O Estado de S. Paulo

Luiz Sérgio Henriques: A Venezuela como questão de método

Com seus remédios salvadores, hipóteses ‘revolucionárias’ arruínam sociedades

A palavra “venezualização” passou a fazer parte do vocabulário político, por motivos óbvios. E como é próprio de palavras que nascem em contexto de ódio, divisão e radicalismo, trouxe consigo uma atemorizante carga negativa. Segundo próceres da direita, ou, mais propriamente, da extrema direita, a começar por Donald Trump, processos degenerativos como os que aquele termo implica decorrem inevitavelmente de qualquer experimento ou política associados, ainda que remotamente, ao “socialismo” e à “esquerda”.

Bem verdade que não há modos suaves para qualificar a tragédia venezuelana. Houve quem, no campo progressista, desconfiasse desde o princípio - e claramente a ela se opusesse - da aventura do comandante Hugo Chávez, mas é forçoso reconhecer que boa parte da esquerda brasileira e latino-americana não viu motivos para se distanciar de um militar ultranacionalista que prometia refundar ou regenerar o país, explorando a crise da democracia liberal e a debilidade da estrutura econômica, incapazes ambas - aquela democracia e aquela economia - de se abrir para uma participação maior dos venezuelanos. Com aguçado faro para a demagogia, Chávez relançou, pela primeira vez no século, menos a ideia do que o slogan do socialismo, o que bastou para que muitos deixassem num canto, sem uso, as armas da crítica e aceitassem como verossímeis as bravatas do caudilho.

O chavismo e o madurismo, para também mencionar o precário sucessor, constituem também, e sobretudo, um método. Como tal, o processo de venezualização não está restrito a uma desafortunada nação latino-americana, sangrada ainda por cima pela fuga de parte expressiva da população, não só dos setores mais ricos. E também não se restringe aos episódios massivos de tortura, violência policial e miliciana, que ninguém mais pode desconhecer - quando menos desde a publicação, em meados de 2019, do relatório da ONU sobre sistemáticas violações de direitos humanos organizado sob a direção de Michelle Bachelet, egressa das fileiras do socialismo chileno e vítima, ela própria, da ditadura no seu país.

Se nos limitássemos a esse tipo de constatação, diríamos que Chávez e depois Maduro seriam “somente” a versão populista de esquerda de um ditador infame como Pinochet. No entanto, o método que passaram a simbolizar tem que ver com algo ainda mais grave, a saber, o esvaziamento obstinado e contínuo das formas da democracia, rumo a um regime autocrático supostamente legitimado por expedientes plebiscitários e pela ligação direta entre o povo e seu líder. Um e outro se identificam a ponto de tornar tendencialmente impossível o papel da oposição e a alternância regular de poder. Opor-se ao líder, que encarna sem restos a pátria e as virtudes cívicas (quando não as religiosas!), é trair o povo, agindo como quinta-coluna de inconfessáveis interesses. E é nesse ponto que governantes extremistas se dão as mãos: nenhuma diferença essencial entre todos os que, a exemplo do presidente Jair Bolsonaro, prometem “varrer” os opositores, tratando-os ora como agentes do império norte-americano, ora como emissários do comunismo apátrida.

Foram incontáveis as vezes que Chávez ou Maduro denunciaram as tentativas de “magnicídio”, as tramas mirabolantes extraordinariamente próximas das fake news hoje “cientificamente” propagadas pela extrema direita no poder. Numa circunstância infeliz em que alguns dirigentes da “maré rosa” latino-americana se viram acometidos de câncer, Chávez aventou, com fingida seriedade ou autêntica paranoia, a hipótese de um vírus preparado nos laboratórios da CIA para assassinar os líderes e frear a marcha de redenção dos povos. Donald Trump foi um dos corifeus do movimento birther, que negava, com deslealdade a toda prova, o nascimento de Barack Obama em solo americano. E move-se com tanta maestria na “arte” da manipulação que, segundo afirmou certa vez, ainda que atirasse em alguém numa avenida nova-iorquina, nem por isso perderia um só voto. A tanto, sem dúvida, chega a cegueira deliberada.

A “venezualização” não é um risco associado unicamente ao populismo de esquerda. A “maré rosa” da primeira década do século tinha como área mais radical os regimes ditos bolivarianos, com a tática, num primeiro momento aparentemente invencível, de concentrar o poder em torno do Executivo, desautorizar os Parlamentos regularmente constituídos e destruir os delicados equilíbrios entre as instituições de Estado e entre este último e a sociedade civil. Contudo a régua e o compasso desse projeto infaustamente “revolucionário” se transferiram recentemente para outras mãos não menos ameaçadoras. E a ameaça presente - da parte da extrema direita liberticida - só faz confirmar que hipóteses “revolucionárias” de qualquer natureza, com seus remédios salvadores, costumam arruinar sociedades inteiras ou, no mínimo, encerrá-las em estéreis e prolongados conflitos e convulsões. Apesar do que somos e do que aspiramos a ser como povo e como nação, não podemos mais dizer que estamos alheios a esse tipo de atribulação.

* Tradutor e ensaísta, um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira)


José Márcio Camargo: De volta ao paraíso

Suspender ou flexibilizar o teto fatalmente levará a uma reversão da trajetória de queda dos juros

Na semana passada, o Congresso derrubou o veto do presidente Bolsonaro ao projeto que aumenta o limite para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) de ¼ para ½ do salário mínimo. Segundo o Ministério da Economia, isso significa um aumento de gasto obrigatório de R$ 20 bilhões em 2020 e R$ 217 bilhões em dez anos, o que tornaria impossível o cumprimento do teto para o crescimento do gasto público. Uma decisão em total desacordo com as necessidades do País.

No final de 2019, o governo enviou ao Congresso três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que, em conjunto com a PEC da Regra de Ouro, caso aprovadas, criariam condições para a redução dos gastos obrigatórios do governo e tornariam o teto do gasto sustentável. A derrubada do veto ao aumento do limite do BPC faz com que a aprovação dessas propostas seja uma condição necessária, mas talvez não suficiente, para a manutenção do teto.

A pandemia da covid-19 é uma emergência que vai requerer recursos públicos e, portanto, redução de outras despesas para que o teto seja respeitado. Este é um dos objetivos do teto dos gastos: criar na sociedade brasileira (população, Legislativo e Executivo) a cultura de ordenar e definir prioridades no processo orçamentário. As quatro PECs que estão no Congresso viabilizam essas escolhas ao diminuir os gastos obrigatórios. A opção seria suspender ou flexibilizar o teto, como já sugerem alguns analistas. Por que não adotar essa alternativa?

Um importante objetivo do teto é criar condições para uma redução estrutural das taxas de juros da dívida pública brasileira, que, por décadas, estavam entre as maiores do mundo. Por que a existência do teto atingiria esse objetivo?

