O Estado de S. Paulo
Sergio Fausto: Mito e política – precisamos de uma alternativa
País começa a se cansar de um clima que azeda relações pessoais e tira a alegria de (con)viver
A política não é lógica ou ciência exata, não quer demonstrar, e sim convencer. Mais do que argumentos, busca mobilizar certos valores e sentimentos, por oposição a outros. Visando à conquista de corações e mentes, vale-se de narrativas cognitivamente simples e emocionalmente poderosas para fixar, por contraste com outras, uma certa representação discursiva da realidade presente e projetar um futuro melhor (mesmo que a promessa seja de retorno a um passado idealizado).
Compreender que a política se dá no plano da competição simbólica é especialmente importante em momentos nos quais as sociedades se sentem ameaçadas. Nesses momentos, a racionalidade ordinária e individual do eleitor, sem desaparecer, cede terreno a vastas e polarizadas emoções coletivas de medo, rancor e intolerância. Vivemos um momento assim, que, paradoxalmente, cria possibilidades de restabelecer convergência e projetar aspirações novas em torno de valores comuns.
Em artigo recente, David Brooks, colunista do New York Times, oferece explicação convincente sobre o favoritismo de Bernie Sanders nas primárias democratas e o completo domínio de Donald Trump sobre o Partido Republicano. Foram os únicos até aqui, diz ele, que produziram narrativas de caráter mítico sobre a nação americana, formulando representações simbólicas sintéticas sobre o que são e o que devem ser os Estados Unidos da América. Que sejam representações opostas mostra que a nação não é una. Nenhuma nação.
Diante das opções que não lhe agradam, Brooks pergunta: ainda poderá surgir entre os democratas uma candidatura capaz de apresentar e encarnar um relato mítico alternativo ao “socialismo” de Sanders para se contrapor ao nacionalismo xenófobo de Trump, que ele vê como o mal maior? O colunista não arrisca uma resposta. Apenas registra que nas suas andanças pelos Estados Unidos tem notado, no nível local, que a maioria das pessoas parece disposta a cooperar para resolver problemas comuns, independentemente de raça ou preferência partidária. Ainda que a observação de Brooks esteja correta, resta o imenso desafio de dar expressão política nacional concreta ao que se verifica difusamente no nível comunitário. Doze anos atrás, Obama conseguiu.
O Brasil está em outro ponto do ciclo eleitoral, mas a questão posta por Brooks se aplica muito bem à realidade brasileira. Por ora, apenas duas forças conseguiram produzir narrativas política e eleitoralmente poderosas sobre o que é e o que deve ser o Brasil. O relato mítico da nação devotada a Deus e por isso livre do mal da corrupção e da degeneração dos costumes leva vantagem sobre o relato mítico do País socialmente justo pela luta de um partido e de um líder do povo, com o povo e pelo povo. Isso porque o primeiro relato conta com os instrumentos do poder e com um presidente onipresente e o segundo está sem poder, sem dinheiro e com seu homem-mito eleitoralmente inabilitado, por problemas com a Justiça.
Para criar uma alternativa a essa dualidade, as forças de “centro”, por ora uma geleia de contornos imprecisos, não podem cair no erro da “idiotice da objetividade”, ou seja, acreditar ser possível combater poderosos relatos mítico-políticos apenas com apelos à razão, muito menos se calcados em argumentos tecnocráticos sobre propaladas ou reais virtudes administrativas. Claro que boas propostas e competência gerencial são importantes, mas de pouco valem na conquista de corações e mentes se não forem incorporadas como elementos de uma narrativa abrangente baseada em valores e sentimentos diferenciadores das opções ora dominantes.
Parte do desafio é desconstruir o relato mítico dos adversários. O bolsonarismo revela cruel falta de empatia com o sofrimento humano, intolerância com quem não se enquadra no padrão ultraconservador da moral e dos bons costumes, desprezo pelas mais elementares regras de convívio numa sociedade democrática. O petismo faz pouco do clamor por igualdade republicana perante a lei. Prefere vê-lo como produto da manipulação política, e não como resultado da democratização substantiva de uma sociedade que se cansou da impunidade dos poderosos. Rejeitando qualquer autocrítica, fecha-se sobre si mesmo e glorifica seu líder máximo.
Para construir uma perspectiva alternativa é preciso entender e sentir que o Brasil clama por decência, por igualdade de oportunidades, proteção aos mais pobres, redução da violência, cuidado com as pessoas e com a natureza. Que começa a se cansar de um clima que azeda até mesmo as relações pessoais e tira a alegria de (con)viver. O País pede uma liderança que seja firme, mas não boçal, que respeite sinceramente a religiosidade do povo, nas suas diferentes fés, mas enfrente a manipulação política da religião como instrumento de poder e enriquecimento, que tenha crença verdadeira na democracia e nos valores da igualdade e da liberdade.
Além de um candidato, é necessário produzir uma narrativa política em torno desses valores e sentimentos. Não há muito tempo a perder.
* Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
Bolívar Lamounier: Aprendendo com o mundo animal
Os ouvidos brasilienses são como os da naja, ou da mamba-negra: incuravelmente surdos
Aproveitei os feriados para estudar atentamente as serpentes peçonhentas. Estou convencido de que esse é um bom caminho para entendermos melhor o Brasil – não só as elites, mas grande parte da sociedade.
Em pelo menos três atributos, estou seguro de que as referidas serpentes se parecem muito conosco. O primeiro é que, como nós, elas se acham o máximo. Acreditam ter sido criadas por Deus e bonitas por natureza. E algumas são de fato maravilhosas, como as corais (a falsa e a verdadeira), com o lindo tom de vermelho de que se revestem. Devo também admitir que em certos aspectos elas têm razão. Imaginem um animal que não tem asas nem pernas e consegue percorrer grandes distâncias, só deslizando, com grande elegância.
O segundo ponto não é tão favorável a elas. Todas as serpentes venenosas se julgam poderosas, imbatíveis, inexoráveis. Aptas a estraçalhar qualquer adversário. Pensam que, sentindo fome, basta sair para um rápido passeio e... crau! Algum gaiato será servido no jantar.
