O Estado de S. Paulo
O Estado de S. Paulo: Rodrigo Maia: ‘Bolsonaro arruma inimigo para arranjar conflito’
Deputado afirma que presidente deveria parar com ‘besteira’ e defende aprovação de medidas contra pandemia
Adriana Fernandes e Jussara Soares, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Evitando reagir aos ataques do presidente Jair Bolsonaro, que acusou o Congresso de usar a crise do coronavírus para uma “luta pelo poder”, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), defendeu nesta terça-feira, 17, a aprovação rápida de um programa, nos moldes do Bolsa Família, com um benefício temporário de renda mínima para atender 18 milhões de trabalhadores informais. Maia afirmou que, em vez de dar prioridade a divergências políticas, Bolsonaro deveria concentrar energia para combater o avanço da doença. “Ele fica arrumando inimigo para arranjar um conflito. É besteira. O problema agora é muito grave”, disse o presidente da Câmara ao Estado.
O sr. tem reforçado a necessidade de diálogo entre os Poderes para enfrentar o coronavírus, mas essa crise ganhou um componente político, com o presidente Jair Bolsonaro dizendo que “seria um golpe isolar chefe do Executivo por interesses não republicanos”. Como o sr. reage?
Ele não compreendeu. O isolamento é para ele se proteger e proteger os outros da transmissão (do vírus). Não é o isolamento político.
O presidente está atrapalhando o combate da pandemia?
O meu papel é articular soluções com os deputados e com aqueles que comandam o enfrentamento à crise. Na segunda-feira, estive com o ministro Mandetta (Luiz Henrique Mandetta, da Saúde), com o presidente do Supremo, Dias Toffolli, com o presidente (do Senado) Davi Alcolumbre, discutindo a crise na área de Saúde e também tenho conversado de forma permanente com vários quadros da equipe econômica. Todas as pautas que o governo encaminhar serão atendidas.
Mas Bolsonaro disse ter passado 15 meses levando pancada do sr. e de Alcolumbre...
Estamos vivendo talvez a maior crise dos últimos 100 anos. Eu não vou ficar discutindo divergência política. O Parlamento foi mais do que um aliado da agenda de reformas desse governo, comandou de forma efetiva as reformas.
O próprio Bolsonaro insinuou que haveria uma articulação para o impeachment. É fato?
Isso não está na agenda da Câmara. A nossa agenda é única: enfrentamento ao coronavírus nos próximos meses no Brasil. Ele fica arrumando inimigo para arranjar um conflito. É besteira. Nós estamos com uma projeção grave no mundo real. O mundo real é o que contrata, que gera emprego, que investe. Hoje (terça-feira, 17) morreu o primeiro brasileiro. Temos de garantir sempre o diálogo permanente com a equipe econômica, com a área social do governo, para que possamos construir um cinturão de soluções.
O presidente colocou a disputa pelo controle do Orçamento e a suposta pressão que sofre do Congresso como pano de fundo da crise. Ele não está entendendo a gravidade da situação?
Você acha que eu tenho que estar preocupado com o que o Bolsonaro está falando ou em ajudar o Brasil a conter essa crise? O que eu digo a ele é que ele pode contar com o Parlamento, como sempre contou. Pode atacar, bater, criar as narrativas que, do meu ponto de vista, não são verdadeiras, mas nos próximos três ou quatro meses, terá não um, mas 513 aliados.
Qual será a ação do Congresso para enfrentar a epidemia do coronavírus?
Essa é uma crise que vai precisar de um entendimento e da harmonia entre os Poderes. O que nos une hoje, na política brasileira, é a necessidade de enfrentarmos essa situação. Está na hora de a gente perder a vergonha, o constrangimento, a dificuldade de alguns de falar abertamente que nós vivemos uma grave crise.
Teremos dinheiro suficiente para enfrentar a crise?
Em momentos de catástrofe, há previsão inclusive na própria PEC do teto do gasto para que possamos superá-la com crédito extraordinário. O que o governo apresentou até agora foi positivo, um passo, mas, com essas medidas, continuamos com um risco enorme de crescimento brutal do desemprego. O governo vai precisar dar um maior suporte, tanto do ponto de vista orçamentário como de decisões mais duras em relação à circulação de pessoas. Não podemos, por conta da atividade econômica, correr o risco de sermos responsáveis pela perda de uma vida no Brasil.
O que pode mais ser feito?
Teremos que aumentar o déficit da meta fiscal. Tem certas coisas na vida que são inevitáveis. Vamos ter de olhar para os 18 milhões que estão na faixa mais vulnerável do mercado de trabalho brasileiro, que são os informais, que estão sem carteira, trabalho doméstico, que não contribuem para o INSS. Olhar o taxista, o Uber, de forma que possamos construir algum programa para eles, nos próximos três, seis meses, para dar alguma renda.
Eles teriam acesso a uma renda direta?
Algo no modelo do Bolsa Família, penso eu. É preciso uma solução para essas pessoas no curto prazo, um programa para garantir uma renda mínima para que 18 milhões de pessoas possam pelo menos ter condições de comprar alimento. O risco de ter desemprego grande no setor que mais emprega não é pequeno. O governo mandou algumas ideias. O Parlamento está pronto (para votar).
O setor de serviços, grande empregador, é o mais afetado. O que fazer?
Temos que olhar toda a cadeia do setor de serviços do Brasil. Em 2008, por exemplo, se fez a suspensão temporária dos contratos de trabalho. O governo tem que entender que vamos precisar de mais recursos e deve estar pensando nisso. Espero. Não estou aqui para inventar a roda. Precisamos trabalhar em conjunto.
