O Estado de S. Paulo

Vera Magalhães: Distopia bananeira

O que Bolsonaro quer ao afirmar que eleição foi fraudada? Inviabilizar a próxima?

O Brasil e o mundo já viveram crises combinadas antes, de diferentes naturezas e gravidades. Em 2008, a crise dos subprime nos Estados Unidos engolfou as economias de vários países ao redor do globo. No Brasil, a Lava Jato e a reeleição de Dilma Rousseff provocaram um vórtex de recessão econômica, corrupção sistêmica e inviabilidade política de um governo, levando ao impeachment.

Mas o que está em curso em 2020, aliás, desde o advento Jair Bolsonaro, tem características inéditas e com pitadas de surrealismo.

Não serei a primeira a comparar o atual governo do Brasil a um regime digno das distopias literárias e cinematográficas mais conhecidas, mas, agora, é como se os roteiristas tivessem resolvido forçar a mão para além da verossimilhança.

Ao mesmo tempo há pitadas de filme-catástrofe, com uma epidemia, a do novo coronavírus, que se espalha pelo planeta sem que se saiba ao certo sua gravidade e duração, e uma crise econômica também global, associada ao surto. Para fechar o clichê distópico, o Brasil tem no comando (sic) dessa situação caótica um presidente disposto a avançar dia a dia no propósito de implodir as instituições. Não há Posto Ipiranga que dê jeito numa pane dessas proporções.

Bolsonaro, apenas nesta Quaresma, mandou vídeos convocando para os atos a favor de seu governo, mentiu em rede nacional ao negar tê-los enviado, colocou um humorista no carro oficial para distribuir bananas a jornalistas e se esquivar de responder sobre o PIB insuficiente de 2019, fez discurso num púlpito para convocar para o ato que negara estar inflando, mandou três projetos de lei do Congresso (PLNs) para o Legislativo como parte de um acordo para ter seu veto mantido, depois exortou o Congresso a rejeitar os mesmos PLNs que mandou, excluiu um jornal de uma cobertura e, como se já não fosse demais, disse que a eleição vencida por ele há menos de dois anos foi fraudada.

Não há como examinar tal portfólio e não enxergar que ele está testando a aceitação de parte da população que lhe dá suporte a um arreganho golpista. E a resiliência ou o temor dos demais Poderes e das outras instituições a essa ameaça.

É por isso que são francamente insuficientes e acovardadas as reações dos comandantes dessas instituições a tamanha ousadia autoritária.

Não adianta Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre ou Dias Toffoli argumentarem que cabem a eles ter frieza, pregar o diálogo e não agravar ainda mais a situação.

Tal receita faz sentido num ambiente de normalidade civil, mas não em um em que o presidente, em pessoa ou por meio de ministros de Estado, familiares, parlamentares e milicianos digitais, está emparedando a democracia um pouco a cada dia.

Estrangular a imprensa, militarizar a política ao mesmo tempo em que politiza os meios militares, ignorar os riscos de uma epidemia mundial em nome de guerra política e colocar em xeque a lisura do próprio sistema eleitoral não são brincadeirinhas de um presidente humorista, mas, sim, golpes desferidos sistematicamente em pilares do estado democrático de direito.

Se as lideranças nacionais que têm a responsabilidade de frear os ímpetos imperiais de Bolsonaro não cumprirem seu papel, ele logrará êxito em seus intentos. Os atos do dia 15 colocarão mais lenha na fogueira em que arde a credibilidade do Legislativo e do Judiciário. Podem, de quebra, impulsionar um surto até aqui razoavelmente bem contido do novo coronavírus.

E a narrativa mentirosa da fraude eleitoral, se não for desmontada com vigor até aqui não visto em notas protocolares, pode ameaçar a realização dos próximos pleitos. E aí os cruzados bolsonaristas terão derrubado os portões da cidadela e chegado ao castelo a partir do qual pretendem tomar a democracia de assalto.


José Roberto Batochio: Dois Poderes da República sob ataque

Convocar manifestação contra o Congresso e o STF constitui atentado à democracia

“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos” - Winston Churchill, discurso na Câmara dos Comuns em 1947.

Quando pronunciou a frase que se tornaria o mantra da democracia através dos tempos, Churchill era um deputado que acabara de experimentar as agruras desse sistema político, baseado no voto popular. Dois anos antes, a 2.ª Guerra Mundial ainda nem havia acabado, mas o gigante que conduzira a Inglaterra na vitória dos Aliados contra o nazi-fascismo foi derrotado nas eleições e deixou o cargo de primeiro-ministro. Muitos se revoltaram contra o que entenderam ingratidão dos ingleses, porém o estadista não se abalou: “Eles têm o direito perfeito de nos enxotar. Isso é democracia. É por isso que estamos lutando”.

Noutras circunstâncias, quando os inimigos da democracia insistem em atacá-la, os democratas é que devemos arrogar não só o direito, mas o dever de defendê-la. Nossos tempos talvez sejam, desde a grande corrente libertária forjada pelo pós-guerra dos anos 1940, os mais adversos a esse sistema de governo em que o povo detém, pelo voto igualitário, o controle de seu destino político. A democracia representativa, em especial, é submetida a um descrédito que no fundo alveja a política como instrumental de administração e solução institucional dos conflitos na sociedade. A todo instante se escreve o epitáfio da representação política e são, de fato, visíveis os sinais de insatisfação dos eleitores com seus representantes. A pesquisa Barômetro das Américas, realizada de dois em dois anos pela Universidade Vanderbilt, dos Estados Unidos, com apoio no Brasil da Fundação Getúlio Vargas, revelou em sua última rodada, em 2019, que 58% dos brasileiros não estão satisfeitos com o funcionamento da democracia no País, mas, dando razão a Churchill, um porcentual maior, 60%, acha que ela ainda é a melhor forma de governo. Um hiato autoritário imposto por um golpe antidemocrático conta com a simpatia de 35% dos brasileiros, mas a maioria de 65% rejeita a ideia.

Os dados permitem a ilação de que, por maior que seja o desalento com a democracia, é majoritária a preferência nacional por mantê-la como a melhor forma de governo. Trata-se, portanto, de aperfeiçoá-la, extirpar-lhe os defeitos, que mais se devem aos que estão no topo da representação do que às vicissitudes dos representados. Constitui truísmo observar que as instituições democráticas são maiores do que os homens que as conduzem.

Fundamento básico da democracia é uma Constituição que avalize a isonomia republicana, assim como a clássica separação e independência harmônica dos Poderes, os quais, desempenhando papéis específicos, atuam como contrapesos recíprocos. Como no preceito bíblico, a democracia dá a César e a Deus o quinhão que lhes compete. Daí ser inadmissível que integrantes de um dos três Poderes do Estado, extrapolando suas funções discricionárias, embarque na temeridade de limitar a atuação de outro. Quando disputam a preferência do eleitor, os membros do Parlamento e do Executivo podem até apresentar programas eleitorais contendo tais limitações, mas para aplicá-las, já investidos no cargo, devem observar a liturgia constitucional. E na maioria das vezes, como regra do processo democrático, carecem do concurso do Poder em questão para alcançar seus objetivos reformadores. O que não podem é apelar para as “vozes das ruas” com o fim de se fortalecer e intimidar o Poder que, em avaliação autoritária, lhe nega um quinhão maior do que aquele que lhe está atribuído, invocando a fúria dos 35% que apoiam o hiato autoritário.