Mas nesse aspecto elas se enganam redondamente. Mesmo as piores, as mais fortes, as capazes de inocular um terrível veneno em suas presas, trucidando-as, também podem ser abatidas por estas, e mesmo, vejam bem, por pequenos animais. Um engano comum e fatal é o que costuma ocorrer quando uma mamba-negra enfrenta um mangusto (moongoose em inglês, mangoustin em francês). A mamba-negra é uma das mais letais que se conhecem. Com cerca de dois metros de comprimento, é uma máquina de matar. Já o mangusto é um bichinho simpático, parecido com um cachorro de tamanho médio, com cerca de 50 a 70 centímetros de comprimento. Tem uma cauda volumosa e um focinho comprido. O que melhor o distingue, vejam só, são seus hábitos culinários. Não dispensa um pequeno roedor, mas gosta mesmo é de cobras peçonhentas – como a mamba-negra. Quando os dois se encontram, ela logo levanta a cabeça, colocando-se em posição de bote. E ele, vocês acham que conserva uns cinco metros de distância? Qual nada! Aproxima-se até meio metro e começa a provocá-la. Dá voltas em torno dela, como se estivesse dançando, vai numa direção e volta na outra, tratando de desorientá-la. Na verdade, ele está é procurando um flanco, um momento em que lhe possa desfechar uma mordida pela nuca. A certa altura, irritada e já quase exasperada, ela perde a paciência e desfere seguidos botes contra ele, errando todos. Os reflexos e a velocidade do rapaz são incríveis. Quando a mamba-negra começa a se cansar, o flanco finalmente aparece e ele a liquida com uma só mordida.
Igualmente instrutivos são os gatos selvagens, que também habitam as áreas quentes da África e da Ásia. São comuns nos desertos da Namíbia, por exemplo. Menores que os mangustos, eles são de certa forma até mais audaciosos, pois se aproximam realmente das cobras e ficam praticamente parados. O que os distingue é, como direi, um DNA de boxeador. Com as patas dianteiras, eles desferem um belo soco de cima para baixo nas serpentes e, quando elas começam a se recuperar, desferem outro com a outra pata. Depois de 10 ou 15 pancadas como essas, eles cravam os dentes na cabeça delas, certificando-se de que elas já partiram desta para melhor. Aí eles pegam o celular e ligam para a patroa, pedindo-lhe para caprichar porque o jantar vai ser supimpa.
Pois, então, aqui chegamos ao terceiro ponto, talvez o mais importante para compreendermos nossa política e nos compreendermos como sociedade. Pouca gente sabe disso, mas todas as cobras são surdas. Enxergam mal e não ouvem bulhufas. Mas como, indagará meu leitor, e a poderosa naja indiana, que dança ao som da flauta tocada pelo encantador de serpentes. Dança nada. Do som da flauta ela não faz a menor ideia. O que ela faz é acompanhar os movimentos corporais do encantador, sempre em posição de bote.
O Brasil também – talvez não todo ele, mas a maioria das elites e das camadas médias – é absolutamente surdo. Aos congressistas e aos juízes do STF, por exemplo, você pode dizer quantas vezes quiser que o Brasil precisa urgentemente de reformas muito mais drásticas do que essas que temos discutido, que acreditar em recuperação econômica se não conseguimos um crescimento do PIB de sequer 3% ao ano é pura ilusão... Os ouvidos brasilienses são como os da naja indiana, ou da mamba-negra, ou da cascavel. Iguais, incuravelmente surdos. Tente dizer-lhes que, crescendo 3% ao ano, levaremos algo como 30 anos para dobrar nossa pífia renda anual por habitante. Ou que não estamos investindo nem o mínimo necessário para manter a infraestrutura. Que não iremos a lugar algum sem uma reforma política séria e um ministro alfabetizado na Educação. E que os megaproblemas de nossa sociedade (violência, corrupção...) continuarão a se agravar enquanto não dermos uma guaribada em nosso aparelho auditivo...
Nessa hipótese, daqui a 15 ou 20 anos estaremos desprotegidos e o jeito será importar mangustos e gatos selvagens em grande quantidade.
* Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Eliane Cantanhêde: A força emergente
Governadores socorrem Ceará e se unem a STF e Congresso para exigir espírito republicano
O que têm em comum o advogado e ex-juiz Wilson Witzel, do Rio, de direita e do PSC, e o engenheiro agrônomo e professor Camilo Santana, do Ceará, de esquerda e do PT? Os dois integram a nova força emergente, e de resistência, nessa tão emaranhada e preocupante política brasileira: a frente de governadores.
Bastou o presidente Jair Bolsonaro ameaçar não prorrogar o uso da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e lavar as mãos diante da crise no Ceará para Witzel e os governadores de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), e de São Paulo, João Doria (PSDB), articularem o envio de tropas para socorrer o colega Santana e a população cearense.
Doria se dispôs a enviar 100 homens, 20 viaturas e dois drones da PM paulista, enquanto fazia consultas à procuradoria sobre o seguro para os homens da operação em outro Estado. O importante, para os governadores, era dar o recado para Bolsonaro e não deixar o Ceará ilhado entre bandidos agindo à luz do dia e PMs amotinados.
Simultaneamente, Camilo Santana estudava entrar com recurso no Supremo para obrigar o presidente a manter o Exército no Estado, de acordo com a Constituição. Em live na internet, Bolsonaro referiu-se à “minha GLO”. A GLO não é dele, muito menos deve ficar ao sabor de disputas politicas, mas mesmo assim seria drástico jogar o Supremo na mais nova crise entre Planalto e governadores e mais lenha na fogueira entre os Poderes.
Foi pela dupla pressão, dos governadores e da possível interferência do Supremo, que Bolsonaro decidiu e finalmente anunciou a prorrogação da GLO no Ceará, onde as negociações entre o governador e os PMs rebelados empacaram numa palavra: anistia.
Bolsonaro parece tratar tudo isso na base do “bem feito!”. Não percebe que quem está contra a parede hoje é o petista Camilo Santana, mas quem poderá estar amanhã é o País todo. Se o Ceará ceder e anistiar facções de uma força armada que tomaram de assalto quartéis, fecharam o comércio, tomaram viaturas policiais, desfilaram encapuzados e miraram para matar num senador licenciado, isso será um pavio de pólvora. Bolsonaro não lucra nada com isso.
Em reunião no Ministério da Defesa, quinta-feira, ele ouviu um balanço da presença da Força Nacional e do Exército no Ceará e tomou para si a decisão de prorrogar ou não a GLO. No caso dele, uma decisão envolvendo dados reais, a disputa ideológica e, digamos, o seu jeito de ser. A vontade irresistível de dar mais um tranco nos governadores. Eu sou presidente, eu posso...