O sr. defende o fechamento dos aeroportos?
Tecnicamente essa é uma decisão que cabe ao ministro da Saúde e do comitê de crise que foi instalado. Precisamos olhar os exemplos que deram certo. Quem restringiu circulação teve danos menores de quem não restringiu até agora. Não dá mais para ficar esperando. Tanto do ponto de vista da saúde como também do ponto de vista social. É o que tem funcionado em outros países.
Há muitos setores atingidos. Eles vão precisar de ajuda do governo?
Todos vão precisar de um mínimo. As companhias aéreas estão desmontando no mundo inteiro. O setor todo de turismo, bares, hotéis, cidades turísticas. Um quadro do governo conversou comigo sobre, na hipótese de suspensão do contrato de trabalho, usar o seguro-desemprego até uma faixa de salário, para garantir a manutenção da renda nos próximos três a quatro meses.
O sr. defende uma injeção grande de recursos orçamentários para a crise?
Não há outra saída. É pouco R$ 5 bilhões para a saúde.
Quais outros projetos podem ser mais urgentes?
Muitas coisas que estão sendo pensadas foram feitas ouvindo a própria equipe econômica com Bruno Bianco (secretário especial de Previdência e Trabalho) e com o próprio Rogério Marinho (ministro do Desenvolvimento Regional). Temos que pensar quais os projetos que num curto prazo podem gerar algum impacto positivo para o enfrentamento da crise. Outra ideia que se teve com o Rogério Marinho deve englobar obras paradas de R$ 10 bilhões. Claro que estimular obra hoje é aglomeração, mas você pode organizar isso e fazer previsões para daqui a 45, 60 dias, após esse pico de contaminação. Pensar em obras paradas que podem ser retomadas com injeção de orçamento. Infelizmente, a superação dessa crise passa, sim, pela ampliação do gasto público. Não tem outra saída.
Vera Magalhães: Com morte não se lacra
Bolsonaro recua após óbito por coronavírus e reação das instituições
Domingo, 13h. Um sorridente Jair Bolsonaro, trajando camisa polo da Confederação Brasileira de Futebol, desce a rampa do Palácio do Planalto, geralmente destinada a solenidades, para cumprimentar mais de 200 pessoas, posar para selfies ao lado de cartazes pregando o fechamento do Congresso e com palavrões e subir de volta aos urros de “AI-5, AI-5”.
Naquela ocasião, o Brasil já iniciara uma quarentena ainda meio desajeitada, mas engajada nas orientações do Ministério da Saúde para tentar achatar a curva de propagação do novo coronavírus no Brasil. Bolsonaro, por sua vez, tinha um segundo teste de Covid-19 pendente, e deveria estar em isolamento.
Terça-feira, 18h. Um Bolsonaro bem menos acelerado, com cara assustada e acuada, para na grade do Palácio da Alvorada para uma conversa com a imprensa. Não xinga ninguém. Não diz que a pandemia de coronavírus é histeria – nem sua variante “histerismo” – ou fantasia. Não ofende Rodrigo Maia nem Davi Alcolumbre. Pelo contrário: os convida para uma reunião, juntamente com outros representantes de Poderes.
O que mudou nas 50 e poucas horas entre os dois atos? Pelo menos duas pessoas morreram pelo novo coronavírus, as primeiras vítimas brasileiras de uma pandemia que já vitimou mais de 7.000 pessoas pelo mundo. E as instituições traçaram uma risca no chão diante dos arreganhos autoritários do presidente da República.
Não se sabe se por motor próprio ou se instado pelos militares, mas Bolsonaro saiu do looping em que estava desde o início do ano e fez um leve recuo. Pode não durar e ele pode entrar em autocombustão, como já ocorreu em outras vezes e é de sua natureza.
A diferença, dramática para ele, é que desta vez houve perda importante do pouco de massa crítica que ainda restava no bolsonarismo, que se comporta cada vez mais como uma seita golpista. Janaina Paschoal, deputada mais votada da História do País, uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, que recusou a vaga de vice na chapa de Bolsonaro, fez um discurso contundente dizendo que ele deveria deixar o cargo por colocar a saúde pública em risco.
O governador Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, um dos poucos a dar a cara a tapa e defender o governo federal, foi às ruas escorraçar manifestantes em Goiânia, com um duro discurso no qual disse que antes de governador é médico. O contraste com a fanfarronice presidencial foi cristalino até para os fanáticos das redes sociais, e em linguagem testosterônica, que eles conseguem entender.
A erosão do apoio a Bolsonaro, que vinha num crescente em razão da cobiça do Legislativo sobre o Orçamento, foi detectada pela medição de redes sociais do Planalto – o único indicador com o qual o presidente da República parece se importar de fato. E a palavra impeachment deixou de ser proibida e passou a frequentar o discurso de parlamentares, analistas políticos e juristas. Bolsonaro ajuda: vai deixando digitais de crimes de responsabilidade ainda mais evidentes que os perdigotos que lança em tempos de recomendação de distanciamento social.
É claro que iniciar uma batalha pelo impeachment em meio a uma pandemia é uma irresponsabilidade. Não serei eu a defender este caminho, nem existe propensão real do Congresso a avançar por aí. Mas, ao excluírem o presidente da República da mesa de discussão de saídas para a pandemia, os demais líderes do País mandaram um recado a ele: se quisermos, podemos isolá-lo.