Divergências de governança entre os Poderes são naturais, mas cabe ao Executivo, embora igualmente eleito pelo povo, reconhecer que o Legislativo é o poder popular por excelência, porquanto diverso, plural, reunião eclética e sincrética das correntes que pulsam na sociedade, formando um mosaico que a contradição democrática tende a transformar em síntese da vontade nacional. Todo ato que emana do Parlamento, obviamente chancelado pela maioria, é um ato federativo que as minorias são obrigadas a respeitar - e o axioma vale para os demais Poderes, cabendo apenas ao Judiciário escrutinar a conformidade constitucional das decisões.

Quando o Executivo exorta seus acólitos em busca de apoio não propriamente à sua linha política, mas para intimidar os demais Poderes, expõe de forma condenável sua incapacidade de governar segundo a ordem democrática. Tal procedimento é típico de governos que não lograram cumprir promessas de campanha, frustraram eleitores e deram razão à oposição, buscando responsabilizar um “inimigo externo” por seu fracasso. Se a regra era culpar a imprensa, agora agitam as redes sociais. No andar dessa carruagem, a convocação do presidente da República para que seus correligionários venham às ruas, em manifestações contrárias à independência e autonomia do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, constitui um atentado à democracia que faria Churchill novamente ir à luta, como o fez contra o Terceiro Reich.

*Criminalista, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi deputado federal (PDT-SP).


Pedro Fernando Nery: E o que fazer?

Nesta crise do mercado global, cortes de juros seriam pouco efetivos para aumentar gastos e investimentos

Já antes do derretimento dos mercados, alguns analistas e entidades – como a OCDE – alertavam para o risco de uma recessão global. Com taxas de juros já baixas, e diante da natureza anormal da crise, estímulos dos bancos centrais fariam pouco sentido. Restaria a política fiscal, mas muitos países teriam chegado em 2020 sem espaço para gastar. Seria o caso do Brasil. Então o que fazer?

O economista Chris Rupkey resumiu a dificuldade da política monetária: nesta crise, cortes de juros seriam pouco efetivos para aumentar gastos e investimentos. As empresas estariam atrás de liquidez: “Elas não querem empréstimos e investir no futuro. Elas estão correndo para as montanhas”. A economista-chefe da OCDE, Laurence Boone, avalia que o choque do coronavírus não pode ser tratado somente pelos bancos centrais: “Ele tem realmente de ser acompanhado por medidas fiscais”.

Algumas convergências aparecem nas primeiras análises sobre o uso da política fiscal como remédio econômico para o coronavírus. Há papel de destaque para o que aqui chamamos de Seguridade.

Uma 1.ª prescrição é óbvia: é preciso que haja recursos para a saúde, inclusive nos entes subnacionais. Uma 2.ª é ampliar os benefícios pagos aos trabalhadores que perdem renda com a crise, o que inclui os que precisam ficar em casa. Uma 3.ª é dar fôlego às médias e pequenas empresas dos setores mais afetados, por exemplo, com desonerações sobre a folha de pagamento.

Estas são algumas das propostas de economistas do FMI. Os diretores de assuntos fiscais do Fundo propõem expandir as transferências de renda para grupos vulneráveis. Lembram que a China suspendeu temporariamente o pagamento de contribuições previdenciárias das empresas, além de focar sua atuação nos setores de transporte e turismo, mais afetados.

Igualmente, o presidente Donald Trump sugeriu desonerar a folha de pagamento por um ano. Já Jason Furman, espécie de economista-chefe da Casa Branca no governo Obama, propôs transferências de renda incondicionais aos americanos.

A opção por usar instrumentos da Seguridade contra o coronavírus nos Estados Unidos, Ásia e Europa contrasta com as primeiras propostas que surgem por aqui, focadas no investimento público. De fato, obras de infraestrutura têm grande capacidade de empregar trabalhadores. Contudo, não parecem a melhor ideia no caso de uma pandemia.

Se é complicado executar o investimento público em situações normais, pode ser mais complicado diante da incerteza da evolução do vírus aqui. No norte da Itália ou em Wuhan, o esforço dos governos foi de manter os trabalhadores em casa, não reunidos ao ar livre construindo pontes.

Nesse sentido, Douglas Holtz-Eakin, economista do governo Bush, aponta para a dificuldade de elaborar medidas para uma crise que tende a ser temporária, mas sem que se saiba a profundidade da queda e a sua duração (o formato do “V”, no jargão). Ele defende que as medidas tomadas frente ao coronavírus sejam aquelas desejáveis por si, não apenas pelo impacto que podem ter por alguns meses.

Nessa lógica, a resposta ao coronavírus deve envolver as propostas que fortalecem o combate à pobreza e forçar o governo a escolher as prioridades da sua agenda. O Bolsa Família é a transferência mais bem posicionada para conter a perda de renda dos trabalhadores informais, que não têm poupança para consumir nem a proteção dos formais (como auxílio-doença, seguro-desemprego, saque do FGTS, aviso prévio).

Seu efeito em curto prazo no consumo é maior do que qualquer outro na folha de pagamentos do Tesouro. Neste momento, o programa se encontra em crise: com mais de 3 milhões de brasileiros habilitados sem receber. A fila se formou a despeito da modesta recuperação econômica, e as regras do governo federal faz com que ela seja maior na região mais pobre do País (o Nordeste). Propostas tramitam no Congresso fortalecendo o programa. O gasto pode ser compensado pela redução do déficit da Previdência no funcionalismo (via a contribuição extraordinária prevista na reforma da Previdência) ou redução dos salários (que consta da PEC emergencial).

Já a desoneração da folha proposta pelo FMI e Trump e feita na China é antigo objetivo do Ministério da Economia, mas que ainda não apresentou essa proposta no âmbito da reforma tributária. Nos últimos dias, se discutia compensar a arrecadação com o imposto de renda dos mais ricos (dá para fazer por lei).

* Doutor em economia


Fernando Dantas: O liberalismo falhou de novo?

Na minha visão, não (respondendo à pergunta do título). Nesta coluna, tento explicar o porquê.

O superchoque do coronavírus parece ser mais um prego no caixão da retomada da economia brasileira em 2020 em ritmo mais animador. No auge do furacão, não há nem como falar quais serão os impactos no crescimento ao longo do ano. Mas certamente o sonho de crescer no intervalo entre 2,5% e 3% parece enterrado nas brumas do passado recente.

Acumulado com expansões anuais de ligeiramente mais do que 1% desde 2017, o resultado projetado para 2020 reacendeu o debate sobre o “fracasso” da política econômica liberal no Brasil.

Com efeito, a partir de 2016, as equipes econômicas que se sucederam no comando da economia brasileira têm perfil liberal e ortodoxo. E fica difícil “culpar o PT” ou a recessão de 2014-2016 pelo que está acontecendo quatro anos depois.

Assim, na arena do discurso político, mais uma narrativa de fracasso do liberalismo vai sendo montada.

Mas será mesmo?