Como pano de fundo, há a complexa questão das PMs, que são militares, mas não são subordinadas às Forças Armadas e sim aos governos estaduais. Convivem com as regras políticas dos governadores e lembram que são militares quando, por exemplo, tentam absorver regras camaradas na reforma da Previdência.
O fato é que 20 dos 27 governadores unem-se ao Supremo e ao Congresso para defender o equilíbrio da República, a democracia, os bons modos e o velho princípio de que “respeito é bom e eu gosto”. Os de São Paulo e Rio dão voz à reação, os do Nordeste tratam de controlar as contas públicas, atrair investimentos e manter os ganhos sociais. Há muitas divergências entre eles, mas trabalham o que há de comum.
É isso que Bolsonaro deveria fazer: marcar posição no que há de divergente, mas atuar em conjunto no que é de interesse do País e da Nação. Aliás, como ocorre quando governo federal e governo de São Paulo somam esforços contra um inimigo de todos, o coronavírus. Essa, sim, é uma ação republicana, ninguém perde, todos ganham. Mas é preciso algo que parece em falta: postura de estadista, noção da importância e dos limites do cargo. Ou seja, grandeza política e pessoal.
Vera Magalhães: Qual é a sua laia?
Debate democrático saudável pressupõe que as pessoas saiam dos seus guetos
"Vera Magalhães, eu não sou da sua laia." Esta foi, provavelmente, a única verdade proferida pelo presidente Jair Bolsonaro em sua última live, na quinta-feira, em que dedicou longos minutos a me atacar pessoalmente e a mentir de forma nonsense a respeito da informação que divulguei dois dias antes de que ele compartilhou dois vídeos, durante o carnaval, convocando para as manifestações do dia 15 de março a favor de seu governo e contra o Congresso.
A refutação passo a passo do besteirol de Bolsonaro a respeito dos vídeos eu já fiz no BR Político, neste jornal e nas redes sociais, e outros veículos jornalísticos a divulgaram com destaque, o que mostra a força da imprensa diante das tentativas de enfraquecê-la. Então, esta coluna não é sobre isso.
Mas a palavra “laia”, proferida com o costumeiro ódio pelo capitão, ressoa na minha cabeça desde então. Pela definição do dicionário, laia significa “categoria de seres ou coisas agrupados segundo determinada característica; classe, espécie, gênero, tipo”.
A conotação que Bolsonaro quis dar ao dirigi-la a mim foi pejorativa. Mas ela me atingiu nos brios, me remeteu a origem, a princípios.
Afinal, qual é a minha laia? A minha é a laia dos jornalistas, a que pertenço há 27 anos e contando. É uma laia que apanha de todo lado, mas não verga. É uma laia que busca, sim, o furo, já que a notícia e a informação são a fonte que vai adubar o solo da história e fornecer a matéria-prima para que a sociedade mude, evolua.
E você, leitor, qual a sua laia? Nesses dias de debate ainda mais acalorado que me vi impelida a travar na ágora moderna das redes sociais, houve muita solidariedade e empatia, mas também veio à tona, como um refluxo, a crítica segundo a qual eu, outros jornalistas e a imprensa seríamos “culpados” por termos “normalizado” Bolsonaro e feito “falso paralelismo” entre ele e o PT, e, por isso, “mereceríamos” os ataques que sofremos.
O papel da imprensa é expor os fatos a respeito de qualquer governo, de qualquer partido. Os arroubos autoritários de Bolsonaro nunca foram ignorados nem “normalizados” (urge achar palavra melhor) pela imprensa. Não houve paralelismo entre esse e os demais inúmeros problemas de Bolsonaro e os reais e diversos problemas do PT.
Os vícios do PT no poder foram dilapidar a economia, pilhar os cofres públicos, aparelhar todos os espaços com amigos, traçar um projeto de poder e colocar em ação uma máquina para perpetuar esse projeto por meio da corrupção.
Os desvarios de Bolsonaro não apagam nada disso. E lembrar esses fatos não é passar pano ou fazer falso paralelismo, mas entender parte do fenômeno histórico que nos trouxe até aqui.
A imprensa teve erros? Teve, sempre tem. Ter subestimado a força de Bolsonaro, não ter percebido que ele estava inserido no movimento global de fortalecimento da far-right reacionária e falsamente conservadora e não ter mapeado suas conexões no empresariado, no meio evangélico e no submundo das redes sociais, vitais para sua consolidação.
Mas não houve “normalização”. Isso é viagem de ácido de uma esquerda que está presa num discurso antigo. O lado “anormal” de Bolsonaro foi justamente o mais destacado em debates, entrevistas e perfis, e as pessoas votaram nele POR ISSO, e não APESAR DISSO.
“Ah, então por que vocês se espantam com os absurdos de agora, se era uma escolha muito difícil?”, manda o arrogante ironicão no Twitter. Não é espanto: é cobrar de quem ocupa a Presidência que se institucionalize, sob pena de ser enquadrado pelo sistema de freios e contrapesos da Constituição.
É preciso que este seja o foco do debate público, sob pena de que ele fique, de fato, preso à armadilha em que os guetos querem confiná-lo.
Fernando Henrique Cardoso: Hora de convergir
Precisamos de grandeza para superar desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco
Nem parece semana de carnaval. Em lugar da modorra habitual no circuito político, muita agitação. O círculo próximo ao presidente não deu folga. Nem ele. Foi um chacoalhar o tempo todo. Agora, depois da quarta-feira de cinzas, é melhor acalmar e refletir.
Falar de impeachment (mesmo que haja nos meios jurídicos e nos tribunais superiores quem tenha considerado a hipótese cabível) seria, no mínimo, arriscado. O país viu dois presidentes diretamente eleitos serem atingidos por este mecanismo constitucional. Não é simples, ele desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação. Mais ainda: por trás da votação no Congresso e das alegações jurídicas, no impeachment existe sempre um movimento popular, que não se vê no momento. Melhor nem cogitar, prematuramente, de tal movimento.
Pelo contrário, precisamos, como nação, de mais tranquilidade: temos pela frente dois enormes desafios. Um generalizado e de consequências ainda imprevisíveis, mas todas negativas, que é a ameaça de uma pandemia, o coronavírus. Outra, sentida por todos e mais diretamente pelos mais pobres, o arrastado crescimento da economia. O desemprego passou a ser considerado como “em diminuição” quando, na verdade, ainda há cerca de 12 milhões de desempregados, fora os desalentados que nem empregos buscam mais, e sem contar a baixa qualidade de muitos dos “empregos” disponíveis. O tempo de desemprego tem aumentado. Significa dizer que parte dos que perderam o emprego terá dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, quando o investimento voltar e novas tecnologias forem incorporadas ao processo produtivo.