Para respeitar o teto, os gastos públicos terão de permanecer constantes em termos reais até 2026. Ou seja, todo aumento de receita terá de ser alocado para reduzir o déficit primário, ou a dívida pública, ou a carga tributária. Portanto, qualquer crescimento real do PIB vai, eventualmente, levar a uma redução da dívida como proporção do PIB. Afinal, se o PIB cresce, crescem as receitas tributárias e, como os gastos estão constantes, eventualmente vão sobrar recursos para diminuir a dívida.

Como a relação entre a dívida pública e o PIB é o principal indicador de solvência do País, a existência de um teto é uma garantia de que o grau de solvência do Brasil vai melhorar no futuro. Quando isso acontecer, a demanda pelos títulos públicos e, portanto, seus preços deverão aumentar, com a consequente queda das taxas de juros.

Mas os investidores só conseguem lucrar com suas aplicações financeiras se forem capazes de antecipar os movimentos dos preços dos ativos. Ou seja, se a expectativa dos investidores é de que os preços dos títulos vão aumentar no futuro, a melhor estratégia é comprar hoje e esperar os preços aumentarem para vender no futuro. Com a antecipação do movimento, o resultado é um aumento dos preços e queda nas taxas de juros no presente.

Não deve ter sido por simples coincidência que as taxas médias de juros reais pagas pelos títulos do governo brasileiro mostraram forte redução (de 21% ao ano para 5% ao ano) desde que o teto para o crescimento do gasto público foi aprovado, em dezembro de 2016.

Suspender ou flexibilizar o teto retira a restrição para o crescimento do gasto público e destrói este mecanismo automático de ajuste, o que fatalmente vai levar a uma reversão da trajetória de queda dos juros que ocorreu nos últimos três anos e meio. E, com juros mais elevados, aumenta a probabilidade de uma volta da recessão. Um tiro no pé.

Também não foi coincidência que, após a derrubada do veto ao aumento do BPC, uma decisão que mostra total irresponsabilidade do Congresso, as taxas de juros dos títulos públicos subiram acentuadamente. Um indicador eloquente do que poderá estar à frente caso o teto seja flexibilizado ou suspenso: a volta do paraíso dos rentistas!

* Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio, é economista-chefe da Genial Investimentos


Adriana Fernandes: Até quando?

Não há um momento de trégua entre o governo e os líderes do Congresso

É inacreditável que depois de a pandemia do coronavírus mostrar a sua cara no Brasil, ameaçando a população e derrubando o Produto Interno Bruto (PIB) do País, ainda se veja uma sequência de bate e apanha entre governo e Congresso.

Não há um momento de trégua entre as duas partes para, juntas, traçarem uma estratégia de votação de projetos importantes para o País segurar o tranco enquanto os efeitos da pandemia estiverem por aí.

Dane-se a população.

Um plano de contingência para as próximas votações já deveria estar sendo traçado. E não só para avançar nas ditas reformas, mas também para a votação dos créditos extraordinários e as medidas de curto prazo que o governo deverá enviar ao Congresso para atender as necessidades mais urgentes do combate do vírus em várias frentes.

De um lado, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cobra de Paulo Guedes responsabilidade para anunciar um plano organizado e eficiente. Em seguida, Guedes responde a Maia cobrando do Congresso avanço das reformas.

Assim, os dias estão se passando sem que nada aconteça de fato. Só elencamos até agora frases de efeito de cada lado, que alimentam os cliques das redes sociais.

Alguém já se perguntou como ficará o quadro se o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), tiver que suspender as sessões?

Parlamentares com mais idade, preocupados com o risco de contaminação, já pediram ao presidente Alcolumbre que tome essa decisão.

Mesmo de forma precária e desorganizada, a equipe econômica, que conta na sua retaguarda com técnicos de carreira experientes (muitos já passaram pelas últimas grandes crises em vários governos do PSDB, PT a Bolsonaro), começou a organizar a sua reação. E a Câmara e o Senado? Em outros países o Parlamento está ajudando. A responsabilidade é de todos.

Quem viveu a crise financeira internacional de 2008, que abalou os alicerces do mercado financeiro mundial, lembra que a reação brasileira à crise não foi assim tão imediata. As medidas foram surgindo. É um processo, mesmo. Cheio de trancos.

Apesar da urgência do momento, não se tira medidas de socorro, com implicações diversas na economia, da noite para o dia.

As primeiras medidas já foram anunciadas. O mais importante nesse primeiro momento é garantir todo dinheiro necessário para que população tenha acesso a tratamento eficiente nos hospitais públicos; que, caso haja uma expansão do coronavírus, com a necessidade de maior isolamento das pessoas, não falte comida e produtos de primeira necessidade.

Crédito, socorro e subvenções temporárias vão aparecer no cardápio, se a crise piorar. Que ninguém se engane disso. Mas precisa ser de forma organizada.

É bem verdade que o presidente Jair Bolsonaro atrapalha o avanço da agenda econômica. Isso não é novidade. Assinou um projeto que selaria um acordo com o Congresso para o impasse em torno das novas regras do Orçamento, que dão mais poder ao relator, Domingos Neto (PSD-CE), e depois voltou atrás.

Dar mais poder ao relator do Orçamento, mesmo diminuído as suas emendas de R$ 30 bilhões para R$ 15 bilhões, significa dar mais poder a Maia, Alcolumbre e aos seus líderes e retirar dos parlamentares que são opositores a eles no Congresso.

É preciso ficar claro que a guerra pelo poder de mando do dinheiro do Orçamento não é só entre Bolsonaro-Guedes versus Congresso. É uma briga também entre o alto e o baixo clero.

À medida que as regras do Orçamento impositivo foram sendo construídas ao longo dos últimos anos (vale muito a pena a leitura do material especial produzido pelo portal do Estado na internet sobre a linha do tempo desde a sua semente em 2009), os mecanismos de controle dos líderes por meio das emendas também diminuíram.

Com um governo medíocre na articulação política, o alto clero abocanhou para si uma fatia maior do Orçamento por meio das emendas de relator. O relator representa o alto clero. É, por isso, que a briga continua. Bolsonaro, Guedes, Maia, Alcolumbre, baixo clero. Já estamos na metade de março. Até quando?


O Estado de S. Paulo: ‘Programa político não há. A luta de Bolsonaro é pelo poder’, diz Luiz Werneck Vianna

Cientista político diz que presidente não tem diretriz e adiamento de atos não encerra pressão sobre Congresso e STF

Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo

RIO - O recuo do presidente Jair Bolsonaro do apoio às manifestações contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), marcadas para o domingo, 15, não encerra a disposição do mandatário de pressionar os outros poderes, avalia o cientista político Luiz Werneck Vianna. O pesquisador vê na mobilização – temporariamente suspensa pelo presidente na quinta-feira – “uma tentativa de forçar os limites da institucionalidade, para rompê-la”.