O Brasil é uma economia com carga tributária, ao longo das últimas décadas, dependendo do critério, na faixa de 30-35% do PIB. Países emergentes ao gosto do que pregam os economistas liberais estão numa faixa mais próxima de 20%.

O Brasil gasta por volta de 13% do PIB com Previdência e outros benefícios a idosos, enquanto uma visão ortodoxa de economia recomendaria algo como metade daquele percentual. As pensões por morte brasileiras ultrapassam 4% do PIB, enquanto o número aceitável seria de no máximo 2%.

O déficit público nominal brasileiro em 12 meses roda acima de 5,5% do PIB há vários anos, quando países que “fazem o dever de casa” em termos de ortodoxia costumam ter resultado fiscal equilibrado ao longo do ciclo econômico, ou pelo menos não muito longe disso.

O Brasil ainda tem sistemas previdenciários distintos para o setor público e o setor privado, com o primeiro sendo muito mais generoso. Uma visão liberal da Previdência daria preferência a um sistema único e equânime. No Brasil, grande parte dos benefícios previdenciários e sociais é indexada ao salário mínimo, que cresceu acima da inflação durante décadas, criando uma despesa gigante de transferência que asfixiou os investimentos e a expansão dos serviços públicos. Economistas ortodoxos costumam defender benefícios sociais e previdenciários corrigidos por índices de inflação relativos à cesta de consumo dos grupos que os recebem.

No Brasil, bem mais de 90% do gasto primário federal é carimbado, e, na maior parte, destinado a transferências a pessoas, na forma de Previdência, salários do funcionalismo e programas sociais. Uma abordagem liberal do orçamento, como insiste o ministro da Economia, Paulo Guedes, teria uma grande parcela dos recursos discricionária, e daria preferência a investimentos ou custeio para expandir serviços públicos de qualidade. No Brasil, o investimento público federal (excluindo estatais) é de pífios 0,5% do PIB, o que revela uma estrutura de gasto público que jamais um liberal recomendaria.

No Brasil, o governo destina todo ano subsídios às empresas da ordem de 4% a 5% do PIB, sem nenhuma ou quase nenhuma avaliação sobre os supostos efeitos positivos destas transferências de dinheiro público. A “receita liberal” prevê subsídios muito menores, e cuja manutenção depende da avaliação de impactos.

A Constituição brasileira é muito longa, e dispõe sobre uma enorme variedade de temas, tornando necessárias emendas constitucionais para praticamente todas as mudanças mais profundas na organização do Estado e da economia. Liberais costumam ser favoráveis a Constituições curtas, genéricas e que estabeleçam princípios gerais, de forma que quase toda a política pública pode ser feita por leis ordinárias.

O sistema tributário nacional é um dos mais complexos do mundo, repleto de exceções e regimes especiais. Nos países que economistas liberais veem como modelos, os sistemas tributários são mais simples e tão uniformes quanto possível, com a exceção da progressividade distributiva, em que o Brasil, em particular, não vai muito longe.

A observância tributária e burocrática é extremamente custosa para as empresas que operam no Brasil, e emprega capital humano altamente qualificado. A recomendação liberal é que seja simples e fácil pagar impostos e se adaptar às exigências burocráticas, de forma que os trabalhadores mais preparados e talentosos possam se dedicar a aumentar a produtividade das empresas.

O ambiente de negócios brasileiro é classificado como dos piores do mundo em rankings internacionais de países, que foram criados justamente para incentivar uma visão liberal de organização da economia.

O Judiciário no Brasil é extremamente complexo, lento, ritualístico e formalista. Várias das nações para os quais os liberais olham como exemplo têm sistemas judiciais mais simples, velozes, pragmáticos e com um pé no senso comum.

A maior empresa brasileira, a Petrobrás, é uma estatal que opera em um ambiente que, na prática, ainda é de quase monopólio. Diversos setores produtivos nacionais, como também costuma apontar Guedes, são dominados por um pequeno grupo de participantes, com considerável poder oligopolista. A visão liberal de economia, por outro lado, valoriza a competição.

O Brasil é uma das economias mais fechadas do mundo, com alíquotas tarifárias altas e uma teia de preferências para empresas nacionais. Liberais preferem países mais abertos e com menor proteção para as empresas nacionais.

Seria possível continuar por muito mais linhas de texto com as discrepâncias entre o que o Brasil é e o que seria um “modelo liberal” de país. Temas como a estrutura federativa supercomplexa de três níveis e a falta de clareza e transparência em relação aos recursos disponíveis e as atribuições das diversas esferas e partes dos governos, abrangendo todos os Poderes. A capacidade de entes subfederativos, como os Estados, de incorrerem em déficits e dívidas impagáveis e buscar socorro financeiro na União, com a cumplicidade do Judiciário. A dificuldade em executar garantias. O desempenho desastroso da produtividade nas últimas décadas. A má qualidade da educação, mesmo quando comparada com países de renda equivalente. Etc. etc.

Toda essa longa lista de características antiliberais da economia e das instituições brasileiras são traços entranhados da sociedade nacional, alguns remontando à Constituição de 1988 e ao período da redemocratização, mas muitos outros com raízes bem mais profundas, por vezes seculares. São um arcabouço institucional que espelha a ação histórica de poderosos grupos de interesse, que ainda estão ativíssimos na tarefa de defender suas vantagens.

Necessariamente, o trabalho de reformar a sociedade para trazê-la para mais perto do modelo liberal é lento, arrastado, penoso, cheio de idas e voltas, acertos e erros etc. Nesse sentido, interpretar a atual dificuldade de crescer da economia brasileira como mais um “fracasso da visão liberal” é uma ideia profundamente equivocada.


O Estado de S. Paulo: 'Este é o momento de abandonar o teto de gastos', diz Monica de Bolle

Para Monica de Bolle, governo precisa reconhecer que o cenário econômico mudou e trocar reformas por investimentos públicos em infraestrutura

Douglas Gavras, O Estado de S. Paulo

A perspectiva de uma crise global deve obrigar o governo brasileiro a reavaliar sua política econômica: com a suspensão do teto de gastos e a volta do investimento público, para evitar que o Brasil volte a entrar em recessão, avalia Monica de Bolle, pesquisadora sênior em Washington do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos.

Nesta segunda-feira, 9, a Bolsa brasileira fechou em queda de 12,17%, aos 86.067,20 pontos, a maior queda diária, em porcentual, do Ibovespa desde setembro de 1998. O dia foi de caos nos mercados financeiros globais, com o avanço da crise do coronavírus e a queda no preço do petróleo.

Para a economista brasileira, o governo precisa reconhecer que o cenário econômico mudou e trocar a agenda de reformas por uma agenda de investimentos públicos em infraestrutura. "Alguns investimentos podem começar imediatamente. É preciso deixar a ideologia de lado."

A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estado:

Há algum sinal de que essa crise possa durar pouco?
Não vai melhorar tão cedo, a coisa tende a ficar tensa por um bom tempo. A questão do petróleo é pontual e afeta o Brasil, mas a crise sanitária é mais grave do que se pensava. A situação atual é muito diferente das crises tradicionais. Em uma crise tradicional, a gente conhece as políticas econômicas necessárias para combater. Em 2008, por exemplo, a resposta foi dar estímulo monetário e fiscal. Isso teve o efeito de apagar incêndio e o de dar sustentação econômica. Agora, a política econômica não tem papel no apagar do incêndio. E só os médicos e cientistas podem fazer alguma coisa a respeito, para frear o número de novos casos.