Um país que está inseguro — insegurança agravada pelo temor de uma eventual pandemia — e que tem desemprego tão alto e resistente à queda precisa urgentemente de sensatez e de coordenação. Elas são necessárias para reduzir a insegurança e criar clima favorável ao investimento, sem o qual o crescimento da economia seguirá anêmico.
Nesta hora, faz falta a liderança: o presidente e seu círculo têm sido desastrados no falar, quando não no agir. Acirram, em vez de desanuviar, as ondas que nascem no meio político. Não raro, são eles próprios a produzir turbulência a partir de um impulso de confronto incompatível com o bom funcionamento das instituições e potencialmente perturbador da ordem democrática.
Felizmente, os chefes dos outros poderes, especialmente o da Câmara, percebem a situação e não lançam mais lenha à fogueira. De quem tem responsabilidade com o país se espera, no mínimo, que não compartilhe da loucura, não cale diante das tropelias, ainda que retóricas, e que não apenas tenha juízo para não acelerar ainda mais o descalabro como também aja, com prudência, mas com clareza de propósito, para colocar freios à marcha da insensatez.
Sei que é difícil, dificílimo, pedir bom senso em momentos de polarização. Mas é o de que o povo e o país precisam. Assisti muitas vezes no decurso dos acontecimentos, no Brasil e em outros países, governos de competência restrita apelar para o que lhes resta, em geral para os militares. Estes, por formação e, no momento atual, cada vez mais por convicção, sabem que a ordem não consensual e imposta por coação vale menos, para os objetivos nacionais, do que a ordem que deriva do livre consentimento das pessoas. Sabem que a ordem autocrática é pior do que a ordem democrática em que o poder está submetido a limites e controles institucionais e à soberania popular. Em quaisquer circunstâncias, entretanto, para eles, a ordem é um valor a ser preservado.
Não é para “dar um golpe” que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão, diante da dificuldade ou incapacidade do governo de recrutar maior número de bons quadros em outros setores da sociedade. O risco para a democracia e para as próprias FFAA como instituição permanente do Estado é de que se borre a fronteira entre os quartéis e a política.
Como se desdobrará a situação atual? Depende de como se comportarem líderes (não só políticos, mas da sociedade toda). É hora de convergir e assegurar o que mais necessitamos: coesão em torno de princípios e objetivos de proteção da democracia contra tentações populistas de índole autoritária. Sem sufocar as divergências naturais nas democracias, é urgente restabelecer o entendimento de que adversário político não é inimigo, de que política não é guerra, de que opositores eventuais do governo não são inimigos da pátria. É preciso ativar os anticorpos democráticos para neutralizar os impulsos de estigmatizar os políticos, como se difunde em parte das mídias sociais.
Precisamos de grandeza para superar nossos desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco e acima de qualquer mandatário está a Constituição. Termino citando de memória palavras de Ulysses Guimarães: divergir da Constituição, alterá-la por meio de emenda, sim; desrespeitá-la jamais.
*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República
Adriana Fernandes: Uma ‘pedalada social’?
O represamento das filas é um problema orçamentário de grande complexidade
Mais de 5 milhões é o número de brasileiros que aguardam na fila de pedidos para ter acesso aos programas sociais do governo e benefícios previdenciários. São 1,379 milhão de pessoas nos bancos do INSS e 3,621 milhões esperando por uma resposta do programa Bolsa Família.
A crise do represamento das concessões é um problema social de extensa gravidade e com enorme consequência para o País. Não só no curto prazo. As crianças mais novas, os idosos e as pessoas com deficiência de baixa renda, aquelas mais miseráveis, são os mais atingidos pelo colapso no gerenciamento da fila.
Era de se esperar, portanto, que as autoridades brasileiras estivessem mobilizadas num gabinete de crise para encaminhar uma solução para mitigar o problema diante das cobranças do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União.
Ao contrário, não se vê nenhuma autoridade empenhada verdadeiramente em assumir a liderança da condução do processo. Há 44 dias (é isso mesmo), o governo anunciou que iria contratar até 7 mil militares da reserva das Forças Armadas para auxiliar no atendimento das agências do INSS.
Em acordo fechado com TCU há algumas semanas, o governo anunciou que iria estender a contratação temporária para servidores aposentados do INSS. O fato é que o tempo passou e, até agora, nada da edição de medida provisória (MP) pelo presidente.
No Bolsa Família, a espera também continua. O novo ministro da Cidadania, Onxy Lorezzoni, prepara o redesenho do programa sem antes dar transparência aos dados sobre o seu enxugamento. A falta de transparência nos números é inaceitável.
O governo mente sobre os dados do programa. A resposta do novo ministro tem sido a de que o governo quer fazer do Bolsa uma importante ferramenta de construção de cidadania “com larga porta de entrada e mais larga porta de saída”.
Há a promessa de entregar mais de 200 mil concessões. Especialistas, porém, alertam que essa entrega resulta somente de um processo administrativo de cancelamentos expressivos, porem esporádicos. E que, portanto, não atenua o problema.
O governo teve de remanejar recursos do Orçamento para pagar o 13.º salário do Bolsa Família em dezembro – promessa eleitoral do presidente. A promessa foi cumprida à custa do represamento das novas concessões.
Como a fila do INSS continua, há uma “economia” temporária com o pagamento de muitos benefícios que já deveriam estar sendo feitos. Isso permite, no curto prazo, o remanejamento de recursos para financiar gastos de outras áreas. Uma hora essa conta vai aparecer. É uma bola de neve. A pergunta que fica: o governo está preparado para esse aumento de gasto mais à frente?
Os críticos do governo apontam que se trata de uma “pedalada social”. Técnicos do governo rebatem, porém, que não há conexão nenhuma com as famosas “pedaladas fiscais” da ex-presidente Dilma Rousseff.
Até agora, é certo que além de social, o represamento da fila é um problema orçamentário de grande complexidade.
O gargalo tem gerado um princípio de colapso na rede de assistência social de municípios, sobretudo os pequenos e médios. Sem o dinheiro do Bolsa Família, a população se vê forçada a bater à porta das prefeituras em busca de comida e outros auxílios. São os chamados benefícios eventuais, demandas que sobrecarregam as combalidas finanças das prefeituras.