Bolsonaro entendeu. A cara de pânico com que anunciou a reunião horas depois de dizer, infantilmente, que faria uma festinha de aniversário deixou claro que, até para alguém com uma noção tão rudimentar do próprio papel no momento mais dramático da História do País neste século, o medo é um sábio conselheiro.
Pedro Fernando Nery: Defenda o Bolsa Família
Programa tem expertise e capilaridade para ser usado como instrumento contra a crise
Ele foi responsável por 10% da redução de desigualdade entre 2001 e 2015, e por tornar menos insuportável a pobreza de milhões – segundo estudo do Ipea e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. É um feito notável para um programa que custa menos de 0,5% do PIB. Principal mecanismo de proteção de renda de informais e desempregados, o Bolsa Família chega já em crise para atender à crise do coronavírus.
Ele custa um décimo do gasto com funcionários públicos, e cerca da metade da isenção de lucros e dividendos que beneficia a elite que não paga imposto de renda na pessoa física. Mas tem enfrentado cortes. As filas são antigas: Temer conseguiu zerar, mas já à custa de exclusões. Elas voltaram, em meio à recuperação econômica desigual.
No atual governo, o Bolsa Família recebeu um 13.º maldito. Um pagamento adicional, promessa de campanha, seria louvável – desde que houvesse orçamento adicional. Sem a complementação, o 13.º implicou exclusão: famílias comprovadamente pobres ficaram sem receber nada para que outras recebessem o pagamento adicional.
Para piorar a falta de complementação, os escassos novos pagamentos de 2020 se centralizaram nas regiões mais ricas, apesar de filas gigantes no Nordeste. É que o critério de concessão ignora completamente as filas, e usa estimativas de pobreza baseadas no Censo de 2010. De lá para cá, o País viveu a recessão de 2015-16, que afetou mais o Nordeste, quando a recuperação favoreceu mais o Centro-Sul.
Por isso, dos 100 mil novos benefícios concedidos em janeiro, Santa Catarina – com o menor desemprego do País – recebeu 6 mil, o dobro de toda a Região Nordeste. O Piauí recebeu 86. Se 12% da fila catarinense foi atendida, somente 0,1% da fila piauiense o foi. Três milhões e meio de brasileiros esperam para receber os benefícios: já estão habilitados, o que quer dizer que são reconhecidamente pobres.
Fisicamente, a fila do Bolsa poderia ocupar a distância entre Brasília e São Paulo. Ela vem depois da renda dos 5% mais pobres ter caído 40% entre 2014 e 2018 – segundo a FGV Social. É um risco político desnecessário à agenda de reformas.
Já passou da hora da fila ser zerada: é inclusive questionável que haja discricionariedade na concessão do benefício para quem já está habilitado. Nos termos da Constituição, é prioridade absoluta assegurar o direito à alimentação e à saúde das crianças – principais destinatárias do programa.
Mesmo zerar a fila é pouco agora, porque o Bolsa é o instrumento mais efetivo para repor a perda de renda da quarentena da epidemia. Primeiro, porque não exige carteira assinada, podendo ser recebido pelos informais. Até por essa focalização, é a despesa pública com maior multiplicador conhecido em curto prazo sobre o consumo e o PIB. Segundo, porque atende a crianças, um público que fica em insegurança alimentar quando as escolas fecham.
Em terceiro lugar, porque dado o grau de incerteza da evolução da epidemia, a resposta econômica à covid-19 precisa ser desejável por si. Boas propostas de reforma do Bolsa Família já tramitavam desde o ano passado. Elas miram a constitucionalização antifilas e o combate à pobreza intermitente, flexibilizando as linhas duras para acesso ao programa (que também desincentivam portas de saída).
O debate da sustentação da renda dos informais durante a pandemia vai apresentar a muitos brasileiros a modéstia dessa rede de proteção. O Bolsa Família paga benefícios de R$ 89 por mês, para as famílias que vivem com menos de R$ 89 por pessoa (extrema pobreza). As famílias que estão “só” na pobreza (menos de R$ 178 por pessoa) apenas recebem se tiverem crianças ou grávidas. O valor é de R$ 41 por dependente, um milésimo do teto remuneratório no serviço público.
O programa conta com capilaridade e expertise para ser usado como instrumento importante contra a crise: só o seu estigma pode explicar os que pedem uma nova transferência de renda para a pandemia. Mas ele precisa de recursos. Hoje, de cada real do Orçamento, o Bolsa leva só dois centavos. Defenda.
*Doutor em economia
Adriana Fernandes: Governo ainda vai precisar botar a mão no bolso para socorrer mais vulneráveis
Boa parte das medidas anunciadas pelo governo é mera antecipação de algo que já ia ocorrer nos próximos meses
O pacote de R$ 150 bilhões do ministro da Economia, Paulo Guedes, tem cifra elevada, mas é muito, muito tímido no socorro à população mais vulnerável, de baixa renda. Como antecipou o Estado, o governo anunciou um reforço de R$ 3,1 bilhões ao programa Bolsa Família para acabar com a fila.
Não é suficiente. O foco terá que ser também naquelas famílias que recebem regularmente o dinheiro do programa. São os mais pobres que vão precisar de mais ajuda. Estarão expostos à contaminação, têm menor acesso à saúde e as crianças e jovens carentes dependem, sobretudo, da merenda escolar.
Esses jovens passarão a ficar em casa após a suspensão das aulas em diversos Estados. Muitas delas fazem a principal refeição na escola e podem ficar sem acesso a uma refeição completa.
