O Estado de S. Paulo
Bolívar Lamounier: Um governo bifronte
Verbo agressivo, não raro insultuoso, tem de dar lugar a fala formal, impessoal e comedida
A verdade é que temos dois governos. Um no rumo certo, sério e competente, personificado pelos ministros da Economia e da Saúde, principalmente. Outro, populista e irresponsável, personificado pelo presidente Jair Bolsonaro, vez por outra coadjuvado pelos ministros da Educação e das Relações Exteriores.
De fato, 15 meses não foram suficientes para Jair Bolsonaro nos tranquilizar quanto à sua compreensão dos requisitos básicos do cargo para o qual foi eleito e da crítica situação que estamos vivendo. Sua subestimação da seriedade da pandemia de covid-19 volta e meia nos traz à memória um fato de dez anos atrás: a hilária referência de Lula à crise financeira que se avizinhava. Da subestimação decorreu a convocação de manifestações de apoio à sua pessoa e de pressão sobre o Legislativo e o Judiciário. Há quem afirme que ele não fez tal convocação, que elas teriam sido espontâneas, ou, então, que ele as convocou e depois desconvocou. Acontece que em política é possível dizer algo sem dizer nada, ou até dizendo o contrário do que se pretende. Para mim, ele as convocou na base do “bem me quer, mal me quer”, deixando espaço para recuar quando isso lhe parecesse taticamente conveniente.
Mas isso é o de menos. Fato é que, sendo ele o presidente da República, a atitude correta seria alertar a sociedade para o risco de aglomerações, alerta feito por seu ministro da Saúde; e fazê-lo, não em frases soltas ao vento, mas com solenidade e firmeza, em cadeia nacional de rádio e televisão. Alertar também, no que toca ao Legislativo e ao Judiciário, que a Constituição veda expressamente quaisquer ações que dificultem o adequado funcionamento dos Poderes do Estado. Não menos importante, afirmar, em alto e bom senso, como supremo magistrado, que ele não compactua com a grita de setores “sinceros, mas radicais” que exigem a derrubada das instituições representativas, qualquer que seja a avaliação de cada um sobre o presente desempenho delas.
Acrescente-se – e este é o ponto mais grave, que não deixa dúvida sobre as diferentes interpretações que se têm dado aos fatos acima mencionados – que Jair Bolsonaro não se contentou em saber pela imprensa ou pela internet que uma parcela da sociedade parecia (ou parece) aderir ao seu não convocado “queremismo”. Não. Cedendo ao cerne populista que informa seu modo de sentir a política, ele desceu a rampa a fim de cumprimentar um grupo de manifestantes, trocar apertos de mão e tirar algumas selfies, descumprindo de modo flagrante as recomendações de todas as organizações nacionais e internacionais e de seu próprio ministro da Saúde, que ora, angustiadamente, se empenham no combate ao coronavírus.
A bem da justiça devo repetir que a outra metade de seu governo tem demonstrado seriedade e competência, mas em relação a ele, Jair Bolsonaro, sou forçado a reiterar o que afirmei no início: até o momento, ele tem se comportado como um político populista e irresponsável. E a reiterar também minha dúvida sobre sua compreensão dos requisitos básicos da posição que ocupa e dos dramáticos desafios que ora ameaçam nossa existência como povo.
Não voltarei ao coronavírus, voltarei à estúpida polarização que se configurou desde a eleição de 2018. O famigerado recurso ao “nós contra eles” cultivado por Lula e pelo PT metamorfoseou-se em coisa pior: o bolsonarismo acima de tudo e contra todos os outros. Ou seja, uma divisão vertical sem precedentes no País, como se fôssemos dois povos, contrapostos e antagônicos. Cada um com seus slogans, sua raiva e seus panelaços. Quem não apoia o “mito” é comunista, é de esquerda, é tucano, ou tudo isso ao mesmo tempo, ou coisa pior. É liberal, outro grave xingamento, não obstante o ministro da Economia se identificar como tal e estar tentando implementar reformas sabidamente indispensáveis, e inequivocamente liberais. Orientado, ao que tudo indica, pelo sábio da Virgínia, o clã Bolsonaro vê-se como um Dom Quixote de lança em punho, pronto para extirpar uma imaginária hegemonia de esquerda que se teria instalado entre nós desde a Contrarreforma e no bojo do patrimonialismo português, perdurando e se fortalecendo mesmo durante os 21 anos de governos militares.