O governo pode agir para limitar os impactos na economia?
A maneira como a epidemia vem sendo tratada no Brasil e no resto do mundo é um desserviço tremendo. Tanto é, que o número de casos está subindo muito nos países afetados. Diante desse quadro, temos uma crise duradoura e a resposta de política econômica tem espaço limitado. Dá para fazer estímulos monetários e fiscais, mas enquanto a epidemia perdurar o efeito é limitado. Ajuda, mas não resolve.

O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil do ano passado foi uma decepção: cresceu 1,1%, quando as previsões iniciais eram de pelo menos 2,5%. Agora, com a economia mundial desacelerando, a previsão é de um 2020 difícil. Então, como fazer para que a economia responda?
Não agir é a pior escolha. O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) recomenda que é preciso pensar em estímulos. No Brasil, o governo está obcecado em manter uma agenda de reformas, de médio e longo prazos, quando o momento é de pensar em como responder a essa crise. É preciso começar a desenhar medidas, deixar as reformas de lado e focar no que é preciso fazer para que o Brasil não entre em recessão.

O que é preciso fazer agora para evitar a recessão?
Suspender ou até eliminar o teto de gastos. A maneira como ele foi desenhado foi equivocada, a gente fez um teto rígido, que não permite que na hora em que precisar de uma medida anticíclica e não permite fazer. Este é o momento de abandonar o teto de gastos, que já tinha um desenho equivocado desde o início. E não é de hoje que eu aponto isso.

O mercado não reagiria ainda pior, caso o teto de gastos fosse suspenso?
Isso é uma bobagem. Agora é um momento de crise. É só olhar para fora, o cenário mudou. As pessoas precisam entender que a realidade é outra e, sem mudar a política econômica, o Brasil, que já está fragilizado, pode sofrer ainda mais. O País já está no pior dos mundos, de dólar alto e crescimento baixo.

Prosseguir com o corte de juros não é suficiente, certo?
Na área monetária, a taxa de juros está baixa e sem pressão inflacionária. É um quadro sustentável, que nos abriu espaço. A dinâmica da dívida pública está melhor. Isso não é um problema, ajudou o País a abrir um espaço fiscal, que é pequeno, mas que precisa ser usado agora. O momento é de pensar que tipo de gasto público e estímulo fiscal podem ser feitos. Eu acho que a medida mais eficiente é aumentar o investimento público, principalmente em infraestrutura.

Seria preciso trocar o remédio de contenção de gastos públicos e de foco nas reformas, aplicado nos últimos quatro anos?
O governo precisa trocar a agenda de reformas por uma agenda de infraestrutura. Alguns investimentos podem começar imediatamente. Há um grande número de concessões paradas e tudo isso terá de avançar. E o governo vai ter de deixar a ideologia de lado e voltar a envolver o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) nesses investimentos. Não adianta ficar demonizando o banco.

Há uma série de crises na relação entre o Planalto e o Legislativo. O clima político no Brasil permite que essas medidas emergenciais sejam aprovadas?
É complicado. Uma pessoa que está claramente com a cabeça no lugar certo é o (presidente da Câmara dos Deputados) Rodrigo Maia. Ele percebe a gravidade da situação e sabe o que precisa ser feito no curto prazo. O governo tem de parar de falar bobagem e começar a trabalhar com seriedade. Se a melhor proposta de ação vier do Congresso, que assim seja.


O Estado de S. Paulo: Economistas apostam em agenda de reformas para atenuar efeitos do coronavírus no Brasil

Segundo economistas, parceria entre Executivo e Legislativo para dar andamento às reformas pode reduzir incertezas e atrair investimentos

Medidas que possam reduzir a exposição do Brasil ao caos verificado na segunda-feira, 9, em todo o mundo passam por entendimento entre Executivo e Legislativo para iniciar, de imediato, as reformas urgentes como a administrativa, a tributária e a PEC emergencial, segundo vários economistas ouvidos pelo ‘Estado’.

Mas há também quem defenda a continuidade da redução de juros, liberação de compulsórios e até a suspensão do teto de gastos por dois anos.

“Se tivermos clareza sobre as reformas, como elas vão andar, se virmos um clima de parceria entre Executivo e Congresso em volta de uma agenda que permita reduzir a incerteza doméstica, melhoraria o ambiente de negócios e tornaria o Brasil muito mais interessante do ponto de vista do investimento”, diz Armando Castelar, coordenador da área de Economia Aplicada do Ibre/FGV.

Para José Roberto Mendonça de Barros, economista e sócio da MB Associados, a área de infraestrutura é a que mais precisa de investimentos no momento. “A lei do saneamento, por exemplo, geraria grandes obras públicas e teria efeito social enorme, como a geração de empregos.”

Já Bráulio Borges, pesquisador do Ibre, acredita que a agenda da infraestrutura teria enorme potencial não só para dinamizar a atividade no curto prazo, como aumentar a produtividade brasileira no médio e longo prazo. “Mas essas coisas não saem do papel do dia para a noite.”

De imediato, Borges defende o uso da política monetária para atenuar o impacto do turbilhão externo provocado pelo coronavírus e acentuado pela guerra do petróleo. Ele lembra que, assim como na crise de 2008, hoje o efeito líquido da alta do câmbio e da queda das commodities é desinflacionário. “Por isso há espaço para o Banco Central cortar juros e tentar reativar a economia como já fez no passado.”

Teto de gastos
Sérgio Vale, da MB Associados, também acredita que há espaço para o BC continuar cortando juros, que, para ele, ainda são muito elevados no Brasil na comparação com o resto do mundo. Ele lembra que a regra do teto de gastos impede o aumento dos investimentos públicos e acredita que o mercado faria uma leitura ruim se as regras fossem mudadas, mesma opinião de Borges, para quem não se deve mudar regras “no olho do furacão”.

“Mexer no teto de gastos é suicídio”, concorda Castelar. O professor da Universidade de Brasília, José Luís Oreiro, pensa de forma diferente. “É preciso mudar a política econômica e suspender o teto de gastos por dois anos para aumentar investimentos públicos. Para ele, se o ministro da Economia, Paulo Guedes, não mudar a política econômica, “então que se mude o ministro”.

Para enfrentar o choque externo, Samuel Pessoa, professor da FGV, também defende urgência na aprovação das reformas para arrumar o desequilíbrio fiscal. Isso abriria espaço para uma política fiscal contracíclica, com estímulo à demanda. Ele admite, porém, que o desentendimento entre Executivo e Legislativo impede o processo.

“O governo já estava meio perdido antes da semana trágica”, afirma Mendonça de Barros. O melhor seria o ministro Guedes parar de falar em dólar e se concentrar nas reformas.”

» O que fazer para enfrentar a crise?

José Roberto M. de Barros, economista e sócio da MB Associados
‘País precisa de mais investimento’

“A melhor coisa a ser feita é um trabalho construtivo entre Executivo e Legislativo para acelerar a aprovação da PEC emergencial, que significaria inequívoca melhora na questão fiscal. São necessárias medidas que permitam mais investimentos, como a lei do saneamento básico, que geraria obras públicas e teria enorme efeito social. Outro ponto é a reforma administrativa. De resto, é manter a calma. Não podemos controlar o que vem de fora, mas quem opera câmbio é o Banco Central. Não é papel de ministro falar sobre isso.”