A injeção de recursos terá que ser direta, como uma adicional extra para quem já recebe o benefício assistencial. O governo anunciou que o reforço de R$3,1 bilhão é para incluir mais 1,2 milhão de pessoas no programa. Mas a medida não dá para compensar a fila de espera do Bolsa Família, que alcança mais de 3 milhões de pessoas, de acordo com levantamento feito de forma conservadora pelo Estado.
Nessa primeira leva do pacote, a estratégia foi acionar medidas com menor impacto das contas públicos, sem adicionar dinheiro extra em relação ao que já estava planejado anteriormente. Boa parte das medidas é mera antecipação de algo que já ia ocorrer nos próximos meses. Isso vale para o adiamento do pagamento de tributos. Não há renúncia.
As regras fiscais atuais impedem renúncia fiscal sem a compensação com corte de despesas ou aumento de tributo. Essa é uma dificuldade a mais nesse momento de crise.
O governo quer garantir - por enquanto – uma travessia para as empresas menos desfavorável nos próximos três meses. Evitar demissões de trabalhadores em massa.
A engenharia com o dinheiro não sacado do PIS/Pasep que será transferido para o FGTS garante o saque emergencial e deve ajudar muito. Mas o governo ainda vai precisar botar a mão no bolso. A magnitude dessa necessidade é uma incógnita. Por isso, a dificuldade do governo em definir quanto vai precisar mudar a meta fiscal e aumentar o endividamento em 2020. As medidas mais potentes ainda não foram tomadas e quase tudo depende do apoio do Congresso.
Eliane Cantanhêde: Salve-se quem puder!
O mundo em guerra contra o coronavírus, mas Bolsonaro mira seus inimigos particulares
Já que o presidente Jair Bolsonaro vive sua realidade paralela, os três Poderes declaram trégua e traçam ações comuns contra os efeitos do novo coronavírus apesar dele. Com isolamento médico ou não, Bolsonaro está se isolando dos demais Poderes e ontem não participou de uma videoconferência de presidentes da América do Sul sobre a doença e a crise econômica. Enquanto isso, o vírus vai se multiplicando dentro e fora do Brasil.
Presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo se reuniram com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para ouvi-lo, traçar planos de ação e contornar a fogueira política diante do problema maior. Foi Rodrigo Maia, aliás, quem primeiro estendeu a bandeira branca, apesar de ter sido o principal alvo do presidente e dos bolsonaristas no domingo.
Bolsonaro já disse que a crise é uma “fantasia”, uma “histeria”, e considerou que tudo é “superdimensionado”, ora por “interesses econômicos”, ora pela “luta pelo poder”. Das palavras aos atos, tirou a máscara, deu de ombros para o Ministério da Saúde, abandonou o monitoramento, não esperou o segundo teste e foi confraternizar com manifestantes em frente ao Planalto.
“Se eu me contaminei, ninguém tem nada a ver com isso”, disse ontem, mas não é bem assim. O problema não é apenas ele se contaminar, é o risco de ter contaminado as 272 pessoas com quem teve contato, de acordo com levantamento do Estado. E, depois, todo mundo tem muito a ver, sim, com a saúde do presidente da República.
Ele não é uma pessoa privada, é a autoridade pública número um.
O próprio ministro da Saúde classificou protestos e eventos culturais neste momento como “completamente equivocados”. O governador Ronaldo Caiado, um dos raros a apoiar Bolsonaro, foi vaiado por manifestantes em Goiás ao lembrar, como médico, que “não se mostra apoio a governo colocando em risco sua população”. Se eles queriam pôr a própria saúde em risco, problema deles, mas sem o direito de pôr a dos outros. Cada contaminado tem poder de multiplicação do vírus.
A reação de Bolsonaro à contaminação da saúde e da economia tem sido errática, de quem não está entendendo nada nem parece muito interessado. Na terça-feira passada, declarou que era “fantasia da grande mídia”. Dois dias depois, deixou de ser fantasia e ele fez o primeiro teste e uma live com máscara. Mais dois, tirou de novo a máscara e lá se foi, sorridente, cumprimentar manifestantes contra o Supremo e o Congresso. Os contaminados da sua comitiva aos EUA já chegavam a 12.
Diante da perplexidade de Rodrigo Maia e do senador Davi Alcolumbre, abandonou de vez o vírus, a disseminação, a crise do mercado, a previsão do PIB esfarelando para bater boca pela TV com os presidentes da Câmara e do Senado. “Está em jogo uma disputa política por parte desses caras”, disse, resumindo tudo isso a uma “luta pelo poder”. Vocês sabem quem são “esses caras”.
Irritado, Bolsonaro disse que está “há 15 meses calado, apanhando”, e vai passar a revidar. O curioso foi ele dizer que passou todo o mandato calado, o que, absolutamente, não é verdade. E o mais intrigante foi ele anunciar que vai atacar e antecipou os alvos: “Grande parte da mídia, chefes do Legislativo e alguns governadores”. O mundo está em guerra contra o novo coronavírus, mas o presidente brasileiro abre uma guerra particular contra instituições e críticos.
Com o autoisolamento do presidente, são os ministros Mandetta e Paulo Guedes, além de Maia, Alcolumbre e Dias Toffoli, do STF, que vão ter de segurar a onda, ou o tsunami. Mandetta sobrevive bem, mas o conceito de Guedes já foi melhor e o dos demais vem sendo sistematicamente atingido pelo presidente, seu entorno e a tropa bolsonarista. Logo, salve-se quem puder!