O objetivo seria “totalizar a política brasileira por um projeto de poder”, sem objetivo. Segundo ele, diferentemente do que ocorreu no governo de Jânio Quadros (1961) e na ditadura (1964-1985), a iniciativa autoritária que atribui a Bolsonaro não tem programa. “É o poder pelo poder, para acumular poder”, diz ao Estado o intelectual, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio.

Werneck Vianna afirma que, em sua ofensiva contra as instituições, Bolsonaro apela a uma “ralé”, como descrita por Hanna Arendt (1906-1975), fração social formada por ressentidos de diferentes classes. Esse grupo social, ressalta, é uma realidade nova e pode se tornar base do presidente. O pesquisador diz que o sistema político foi muito atingido pela Operação Lava Jato e lamenta que o País não tenha líderes como foram Ulysses Guimarães (1916-1992) e Tancredo Neves (1910-1985). Diz esperar que surjam novas lideranças políticas e explica sua esperança com variação da frase de Guimarães Rosa em Sagarana: “O sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão (necessidade)”.

O recuo do presidente foi apenas “físico”, por causa do coronavírus, ou foi também uma coisa política?
Foi político. Ele sentiu o esvaziamento. O coronavírus foi a sopa no mel.

O senhor acha que isso encerra o episódio ou o presidente tende a, mais adiante, retomar esse enfrentamento das instituições?
Essa coisa vai ser retomada, sim, quando ele encontrar condições favoráveis. Faz parte da natureza desse regime. É destruir as instituições da democracia política. E com apoio de massas.

Como o senhor analisa a convocação da manifestação que foi suspensa?
Há uma tentativa de forçar os limites da institucionalidade para rompê-la. Há uma estratégia por trás de tudo isso, que é a conquista do poder político total.

Seria um gesto cesarista?
Há uma tentativa de totalizar a política brasileira por um projeto de poder. Porque programa político não há. A luta é pelo poder. Ele quer todo o poder possível, acumular poder, maximizar poder. O limite do poder é o poder. Então, esse é que o leitmotiv dessa ação presidencial. Não tem programa nenhum.

Não tem finalidade?
É o poder pelo poder.

Isso tem precedente na história do Brasil?
Tem precedente sim, mas havia um programa envolvido. Agora não tem programa nenhum...

Qual seria o precedente?
O Jânio (presidente em 1961 por sete meses, até renunciar) tinha um programa. Terceiro-mundista lá, aquela época do Terceiro Mundo, naquele contexto. Do (presidente egípcio Gamal Abdel) Nasser (1918-1970), ele andava até com umas roupas…O safári…

É… O Jânio tinha um programa muito definido. Agora, não tem, Qual é o programa? O próprio regime militar, que não apelou às massas, mas quando tomou todo o poder para si tinha um programa, de modernização por cima da sociedade. Agora não tem.

O senhor acha que nesses atos o presidente poderia se dirigir diretamente às pessoas?
Acho que há, na verdade, um projeto de fascistização do poder político no Brasil. A minha conclusão é essa. Não tem programa econômico, não tem programa social, não tem programa de sociedade, de país, de nada. Quer o poder todo. Para fazer o quê? Conservar poder, mando.

E as pessoas comuns envolvidas nisso? O que as move?
Às elites econômicas, interessaria o caminho de eliminação de obstáculos sociais à acumulação. Agora, mas só isso? A esta altura, não nos basta. A economia não tem andado. Não tem obstáculo nenhum, nenhum, nenhum diante dela. Ela não anda porque não anda, porque não tem agentes econômicos interessados, envolvidos, não tem sociedade para isso. Este governo não tem programa econômico algum. Tem um programa político, de extrair o máximo de poder possível de todas as fontes existentes de poder. Para fazer o quê? Para exercer o poder total.

Mas tem muitas pessoas comuns, não são empresários, são pessoas comuns, que são entusiastas do presidente. Como é que se explica que isso se mantenha, após um ano de governo de resultados questionáveis?
Essas perguntas poderiam ser feitas também à expansão do fascismo na Itália, do nazismo na Alemanha… Bom, o nazismo na Alemanha teve as compensações do emprego, da ordem...Mas essa pergunta não sei responder, entendeu? O que as pessoas estão querendo com isso, estão se deixando mobilizar por isso...

Chamar as manifestações seria uma forma de Bolsonaro manter a narrativa rebelde, de mito?
Eu não compartilho da ideia de que esse governo está tonto. Esse governo tem um projeto, o de conquistar todo o poder político para si. Quando ele conseguir isso, o que vai fazer? Vai conservar isso. Agora, para quê? Eles não sabem, não têm programa.

Com muita frequência, o presidente dá uma declaração controversa, polêmica. Aí tem uma reação, e ele se corrige, volta atrás…
Mas volta atrás sempre em um movimento de dissimulação. Porque o norte permanece. Qual é o norte? É a conquista de todo o poder político. O caso aí dessa moça (Regina Duarte) que está na Secretaria de Cultura... Está aí em uma circunstância muito particular. Mais dia, menos dia, ela vai ser ejetada.

Mas quando ele faz isso, quando vai e volta, ele hesita ou isso é um método para testar reações, do tipo ‘até onde eu vou’, ‘até onde me deixam ir’?
É um método. É um método de teste de força. Sabe? Porque o objetivo é, sempre, puramente político. Não em outra coisa qualquer. Agora, vem cá. Tem uma realidade nova no País. Tem uma ralé. Essa ralé pode ser tornar uma base social de apoio a ele. Entendeu?

O que seria essa ralé? O senhor poderia definir melhor?
Ah, são os desapropriados de tudo, não é? De tudo… Mas não é só pobre, não. É classe média também. É ressentimento, ressentimento. E falta de valores, também. A sociedade há muito tempo abdicou de valores. A sociedade se deixou perverter. Há agentes de perversão nisso.

Hanna Arendt (intelectual alemã) fala em ralé, que seriam pessoas de todas as classes, mas não deram muito certo…
Isso, isso. Olha, (falo) no sentido mesmo que Hanna Arendt fala.

Nos últimos meses, o presidente tem atacado muito a imprensa profissional, inclusive com insultos no campo pessoal e com ataques a mulheres jornalistas. A que o senhor atribui isso?
A imprensa profissional expressa interesses organizados. Ele quer desorganizar tudo. Ele precisa de um vácuo, de um vazio.

Na sua avaliação, as instituições estão ameaçadas?
Ah, estão. Tenta-se destituir as instituições. As instituições têm resistido. Há uma possibilidade de conseguirem destituir as instituições. Há a possibilidade. O fato é que a imprensa, a mídia, tem se comportado de forma muito valorosa em relação a isso. Os articulistas… A situação está cada vez mais clara. Estão pondo a nu as circunstâncias em que estamos envolvidos. Agora, depende de uma força política que interrompa essa maluquice, né?