Os eleitores nos locais mais precários do País muitas vezes não sabem que o problema parte de Brasília, do governo federal. Para eles, a culpa é do governo mais próximo. Em ano de eleições, seria essa uma estratégia meio tosca para mudar o mapa dos municípios e varrer os opositores?
Enquanto a crise da fila se agrava, governo e Congresso travam uma disputa sangrenta pelo dinheiro do Orçamento que compromete as solução dos problemas mais urgentes.
Fernando Reinach: Coronavírus veio para ficar
Entramos em uma fase da epidemia em que o objetivo não é mais exterminar o vírus
Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo
Já é consenso entre os epidemiologistas que o coronavírus se espalhará por todo o planeta e seremos obrigados a conviver com ele por muitas décadas. A grande dúvida é com que velocidade e intensidade ele se espalhará. É difícil acreditar, mas hoje é mais fácil prever o futuro distante (daqui 3 ou 4 anos) do que o futuro próximo (1 a 2 anos). Entender a causa dessa inversão é essencial para evitar pânico.
Daqui 3 ou 4 anos teremos uma relação com o coronavírus semelhante à que temos hoje com o vírus de sarampo, gripe e poliomielite. O vírus estará entre nós, mas terá dificuldades de se espalhar. Em 3 ou 4 anos, as vacinas muito provavelmente estarão disponíveis. E nessas condições, o vírus vai aparecer ocasionalmente, em pequenos surtos localizados. É claro que esse cenário não é certeza absoluta, mas é o mais provável dado o que conhecemos sobre epidemiologia, sobre vírus e as doenças que eles causam. Agradeça à ciência.
Agora vejamos por que o cenário de curto prazo (12 a 24 meses) é mais difícil de prever. Como ficou claro na China e agora na Itália, Irã e Coreia do Sul, esse vírus se espalha rapidamente e infectados, mesmo com poucos sintomas, são capazes de transmiti-lo. E o mais importante é que toda a população mundial nunca teve contato com esse vírus. Em outras palavras, qualquer pessoa é uma vítima potencial. A grande incógnita é o quão rápido o vírus vai se espalhar. A boa notícia é que a humanidade, graças a séculos de investigação científica, é capaz de interferir na velocidade de propagação.
Vejamos possíveis cenários para os próximos 24 meses. No pior deles, o vírus infecta toda a população nos próximos 12 a 24 meses. Nesse cenário, 85% da população terá uma espécie de gripe forte que poderá ser tratada em casa, estará curada e ficará parcial ou totalmente imune ao vírus após uma ou duas semanas. Os 15% restantes terão de ser tratados em hospitais. Aproximadamente 10% da população terá complicações e algo como 2% morrerá.
Nesse cenário, quando a vacina estiver disponível, grande parte da população já estará imune. O principal problema nesse cenário, além de 2% de mortes, é o colapso do sistema de saúde como ocorreu em Wuhan, na China. Em ambientes onde o sistema médico não existe ou colapsa, a taxa de letalidade pode ser muito maior do que 2%.
Os outros cenários envolvem um espalhamento mais lento do vírus. Vamos imaginar o melhor cenário possível. Propriedades intrínsecas do vírus, associadas a variações climáticas e medidas de contenção, garantem que o número de casos por mês nos próximos meses não passe de, por exemplo, 40 mil (cerca de 50% do que tivemos nos últimos 30 dias). Nesse caso teríamos 6 mil hospitalizações por mês e aproximadamente 800 mortes por mês. Após 2 anos, a vacina estaria disponível e entramos em uma nova fase tendo convivido com um número menor de mortes e com um número de hospitalizações administrável. Nessas condições, é possível que a letalidade seja menor do que 2% pois os sistemas de saúde não serão sobrecarregados.
Nesse caso a imunidade contra o vírus no longo prazo vai depender de uma vacinação generalizada mais adiante, pois somente uma pequena parte da população terá sido infectada. Este também é um cenário extremo, difícil de acontecer, pois provavelmente exigiria medidas globais semelhantes às adotadas na China. Os outros cenários estão entre esses dois extremos e, em todos eles, o que determina a velocidade de espalhamento são medidas adotadas pelos governos, a disposição da população de aceitar essas medidas, e o custo para a economia global.
Essas minhas previsões são extremamente rudimentares. Os epidemiologistas que trabalham com modelos matemáticos estão quebrando a cabeça para produzir modelos mais precisos, enquanto outros cientistas tentam desenvolver a vacina. Em todos os cenários, o crucial é ganhar tempo, não deixando o vírus se espalhar rapidamente.
Agora estamos entrando em uma fase da epidemia em que o objetivo não é mais exterminar o vírus. Essa foi a batalha perdida na China nos últimos dois meses. Estamos no início da segunda, que será mais longa e difícil - seu objetivo é atrasar o espalhamento do vírus pelo planeta diminuindo ao máximo sua velocidade de propagação. E nela todos podemos e devemos nos envolver.
*É BIÓLOGO
Eliane Cantanhêde: Um vírus sem ideologia
Acima da política, União e SP fazem tudo contra o coronavírus, mas tudo é pouco
Tudo o que pode ser feito para enfrentar a chegada do tsunami coronavírus está sendo feito pelo governo federal, pelo governo de São Paulo e pelos setores públicos e privados, acima das questões políticas. O grande problema é que esse “tudo” é muito pouco. Como também ao redor do mundo, nos quase 50 países que já convivem com o vírus circulando.
Sem vacina para prevenir, sem antivirais comprovados para remediar, só é possível fazer o óbvio, como admite o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, um personagem que emerge bem nessa crise. A primeira coisa é tentar detectar os casos suspeitos, não mais só em portos e aeroportos, mas também em solo nacional. Com a confirmação do primeiro caso, de um homem de 61 anos em São Paulo, o vírus está no ar.
A segunda medida é distinguir os sintomas leves, como no caso desse passageiro, daqueles em estado grave. Os casos leves podem ser tratados em casa, para reduzir o risco de contágio e não sobrecarregar o sistema público de saúde e mesmo os leitos privados. Só os que comprometam a capacidade respiratória devem merecer internação.
É muito mais fácil monitorar pessoas em ambiente restrito do que ameaçar alastrar a doença em locais congestionados e por onde circulam pessoas que já estão com a imunidade baixa e suscetíveis, como hospitais.