Marco Aurélio Nogueira: O vírus Bolsonaro
Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial?
É difícil não se horrorizar ao ver as fotos de Jair Bolsonaro participando de um ato contra o Congresso, abraçando pessoas e apertando as mãos de seguidores.
É pavoroso constatar que existem pessoas que tratam a atual situação de calamidade pública como se fosse uma “armação da mídia”, pessoas cegas em seu fanatismo, indiferentes a milhões de brasileiros. Posam de verde e amarelo e se dizem patriotas, mas são traidores da Pátria, se quisermos falar assim.
Um presidente que infringe regras e orientações estabelecidas por seu próprio governo é uma aberração. Ele debocha daquilo que deveria ser norma de conduta. Põe em risco a saúde da população e mostra não estar à altura da crise em que nos encontramos, que é epidemiológica e mundial, mas é também política, moral, econômica. O País está parado, à espera de alguém que o lidere e governe.
Em se tratando de Jair Bolsonaro, não dá para dizer que chegamos ao fundo do poço. Dele podemos esperar coisas sempre piores, mais graves, deletérias. Trata-se de um presidente que faz do poder um jogo de vida e morte, o contrário do que se esperaria de alguém eleito para governar um País enorme, complexo, diversificado. É um exibicionista, agarrado a ‘lives’ patéticas, nas quais demonstra toda a sua grosseria, seus maus modos, seu egocentrismo, sua irresponsabilidade. Tanto pode aparecer de máscara como se estivesse em quarentena, quanto pode cair nos braços da galera que o acompanha como se não houvesse amanhã.
Bolsonaro é uma versão do vírus do fanatismo populista e retrógrado, essa monstruosidade que se espalhou pelo mundo como uma pandemia. É uma ameaça à sociedade, à democracia, à dignidade humana.
Até quando o País suportará? Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial? O presidente hoje conspira abertamente contra seu próprio governo. Seus ministros e assessores parecem achar graça em suas peripécias, pensam que não atrapalharão demais, acham que ‘o cara é assim mesmo, é o jeito dele’. E a trupe de seguidores segue atrás, batendo bumbo e tirando fotos, contra tudo e contra todos.
Aqueles que compõem o governo atual e lhe dão sustentação ou são covardes irresponsáveis, que temem fazer alguma coisa, ou estão mancomunados com a mesma fúria de destruição que o presidente exibe, de modo cada vez mais escancarado.
Eliane Cantanhêde: Brincadeira de vida ou morte
Há tempos o Brasil não assiste, à luz do sol, a uma irresponsabilidade como a do presidente da República, que jogou para o alto as recomendações de saúde e se encontrou com manifestantes em frente ao Planalto. Em nova versão da “fantasia”, Jair Bolsonaro passou para a população a mensagem de danem-se o Ministério da Saúde, os especialistas, os médicos!
Entre o correto e o conveniente politicamente, Bolsonaro optou pela conveniência política, o que se torna ainda mais irresponsável quando a epidemia está só começando no País e, ao lado dele, estava o diretor substituto da própria Anvisa. Chocante.
Paulo Guedes defende reformas, mas Bolsonaro senta em cima das propostas e publica fotos justamente com faixas de “Fora Maia” nas manifestações. E o ministro Luiz Henrique Mandetta tenta evitar mortes e contaminação e adverte que em pessoas acima de 60 anos a covid-19 é mais letal e todos que tiveram contato com contaminados devem se preservar – e preservar os outros –, mas o que faz Bolsonaro? Vai à rua, toca pessoas e seus celulares.
É contra a ciência, os deveres do cargo, os direitos dos cidadãos. E danem-se as pessoas que, ingenuamente, foram colocadas em risco por quem ainda é sujeito a um segundo teste e tem recomendação de isolamento, depois de dias ao lado de contaminados. Mas Bolsonaro não foi o único irresponsável.
Nas manifestações do “Fora Maia”, “Fora STF” e “SOS Forças Armadas”, tudo foi grave: o ataque às instituições, o uso do nome das FFAA em vão e o risco em que aquelas pessoas se colocavam e colocarão as outras, todas as outras. Não viram China, Itália, EUA? Acreditam na versão de Bolsonaro de que tudo era fantasia? Não é fantasia. É um pesadelo, questão de vida ou morte.
Sérgio Abranches: Uma questão de responsabilidade
Mau exemplo do presidente é uma ofensa ao cargo e um desrespeito às autoridades sanitárias e à população brasileira
A presença do presidente da República em uma manifestação pública em meio a uma ameaça concreta de epidemia da Covid-19 tem muita gravidade. A atitude do presidente desfaz todo o cauteloso trabalho de seu ministro da Saúde, desobedece as recomendações das autoridades sanitárias, de epidemiologistas e da OMS.
Há formalidades inerentes ao exercício da Presidência que são inescapáveis. Uma delas, está na Constituição, é respeitar o decoro do cargo. Ao violar publicamente medidas cautelares explícitas, durante a crise sanitária que se agravará nas próximas semanas, o presidente feriu o decoro. É o seu governo, junto com os governos estaduais, que recomendam evitar aglomerações e contatos físicos.
O mau exemplo do presidente é uma ofensa ao cargo e um desrespeito às autoridades sanitárias e à população brasileira. Sugere que a pandemia não tem a importância que os médicos dizem que ela tem. É uma atitude irresponsável. Atua-se com o cenário de maior gravidade, porque é uma epidemia sem precedentes, cujos desdobramentos se desconhece.