Mas existe essa força?
Não, não existe. Por ora, não existe.

O que explica que o presidente tenha chegado lá? Foi a implosão das instituições pela Lava Jato, por tudo aquilo?
A Lava Jato ajudou muito, né? Ajudou muito.

Por que?
Porque minou as instituições, minou os partidos, desmoralizou a política.

Esse tipo de processo, imagino, não é só brasileiro. Outros países já passaram por processos assim, não? Neles, as instituições se fragilizam e surge um outsider, digamos assim.
É, vamos ver se vai ter (Benito) Mussolini (1883-1945, ditador fascista da Itália de 1922 a 1945) aí. Não tem Mussolini.

Ainda não tem um Mussolini?
Não tem. Porque Mussolini, inclusive, era um homem preparado. E tinha programa. Aqui, é um fascismo nu.

O Brasil corre o risco de ter, se não um regime autoritário, uma democracia enfraquecida, com Congresso e Supremo Tribunal Federal sem relevância?
Mas isso não tem como ocorrer. Esse Congresso, apesar de ter uma das composições mais fracas da história republicana, resiste. Porque é o Congresso, é a política. A política é a política.

Quer dizer, há obstáculos a esse projeto autoritário: a imprensa, o Congresso. O que mais o senhor veria?
O Judiciário, setores do Judiciário. O Supremo, por exemplo.

No curto prazo, o senhor acha que a política brasileira, o nosso sistema político, teria condições de se recompor, de sair disso e se fortalecer? Ou vamos ficar na situação atual por muito tempo?
Depende de lideranças. Quer dizer, as nossas lideranças estão muito velhas. O Fernando Henrique é uma liderança muito débil. As declarações dele não ajudam. Embora ele tenha declarações diárias, elas não ajudam. Estamos muito longe de um Ulysses Guimarães, estamos muito longe de um Tancredo.

Não há lideranças novas fortes, é isso?
Não tem, ainda não tem. Vai aparecer, vai aparecer. O sapo pula por precisão, não por boniteza.


Elena Landau: Sem rumo, sem laços

Bolsonaro vive em outra dimensão; não indica estar preocupado com a crise

Ken Loach fez um filme forte. Para mim, mais perturbador que Parasita ou Coringa, muito bons e grandes vedetes do ano. Mas nesses me senti distante daquelas realidades, apesar da relevância da discussão sobre desigualdade de renda, pobreza e violência retratados. Em Você Não Estava Aqui, a experiência foi oposta. A direção é seca, com atores excepcionais, sem trilha sonora ou glamourização na atuação e na cenografia. A vida como ela é.

Cansado de pular de emprego, dos patrões e da falta de oportunidades compatíveis com sua experiência, Ricky resolve se arriscar e virar autônomo. Vai ser entregador de encomendas. É avisado na partida de todos os riscos que estava correndo, tanto pelo contratante de seus serviços quanto pela própria mulher. Mas se joga. Não vê alternativas. A realidade, no entanto, se revela muito pior que imaginava.

O filme é visto como uma denúncia sobre a precarização das relações trabalhistas. É mais que isso. Há questões importantes ali levantadas, como a queda do padrão de vida após a recessão de 2008, os adolescentes que perdem interesse no ensino tradicional e a terrível realidade da falta de emprego para a meia-idade. Todos temos por perto alguém vivendo a mesma situação de desesperança. É o retrato de uma família que poderia ser a nossa. Um soco no estômago.

É passado no Reino Unido, mas faz pensar sobre Brasil. O impacto da nova revolução tecnológica sobre mercado de trabalho ou a necessidade de adaptação do currículo escolar, que evite a evasão de jovens, são temas comuns. A grande diferença está na rede de proteção social, que aqui não existe. Lá, serviços públicos ajudam a família a lidar com a situação por eles inesperada. Transporte que permite à mulher, mesmo que com muito sacrifício, manter seu emprego como cuidadora; acesso à rede de saúde, e uma escola que mantém um acompanhamento rigoroso da frequência e desempenho dos filhos.

Aqui, o País está despreparado e, pior, parece despreocupado para enfrentar a revolução tecnológica disruptiva dos dias atuais. Muitas profissões estão deixando de existir. O assunto é sério, por isso, é injustificável a indiferença com a requalificação, ou mesmo a qualificação, do trabalhador brasileiro. O abandono da área de Educação, a mais importante porta para igualar oportunidades, hoje comandada por um incapaz, é mais que chocante. É criminosa.

A indiferença social deste governo está por toda a parte. O desmonte do Bolsa Família, as filas no INSS e a desumanidade na prova de vida convivem com a proteção à indústria e o gigantismo do Estado. Pequenos arroubos liberais não atingem a elite empresarial ou as fortes corporações. Não há privatização, abertura comercial ou eliminação de isenções e créditos tributários. A competitividade e a produtividade seguem baixas, e não geram emprego nem em quantidade nem com qualidade necessárias. O governo é liberal na pregação, mas capenga na prática.

E agora temos uma crise recessiva e humanitária com o coronavírus para aprofundar os problemas que já temos, que vai exigir respostas mais efetivas. Frustrados com o fraco desempenho da economia, muitos vaticinam: “o modelo liberal não deu certo”. A verdade é que ele nem sequer foi testado. Faltaram políticas públicas que gerem igualdade de oportunidades, mobilidade social e assistenciais, que terão que ser ampliadas em tempos de covid-19. Nesse ambiente, a pressão pelo abandono do controle de gastos aumentou e o apelo ao retorno ao que já deu errado cresce.

A única resposta para uma sociedade atônita foi a insistência de Guedes nas reformas. A lista de “prioridades” do ministro de Economia é longa e confusa. Traz 19 projetos e 48 propostas. A falta de empatia dos governantes com a população assusta.

As reformas são importantes, claro, mas já o eram no 1.º dia de mandato. A Previdência foi aprovada na Câmara em junho do ano passado. Nada mais aconteceu nesses nove meses. O governo não se empenhou sequer na votação da PEC, que traz “emergência” no nome. A desarticulação e o despreparo são reflexo de um governo que tem desprezo pela política e pela democracia.

Indiferente, o presidente mantém sua briga pessoal contra os Poderes Legislativo e Judiciário. Nada indica que esteja preocupado com a grave crise nacional e internacional. Vive em outra dimensão. Não há uma resposta para a crise. Um retrato do liberalismo sem alma e sem direção deste governo.

O filme de Ken Loach termina com um pedido: “Quero voltar ao que tínhamos antes”. Impossível. Não tem volta.

* Economista e advogada


Eliane Cantanhêde: Fantasia e pesadelo

O presidente ainda acha que Bolsas, dólar e coronavírus são 'fantasias da grande mídia'?