A terceira medida, de imensa importância, é evitar a qualquer custo que se alastre o pânico, a corrida a hospitais, um corre-corre inútil e perigoso que, como efeito colateral, pode despertar a cobiça de aproveitadores.
Para que correr às farmácias para comprar máscaras? Há inúmeros artigos e entrevistas por toda parte alertando que máscaras não evitam o contágio e – pior – podem favorecê-lo. A máscara é insuficiente para isolar o vírus, mas faz com que as pessoas fiquem toda hora tentando ajustá-la, ou seja, levando as mãos ao rosto. É péssimo.
O importante é fazer o básico: lavar as mãos, lavar as mãos, lavar as mãos, ou com a boa e velha fórmula da água e sabão ou usando o álcool gel. E, claro, evitar corrimão, superfícies muito tocadas, multidões, contatos com estranhos e... mãos no rosto. É simples, simplório, mas é o que temos por ora.
Dez entre dez especialistas sabiam e advertiam que a chegada do coronavírus ao Brasil não era questão de “se”, mas de “quando”. Inevitável. Só não se sabia, como não se sabe, dimensionar nem o tamanho do impacto na população nem na já tão frágil economia.
Há uma torcida, quase uma reza coletiva, inclusive de Mandetta, para que o grande inimigo do vírus no Brasil seja o clima úmido e quente de verão. Mas só saberemos disso na prática e nunca se pode esquecer que a Região Sul não é tão quente assim. A preocupação aumenta quanto mais se olha na direção ao Rio Grande do Sul.
Ao mesmo tempo, há doídas, sofridas interrogações sobre o quanto e por quanto tempo a economia global e a economia nacional serão impactadas. A China, segunda maior economia do mundo e nosso parceiro comercial número um, é o epicentro da doença, que se alastra e pegou a Europa em cheio, principalmente a Itália, que nos exportou o vírus.
Pobre Brasil. Depois dos dois anos da recessão gerada por Dilma Rousseff, vieram Rodrigo Janot, primeiro, e greve de caminhoneiros, depois, para interromper a retomada do crescimento no governo Temer. Agora, quando a aprovação da reforma da Previdência jogou toneladas de otimismo, vem uma pandemia (ainda não confirmada como tal pela OMS) atrapalhar.
Quanto às investidas do presidente Jair Bolsonaro contra tudo e todos, que só atrapalham, nem é bom falar. É hora de união, paz e segurança. O coronavírus é demoníaco. E se lixa para partido e ideologia.
O Estado de S. Paulo: Congresso e Supremo reagem a Bolsonaro
Políticos e juristas condenam compartilhamento de vídeos que convocam para atos anti-Congresso; decano do STF diz que conduta revela a ‘face sombria’ do presidente
Amanda Pupo, Felipe Frazão, Luiz Vassallo, Paulo Roberto Netto, Pedro Prata, Pepita Ortega, Rafael Moraes Moura e Vera Magalhães, de O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO - Um dia após o presidente Jair Bolsonaro compartilhar dois vídeos de convocação de protestos contra o Congresso, autoridades, políticos e juristas reagiram, citando até a possibilidade de que o presidente tenha cometido crime de responsabilidade. Bolsonaro afirmou que se tratou de “troca de mensagens de cunho pessoal”. Uma das reações mais contundentes veio do ministro do STF Celso de Mello, que considerou “gravíssima” a conduta de Bolsonaro.
Um dia após o presidente Jair Bolsonaro compartilhar dois vídeos de convocação para protestos anti-Congresso, autoridades, políticos e juristas reagiram, citando até a possibilidade de que ele tenha cometido crime de responsabilidade. O governo tentou minimizar a crise. Bolsonaro afirmou que se tratou de “troca de mensagens de cunho pessoal”. Militares que atuam no Planalto alegaram que o presidente não fez críticas diretas aos parlamentares nem foi o responsável pela confecção do vídeo.
O envio das mensagens por Bolsonaro foi revelado anteontem pelo site BR Político. Uma das respostas mais contundentes veio do Judiciário. O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, afirmou que considera “gravíssima” a conduta de Bolsonaro e que o envio do vídeo revela a “face sombria de um presidente que desconhece o valor da ordem constitucional”. Para o ministro, Bolsonaro demonstra visão “indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”.
“O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República”, afirmou o decano. A Lei 1.079/50 prevê, como um dos crimes de responsabilidade do presidente, atentar contra “o livre exercício” dos outros Poderes, o que pode levar a um pedido de impeachment.
Setores da sociedade também relacionaram o ato de Bolsonaro a uma possível conduta criminosa. O secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), d. Joel Portella, disse que a Igreja Católica poderá questionar judicialmente a responsabilidade de Bolsonaro. A atuação do presidente no episódio “ultrapassa os limites da legalidade”, na avaliação da presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Rita Cortez.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que “criar tensão institucional não ajuda o País a evoluir”. “Somos nós, autoridades, que temos de dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional”, declarou.
Anteontem, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff já haviam repudiado o envio dos vídeos.
O presidente respondeu pelas redes sociais. Em um post no Twitter, Bolsonaro declarou que troca “mensagens de cunho pessoal” com amigos pelo WhatsApp, sem negar que tenha enviado a filmagem. “Qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República”, disse. Segundo o Estado apurou, ele ficou irritado com o ex-deputado Alberto Fraga e com o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, que falaram sobre o vídeo com a imprensa.
Harmonia. Presidente do Supremo, o ministro Dias Toffoli defendeu uma “convivência harmônica entre todos”. Sem mencionar o vídeo, ele afirmou que o Brasil “não pode conviver com um clima de disputa permanente” e não existe “democracia sem um Parlamento atuante, um Judiciário independente e um Executivo já legitimado pelo voto”. O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, afirmou que as instituições devem ser “honradas por aqueles aos quais incumbe guardá-las”.
A convocação para os atos ganhou força na semana passada, após o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, dizer que Bolsonaro não deve ceder a “chantagens” do Congresso.
Um grupo de WhatsApp criado em 2018 e batizado de “Mkt Bolsonaro” está sendo usado para debater o assunto. Em uma das conversas, o investidor Otavio Fakhoury anunciou que pretende “ajudar a pagar o máximo de caminhões que puder” para os atos. “Convocarei todos que eu conhecer.” Procurado, ele disse que as manifestações são a favor do governo, não contra o Congresso.