Tivesse ele uma compreensão mais adequada de sua posição como supremo magistrado, Jair Bolsonaro já teria entendido que não foi eleito por uma seita, mas pela maioria do eleitorado; e que a função presidencial não se restringe a um grupo de seguidores, a um partido ou seita eleitoral, mas à totalidade do povo brasileiro. O palanque teve seu momento, mas não foi e não pode ser levado para dentro do Palácio do Planalto. O verbo agressivo, não raro insultuoso, tem de ceder lugar a uma fala formal, impessoal e comedida. O que temos visto, infelizmente, é o oposto. Jair Bolsonaro parece entender que seu papel é o de dividir ainda mais o País, nem que o preço seja se misturar infantilmente com a multidão, pondo em risco um número não desprezível de cidadãos.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Eliane Cantanhêde: Colapso
Mortes, contaminação, calamidade, colapso, recessão. Não é ‘gripezinha’
Os mortos pelo novo coronavírus já passam de 11.500 no mundo. Chegaram até ontem a 18 no Brasil, 220 nos Estados Unidos, em torno de 500 na França, 1000 na Espanha, 1.400 no Irã e 4000 mil na Itália, além de mais de 3100 na China. O número de contaminados nem dá mais para contar. E muitos deles vão morrer.
Em sã consciência, é impossível chamar tudo isso de “gripezinha” e defender realização de cultos religiosos, como fez o presidente da República Federativa do Brasil, depois de ter reduzido tudo a uma “fantasia”, criticar a “histeria”, estimular manifestações (aliás, contra o Congresso e o Supremo) e tocar mãos e celulares de centenas de pessoas mesmo ainda sujeito a novos testes para o vírus. Como não criticar esses absurdos?
Quanto mais a doença se abate sobre a humanidade, mais os cidadãos buscam o melhor de si para reforçar a empatia, a solidariedade, o patriotismo, a resistência. Arrasada, a Itália nos brinda com exemplos comoventes de artistas cantando óperas e distribuindo gentileza e esperança pelas janelas e varandas. O Brasil segue o exemplo e faz panelaços em agradecimento ao bravo pessoal da saúde.
Não vamos estragar isso, presidente. Só o uso de máscaras inúteis não resolve nada nem do ponto de vista simbólico nem do epidemiológico.
O ministro Henrique Mandetta prevê “colapso na Saúde” logo ali, em abril, enquanto o governo anuncia transmissão comunitária em todo o País e Câmara e Senado providenciam às pressas votações remotas e aprovam o estado de calamidade pública. O teto de gastos e a tão suada e fundamental Lei de Responsabilidade Fiscal foram devidamente jogados pela janela para abrir espaço ao principal: o combate ao coronavírus.
Nesse quadro de guerra, de responsabilidade, é preciso pensar antes de falar, ter cuidado com o outro, respeitar a dor das famílias dos mortos de hoje e de amanhã. E não custa lembrar que, neste momento, o presidente é uma ilha cercada de contaminados: os chefes do GSI, da Secom, da Segurança, da Ajudância de Ordens e do Cerimonial, que integram a incrível lista de 22 pessoas da comitiva presidencial que trouxeram o coronavírus dos Estados Unidos (e não da China...).
Entre as vítimas mais sensíveis, está a economia. A previsão do governo para o crescimento de 2020 era de 2,4, caiu para 2,1% e já está em 0,02% que, tira daqui, põe dali, significa zero, nada, estagnação. E é considerada otimista. A FGV já trabalha com um tombaço de 4,4%. Recessão das brabas.
Levantamento feito pela Cielo, maior credenciadora de cartões do País, mostra que as vendas do varejo caíram 5,4% nos primeiros 19 dias de março em relação a fevereiro e essa queda vem piorando de semana a semana. O setor mais afetado é exatamente o de serviços, onde se encaixa o turismo: queda de nada mais nada menos que 25,5%. As pessoas, trancadas em casa, não viajam, não consomem. Lojas estão fechadas, não lucram. Empresas param, não produzem. Um ciclo maldito, cujo resultado final, em tese, é quebradeira, queda de empregos e renda. Dor.
Em meio a tudo isso, o Brasil segue os EUA e a Europa e começa a testar cloroquina em pacientes de Covid-19 em situação gravíssima, mas o presidente da Anvisa, médico e contra-almirante Antonio Barra Torres, faz um apelo dramático: “Não comprem cloroquina!”