É dramaticamente irônico que o presidente Jair Bolsonaro tenha dito que o coronavírus não passava de uma “pequena crise”, uma “fantasia” criada pela “grande mídia”, e apenas dois dias depois um dos contaminados no Brasil venha a ser justamente o secretário de Comunicação da Presidência, Fábio Wajngarten. Vítima da “fantasia”? Vítima da imprensa?

O fato é que, agora, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já declarou pandemia, os casos e mortes se multiplicam rapidamente por todos os continentes, as Bolsas despencam, eventos nacionais e internacionais são cancelados, um atrás do outro, e as escolas estão sendo fechadas.

A curiosidade é por que o presidente perde todas as chances de ficar calado. Fantasia? O coronavírus já atingiu centenas de milhares de pessoas no mundo, com perto de 5 mil mortes. No Brasil, já havia em torno de 80 casos confirmados e mais de 1.400 suspeitos em vários Estados e no DF.

A Bovespa já foi suspensa quatro vezes nesta semana, com as maiores quedas desde 1998, enquanto o dólar chegou a bater em R$ 5. É para brincar com uma coisa dessas? Ou para imitar seu ídolo Donald Trump? Ou para aproveitar para jogar descrédito sobre a mídia? Melhor do que isso seria o Planalto e o Ministério da Economia seguirem o exemplo do Ministério da Saúde. Mostrar serviço, atenção, presteza. Não é essa a sensação, nem em Brasília nem no mercado.

Em meio a tudo isso, é muito preocupante, sim, que Wajngarten tenha viajado no mesmo avião do presidente e tido contato o tempo todo com ministros e assessores da comitiva presidencial a Miami. Para constrangimento geral, ele também participou do jantar de Trump para Bolsonaro na restrita Mar-a-Lago e ainda tirou foto com Trump e o vice Mike Pence com aquele boné ridículo do “Brasil great again”. Já imaginaram se ele sai contaminando a cúpula da Casa Branca?

É óbvio que Wajngarten é uma vítima, um paciente, totalmente isento de qualquer responsabilidade, mas, na prática, o presidente, a primeira-dama Michelle, o filho Eduardo, ministros e assessores da Presidência estão numa situação delicada. Não precisa isolamento, mas monitoramento e evitar aglomerações, reuniões, apertos de mão, abraços e beijos. Logo, o governo brasileiro está em “home working”.

Enquanto isso, o Congresso derruba o veto da ampliação do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos carentes e deficientes, dando uma de bonzinho para o eleitor e uma de mau para as contas públicas e para Bolsonaro e o governo.

Para piorar, uma parte do Congresso faz jogo duro para liberar os R$ 5 bilhões que o ministro Luiz Henrique Mandetta reivindica para preparar o País para acolher e tratar os pacientes de coronavírus por toda parte. Mandetta pediu, o deputado Rodrigo Maia e o senador Davi Alcolumbre apoiaram, mas líderes de partidos do Centrão arranjam pretextos para dificultar as coisas. É brincar com fogo.

A situação ainda vai piorar muitíssimo, antes de atingir o pico e começar a melhorar. Por enquanto, os contaminados são pessoas que estavam na Ásia, na Europa, particularmente na Itália, e têm acesso ao que há de melhor em saúde no Brasil. O problema será quando os “ricos” começarem a passar o vírus para os “pobres”. Esse será o grande teste, não apenas da saúde pública no Brasil, mas também das autoridades brasileiras, a começar do presidente e do Congresso. Não é fantasia e não se pode brincar com vida e morte.

Aliás, e se usassem para o secretário o que Abraham Weintraub usou para a educadora Priscila Cruz, após suspeita do coronavírus? Citando a Bíblia, ele comemorou: “O Senhor nosso Deus os destruirá”. Sorte que há poucos Weintraub para coisas assim.


Zeina Latif: Dissintonia

Falhas do governo não justificam irresponsabilidade do Congresso

A ameaça do coronavírus bate à porta. O que se vê, no entanto, não é apenas um país despreparado para a crise, mas também sem rumo.

O presidente negligencia o problema, enquanto o País espera informações e um plano de ação do governo.

Fernando Reinach faz o alerta. Um quadro epidêmico no Brasil não pode ser descartado. Será necessário implementar nas próximas semanas um conjunto de ações sanitárias para minimizar o risco de colapso do sistema de saúde, como as conduzidas na Inglaterra, França e Alemanha. Para início de conversa, é preciso disponibilizar testes para coronavírus em larga escala e com rápida resposta.

Tudo muito distante de nossa realidade.

Alguns economistas sugerem expansão fiscal e aumento das concessões de crédito do BNDES para proteger a economia. Uma recomendação equivocada.

A prioridade no momento é proteger as pessoas e o sistema de saúde, para que se possa reduzir o risco de um quadro grave no País.

A defesa da economia dependerá do tamanho e da natureza do impacto do coronavírus, o que ainda não está claro. Por exemplo, se o mercado de crédito for afetado de forma aguda, como em 2008/09, medidas administrativas do Banco Central serão necessárias para evitar uma crise de liquidez e, no limite, linhas emergenciais de bancos públicos poderão ser acionadas.

Não é o caso de aumentar os empréstimos do BNDES. A demanda de investimento será afetada pelas muitas incertezas.

Além disso, ainda que muitas empresas enfrentem dificuldades para ter acesso ao crédito, não é por falta de recursos que o investimento não deslancha. É por falta de bons projetos em um país difícil, com regras do jogo complexas, mal definidas e que podem mudar sem critério.

Não faltam pesquisas apontando o fracasso da política de campeões nacionais do BNDES em elevar o investimento das empresas contempladas, como aponta Sergio Lazzarini.

A proposta de aumentar o investimento público chega a ser irresponsável. Não se trata apenas de ameaça à regra do teto de gastos – a principal âncora dos juros baixos – e de prejudicar a confiança de investidores. Trata-se da baixa capacidade do Estado brasileiro de fazer projetos de qualidade.

De acordo com a auditoria do Tribunal de Contas da União, 37,5% das obras financiadas com recursos federais estão paralisadas ou inacabadas. A razão principal não é a falta de recursos, mas sim problemas técnicos ou com órgãos de controle. Apenas 10% decorrem de dificuldade financeira.

Convém também lembrar de obras que foram finalizadas, mas que têm retorno social discutível, como estádios de futebol e estaleiros.

Além disso, apesar de os gastos com investimento serem considerados um uso mais nobre dos recursos públicos (até com exageros, como se gastos com saúde e educação não fossem essenciais), eles não são a melhor forma de reagir a choques transitórios que demandam medidas emergenciais.

O tempo necessário para execução é longo, ainda mais no Brasil, onde nem sequer há na prateleira bons projetos para serem rapidamente implementados. Além disso, muitos investimentos implicam gastos de custeio no futuro – como a construção de hospitais e escolas, que precisam de recursos para funcionar –, nem sempre viáveis do ponto de vista orçamentário.