Bolsonaro fere o decoro e desrespeita os limites constitucionais da Presidência ao dar apoio explícito a uma manifestação antidemocrática, contra o Legislativo e o Judiciário. São Poderes Republicanos que o presidente tem a obrigação constitucional de respeitar e defender.
A mentalidade autoritária de Bolsonaro é notória. Mas, ao tornar-se presidente, ele se comprometeu a respeitar o código de deveres do cargo, que desrespeitou em duas dimensões. A comportamental, ao participar de manifestações de rua que elevam o risco de ampliação do contágio. Sua presença é um péssimo exemplo à população. A institucional, ao convalidar ataques aos Poderes constituídos da República.
Ao agir assim, o presidente comete crime de responsabilidade. Fere o decoro, estimula ataques aos Poderes constitucionais e induz a população a subestimar os riscos associados à uma grave epidemia sem precedentes.
*Sérgio Abrances é sociólogo, cientista político e escritor
Eliane Cantanhêde: Isolamento
Presidente, bananas não salvam vidas e não reduzem danos numa economia já combalida!
Tudo o que este mundo enlouquecido precisava para um freio de arrumação era um inimigo comum a toda a Humanidade, mas veio o novo coronavírus e o que se vê, assustadoramente, é o contrário: os líderes aproveitando para reforçar fronteiras e se isolar ainda mais, enquanto o presidente Jair Bolsonaro se ocupa em dar bananas para jornalistas, incorrigível, entre um teste e outro para o vírus.
A história está cheia de exemplos comprovando que é nos piores momentos que se forjam os grandes líderes, mas o inverso também é verdadeiro: nas crises, líderes ou emergem ou desaparecem. Há décadas não se vê uma crise da dimensão atual. Vamos ver quem sobrevive e quem sucumbe.
O novo coronavírus contamina as pessoas e as economias de países de todos os continentes. Nos dois casos é potencialmente letal e ele veio com tudo justamente num ambiente de desaquecimento global e quando a migração é uma das questões mais graves na agenda internacional. É hora de testar os líderes, saber quem tem ou não visão estratégica e grandeza pessoal. Restarão poucos, nesses tempos de Trump, Putin, Erdogan e tantos outros.
No Brasil, o presidente deveria aproveitar o isolamento para deixar de lado a obsessão por bananas, parar de atacar tudo e todos e refletir sobre sua imensa responsabilidade. O mundo está em crise, o Brasil está em crise, os casos de coronavírus vão disparar, a Bolsa teve a maior queda desde 2008, são 12,5 milhões de desempregados. E, antes mesmo do tsunami, o pibinho já foi de 1,1%.
A economia brasileira não tem margem para piorar. E vai piorar. As previsões de crescimento já não eram animadoras e agora não param de cair, deixando no ar a sensação – ou o pavor – de uma nova recessão. Logo, o governo precisa fazer um malabarismo estonteante para dar suporte a setores estratégicos sem explodir as contas públicas.
Quem tem a caneta e o poder de decisão é o presidente e, goste-se ou não, lamente-se ou não, trata-se de Jair Bolsonaro. Como ele não tem conhecimento e não manifesta interesse, significa que é o ministro Paulo Guedes quem está no centro do furacão.
Na Saúde, como dito aqui desde o início, a forte cultura e os quadros de excelência da saúde pública, mais a grata surpresa que é Luiz Henrique Mandetta, estão fazendo sua parte. Ao contrário do que ocorreu, por exemplo, na Itália e nos EUA, onde as mortes já passavam de 40 e não havia nem estatísticas sobre contaminados quando Donald Trump enfim anunciou emergência e abriu as torneiras.
Distante de disputas partidárias, o ministro da Saúde prepara o País para a rebordosa. Contratou leitos de UTI à disposição dos Estados, encomendou 17 milhões de máscaras hospitalares da China para o pessoal de Saúde, antecipou a maior operação de vacinação do mundo, com 75 milhões de doses contra a influenza.
Na economia, todos parecem atordoados, mas a expectativa é de um pacote de medidas amanhã. Assim como Mandetta, Guedes precisa agir para reduzir danos. A diferença é que um foi mais previdente e o outro corre atrás do prejuízo, sem que o presidente demonstre real compreensão da situação. Guedes bate na tecla das reformas e Bolsonaro bate no Congresso, até mesmo ao desarticular as manifestações previstas para hoje.
Assim como não há vacina nem tratamento específico para a covid-19, só paliativos, também na economia não havia como impedir a crise e não há tratamento sem dor para um país parado, com as pessoas evitando viajar, circular, comprar, os serviços esvaziando e as empresas esfarelando nas bolsas ou em solo, como as companhias aéreas. Mas há, sim, como evitar um número maior de vítimas e um prejuízo maior. O presidente, se não consegue ajudar, deve aproveitar o isolamento para não atrapalhar.
Vera Magalhães: Nós que lutemos!
Brasil enfrenta pandemia e crise econômica sem liderança segura
O Brasil viveu na semana passada o ensaio geral do que deve ser um período de restrições da vida diária das pessoas, crise econômica com extensão imprevisível e possibilidade de colapso do sistema de saúde. À frente desse quadro, um governo que tem um Ministério da Saúde tentando organizar uma resposta técnica à pandemia do novo coronavírus, mas um presidente que ainda demonstra incapacidade de liderar.
A fase aguda da epidemia no Brasil foi precedida de um desarranjo geral promovido por exclusiva obra e graça de Jair Bolsonaro e seu entorno mais amalucado.