Eugênio Bucci: Se não nomear as atitudes do presidente, a imprensa vai desinformar o público
Convocação indevida de ato público escancarou o prenúncio de uma crise institucional
Está no Gênesis: a incumbência de dar nome aos seres vivos foi transmitida ao homem por ninguém menos que Deus. De lá para cá, a briga não parou mais. Definir como se deve chamar cada uma das coisas deste mundo virou uma disputa interminável. Cientistas concorrem para saber qual deles vai designar a nova estrela ou o novo vírus. Locutores esportivos competem para dar o melhor apelido ao jogador de futebol que brilha na temporada. Marqueteiros duelam nas licitações para ganhar o direito de “criar” as marcas publicitárias dos programas de governo (no nosso tempo, toda política pública tem nome de sabonete, ou quase isso).
No meio dos turbilhões vernaculares para batizar isso e aquilo, o repórter é apenas um a mais – mas esse um a mais não pode faltar. Não se espera dele que saia por aí inventando os substantivos da língua corrente, mas o repórter – como, de resto, toda a imprensa – tem o dever de chamar cada coisa e cada personagem pelo nome devido. Se não fizer isso, vai desinformar a sociedade. Se quiser mesmo noticiar os acontecimentos com clareza e com objetividade, o jornalismo precisa saber nomeá-los.
Um exemplo? Está na mão. O que aconteceria se, em lugar da palavra “motim”, os jornais, as rádios, as emissoras de TV e os sites noticiosos na internet resolvessem usar a palavra “greve” para se referir ao assalto contra a ordem pública que vem sendo perpetrado por policiais cearenses? Aquilo não é uma “greve”. É um motim. Se os jornais começassem a chamar aquele levante armado de “greve” – palavra que aparece na legislação democrática como um direito do trabalhador – desorientariam os leitores, ouvintes e telespectadores. Estes não entenderiam nada de nada e poderiam até achar que os criminosos amotinados, com o rosto coberto por balaclavas, atirando em pessoas desarmadas, não passam de assalariados explorados exercendo seu direito de não trabalhar. Em resumo, se chamasse de “greve” o motim do Ceará, a imprensa prestaria um desserviço à sociedade e faria propaganda, ainda que involuntária, a favor dos amotinados.
Simples, não? Na verdade, não é tão simples assim. Quando se trata de cobrir os atos do atual presidente da República, a tarefa de dar nome às coisas se complica um pouco. Nesse ponto, temos tido dificuldades. Há dois dias o chefe de governo distribuiu pessoalmente, por meio de seu telefone celular, convocações para um ato público que pretende ameaçar os representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário.
A intimidação virulenta já começou. Está na rua. Num vídeo divulgado pelos organizadores do ato, uma música dos Titãs, O Pulso, serve de plataforma para a agressão das autoridades. Aproveitando-se da letra, que arrola um inventário copioso de doenças, o vídeo exibe uma sucessão de fotografias de deputados, senadores, governadores e ministros do Supremo, associando cada rosto a uma enfermidade. Em termos rudimentares e imorais, a peça “xinga” as autoridades de “doentes”. Em seguida, enuncia a mensagem de que para resolver os problemas do Brasil é preciso extirpar do País todos os focos de “moléstias”. Não há dúvida: o ato convocado pelo presidente da República é, sob todos os ângulos, uma investida odiosa e golpista contra as instituições democráticas e as pessoas que legitimamente as representam. A intenção dos organizadores é desacreditar o Estado e pavimentar o caminho espúrio para que o presidente avance na direção de uma ditadura.
O uso da canção dos Titãs foi indevido. Dois dos três autores da música, Arnaldo Antunes e Tony Bellotto, repudiaram publicamente o uso que a extrema direita fez dela (o terceiro autor, Marcelo Fromer, está morto). O uso de símbolos militares também é indevido. Há oficiais protestando contra a pregação de que as Forças Armadas devem tomar o poder dos políticos. Tudo aí é indevido.
A convocação – indevida – desse ato público escancarou o prenúncio de uma crise institucional. É claro que todo mundo tem o direito de ir às ruas para gritar o que quiser. As pessoas têm o direito até de pedir por uma ditadura militar. Birutice faz parte. Agora, quanto ao presidente da República, que jurou solenemente respeitar, manter e cumprir a Constituição, esse aí não tem o direito de se engajar a plenos pulmões no fanatismo golpista. A lei obriga-o a defender a ordem constitucional. Se não observar a obrigação que lhe cabe, o mandatário ficará exposto a um processo que lhe pode custar o cargo.
O curioso é que o presidente, pronunciando seus impropérios inconstitucionais, vai se fingindo de “normal”. Força os limites, dia após dia. Quebra o decoro, faz apologia de torturadores, chama o povo para atacar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e age como um chefe de motim. Ele se situa fora do campo democrático, atenta contra os símbolos mais caros da democracia – isso é um fato – e setores da imprensa ainda parecem acreditar que tudo está “normal”.
As redações precisam refletir. Dar o nome justo a cada coisa – e a cada agente público – vai se tornando urgente e indispensável.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Zeina Latif: O carnaval acabou
Passada a aprovação da Previdência, pouco se avançou na agenda econômica
O carnaval terminou antes do esperado para Paulo Guedes. Bolsonaro cobra do ministro o prometido crescimento econômico, não sem alguma razão. As promessas foram muitas e faltaram alertas sobre a fragilidade do País, o que vem desgastando o ministro.
Na campanha eleitoral, o candidato a formulador da política econômica exibia desenvoltura no “palanque”. Guedes exagerou nas promessas, rejeitando a ponderação usual de ministros da área econômica e descuidando do rigor técnico necessário para a boa prática da profissão de economista. Um exemplo foram as estimativas de receita com privatizações e venda de imóveis da União, totalizando cada uma R$ 1 trilhão. Pelo seu discurso, vender imóveis, privatizar, abrir a economia e eliminar os rombos fiscais eram tarefas fáceis; não foram feitas antes devido apenas à inépcia ou a visões equivocadas dos governos anteriores. Minimizou as dificuldades técnicas e políticas para avançar em temas espinhosos que demandam a construção de consensos e capacidade de enfrentamento de grupos organizados.
Não foi muito diferente no governo de transição, quando se esperava a “descida do palanque”. Pouco se avançou no detalhamento do programa da pasta. Vale citar que não se partia do zero, tendo em vista o importante legado do governo Temer. Alguns temas anunciados geraram ruídos, mas nada avançaram, como as medidas na área tributária e no Sistema S.