Segundo ele, 1) os testes para o coronavírus ainda são muito preliminares; 2) há risco sério de efeitos colaterais; 3) o medicamento pode faltar (aliás, já está faltando) para os que realmente precisam: os que têm Lupus, malária, artrite e outras doenças reumáticas. É preciso ouvi-lo. Automedicação é uma praga. Numa pandemia, uma praga ainda mais perigosa. Como a irresponsabilidade e a displicência nos momentos graves.
Vera Magalhães: Sociopatia X empatia
Crise do coronavírus separa comportamentos de forma cristalina
O que mais tem-se visto na crise global de proporções devastadoras decorrente da pandemia de coronavírus são demonstrações individuais e coletivas de empatia. Essa capacidade do ser humano de se preocupar com o outro e se sacrificar pela sociedade será um dos poucos legados positivos dessa distopia com a qual todos nós temos aprendido, um dia depois do outro e com muita dor, a conviver.
Mas o comportamento oposto, a sociopatia, também ganha relevo em tempos de exceção. E se torna ainda mais preocupante quando se manifesta, em gestos, palavras e decisões, nos responsáveis por comandar os destinos de grupos. Quais são as características dos sociopatas? Existem algumas que são universais.
Uma delas é a propensão à mentira. A distorção de dados e da realidade para descrever as próprias ações são muletas usadas pelos sociopatas, a forma como eles tentam esconder essa sua condição, mas por meio da qual acabam por ressaltá-la.
Os sociopatas se distinguem pela total falta de vergonha, arrependimento ou culpa. Mesmo quando flagrados fazendo algo condenável ou que tenha sido contraindicado, inventam subterfúgios, justificativas, jogam a responsabilidade para o outro e reafirmam, com arrogância e despreocupação, os próprios gestos.
A terceira característica de um sociopata é a completa falta de empatia. Ele é incapaz de se colocar no lugar do outro, demonstra frieza ou mesmo deboche em relação à dor e aos problemas daqueles com os quais não se identifica ou não tem relação, e coloca os interesses próprios e daqueles que lhe são próximos acima dos demais.
A habilidade de manipular é outra característica que a literatura reconhece nos sociopatas. Esse “dom” decorre justamente da capacidade de mentir e falsear a realidade. Quando pego na mentira, o sociopata se vitimiza e tenta virar o jogo culpando outros ou fingindo arrependimento.
O comportamento explosivo é comum aos sociopatas. Ele decorre justamente da falta de empatia. Quando questionado ou contrariado, o sociopata tende a explodir e agredir o outro, pois não reconhece nenhum propósito que não seja o seu como legítimo. A propensão à violência decorre desse desvio.
No conjunto de fatores observados para identificar e tratar um sociopata o egocentrismo também é listado. O sociopata tende a se achar ungido, especial, único, predestinado, detentor da verdade moral e por vezes divina. Quem sofre do transtorno tende a ignorar críticas e falar só de si mesmo.
Outro traço distintivo dos sociopatas é a falta de vínculos. Embora altamente carismáticos, muitas vezes, não desenvolvem afetividade e descartam pessoas próximas com facilidade quando elas deixam de aceitar suas determinações.
Outra regra é a dificuldade de quem sofre dessa patologia de reconhecer e cumprir limites, regras, leis e convenções sociais quando eles o contrariam.
Sociopatas são conhecidos também pela impulsividade e irresponsabilidade, que os faz colocar a si mesmos e a outras pessoas em risco pela gratificação imediata de suas vontades. Eles podem até ouvir a sensatez por um tempo, mas a inquietação e a impulsividade fazem com que eles revelem sua verdadeira natureza de uma hora para outra. Um sociopata costuma ser ainda mais imprudente quando o que está em jogo é a segurança alheia, e não a própria.
O comportamento de sociopatas, ainda mais quando investidos de poder, é um risco às sociedades em condições normais, mas se torna intolerável em momentos de calamidade pública global, como a atual.
Separar os comportamentos será um dos substratos imediatos e definitivos dessa era de pandemia. Sejamos empáticos e façamos nossa parte para neutralizar os estragos que os sociopatas podem causar.