Ações emergenciais devem ser, tipicamente, gastos com custeio de curto prazo. E, no quadro atual, teriam de ser focalizados na área sanitária e de saúde.

A dissintonia com o momento do País não para por aí. O Congresso avança em decisões que aumentam o rombo fiscal – com voto de parlamentares da base governista –, como a de derrubar o veto do presidente da República ao aumento do limite de renda familiar para se ter acesso ao Benefício de Prestação Continuada. O impacto fiscal será na casa de R$ 20 bilhões ao ano. Caberá manifestação do TCU, posto que não há fonte de recursos definida.

Há risco de outras pautas-bomba. As falhas do governo não justificam a irresponsabilidade do Congresso.

Se seguirmos nessa trajetória, aí sim a crise será muito grave.

* Consultora e doutora em economia pela USP


José Serra: O que é essencial ficou de fora

Reforma tributária aumenta impostos sobre o consumo das famílias. Um disparate!

O texto-base da proposta de reforma do sistema tributário, em debate na Comissão Mista do Congresso, deixou de fora o que de fato querem as empresas e os consumidores: a simplificação imediata, acompanhada da progressiva redução dos tributos sobre o consumo, que oneram as famílias de baixa renda. Isso é o essencial e jamais poderia ser sacrificado ou, pior, agravado sob qualquer pretexto.

No ano passado publiquei neste espaço os motivos pelos quais não poderíamos aprovar uma reforma tributária com os parâmetros das que estão no Congresso. Se, por um lado, geram pressão regional para que se amplie a elevadíssima descentralização das receitas da União, por outro, mitigam a autonomia tributária dos entes federados. Sem mais nem menos, deixam de atacar um dos principais problemas do nosso federalismo: a irresponsabilidade fiscal dos governos subnacionais.

A proposta atual tem como base o texto da Câmara e prevê dois pontos que estão na contramão do que deve ser feito. Reduz os impostos dos bancos e causa um choque de preços e de renda nos demais setores, aumentando os impostos sobre o consumo das famílias, com maior impacto nas de menor renda: um total disparate!

Estima-se um aumento expressivo da carga tributária do setor de serviços: educação, 211%; transporte, 59%; profissionais autônomos, 460%; taxistas, 1.150%; dentre outros. Cabe destacar que esse é o setor que mais emprega no Brasil e onde estão concentrados os empregos de baixas qualificação e renda. Com esse aumento no custo dos serviços para a classe média haveria redução da demanda e desemprego nas classes mais baixas. Em resumo, haveria perda de renda para a classe média e desemprego nas regiões mais carentes. Como consequência, essas regiões necessariamente recorreriam a novas transferências compensatórias ou sobrecarregariam a assistência social e o seguro-desemprego.

Seria um erro obsceno permitir esses eventos econômico-sociais no momento em que o País experimenta elevado desemprego combinado com aumento da desigualdade de renda.

Há ainda o risco de aumento expressivo da sonegação fiscal com o novo modelo no destino. Acontece que as economias de diversas localidades consumidoras ainda são rudimentares, pautadas em serviços locais focados em atender pessoas físicas com base na circulação da renda oriunda das transferências. Não por menos, sua arrecadação também é precária, com baixa capacidade de fiscalização. Ou seja, parte da renda repartida pelos produtores com os consumidores poderia ser desperdiçada com o aumento da sonegação fiscal nessas localidades, inclusive de receitas que seriam destinadas à União, que também teria de promover aumento de alíquotas para compensar a perda global.

É preciso deixar bem claro: a proposta não simplifica de imediato o sistema tributário, como vendem seus defensores. O essencial ficou de fora! É fácil perceber que a transição de modelos envolve a convivência conflituosa entre o sistema atual e o novo por pelo menos dez anos. Não é preciso ser nenhum Ph.D. em sistema tributário para perceber que a complexidade de dois sistemas (o novo e o atual) é maior que a de apenas um. Ademais, a complexa e longa transição deixaria o novo modelo exposto a todo tipo de atritos e pressões políticas por mudanças. Com isso, o modelo ficaria sujeito ainda à insegurança jurídica decorrente da resolução de conflitos entre os inevitáveis perdedores e ganhadores da nova arena.

Busca-se uma transição longa porque o novo sistema causaria um enorme choque de preços entre os diversos setores produtivos e regiões do País. Nessa transição, haveria certamente um aumento da carga tributária em decorrência da elevação dos novos impostos, especialmente nos Estados e municípios perdedores. Uma análise imparcial e desapaixonada da proposta de reforma tributária em jogo nos leva a crer que também haverá de partida uma ampliação dos custos da arrecadação tributária.

Este diagnóstico impõe ações para encontrarmos outros caminhos para reformar nosso sistema tributário. Seu aperfeiçoamento depende de um esforço amplo baseado num debate técnico. Evidente que isso requer grande articulação e visão consensual entre o Executivo, o Congresso e os atores econômicos, partindo dos problemas para as soluções.

Devemos buscar medidas de aperfeiçoamento graduais que atendam às demandas da sociedade, que essencialmente são: simplificação imediata do recolhimento de tributos; redução dos litígios tributários, com diminuição da belicosidade e liberalidade do fisco; redução da sonegação para maior justiça social; e redução da cumulatividade e da carga tributária global, sobretudo dos tributos sobre o consumo que incidem desproporcionalmente sobre os mais pobres. Tais medidas devem reconhecer o atual arranjo e atender à grande maioria sem produzir perdedores.

Essa construção política ainda não se observa, não cabe no prazo de 45 dias, apresentado pelo plano de trabalho da comissão mista e só será possível se lideranças do Congresso e do Executivo promoverem o diálogo necessário para avançarmos com clareza e determinação.

*Senador (PSDB-SP)


Eugênio Bucci: Por que os líderes de oposição não se unem contra o fascismo?

Se Lula, FHC e Ciro souberem juntar forças, a maioria dos brasileiros vai segui-los

A cada dia mais, o presidente deixa de lado os disfarces e escancara suas pretensões autoritárias. No sábado passou a convocar oficialmente o ato público do próximo dia 15. Com isso expõe seus seguidores ao risco de contágio pelo coronavírus, mas, segundo ele, esse vírus aí “não é tudo isso que a grande mídia propaga”.

Saúde pública à parte, o dia 15 de março promete ser uma apoteose da truculência política. Nas redes sociais a convocação destila ódio, clama por “intervenção militar já”, calunia ministros do Supremo Tribunal e faz apologia da violência e da censura. É tudo o que o chefe de governo mais adora. Viciado em praticar bullying estatal contra as redações independentes, ele pressiona empresários que anunciam em jornais, discrimina os órgãos de imprensa que lhe desagradam e faz o que pode (e, principalmente, o que não pode) para quebrar empresas jornalísticas e humilhar jornalistas. Para ele, quanto mais desaforado for o dia 15, melhor.

