos governadores e usando pressão salarial como combustível coloca o Brasil no caminho da criação de uma milícia paraestatal. Cabe ao Congresso, ao STF e aos governos estaduais cortar o mal pela raiz, punindo e reprimindo os movimentos dos PMs, sem ceder a chantagens por reajustes nem negociar anistias a criminosos.
Adriana Fernandes: A teia do desastre
Se pressão por reajuste salarial das polícias prosperar e se espalhar por todo o País, impacto do que acontece agora em MG e CE cairá bem no colo do ministro da Economia, Paulo Guedes, e no bolso de todos os brasileiros
O problema da pressão por reajuste salarial das polícias nos Estados é político, policial, jurídico e é também profundamente econômico.
Se o movimento prosperar num efeito cascata e se espalhar por todo o País, o impacto do que acontece agora em Minas Gerais, Ceará e em pelo menos mais dez Estados cairá bem no colo do ministro da Economia, Paulo Guedes, e no bolso de todos os brasileiros.
Não há dúvida de que o resultado será o comprometimento da sua principal diretriz de política econômica: consolidar o ajuste das finanças públicas. A consequência seguramente será desastrosa.
A responsabilidade maior neste momento é de Jair Bolsonaro que, como deputado e, agora, como presidente da República não tem barrado as ações que seus apoiadores patrocinam nesse movimento.
Em 2017, o Estado publicou a seguinte manchete: Rede de Bolsonaro na teia do motim. Era período de carnaval, como agora. Um grupo político ligado ao então deputado federal Jair Bolsonaro esteve na linha de frente da comunicação e da logística do motim que parou a Polícia Militar do Espírito Santo e que foi influenciado por um sofisticado sistema de mensagens pelas redes sociais e WhatsApp.
Na época, o Espírito Santo viveu um quadro de “terrorismo digital” por meio da disseminação de informações falsas e boatos com o objetivo explícito de deixar a população em pânico. Um grupo de especialistas em comunicação digital identificou que o movimento teve apoio nas redes sociais e que 80% das mensagens partiram de pessoas e redes de fora do Estado.
Assim como neste carnaval, em 2017, tudo estava pronto para o movimento se espalhar, nos dias seguintes, para outros Estados do Nordeste. O processo foi interrompido depois que os líderes do movimento capixaba foram presos. É justamente durante a festa do carnaval que as cidades precisam de força de segurança turbinada, com escala especial.
O que está acontecendo neste carnaval em vários Estados é muito semelhante. O mais grave é que pode se tratar de uma continuidade daquele movimento. Até o momento, não se vê nenhuma manifestação do presidente, que tem forte influência nessa categoria e a protegeu na reforma da Previdência, para conter o seu avanço.
O governador de Minas Gerais, Romeu Zuma, do partido Novo, não conseguiu enfrentar a pressão. Cedeu ao enviar projeto de lei à Assembleia com reajuste de 41,7% para todas categorias das polícias civil, militar, bombeiros e agentes penitenciários que já provocou um efeito cascata que ameaça o ajuste fiscal das contas dos Estados e as negociações do novo programa de socorro financeiro planejado pelo governo federal.
Os deputados mineiros foram além: estenderam para 70% do funcionalismo o aumento salarial. Zuma deu um tiro no pé do seu governo. Morreu para ele. Se não tiver habilidade e apoio político para recuar, o Estado não terá como ingressar no Regime de Recuperação Fiscal (RRF), o socorro financeiro da União.
Quem se lembra do caos nos serviços públicos no Rio de Janeiro, antes de conseguir o socorro federal? Servidores, com salários atrasados, recebendo na rua comida como doação?
Zema mentiu para seus eleitores quando afirmou ontem, pelo Twitter, que o impacto financeiro do projeto de reajuste salarial encaminhado à Assembleia Legislativa de Minas Gerais estava em conformidade com o atual entendimento do Tribunal de Contas sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Um Estado quebrado não pode dar reajuste. Com certeza, o reajuste de Minas vai parar no Supremo Tribunal Federal (STF). O aviso já foi dado pelo relator das contas do presidente Jair Bolsonaro no Tribunal de Contas da União (TCU), o ministro Bruno Dantas.
Nas redes sociais, Dantas publicou mensagem prevendo que será inevitável que o Supremo aprecie a recente leva de reajustes salariais de servidores públicos dos Estados sob a perspectiva da LRF.
É preciso dar logo um basta no foco de pressão de reajustes. Esse é um gasto permanente no orçamento dos governadores. Essa pressão está sendo embalada pelas eleições deste ano e também pelo dinheiro em caixa proporcionado pela arrecadação do leilão do petróleo do ano passado. É preciso entender que o aprofundamento da crise financeira dos Estados representa um problema gravíssimo com consequências severas para todo o País. Um desastre que está sendo contratado.