José Roberto Mendonça de Barros: Parada súbita
Essa parada súbita já garante que 2020 será um ano de recessão global
Em 42 anos de MB Associados, nunca vi uma semana assim, com tantas mudanças profundas no cenário. É preciso ter humildade, porque não sabemos bem o que se passa. Mas é um ponto de inflexão para pessoas, empresas e países.
A combinação de um novo vírus e de conflitos geopolíticos (como a guerra comercial entre as duas grandes potências e a atual o petróleo) produziu uma parada súbita na China, depois na Europa, nos EUA e, agora, no Brasil.
Essas paradas súbitas são um terror, inclusive para economistas, pois produzem rupturas na oferta e nos fluxos financeiros, tanto maiores quanto maiores forem a alavancagem e o endividamento dos agentes, como nas empresas americanas de hoje, e quanto menores forem a saúde financeira e a renda de pessoas e pequenos negócios, como é o caso do Brasil.
O caso americano é o que melhor ilustra o que é essa parada, porque até muito recentemente sua economia vinha muito bem. Entretanto, a dívida corporativa nunca foi tão elevada, 47% do PIB, resultado de mais de uma década de crescimento e de juros muito baixos. Com a chegada do vírus, o mercado de crédito travou, apesar dos intensos esforços do FED, os “spreads” explodiram.
Muitas empresas mais frágeis financeiramente já estão tendo suas notas rebaixadas e poderão quebrar, pois a iliquidez rapidamente se transforma em insolvência.
Em outros casos, os efeitos ruins vieram da crise em grandes áreas de serviços, como turismo, hospitalidade, cruzeiros, artigos de luxo e outros. Cadeias longas estão sendo afetadas. O caso mais visível é o da Boeing, que já vinha sofrendo com a parada na produção do 737 MAX e que solicitou US$ 60 bilhões como assistência do governo para lidar com a crise. Mesmo que tudo dê certo, a dívida corporativa subirá para US$ 100 bilhões, num momento no qual poucas companhias comprarão aviões novos.
Além disso, a política no mundo inteiro passou a ser a do isolamento social. Nestas circunstâncias, a frenética baixa de juros tem efeito negligível.
Em uma situação dessas, a urgência exige ações rápidas, mas a política monetária fica menos eficiente e a política fiscal passa a exigir ferramentas, nem sempre disponíveis, como gastos focados ou suporte à liquidez em determinadas áreas.
Essa parada súbita já garante que 2020 será um ano de recessão global (definida como crescimento inferior a 1%), apesar dos grandes esforços das autoridades, sanitárias e econômicas, para deter a pandemia e impulsionar a economia.
Embora as projeções feitas hoje tenham uma acurácia limitada, os novos números de um banco internacional de primeira linha são impactantes.
No início do ano, projetava-se um crescimento do PIB global de 3,2% e agora, apenas 0,9%. Nos EUA, a projeção de 1,8% foi substituída por uma de 0,6%. Na China, o crescimento foi de 4%, em vez dos antigos 6%. Finalmente, na área do Euro, projeta-se agora um tombo de 5%, em vez de um crescimento de 0,9%.
No Brasil, a equipe econômica foi claramente pega no contrapé e tardou a responder. Entretanto, o ponto positivo foi entender que se trata de uma situação de emergência, que precisa ser enfrentada, antes de tudo, com mais gastos na saúde e na assistência aos segmentos mais frágeis da população, que inclui os trabalhadores informais, além da população em situação de pobreza.
Do lado das empresas, os pequenos negócios serão os mais afetados, até como consequência da política de isolamento social e terão de ter alguma atenção. Mas também serão necessárias políticas que preservem as empresas e a produção.
Infelizmente, por mais que essas medidas sejam bem sucedidas, uma recessão é inevitável: esperamos uma queda do PIB nos dois primeiros trimestres, com alguma recuperação mais próxima do final do ano. No melhor cenário, o crescimento do PIB ficará próximo de zero. É um duro revés para um país que luta há anos para voltar a crescer.
O programa de reformas deverá parar, mesmo porque, até recentemente, o Planalto continuava a antagonizar o Congresso. O ajuste fiscal e o investimento em infraestrutura deverão ficar para o próximo ano. Apenas medidas infraconstitucionais (ligadas a saneamento, energia e PPPs) poderão ser aprovadas.
Finalmente, se ao cabo de dois anos, o crescimento médio for de apenas 0,5% ao ano, dá para pensar em reeleição? Tudo indica que não, até porque muita gente está cansada da irrelevante pauta ideológica que prende a atenção de boa parte do Executivo.