O presidente, só nos menos de três meses deste ano, comprou briga com Sérgio Moro e com o Congresso, promoveu mexidas aleatórias no Ministério, enquanto mantinha ministros ineptos ou acusados de corrupção ou ambos, segurou as reformas estruturais, convocou e depois desmobilizou a contragosto manifestações de viés golpista, desdenhou dos riscos do coronavírus, entregou seu posto a um humorista e disse que a eleição que venceu foi fraudada.
Esqueci algum fato? Com certeza, já que não é possível dar conta do arsenal diário de crises bizarras provocadas por Bolsonaro contra seu próprio governo.
Despiciendo, neste momento, especular por que ele faz o que faz. Cortina de fumaça para desviar a atenção de outros assuntos? Preparação de algum plano de supressão da democracia tendo cavaleiros templários como exército, mais à frente? O fato é que esse surto de bobagens tirou a concentração do Brasil do que deveria ter sido feito desde que a China parou: nos preparar para os desafios econômicos, de saúde e sociais que certamente viriam.
O Congresso, alvejado por Bolsonaro e mais preocupado em assegurar seu quinhão do Orçamento, ajudou com sua cota de irresponsabilidade ao, já depois do derretimento dos mercados e do alarme de que o coronavírus viria para valer, aprovar uma sangria de R$ 20 bilhões nas contas públicas para se vingar do presidente.
E é com esse pessoal que o País vai ter de se virar diante da esperada escalada rápida da pandemia por aqui. Um senador que esteve na comitiva presidencial se gaba de ter encontrado meia República, abraçado e beijado todo mundo. O filho do presidente, que já chegou a ser cotado para embaixador em Washington, protagoniza uma comédia pastelão com a Fox News ao desinformar sobre a saúde do próprio pai e levar temor aos Estados Unidos quanto à de Donald Trump.
O ministro da Educação, o inacreditável Abraham Weintraub, chegou a celebrar nas redes sociais a possibilidade de uma educadora crítica a sua gestão ter contraído a doença. Isso dias antes de integrantes do próprio governo terem sido atingidos, uma vez que, por óbvio, pandemia não conhece ideologia.
Mesmo com um contrariado Bolsonaro tendo pedido que as manifestações ficassem para depois, ainda hoje há fanáticos irresponsáveis instando as pessoas a irem às ruas defender reformas que o governo não enviou ao Congresso. E contaminar os próprios apoiadores!
Com esses despreparados no controle, nós que lutemos!
Não é de se estranhar que comece a faltar mantimentos, álcool em gel seja vendido a peso de ouro e as fake news sejam propagadas em velocidade maior que o vírus: as pessoas se sentem entregues à própria sorte, a despeito dos esforços louváveis do Ministério da Saúde.
O presidente falou que tudo era fantasia da mídia, poucos dias antes de ter de passar por (dois? três? quantos? Não se sabe, pois não há informação oficial confiável) testes para detectar se foi infectado.
Momentos dramáticos como esse só mostram a importância da ciência e do jornalismo sério, dois pilares da democracia que têm sido vilipendiados no Brasil e no mundo. Que a crise tenha ao menos o efeito de despertar as pessoas para isso.
Carlos Pereira: Tubarões, inundação, vírus e o governo
É pouco provável que essa pandemia seja aproveitada pela gestão Bolsonaro como uma oportunidade para implementação de mudanças
Em julho de 1916, a costa leste dos EUA, especialmente Nova Jersey, foi acometida por uma série de ataques de tubarão que ocasionaram a morte de vários americanos. Esses eventos inesperados alcançaram grande repercussão no noticiário e considerável sofrimento emocional, especialmente da população das comunidades costeiras. O então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, concorria à reeleição no fim daquele ano.
Embora o presidente Wilson não tenha tido responsabilidade direta pelos ataques aleatórios de tubarão, estudos (Achen e Barthels, 2012) identificaram uma forte correlação entre aqueles ataques e a significativa redução no número de votos a favor da reeleição do presidente naquela região em relação à quantidade de votos no pleito de 1912, quando Wilson foi eleito presidente pela primeira vez.
Por outro lado, o devastador desastre provocado pelas inundações que aconteceram na Alemanha em 2002 trouxe consequências bem distintas para o seu governante. O governo ofereceu ajuda monetária imediata e, estrategicamente, organizou uma visita do chanceler, Gerhard Schröder, usando botas de borracha, às vilas inundadas. Esta atitude foi interpretada pela mídia como símbolo da credibilidade do chanceler como gerente de crises. Após as inundações e, pelo menos em parte pelo que foi percebido como bem-sucedida gestão de desastres, o governo ganhou apoio popular e venceu as eleições federais vários meses depois.
Desastres nem sempre têm impacto político negativo. Dependendo do contexto, as consequências para os líderes políticos também podem ser positivas. Se o governo de plantão for capaz de liderar com autoridade moral e ofertar respostas adequadas ao problema, é possível que desastres se transformem em janelas de oportunidade para galvanizar apoio e conseguir implementar reformas.
Albrecht (2017) argumenta que a mídia exerce papel relevante nas consequências políticas dos desastres. Quanto maior for o tempo de cobertura e a exposição de fragilidades organizacionais das estruturas governamentais para lidar com as consequências do desastre, maiores serão as chances de impactos negativos para o governo de plantão.