O clima piora a cada lance. Na semana passada, o governo vetou a Folha de S.Paulo na cobertura do jantar de Bolsonaro com Trump em Miami. Em outra frente, ordenou a retirada dos diplomatas brasileiros de país vizinho - a ameaça de guerra é o gozo do nacional-populismo. O orçamento das Forças Armadas só cresce, enquanto os elogios das autoridades aos policiais amotinados proliferam, para deleite das milícias e dos parlamentares que trabalham para elas. Para completar o serviço, o chefe de governo, sem mostrar nenhuma prova, começou a acusar o Tribunal Superior Eleitoral de ter fraudado as urnas eletrônicas no primeiro turno de 2018. O objetivo é desmoralizar as instituições do Estado Democrático de Direito. É para isso que vai servir o dia 15.

Dizem os bolsonaristas que todo ato público é democrático. Mentira. Bem sabemos que a democracia garante aos comuns do povo o direito de gritar o que quiserem, incluídos insultos contra o presidente da Câmara dos Deputados, mas o chefe do Poder Executivo, obrigado pela Constituição a promover a harmonia entre os Poderes, não tem o direito de açular suas falanges a xingar a Câmara, o Senado e o Supremo. Toda democracia tem gente na rua, é verdade, mas gente na rua não é sinônimo de democracia. No nazismo alemão, um regime totalitário, e no fascismo italiano, uma tirania, havia rios de gente na rua. Há comícios até na Coreia do Norte, que não é nada democrática. Ditadores se deliciam com os aplausos das multidões adestradas.

Portanto, os chamamentos do presidente brasileiro para um evento cuja propaganda está repleta de ofensas ao Legislativo e ao Judiciário não têm nada de democráticos. São, isso sim, indícios de fascismo.

Diante desses indícios, clamorosos, o mais chocante é a apatia das oposições. O Estado brasileiro foi tomado por uma estranhíssima “democracia militar”, com oficiais de alta patente controlando todos os ministérios e gabinetes no Palácio do Planalto, e os líderes de oposição, quando muito, postam um tuíte lamuriento em pleno carnaval ou vão posar de vítimas em Paris. O chefe de Estado desembarca um palhaço na porta do Alvorada para caçoar do pibinho, oferecendo bananas aos repórteres, e os líderes oposicionistas resmungam para suas claques sectárias. É patético.

Aprendamos com o passado. Em 1966, JK, João Goulart e Carlos Lacerda costuraram um arremedo de Frente Ampla contra um governo militar que tramava o endurecimento da repressão. Fracassaram, mas tentaram. Em 1984, políticos tão diferentes como Ulysses, Tancredo, Brizola, Montoro e Lula se uniram na campanha das Diretas Já. Perderam, mas apressaram o fim da ditadura.

E agora? Por que é que Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes não convocam o País para dizer “não” ao arbítrio que se insinua no horizonte? Bem sabemos que não é simples. Os três cultivam pirraças recíprocas. Ciro, dado a valentias verbais, dispara desaforos contra a “esquerda bandida” e fecha portas. Lula, machucado pela condenação - controversa e açodada - que o trancou numa cadeia, tem motivos para andar zangado, mas bem que poderia superar a autocomiseração e, em vez de elogiar as agressões de Bolsonaro contra a imprensa, fazer um gesto para unir campo democrático. Para completar, FHC, depois de lavar as mãos no segundo turno de 2018, entregou-se ao imobilismo de nhenhenhéns, mimimis e não-me-toques. Enfim, o clima entre eles não ajuda.

Mas, a despeito de tudo isso, os três são as maiores lideranças democráticas do Brasil: nunca flertaram com o arbítrio nem atentaram contra a imprensa, contra as artes, contra a ciência e contra a universidade. Com esse denominador comum, acima das diferenças legítimas que os dividem, eles têm uma base para se acertar.

A liberdade e os direitos fundamentais estão sob ameaça no Brasil e, como escreveu a historiadora Heloisa Starling, “o que protege a liberdade é uma coisa só: nossa capacidade de mobilizar as pessoas em sua defesa”. A democracia precisa de Lula, FHC e Ciro - juntos. Se eles souberem unir forças, a maioria dos brasileiros vai segui-los. E vai frear o fascismo.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Fábio Alves: Copom sob fogo cruzado

O vaivém do BC causa ruídos. O Fed adotou uma sinalização firme, concorde-se ou não

A próxima decisão do Copom sobre a taxa Selic se transformou num debate polêmico e acirrado acerca do dilema que a autoridade monetária enfrenta neste momento de crise internacional, deflagrada pelo impacto do surto do novo coronavírus na economia global e pela guerra de preços do petróleo entre Rússia e Arábia Saudita.

O dilema do Banco Central é o seguinte: cortar a Selic, colocando pressão sobre o dólar ao reduzir o diferencial de juros entre o Brasil e o exterior, em particular as taxas praticadas nos Estados Unidos, ou manter os juros inalterados em 4,25% e não desancorar o câmbio, mas deixar de injetar um necessário estímulo em meio à desaceleração da economia global e à resposta coordenada de redução de juros pelos bancos centrais mundiais.

Se há uma disputa ferrenha entre analistas e investidores sobre o Copom cortar ou não os juros, na reunião marcada para o próximo dia 18, a culpa é, em grande parte, do próprio BC, que vem emitindo sinais contraditórios sobre os próximos passos da política monetária, tornando a calibragem das expectativas confusa.

Basta lembrar que, no comunicado da sua última reunião, em fevereiro, o Copom sinalizou que interromperia o ciclo de corte de juros.

Em meio ao pânico com o coronavírus, no dia 3, logo depois que o Federal Reserve (Fed) fez um corte emergencial dos juros americanos em 0,50 ponto porcentual, o BC divulgou uma nota dizendo que “o impacto sobre a economia brasileira proveniente da desaceleração global tende a dominar uma eventual deterioração nos preços dos ativos financeiros”.

Foi a deixa para o mercado interpretar que o Copom cortaria juros em março, ficando a dúvida se a redução seria de 0,25 ou 0,50 ponto. Mas, na segunda-feira, o diretor de política monetária do BC, Bruno Serra, disse ser “importante reforçar que o atual estágio segue recomendando cautela para a política monetária”, o que alguns viram como um recuo da nota emitida na semana passada. Mais tarde, Serra voltou a amenizar o tom ao afirmar que, em relação a outros países, o BC brasileiro tem a vantagem de poder usar a política monetária.

Esse vaivém do BC causa ruídos. O Fed decidiu adotar uma sinalização firme de afrouxamento monetário, concordando-se ou não com a sua decisão.