* Economista e sócio da MB Associados.
Adriana Fernandes: Oportunistas da crise
Respostas têm sido lentas por causa das picuinhas tão ao gosto dos nossos governantes
Primeiro, a negação dos riscos da epidemia e briga com o Congresso. Agora, o embate político entre o presidente Jair Bolsonaro e governadores – muitos deles seus adversários políticos declarados nas próximas eleições – retardam uma ação coordenada de Brasília com os Estados para garantir a produção de alimentos, medicamentos e, acima de tudo, logística para que itens básicos cheguem aos brasileiros em isolamento domiciliar devido ao alastramento da covid-19.
A logística para garantir o transporte dos produtos depende do bom diálogo entre todos. Basta de palavras de efeito como as de que não faltará “arroz, feijão e carnes”.
As pessoas querem se sentir seguras e ver as medidas efetivas. O pico da epidemia ainda não chegou e os próximos meses serão muitos duros, como relatou o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
As respostas têm sido lentas também por causa das picuinhas políticas tão ao gosto dos nossos governantes atuais. O que se vê é uma corrida insana para quem fica melhor na foto.
O presidente só tomou a decisão de pedir ao Congresso o reconhecimento da calamidade pública, na noite de terça-feira passada, quando viu que o Congresso tomaria a medida na sua frente. Logo depois de o senador José Serra (PSDB-SP) comunicar que estava com um decreto legislativo para ser apresentado imediatamente, o presidente agiu.
No mesmo dia, o presidente da Câmara (DEM-RJ), Rodrigo Maia, também já havia antecipado em entrevista ao Estado muitas das medidas que seriam anunciadas no dia seguinte pela equipe econômica. Bolsonaro começou a agir empurrado por todas essas circunstâncias.
Até então, o governo estava se debatendo sobre o que fazer: mudar a meta fiscal de resultado das contas públicas ou decretar a calamidade para ampliar os gastos necessários. Só depois da decisão é que o Ministério da Economia começou a disparar o anúncio de medidas para atender os informais, a população de baixa renda e antecipação do seguro-desemprego para uma parcela dos empregados. Nenhuma delas, porém, foi ainda efetivamente publicada.
Em meio ao caos dos últimos dias, só ontem o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, em entrevista dada para a repórter Amanda Pupo, do Estadão/Broadcast, falou em formar um conselho de secretários de transporte dos Estados para ações coordenadas de enfrentamento ao novo coronavírus, e evitar “voluntarismo inadequado”.
Após o reforço no atendimento da saúde, dos hospitais, dos profissionais da área médica, a produção e a logística de distribuição são centrais.
O ministro Tarcísio Freitas calculou 54 decretos de Estados e municípios com medidas na área de transporte. Bolsonaro reclama dos governadores e prefeitos.
O tom do presidente foi belicoso, o que ampliou o desgaste desnecessariamente. Na ausência de diálogo com o Palácio do Planalto, de onde o presidente Bolsonaro resistiu até quando pôde (ou, melhor dizendo, até onde sua popularidade despencou), governadores e prefeitos começaram a agir por conta para proteger seus moradores. Quem pode culpá-los?
É bom lembrar que a demora de ação também parte dos governadores de grandes centros urbanos preocupados com o tombo da atividade econômica e, consequentemente, na arrecadação. Foi assim com São Paulo, que saiu depois na reação.
É preciso registrar também que a preocupação da equipe econômica com o tombo da atividade retardou a adoção de medidas mais duras no fechamento de fronteiras, comércio e serviços para o isolamento forçada dos brasileiros.
Algumas medidas que já tinham sido tomadas por outros acabaram sendo replicadas por decisão de governadores e prefeitos, o que gerou novo motivo de discórdia política.
É torcer agora para que essa disputa não atrapalhe e retarde a organização do socorro federal aos Estados e municípios para o atendimento à população nesse momento tão dramático para o Brasil e o mundo. É para ontem.
A crise não pode servir, no entanto, para oportunistas de plantão botarem a faca no pescoço do Tesouro. Todo cuidado é pouco para afastar essa gente.
Monica de Bolle: Como evitar a depressão econômica?