Especificamente em relação aos efeitos políticos do coronavírus para a gestão de Jair Bolsonaro, é muito difícil fazer previsões no momento atual. Isso ocorre porque vários aspectos importantes ainda são desconhecidos, tais como a extensão da contaminação, a gravidade dos casos, o número de mortos, o tempo de duração da epidemia e a eficácia das respostas oferecidas pelo governo.
Mas, diante das dificuldades governativas enfrentadas até o momento pelo governo Bolsonaro, que é minoritário e tem desenvolvido uma relação adversarial com o Legislativo e com a mídia, é pouco provável que essa pandemia seja por ele aproveitada como uma oportunidade para implementação de mudanças.
O governo corre o risco de ser visto como responsável pelos efeitos da pandemia. A dúvida que fica é em relação ao tamanho do dano, pois a confiança social tende a diminuir significativamente, especialmente quando a epidemia começar a causar fatalidades.
Celso Lafer: ‘Diários da Presidência, 2001-2002’
No errático momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria de FHC merecem atenção
A publicação deste quarto volume finaliza o disciplinado empenho de Fernando Henrique Cardoso em dar acesso ao registro que fez do dia a dia de suas atividades nos oito anos que presidiu o País. É empreitada de largo fôlego, cujo enredo esclarece como caminhou sem perder o rumo no “grande sertão” da política brasileira no democrático exercício das responsabilidades da Presidência.
É uma obra original na sua feitura. Não é um diário na acepção usual da literatura confessional da sensibilidade de estados de espírito. Nada tem que ver com uma burocrática agenda comentada do expediente do dia a dia. Não é uma autobiografia política, mesmo porque o registro feito no calor da hora não permite uma narrativa organizadora, decantada pela memória da experiência, no tempo mais longo da reflexão. Não é igualmente uma discussão elaborada com rigor acadêmico sobre como mesclar pensamento e ação. Essa mescla, no entanto, está presente nos Diários, pois com frequência FHC se posiciona como analista observador da ação, extraindo do cotidiano de sua experiência presidencial o alcance mais amplo dos movimentos das forças sociais e políticas, da lógica política das instituições e das pessoas com quem interagiu.
FHC tem os dotes da facilidade da narrativa. É o que dá sabor aos Diários, nos quais não falta o realismo político da objetividade nem, ocasionalmente, a acrimônia da irritação, sempre permeada pela educada civilidade que caracteriza o seu modo de ser.
Todos os ingredientes dos gêneros acima mencionados têm presença, mas não dão a identidade intelectual dos Diários da Presidência. Trata-se de uma obra singular, única na sua amplitude, no campo da ciência política sobre o que é o processo decisório no ápice do sistema político brasileiro. “Governar é escolher”, afirmou Mendès-France, e os Diários explicitam circunstanciadamente, com a disciplina da responsabilidade, “de dentro”, e não “de fora”, o desafio de conduzir a pauta decisória de um país grande e complexo.
Não são triviais os riscos desses desafios. Passam por não se afogar na avassaladora demanda dos pleitos da vida política, para não reduzir o governo à mera rotina da “politique politicienne” de que falam os franceses. Exige coragem e capacidade de enfrentar os graves riscos do inesperado, que tem o potencial de descarrilar um governo. Disso são exemplos as múltiplas crises financeiras que superou. Não prescinde da aptidão na lida com a resistência que a realidade impõe a uma ação inovadora.
Enfrentar esse desafio requer a qualificada competência de liderança dotada de visão do País baseada na experiência e no conhecimento e com antenas para o movimento das coisas, entrelaçada com o ânimo da “ideia a realizar” dos novos rumos a serem trilhados. Os componentes estratégicos do fim, do caminho e da vontade estão sempre presentes na impregnação dos rumos norteadores do processo decisório que permeia os Diários e no modo como FHC direcionou e acompanhou o trabalho dos seus ministros e colaboradores.
No explicar e compreender, fluem as razões das políticas públicas da gestão da economia e da sua consolidação institucional, da atenção dada às de educação e saúde e ao papel que tiveram no resgate da dívida social do País, das relacionadas à tutela dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental e de uma miríade de medidas voltadas para a melhoria das condições do País, como a elevação generalizada dos indicadores do desenvolvimento humano na sua gestão revela.
Também tem destaque a dedicação a um novo patamar de presença e de credibilidade do Brasil no globalizado mundo contemporâneo, voltado para assegurar a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Nessa matéria os Diários ilustram os méritos e o alcance de uma diplomacia presidencial, conduzida com pleno domínio das prioridades e das relevâncias de quem sabe se orientar no mundo.
É inequívoco o inventário do positivo legado da Presidência FHC. Criou condições de um futuro melhor para o Brasil, governando democraticamente e sem violência, com respeito pelo Estado de Direito, pelas instituições e pelas divergências de opinião.
Na sua pós-Presidência FHC se afastou da militância política diária. Criou com espírito universitário uma reconhecida instituição apartidária de estudo e reflexão e vem participando do debate público. Essa participação está norteada pelas preocupações com a agenda do presente na perspectiva do futuro, permeada pelo tema dos rumos e do sentido de direção que assinalou construtivamente o processo decisório de sua Presidência e que é parte de seu legado de homem público.
É esse lastro que confere autoridade à sua palavra. Autoridade, para me valer das indicações do politólogo Karl Deutsch, traduz-se na prioridade da transmissão de mensagens, na qualidade e na legitimidade do seu conteúdo e da sua relevância para a sociedade.
No errático e desestabilizador momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria acumulada de FHC merecem respeito e atenção.
* Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)