Samuel Pessoa, economista e professor da FGV
‘Reformas trariam equilíbrio fiscal’

“A prioridade é aprovar as reformas emergencial e administrativa. O efeito imediato da aprovação seria arrumar o equilíbrio fiscal estrutural. Essa arrumação abriria espaço para uma política fiscal contracíclica, mas só se criarmos instituições que sinalizem esse equilíbrio lá na frente. As dificuldades do Executivo e Legislativo em fazer política dificultam a aprovação de reformas e a construção do estabelecimento de instrumentos para uma política fiscal. Sem isso, há menor capacidade de enfrentar o choque externo.”

Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia
‘Há espaço para a política monetária’

“O efeito líquido de tudo isso que está acontecendo é desinflacionário. Por isso, há espaço para a política monetária reagir a isso, mas talvez não seja suficiente, pois a atividade vem decepcionando, mesmo com os juros num patamar bastante baixo. Talvez seja preciso outros estímulos. O governo já fala em mais uma rodada de liberação de FGTS. Liberação de compulsório tem o potencial de ajudar, mas o feito não é garantido. No entanto, mudar a regra do teto no meio desse turbilhão todo pode gerar muito ruído.”

José Luís Oreiro, professor da Universidade de Brasília (UnB)
‘Suspender teto por dois anos’

“É preciso parar as reformas que estão em transição e focar em garantir a segurança da população e compensar os efeitos recessivos. Só ter um remédio para doenças diferentes é coisa de maluco. É preciso mudar a política econômica, suspender o teto de gastos por dois anos para aumentar os investimentos públicos. Se investir em infraestrutura, o efeito aparece em três meses. Dificilmente o ministro da Economia, Paulo Guedes fará isso. Se o ministro não mudar a política econômica, então, que se mude o ministro.”

Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV
‘Mexer no teto de gastos é suicídio’

“O que o governo pode fazer é reduzir a incerteza. Fazer parceria com o Congresso com uma agenda clara para o andamento das reformas. Isso diminuiria a incerteza doméstica e melhoraria o ambiente de negócios. Desta forma, o País ficaria mais interessante para atrair o investimento. Cortar juros, fazer política parafiscal e mexer no teto de gasto vão na direção errada. Mexer no teto de gasto é suicídio, pois vai introduzir incertezas sobre a situação fiscal. É preciso dar uma parada e tirar o Banco Central de cena.”

Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados
‘Governo está de mãos atadas’

“O governo está sem opções, com as mãos atadas, como o resto do mundo. A regra do teto de gastos impede o aumento de investimentos públicos e o mercado faria uma leitura ruim se as regras forem mudadas. O jeito seria continuar cortando juros, que ainda estão elevados no Brasil na comparação com o resto do mundo. O País deve fazer um esforço para que a reforma tributária ande o mais rápido possível, o que sinalizaria uma recuperação mais acelerada, sem jogar fora o esforço fiscal que foi feito até agora.”

 


Carlos Alberto Di Franco: Eleições – jornalismo sem censura

Esse é o melhor antídoto contra aventuras autoritárias. Estejamos alertas

Estamos em ano eleitoral. E o galinheiro político já começa a entrar em clima de agitação. Eleição municipal é sempre um ensaio para o grande embate presidencial lá na frente. Ataques aos adversários, promessas irrealizáveis e imagens produzidas farão parte, mais uma vez, do discurso dos candidatos. Assistiremos, diariamente, a um show de efeitos especiais capazes de seduzir o grande público, mas, no fundo, vazio de conteúdo e carente de seriedade. O marketing, ferramenta importante para a transmissão da verdade, pode, infelizmente, ser transformado em instrumento de mistificação. Estamos assistindo à morte da política e ao advento da era da inconsistência.

Os programas eleitorais vendem uma bela embalagem, mas, de fato, são paupérrimos na discussão das ideias. Nós, jornalistas, somos – ou deveríamos ser – o contraponto a essa tendência. Cabe-nos a missão de rasgar a embalagem e desnudar os candidatos. Só nós, estou certo, podemos minorar os efeitos perniciosos de um espetáculo audiovisual que certamente não contribui para o fortalecimento de uma democracia verdadeira e amadurecida.

Por isso uma cobertura de qualidade será, antes de mais nada, uma questão de foco. É preciso declarar guerra ao jornalismo declaratório e assumir, efetivamente, a agenda do cidadão. Não basta um painel dos candidatos, é preciso cobrir a fundo as questões que influenciam o dia a dia das pessoas. É importante fixar a atenção não nos marqueteiros e em suas estratégias de imagem, mas na consistência dos programas. É necessário resgatar o inventário das promessas e cobrar coerência. O drama das cidades – segurança, educação, saúde, saneamento básico, iluminação, qualidade da pavimentação das ruas, transporte público de qualidade e responsabilidade fiscal, entre outros – não pode ficar refém de slogans populistas e de receitas irrealizáveis. Os candidatos deverão mostrar capacidade de gestão, experiência, ousadia e criatividade.

Não se pode permitir que as assessorias de comunicação dos políticos definam o que deve ou não ser coberto. O centro do debate tem de ser o cidadão, as políticas públicas, não mais o político, tampouco a própria imprensa. O jornalismo de registro, pobre e simplificador, repercute a Nação oficial, mas oculta a verdadeira dimensão do País real. Precisamos fugir do espetáculo e fazer a opção pela informação. Só assim, com equilíbrio e didatismo, conseguiremos separar a notícia do lixo declaratório.

A independência é a regra de ouro da nossa atividade. Para cumprir a nossa missão de levar informação de qualidade à sociedade, precisamos fiscalizar o poder. A imprensa não tem jamais o papel de apoiar o poder. A relação entre mídia e governos, embora pautada por um clima respeitoso e civilizado, deve ser marcada por estrita independência.

Um país não se pode apresentar como democrático e livre se pedir à imprensa que não reverbere os problemas da sociedade. Não apenas os que aparecem na superfície, mas também aqueles que vão corroendo os pilares da cidadania. A intolerância é, de longe, um dos mais nefastos filhotes do sectarismo. A radicalização ideológica não tem a cara do brasileiro. O PT procurou dividir o Brasil ao meio. Jogar pobres contra ricos, negros contra brancos, homos contra héteros. Pretendeu substituir o Brasil da tolerância por um país do ódio e da divisão. Tentou arrancar com o fórceps da luta de classes o espírito aberto dos brasileiros. Procurou extirpar o DNA, a alma de um povo bom e multicolorido. Não queria o Brasil café com leite.

O totalitarismo ideológico pretende espoliar milhões de cidadãos do direito fundamental de opinar, elemento essencial da democracia. Se a ditadura gramsciana constrange a cidadania, não pode, por óbvio, acuar jornalistas e redações. Informação independente incomoda e faz pensar. Jornalismo sem censura é o melhor antídoto contra aventuras autoritárias.