A grande notícia de 2019, a reforma da Previdência melhor que a esperada, contribuindo para os cortes da taxa de juros pelo Banco Central, foi inicialmente apresentada como propulsora de crescimento econômico robusto, algo entre 3% e 3,5% em 2019.
Subestimou-se a gravidade da crise fiscal e a fragilidade estrutural da economia. Foram criadas falsas expectativas.
Passada a aprovação da reformada Previdência na Câmara, pouco se avançou na agenda econômica, diferentemente do prometido. Foi um semestre praticamente perdido.
Bolsonaro não foi devidamente alertado sobre os desafios da gestão fiscal, mesmo no curto prazo, e a necessidade de mais medidas fiscais estruturantes. Em agosto último, diante das reclamações dos ministérios, o presidente compreendeu que o dinheiro acabou e não havia “comida para dar para o recruta”. Os alertas deveriam ter partido do ministro da Economia, e não de terceiros.
Apesar das promessas exageradas ou até impossíveis, é injusto colocar toda a responsabilidade pelo crescimento em Guedes. Não só porque seu trabalho tem méritos, como o de evitar mudanças na regra do teto de gastos, mas principalmente porque o chefe da pasta da Economia pode muito menos do que se imagina. As mais importantes medidas econômicas dependem de interlocução com o Congresso e de coordenação interna do governo, além do diálogo com o Judiciário.
Como avançar com as privatizações, por exemplo, se o presidente limita sobremaneira seu escopo, alguns ministros se posicionam contra e a relação com o Congresso está precocemente desgastada, dificultando até a privatização mais urgente, a da Eletrobras?
Temas ligados a educação, meio ambiente e arcabouço jurídico, que assustam os investidores e freiam o crescimento, não dependem do ministro. Falta agenda de governo e liderança do presidente.
Além disso, os ruídos causados por Bolsonaro e seu entorno cobram um preço elevado: limitam a melhora da confiança de empresários e investidores, prejudicam o avanço das reformas para a volta do crescimento e desviam as instituições do seu papel. A cada energia gasta para discutir as trapalhadas do governo e o acinte contra instituições, menos resta à discussão séria e urgente de políticas públicas.
Bolsonaro já entendeu que há algo errado na economia. Não compreende, porém, a importância de reformas estruturais e de sua liderança no processo de aprovação. Improvável o presidente mudar seu estilo. Caberá, pois, a Guedes, sem ilusionismos e com perseverança, reconquistar a confiança na equipe econômica e manter a agenda econômica nos trilhos.
* Consultora e doutora em economia pela USP
William Waack: Napoleão, traduzido pelo Planalto
Na desordem institucional, Bolsonaro sente mais oportunidades do que perigos
Não há dúvidas de que Jair Bolsonaro é um personagem político transparente. Goste-se ou não, ele não esconde de ninguém o que percebe como sendo a realidade política à sua volta. O que permite antecipar com razoável segurança como ele vai proceder.
Cada ser humano tem no fundo da sua alma uma pequena história sobre si mesmo, e a que Bolsonaro acalenta está bem condensada no vídeo que – segundo ele – quis compartilhar durante o carnaval apenas com alguns amigos. É a saga do homem que sobreviveu à facada, graças a um milagre produzido para que possa levar o povo a algo como uma terra prometida.
Adversários da sua missão são “os políticos de sempre” (texto que acompanha o tal vídeo). Aqueles que, na percepção que Bolsonaro tem da realidade, se uniram no Congresso não só para chantagear o governo, mas, principalmente, no incansável esforço de levar o desprotegido presidente a cometer erros pelos quais possa ser alvo de impeachment.
Um erro óbvio Bolsonaro tratou de contornar ao dizer que era de natureza exclusivamente privada o compartilhamento do vídeo conclamando o público a participar de uma manifestação convocada por seus seguidores – mas não explicitamente por ele – para atacar o Poder Legislativo. “Oficialmente”, o chefe do Poder Executivo não está chamando ninguém a acuar, atacar ou destruir um outro Poder da ordem constitucional brasileira.
Mas, por ser Bolsonaro tão transparente, ninguém no mundo político brasileiro acredita que o presidente pense ou sinta diferente do que o vídeo expõe. Nesse ponto, a pergunta é se funciona a tática política da convocação das ruas para se libertar da “incessante chantagem”, isto é, do Congresso. Intuitivo como é e, ao mesmo tempo, disperso, errático e desconfiado de qualquer um fora do mais íntimo círculo familiar, Bolsonaro talvez tenha “sentido” que, em 14 meses de governo, o Legislativo de fato o cercou – enquanto sua dependência do Judiciário só aumentou por variadas razões, algumas familiares.
De novo, por ser tão transparente, Bolsonaro demonstra que não age seguindo um rumo estratégico (a não ser o de ganhar a reeleição) e que tanto suas convicções no campo da economia quanto sua postura no da política obedecem ao que ele percebe como momento mais imediato. É um tipo de conduta que funcionou no curto espaço de tempo de uma campanha eleitoral.
Desde Sarney, todos os chefes do Executivo brasileiro conheciam muito bem (a exceção é Dilma) as entranhas do Legislativo sem a menor ilusão sobre sua composição nem como os interesses mais diversos (lícitos e ilícitos) ali se organizam. Mas só Bolsonaro lida com o sistema de governo que vem desde 88, numa era marcada pelo descrédito de parte relevante da chamada “mídia tradicional”, dentro da grande disrupção política e o forte abalo de todas as instituições.
É o ponto no qual a percepção da realidade transmitida pelo transparente Bolsonaro evidencia uma disposição ao risco que não é resultado de cálculo ou frio raciocínio político. Esse apetite pelo risco vem em boa parte da noção de que milhões de seguidores em mídias sociais possam ser manobrados em efetivo apoio nas ruas contra instituições (como Congresso e STF) que os sentidos do presidente identificam como adversárias. E – este é o aspecto central – que a bagunça institucional daí resultante traria mais oportunidades do que perigos.
A área militar, tão cara a Bolsonaro, tradicionalmente inspira o vocabulário da política. A Napoleão Bonaparte, um dos maiores gênios nesse campo, atribui-se uma frase muito citada. Indagado como fazia para vencer batalhas, ele teria dito: “On s’engage et puis on voit” – “a gente se engaja (na luta) e depois vê”. Ou, na moderna linguagem militar no Planalto: “Foda-se”.
Mas Napoleão sempre tinha um plano.