Os que defendem a manutenção da Selic dizem que um corte de juros vai exacerbar a escalada do dólar, ao reduzir o fluxo de capital externo em busca de retornos mais elevados. E uma depreciação cambial pode colocar pressão de alta na inflação. Até agora, não se viu um repasse cambial indesejável aos preços.

Os que defendem um corte de juros argumentam que o diferencial de juros já está maior desde que o Fed fez o corte da taxa básica, para a faixa entre 1,0% e 1,25%. Além disso, são crescentes as apostas de que o Fed vai reduzir os juros em 1 ponto, para zero, na sua reunião também no dia 18.

Essa corrente de analistas diz que a redução do diferencial de juros explica apenas uma pequena parte da recente alta do dólar, com fatores domésticos (como a frustração no crescimento do PIB e o embate entre Jair Bolsonaro e o Congresso, minando as perspectivas para as reformas) e externos (valorização global do dólar) tendo influência maior.

Um renomado economista diz que sua projeção atual de crescimento do PIB brasileiro neste ano, de 1,5%, deve ser revisada para baixo por conta do impacto do coronavírus. Ele não descarta um crescimento de apenas 0,5% neste ano. Para ele, um corte da Selic, de 0,5 ponto, se faz necessário, uma vez que o governo não tem espaço fiscal para estimular a economia.

O choque do coronavírus, com a queda nos preços de commodities, em especial o tombo do petróleo, terá um efeito desinflacionário, ou até deflacionário, para o Brasil. Sem falar que, desde que a crise se agravou, houve um aperto considerável nas condições financeiras do País, o que pode contaminar os canais de crédito.

Se o Copom não cortar a Selic, estará endossando esse aperto num momento de desaceleração da economia. Quanto à disparada do dólar, a culpa não é dos juros: o BC precisa agir mais energicamente e anunciar uma intervenção cambial mais ampla.


Paulo Delgado: Mecânica do poder

Nosso slogan é a estupidez da política, o caminho que o Brasil escolheu para fracassar

Tem sido difícil ajudar o Guedes, é o que se houve aqui e ali entre intelectuais vinculados às atividades econômicas. Na área acadêmica a antipatia é esperada, pela linguagem coercitiva e disciplinar característica do governismo atual. Presume-se que a defesa do liberalismo não visa unicamente a mudar as habilidades no trato da política pública, mas a fazer um pensamento econômico mais obediente, quanto mais útil, à mecânica do poder.

Do lado dos simpáticos, mas críticos, mesmo sabendo que a política é um jogo de espaços, as maneiras do governo revelam uma natureza ligada a uma imodéstia que pouco ajuda. Uns lembram que em tudo há uma arte, até mesmo para cortar as pedras. Com o continuado cenário de incerteza, com forte característica de risco e a má conduta da economia, melhor não exagerar e pedir ao País que se comporte como adulto por um tempo infinitamente excessivo. Pois adversário do melhor ambiente de negócios tem sido a compulsão do governo por selfies e lives, explorações infantis de si mesmo. Fogo de artifício que costuma queimar o fogueteiro.

O presidente quer construir um campo de provas desconhecido para operar seu governo. A convocação dos desfiles de domingo – com tanta antecedência não é uma manifestação – continua tendo objetivos ocultos e visa a compensar a dispersão administrativa. A ideia de renovação por crise permanente sugere levar o atrito institucional ao limite para mudar peças na anatomia do poder. Convidando militares da ativa para se tornarem ministros, a digital das Forças Armadas na política já é fato.

O resultado econômico não produz convicção e revela um paradoxo. Como a economia perde giro, ao contrário do que se pensava após as reformas da Previdência e trabalhista, além de o governo não saber explicar por que os investidores não aparecem, a expectativa se ancora cada vez mais na política. Isso só reforça a crise institucional e joga risco excessivo num governo especialista em enredos secundários. Como a equipe econômica é teórica, insensível à desigualdade social, subestima a política e tem certa má vontade com dificuldades, a confusão prospera. É exemplar a entrelinha da questão dos dois PIBs. Traduzindo: o Estado não é mais o País, mas um setor da sociedade cujo PIB ruim bota a economia para baixo. O discurso moral que brota daí incluí escolha ficcional envernizada para fazer a propaganda do PIB bom, o privado, o que bota a economia para cima. Conclusão: não há necessidade de reforma para o País crescer 3%.

Tudo pode ser intensificado na medida em que o governo, ambíguo, acusa o Congresso pelos acordos que lhe dão vitória. Na dúvida, melhor falar a verdade e dizer como negocia, reconhecendo a legitimidade do Parlamento. Ou continua fora do tom e do foco, ampliando a insegurança geral.

Esse confronto com a política, assim como o baixo desempenho econômico e a dificuldade de gerir uma pasta tão grande é que podem estar provocando estresse extremo no ministro. Que não tem o que reclamar do presidente Rodrigo Maia, seu maior fiador e apoio para acalmar o Congresso e o mercado. Em suma, o presidente precisa ajustar o caminho este ano se quiser um terceiro ano diferente, em que o País possa colher os resultados que o governo prometeu. Mas como este ano temos eleições municipais e ele parece indiferente a elas, para seus adversários é agora que começa a sucessão de 2022.

O governo precisa se livrar do tempo perdido e diminuir a agenda de enfrentamento com o Legislativo e o Judiciário para não parecer que põe a culpa nos outros por interesse próprio. E, finalmente, ter criatividade para parar de rir do PIB e liberar recursos para investimento, mantendo a âncora fiscal. Sem se esquecer de que tem de enfrentar a responsabilidade de obedecer a todo o rito formal para isso. Por exemplo, em infraestrutura, só se pode falar em parcerias público-privadas (PPPs) e concessões depois de os recursos alocados percorrerem os longos passos burocráticos – estudo, audiência, Tribunal de Contas da União, edital, leilão e contrato.

Muita coisa para um governo que convoca um humorista para responder sobre o baixo crescimento do PIB e apresenta o fato como galhofa – o humor sempre foi o outro lado do trágico, uma forma de lidar com o mal-estar. Rir em velório tanto pode ser incongruência como transgressão. Há quem ria por submissão quando ameaçado por algo que parece dominante. Mas rir do abismo pode ser um desejo de amortecer a queda. Um alerta à equipe econômica, que está cada vez mais sem fio terra e indiferente ao potencial energético do chão.

Nesse cenário de sombras, parece ilusionismo achar que ao governo importa a aprovação da reforma tributária ou mesmo a administrativa neste ano. Especialmente se se repetir a pior das tradições do Parlamento e deputados e senadores decidirem disputar eleições municipais para manterem seu poder local. Assim, se surgirem mais de 20% de candidatos a prefeito ou vice, o ano acaba em julho.

Por tudo o que se vê, “é a economia, estúpido” não é nosso slogan. O slogan é a estupidez da política, o caminho que o Brasil escolheu para fracassar.

*Sociólogo