Anotemos a experiência e estejamos alertas. Agora e sempre. Governo e Congresso precisam se entender. Não cabe mais o “toma lá dá cá”, de triste memória. Mas também não fazem sentido ameaças populistas e ensaios de democracia direta. É preciso dialogar. Faz parte do processo democrático. O primeiro mandamento do jornalismo de qualidade é a independência. Não podemos sucumbir às pressões dos lobbies direitistas, esquerdistas, homossexuais ou raciais. O Brasil eliminou a censura. E só há um desvio pior que o controle governamental da informação: a autocensura. Para o jornalismo, em ano eleitoral e em qualquer tempo, não pode haver vetos, tabus e proibições. Informar é um dever ético.

O leitor espera uma imprensa firme, disposta a exercer o seu intransferível dever de denúncia fundamentada. O jornalismo de qualidade deve assumir o papel de memória da cidadania. Mostramos o que os políticos querem ocultar. Precisamos falar dos planos e do futuro. Mas devemos também falar do passado, das coerências e das ambiguidades.

Deixemos de lado a pirotecnia do marketing e não nos deixemos aprisionar pelas necessárias pesquisas eleitorais. Nosso papel, único e intransferível, é ir mais a fundo. A pergunta inteligente faz a diferença. Incomodar é preciso. E é o que o leitor espera de nós.

* JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR


Carlos Pereira: A gangorra dos poderes

Equilíbrio entre Poderes, que levou mais de cem anos para ser alcançado, está sob ameaça

A história do Brasil foi marcada por desequilíbrios extremos entre o Executivo e o Legislativo. Uma espécie de efeito gangorra onde, em alguns momentos, preponderou uma descentralização de poderes para o Legislativo e, em outros, uma centralização de poderes nas mãos do Executivo.

Na primeira República (1989-1930), observamos o fortalecimento do federalismo com um domínio das elites regionais por meio da chamada “política dos governadores”. Diante de uma grande fragmentação de partidos estaduais, verificou-se problemas crescentes de governabilidade do presidente e, ao mesmo tempo, alienação de grupos regionais que não eram contemplados no jogo oligárquico.

Como reação a esse desequilíbrio, a Era Vargas (1930-1946) praticamente extinguiu o federalismo oligárquico. A autonomia dos Estados foi enfraquecida, foi quebrado o monopólio do partido único nos Estados e foi observada uma excessiva centralização decisória no Executivo federal e uma concomitante fragilização do Legislativo.

A Constituição de 1946 vai para o outro extremo, ao abominar tudo que parecia ser sinônimo de centralização. O federalismo é restabelecido, e o presidente torna-se constitucionalmente fraco em um ambiente multipartidário. Governos minoritários são eleitos e crises sucessivas de governabilidade com riscos iminentes à democracia tornam-se a marca desse período democrático.

Com a ditadura militar (1964-1985), o Brasil viveu um novo período de centralização excessiva, o que é esperado de regimes autoritários. O executivo recuperou os Poderes Constitucionais, de agenda e orçamentários. Por outro lado, os partidos políticos se enfraqueceram e o Legislativo se fragilizou.

É só a partir da Constituição de 1988 que as relações Executivo-Legislativo alcançaram um equilíbrio relativamente virtuoso. Foi preservado o multipartidarismo fragmentado. Mas, para evitar os problemas de governabilidade vividos no período de 1946 a 1964, foi delegada uma ampla gama de poderes constitucionais e orçamentários para o presidente da República. O presidente passou a ser o grande coordenador do jogo político e com capacidade de atrair apoio por meio da formação de coalizões majoritárias e estáveis.

Este equilíbrio de forças gerou estabilidade democrática e cooperação entre o Executivo e Legislativo a um custo relativamente baixo se o presidente souber gerenciar bem a coalizão. Além do mais, criou base para responsabilidade fiscal, equilíbrio macroeconômico e inclusão social.

Os conflitos crescentes entre o Executivo e Legislativo iniciados no governo de Jair Bolsonaro decorrem da tentativa do presidente de substituir o presidencialismo de coalizão pelo presidencialismo plebiscitário. Bolsonaro incita seus seguidores a se voltarem contra as instituições democráticas como uma forma clara de sobrevivência política.

Entretanto, essa estratégia traz riscos para o próprio Executivo, que tende a perder poderes vis a vis o Orçamento Impositivo e as recentes iniciativas de restringir o uso de Medidas Provisórias por parte do Congresso.

O poder é essencialmente relacional; não existe no vazio. O poder só se realiza ou se torna concreto quando é exercido. O poder de jure, que se encontra formalizado nas leis, estabelece apenas os contornos do espaço que poderá ou não ser de facto preenchido. Quando quem tem poder formal se recusa a exercê-lo, outros inexoravelmente tendem a fazê-lo.


José Roberto de Mendonça de Barros: O encanto quebrou

As vendas na Black Friday foram a última boa notícia. A partir daí, o ambiente começou a se turvar

Logo após a aprovação da reforma da Previdência, em 23 de outubro passado, um nítido entusiasmo tomou conta de muitos observadores, empresas e mercados em geral. A volta de um crescimento robusto, de até 3%, em 2020 seria consequência do avanço esperado do programa econômico de Paulo Guedes.

Em certa medida, essa reação não era fora de propósito, pois ficou evidente que o atual Congresso simpatizava, como de resto até hoje, com a pauta reformista. Esta contava com várias emendas constitucionais e projetos de lei que tratavam de questões necessárias para destravar de vez o crescimento, especialmente aquelas que reforçam o ajuste fiscal (PEC emergencial e do pacto federativo), e as pautas necessárias para estimular o investimento e a eficiência, como a reforma tributária, o marco do saneamento, o das Parcerias Público Privadas e outras.

Além disso, os resultados do PIB do segundo e terceiro trimestres haviam mostrado números robustos, de 0,6% em cada um deles, e alguma retomada em vários setores, como a construção civil. O ano de 2019 deveria apresentar um final bem melhor, também reforçado pela queda dos juros a patamares historicamente baixos.

O avanço da Bolsa de Valores, especialmente empurrada pela crescente presença das pessoas físicas, foi também uma consequência lógica dessa queda, contribuindo para um certo entusiasmo.

Entretanto, a venda de bens duráveis na Black Friday foi a última boa notícia do final do ano. A partir daí, o ambiente começou a se turvar e o encanto com a política econômica e o crescimento se quebrou, já antes do aparecimento do coronavírus.

A questão é saber por quê.

Sem dúvida, as expectativas começaram a mudar devido à permanente postura bélica do presidente, que tumultua o ambiente político e gera uma percepção de crise permanente, que não estimula o investimento, especialmente o estrangeiro. A acusação feita por muitos governistas e seus apoiadores de que o Congresso não aprova nada é totalmente equivocada, pois a lista de projetos aprovados recentemente é longa e vai muito além da reforma da Previdência, incluindo, por exemplo, a MP da liberdade econômica, o cadastro positivo, a nova lei das teles, a lei das agências reguladoras e outras.

O Executivo insiste em não trabalhar com suas prioridades, o que dificulta o andamento da pauta, num comportamento oposto do ocorrido com a Previdência, na qual o sucesso da aprovação se deveu muito ao foco dado ao projeto.