* É jornalista
Marco Aurélio Nogueira: O gabinete fardado
‘Militarização’ coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente
E eis que, sem maior alvoroço, os militares voltaram a ter importante peso político no Brasil. Passaram a dominar o Palácio do Planalto, onde fica o presidente, ele também um ex-militar. Vários generais e um almirante ocupam da Casa Civil à Vice-Presidência da República.
O gabinete fardado está sendo analisado como um freio ao extremismo histriônico da ala ideológica do governo, formatada pelo olavismo. O fato poderia ser visto como uma oportunidade para que se imprima um novo estilo de atuação ao governo, reduzindo seu sectarismo e sua visão obnubilada da realidade. Um estilo mais frio não daria trela às baixarias dos ideólogos.
Nessa avaliação, o novo gabinete poderia funcionar como um freio de arrumação, que acomodaria as melancias que o governo deixa chacoalhar na carroceria. Ajudaria a reduzir o destempero presidencial. Formar-se-ia um colegiado decisório que, apoiado na hierarquia militar e na cultura da caserna, faria um contraponto às manifestações bélicas do bolsonarismo. Afinal, em tempos de paz é mais importante saber guardar e reforçar posições do que atacar, sobretudo se os inimigos são imaginários.
Tudo isso a se ver. Antes de tudo será preciso descobrir se os oficiais têm um plano para recuperar a imagem do governo, se atuarão como fator de equilíbrio ou se darão um cheque em branco ao presidente Jair Bolsonaro, estimulando suas intervenções desqualificadas. Aconteceu algo assim com o general Heleno, no início visto como “moderador”, mas que logo se revelou um ativista do bolsonarismo, um “incendiário”.
A Casa Civil está com o general Braga Netto, militar experiente. Órgão estratégico, dele depende a coordenação governamental e a organização de um ambiente favorável no Congresso. Militares são, como todos os cidadãos, seres políticos qualificados para pensar o Estado, a comunidade política. Fazem isso, porém, com uma sólida ideia de lealdade e uma forte carga corporativa, que os impulsiona a verem a si próprios como diferentes dos demais e com interesses que precisariam ser defendidos a ferro e fogo. São treinados para “desconfiar” dos políticos, não para fazer política.
Se não tiver jogo de cintura, um general na Casa Civil pode dificultar ainda mais as relações entre o Executivo e o Legislativo. Pode, também, aprofundar a inserção das Forças Armadas no governo, com o risco de que terminem por trocar o perfil técnico e a missão institucional de proteger o Estado pela gestão dos negócios governamentais e pelos conflitos políticos a eles inerentes. Militares num governo autoritário, como é o de Bolsonaro, não beneficiam a imagem de isenção democrática das Forças Armadas. É algo que as lança no olho do furacão, ainda que sejam apenas alguns oficiais a assumir o encargo.
Um governo com uma ala militar ativa pode transitar em campo minado. Como observou o sociólogo Rodrigo Prando, em caso de rompimento com os militares o governo poderia ver-se numa crise de desfecho imprevisível. Militares sabem ocupar territórios, mas não necessariamente estão preparados para dialogar, mover-se entre ideias plurais e pressões típicas do mundo político.
No Brasil as Forças Armadas são vistas como patrióticas, disciplinadas e “desinteressadas”. Mas carregam o fardo do golpismo e do autoritarismo. Acreditam que os militares existem para salvar o País. É provável que os oficiais mais jovens não compartilhem esse fardo. A caserna, porém, é mais ampla. Seja como for, já estão dadas as condições para que as Forças Armadas contenham os seus impulsos históricos e atuem democraticamente.
A presença militar tenderá a incentivar uma postura focada em resultados estruturais, alheios ao jogo eleitoral. É onde repousa o risco de atrito com a política. Também terá de se haver com as resistências do núcleo civil do governo. A “militarização” coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente, com seu familismo exacerbado. É difícil imaginar que Bolsonaro adote uma conduta mais digna e educada, mais criteriosa com as políticas estratégicas e os interesses nacionais. A questão não é de espaço e poder de pressão, mas de biografia, estilo e modo de pensar.
Deveria ser constrangedor, para a ética militar, que as grosserias, ofensas e aberrações do presidente estejam a ser cometidas nas barbas dos oficiais que integram o núcleo principal do governo. Militares costumam ser discretos, falam pouco, cuidam da linguagem. Não deveriam lavar as mãos diante dos descalabros que jogam a Presidência da República num poço sujo e sem fundo.
O gabinete fardado dará força à tecnocracia? Vai depender, também, da capacidade que tiverem os políticos de equilibrar a balança. O Congresso tem contrastado a falta de iniciativa do Executivo no que tange às reformas e à formulação de políticas públicas. Se calibrar bem a sua atuação e reunir as forças democráticas de oposição, o Congresso poderá ajudar a que se organize uma agenda nacional e se modifique a orientação de uma população que acredita que a saída está fora da política e longe do Parlamento.