Em consequência, a consolidação fiscal andou pouco, embora os números do ano passado tenham sido bons. Aqui na MB, continuamos com a ideia de que a PEC emergencial (talvez a menos complexa de todas) deveria ser prioridade por sinalizar continuidade no ajuste.

As privatizações não andaram nada e muito pouco com as concessões. É significativo que o maior caso levado à leilão tenha sido um do Estado de São Paulo, com a concessão da estrada de 1.200 km de extensão, de Piracicaba à Panorama. Esse projeto foi vendido por R$ 1,1 bilhão e receberá R$ 14 bilhões de investimentos nos próximos anos. Na área federal, houve a concessão de trecho da BR-101, de 220 km e R$ 3,4 bilhões de investimento.

A pobreza das concessões e a falta de recursos para o Minha Casa Minha Vida devem explicar a queda da construção civil no último trimestre do ano passado.

Como já coloquei muitas vezes neste espaço, o peso do desemprego, do subemprego e do desalento impedem melhoras mais significativas no consumo. Da mesma forma, o grande número de empresas “zumbis”, em recuperação judicial, endividadas e estagnadas, também funciona como um enorme peso de arrasto que retarda o crescimento.

Em consequência dos pontos anteriores, os índices de confiança e de expectativas de consumidores, dos serviços e da construção civil começaram a cair desde o ano passado.

É nessa situação que aparece o coronavírus, que está gerando uma balbúrdia na economia global e uma enorme incerteza sobre o futuro.

A divulgação do modesto crescimento do ano passado e a impropriedade de muitas falas do ministro da Economia (câmbio a R$5,00???) quebraram definitivamente o encanto.

O caminho a ser trilhado pelo País ficou muito mais árduo.

*Economista e sócio da MB Associados


Eliane Cantanhêde: Trump e Bolsonaro

Acordo com EUA amplia acesso do Brasil ao mercado de defesa mundial

O Brasil poderá dar importante salto no complexo universo de defesa amanhã, em Miami, quando fecha um acordo com os Estados Unidos para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação de produtos nessa área. Esse acordo materializa a aliança extra-OTAN, amplia o acesso do Brasil ao riquíssimo mercado internacional de defesa e, indiretamente, melhora a posição brasileira na disputa por uma vaga à OCDE.

O Brasil é o 14.º país no seleto grupo que já fez esse mesmo acordo com os EUA, sob a sigla RDT&E. Nenhum deles é da América Latina, nem mesmo do Hemisfério Sul: França, Inglaterra, Itália, Holanda, Alemanha, Índia, Suécia, Estônia, Finlândia, Noruega e Coreia do Sul. O objetivo é harmonizar produtos de defesa com base nos EUA e na OTAN.

Depois de jogar todas as fichas na aproximação com os EUA, sem receber o equivalente em troca, finalmente o presidente Jair Bolsonaro - que jantou ontem com Donald Trump em Palm Beach - pode dizer que está fazendo um gol. Para Defesa e Itamaraty, um golaço. Para os céticos, uma dúvida: o governo tem obsessão por defesa, mas e a desigualdade social?

Não confundir indústria de defesa com indústria de armas e munições, que reúne só 1,7% das empresas do setor no Brasil. Todo o resto é, em resumo, nas áreas de satélites, comunicações, segurança cibernética, plataformas terrestres e navais, controle aéreo e por aí afora. De todas, só três são estatais, Emgepron, Imbel e Amazul.

Do ponto de vista estratégico, essas áreas não dizem respeito só às Forças Armadas, mas trazem benefícios para a tecnologia, a indústria em geral e a sociedade civil, como ocorreu com a internet e o GPS, entre tantos outros.

Do ponto de vista econômico, o governo considera que “o céu é o limite”, pela grande sofisticação, altos preços e mercado internacional do setor. Com o selo RDT&E, os produtos brasileiros terão outro patamar. Há, ainda, a questão da tecnologia e do treinamento de pessoal no Brasil, onde a defesa já responde por 250 mil empregos diretos e igual número de indiretos, com uma renda três vezes maior que a média nacional e um efeito multiplicador poderoso: cada real aplicado tem potencial de gerar 9,8 reais na economia.

O acordo, que será assinado pelo chefe do Estado-Maior Conjunto do Brasil e pelo comandante do Comando Sul dos EUA, não envolve recursos. Isso é uma outra história, ou um outro acordo, ainda não em discussão, mas já no radar do Brasil: o RDT&F, sendo o F de “funding”, ou financiamento. Além do acordo de defesa, Bolsonaro já assinou o decreto do “Global Entry”, para ampliar a dispensa de vistos para grandes empresários, e estão em pauta em Miami comércio, troca de tecnologia, investimentos e infraestrutura. Até por isso, é estranho que Paulo Guedes não vá. De repente, pressa para as reformas?

Não se pode diminuir a simbologia de Trump abrir as portas para um jantar, sábado à noite, para o brasileiro, mas o encontro teve caráter informal, não de reunião de trabalho para percorrer a extensa agenda comum. Até porque, cá pra nós, nenhum dos dois gosta dessas chatices.

Também não custa lembrar: quem é melhor comerciante, Trump ou Bolsonaro? Aliás, se um tema era certo no jantar, era o 5G. Trump não quer nem ouvir falar em 5G da China, só não se sabe como colocaria para Bolsonaro: em forma de advertência, ameaça ou premiação pela decisão. Mas a pressão é forte. A ver.

Para Bolsonaro, o troféu da viagem será a foto com Trump, mas Trump não é eterno, os EUA não são os únicos parceiros e a nossa verdadeira guerra é a tragédia social. Não adianta ser aliado extra-Otan dos EUA e entrar na OCDE só com o discurso de que, um dia, quem sabe, isso reverterá para toda a sociedade. Quem tem fome tem pressa.


Vera Magalhães: Mulheres

Ser jornalista mulher nos dias de hoje traz desafios e mudou minha relação com a data

Sou daquelas que nunca deram bola para o Dia Internacional da Mulher. Cheguei a soar grosseira ao vivo no rádio com o querido Joseval Peixoto, quando ele me parabenizou pela data e eu disse que ela não significava muito para mim.

Mas minha relação com o feminismo vem mudando ao longo dos anos. Que bom que podemos nos atualizar, rever conceitos e convicções arraigadas ao longo do tempo. Ou então envelhecer seria apenas perder colágeno e massa muscular, ver os cabelos embranquecerem e as rugas aparecerem, e não seria nem um pouco justo ou divertido.

Não sou nem serei nunca uma militante feminista. Não é da minha natureza militar por esta ou aquela causa, nem me encaixar em coletivos ou agremiações. Mas hoje eu compreendo muito melhor que há alguns anos os estigmas, os riscos e as dificuldades que ainda hoje, em pleno século 21, recaem sobre as mulheres pelo simples fato de sermos quem somos, do gênero feminino. E isso não é algo a respeito do que quem tem uma posição pública pode calar.

Tempos anormais têm o efeito de nos tirar da nossa zona de conforto. E se isso traz grandes perturbações e muitos dilemas, também leva a descobertas reconfortantes. Ser uma jornalista cobrindo o governo de um presidente que afronta diariamente a imprensa e, especificamente, as mulheres, ofendendo, difundindo fake news, tentando intimidar repórteres ou silenciar perguntas é um desses desafios.

Passei esta semana repensando minha relação com a efeméride, seu significado. Na última quarta-feira fui convidada pela atriz Regina Duarte para sua posse na Secretaria de Cultura. Viajei a Brasília para isso e, quando disse a amigos e colegas que iria ao Palácio do Planalto, as reações se assemelharam às que eu esperaria ouvir se anunciasse que estava indo me internar num hospital de Wuhan para cobrir sem máscara o surto do novo coronavírus. “Mas você vai ao PALÁCIO? Sozinha?”

Cubro política há 27 anos. Desde 2000 frequento o Palácio do Planalto, durante dez anos em bases diárias, depois eventualmente. Não é razoável que a ida de uma jornalista de política à sede do governo do País cause inquietação. Fui, sozinha, e virei alvo de alguns olhares engraçados, mas, como é o normal, nada de errado ocorreu. Mas, ao fim da cerimônia, encontrei os colegas que voltavam da portaria do Alvorada e tinham acabado de ser submetidos ao escárnio presidencial, com o patético show de Bolsonaro e seu cosplay Carioca a bordo do carro oficial. E isso é, sim, anormal numa democracia.

Jornalistas mulheres que cobrem o dia a dia da residência oficial da Presidência sofrem agressões diárias e estão sendo poupadas pelas chefias da cobertura, pois são hostilizadas por uma claque feérica que se sente autorizada pelo comportamento do mandatário. E isso não é, de forma alguma, menor ou aceitável.

Jornalistas são retratadas como prostitutas em vídeos, memes e na voz do presidente, em pessoa. Isso só ocorre pela sua condição feminina, e o método não é replicado com nossos colegas homens, por mais incômodas que sejam as reportagens que produzam. Isso não é tolerável.

Então, neste Dia Internacional da Mulher, esta coluna é para conversar com o leitor e dizer que, se ele minimiza esses ataques, ele relativiza o próprio valor da democracia e da igualdade de gêneros, tão duramente conquistadas.

Essa dose cavalar e oficial de misoginia, machismo e sexismo não vai calar a voz de milhares de jornalistas mulheres que escolheram a profissão sabendo que iriam amassar barro, quebrar pedra, cobrir guerras e eventualmente se ver diante de situações de risco institucional. É para isso que estamos aqui, hoje e todos os dias. Parabéns a todas as mulheres. Vamos juntas!


Roberto Romano: Forças Armadas e soberania

Presidente deve ser advertido sobre as consequências de quebrar a hierarquia...

Os enunciados seguintes são dirigidos às Forças Armadas. Tempos atrás publiquei neste espaço o texto intitulado Presidência subversiva. Nele discuto os dilemas por nós vividos diante da imprudência – em assuntos graves – evidente no chefe de Estado. Lembrei os monopólios da força, norma jurídica, impostos.

Mencionei a hierarquia do poder público, sobretudo no setor militar. Sem ela desaparece a instituição estatal, da administração à justiça e à defesa armada. O enfraquecimento da ordem hierárquica preocupa as mentes democráticas. O pior desafio dessa anomia é que ela tem origem na pessoa que deve zelar pelo respeito às normas. A subversão do palácio é partilhada pelos que precisam garantir a segurança coletiva.

Para discutir aqueles itens retomo o polêmico conceito de soberania. Na ONU o enunciado fundamenta a tese consagrada por Tomas Hobbes de que o Estado possui suprema autoridade no território, plenitude da jurisdição interna, imunidade diante da jurisdição de outros Estados. Para todos o nível hierárquico é o mesmo. No plano interno a soberania define o único poder com direito legítimo de administrar corpos e mentes. Mas no campo interno existe hierarquia e sem ela desaparece o Estado. A soberania – segundo o termo filosófico antigo – é a alma do poder público. Sem ela resta um mecanismo fragmentado e caótico.

No Brasil a soberania sofreu atentados cujos frutos definem nossa História. O enorme território custou guerras em sua preservação. Violências foram cometidas contra os habitantes anteriores: no campo anímico, os sacerdotes católicos e na carne, os caçadores de riquezas. O trato entre colonos foi definido pela violência e falta de controle legal. Os sermões do padre Vieira denunciam, além da corrupção, o frágil respeito pela vida e pelas propriedades civis. No século 18 surgem os primeiros reclamos de soberania nas regiões coloniais.

Aquelas reivindicações iam contra a forma de controle exercida por Lisboa. Na Inconfidência, pontos estratégicos eram a fundação de uma universidade e de fábricas. A censura e o controle português tornavam inviável a vida fabril e intelectual. Além do veto aos livros não religiosos, jovens abastados seguiam para a Europa se desejassem educação superior.

A Corte no Rio definiu o Estado incipiente como oposto à democracia. Fugido de Napoleão, o regime português aqui instalou formas administrativas inimigas das conquistas democráticas instauradas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França. Em vez de um aparelho estatal controlado pela soberania popular, aqui se mantiveram os defeitos do Antigo Regime, como a troca de favores nos cargos públicos. A burocracia à brasileira é teia anárquica, o provimento dos cargos dá-se em trocas do governo com poderosos líderes civis. Sem disciplina e hierarquia administrativa, foi afastada a “gente ordinária de veste” sem nobreza ou pistolões de pessoas ricas.

As Forças Armadas, para serem aceitas, sofreram oposição dos grandes proprietários, os chamados de coronéis. A eles não interessava uma força impessoal sem vínculos de favor com poderosos regionais. Ao resistirem ao monopólio da força entregue ao Estado federal, que usaria como instrumento privilegiado o Exército, os oligarcas se organizaram em federações paralelas, cujo poder, no entanto, era essencial para os que dirigiam o campo federativo.

Desde o século 19 insurreições surgiram em todo o território. Tal fato impulsiona a política de centralização sem atenuar o poder dos oligarcas. Resultado: o núcleo federativo se impôs sobre os governos estaduais, mas os presidentes da República dependem do apoio trazido pelos oligarcas no Congresso. Governadores são destituídos do poder decisório e dependem dos coronéis para serem ouvidos pela Presidência da República.

O atual mandatário acirra discórdias entre dirigentes estaduais e incentiva forças disruptivas que minam a autoridade daqueles dirigentes. O problema atinge pontos insuportáveis no trato com Polícias Militares, que devem obediência e disciplina aos governadores. No Ceará e outros Estados, policiais em pleno motim decretam o fechamento do comércio, o toque de recolher, com truculência inaudita.

Assim, eles quebram a hierarquia e ameaçam o monopólio da força, base da soberania. Ademais, impulsionam a desagregação das partes na estrutura do Estado nacional. A continuar tal prática, com o silêncio incentivador da Presidência, o papel das Forças Armadas será reduzido na ordem interna do País. O Exército, a Marinha, a Aeronáutica devem gerir a força do todo estatal para assegurar a soberania no território. Se policiais militares amotinados controlam cidades, eles agem em nome de soberanos anônimos e irresponsáveis, estraçalham o território, abolem a soberania legítima. Se tal coisa se agrava, breve não existirá um país, mas fragmentos soberanos. As Forças Armadas serão descartáveis.

O presidente da República deve ser advertido sobre tais consequências nos instantes em que ele mina a autoridade dos governadores e quebra a hierarquia de comando civil e militar.

✽ Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)