Embora o governo brasileiro esteja muito longe de reconhecer a gravidade do momento, há os que começam a pensar no que fazer
Acompanho as análises nos jornais brasileiros sobre a ruptura inédita causada pela pandemia e me causa angústia a falta de urgência. Não me refiro apenas à irresponsabilidade atroz do presidente da República, que põe em risco a vida das pessoas, mas também ao fato de que poucos no Brasil se deram conta do que é essa crise.
Trata-se de uma parada súbita da economia mundial como jamais vimos. E, ao que tudo indica, não será uma parada súbita de curta duração, como a observada após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, ou como aquela proveniente da crise financeira de 2008. Não se trata apenas da incerteza atrelada à epidemia, mas das medidas de saúde pública que estão sendo tomadas mundo afora. Para desacelerar a propagação do vírus, fronteiras, escolas, universidades, bares, restaurantes, escritórios estão sendo fechados. Alguns países impuseram toques de recolher. As companhias aéreas já sofrem o baque do isolamento e do distanciamento social. A economia mundial sente os primeiros efeitos da parada súbita.
A crise será de longa duração. Para desacelerar a progressão da epidemia e “achatar a curva”, como o esforço pela desaceleração ficou conhecido, as medidas inéditas estarão conosco por vários meses. Uma vez alcançado o pico da epidemia, serão mais vários meses de semiparalisia até que seja seguro começar a abandonar as medidas excepcionais de saúde pública. Será um recomeço gradual. A não ser que tenhamos rapidamente uma vacina – o que hoje não parece provável – estamos falando, possivelmente, de mais de um ano de parada quase total do mundo. Para 2020, o quadro de retração global é certo.
Registraremos, pela primeira vez em muitas décadas, uma queda do PIB global. É por esse motivo que países começaram a adotar políticas extraordinárias para atenuar os efeitos da crise. Em tempos de calamidade inédita e risco de depressão, metas fiscais e a evolução da dívida tornam-se absolutamente irrelevantes. Não se compara o desajuste fiscal proveniente do que é necessário agora ao quadro de depressão que se instaurará se as medidas forem insuficientes ou se governos forem contaminados pela inação. A inação mata.
Embora o governo brasileiro esteja muito longe de reconhecer a gravidade do momento – as medidas recém-anunciadas por Paulo Guedes são insuficientes – há os que começam a pensar no que fazer. Há mais de uma semana tenho defendido o que considero necessário para enfrentar a crise de longa duração a abater em breve o Brasil, que entra nela a partir de uma situação econômica muito frágil.
São elas: suplemento emergencial imediato do benefício do Bolsa Família em pelo menos 50%; a instituição de uma renda básica universal mensal no valor de R$ 500 para os 36 milhões do Cadastro Único que não recebem Bolsa Família – esses são os grupos mais vulneráveis; a abertura de R$ 50 bilhões em créditos extraordinários para a saúde, com a possibilidade de aumentar esse montante; acelerar e dar maior flexibilidade à aprovação do seguro-desemprego; disponibilizar recursos emergenciais para os setores mais afetados pela crise no valor de pelo menos R$ 30 bilhões; abertura de linhas de crédito do BNDES para micro, pequenas e médias empresas. Por fim, recomendo um programa de investimento público em infraestrutura para sustentar a economia no médio/longo prazo com a utilização de recursos do BNDES.
As medidas de caráter imediato – saúde, proteção social e setorial – somam cerca de R$ 310 bilhões ao longo de 12 meses, ou uns 4% do PIB. Isso é metade dos cerca de 8% do PIB que gastávamos com os juros altos de 14% há poucos anos. Embora seja um montante considerável, o mais arriscado nesse momento não é o que vai acontecer com o déficit ou com a razão dívida/PIB – até porque não há investidor no mundo, hoje, preocupado com a sustentabilidade das contas públicas. Para viabilizar o que proponho, precisamos da imediata flexibilização da meta fiscal e da suspensão do teto de gastos por um período de dois anos. Deixo claro que o teto é importante para sustentabilidade fiscal de longo prazo – mas, o momento é de calamidade.
É claro que, se a situação melhorar, se uma vacina for encontrada, se os cientistas encontrarem um tratamento eficaz para a síndrome respiratória aguda que se manifesta nos casos mais graves da doença, os montantes que sugiro poderão ser reduzidos. Mas, na situação em que estamos é melhor errar para mais do que para menos. Errar para menos significa pôr em risco a vida de dezenas de milhões de pessoas. Manter o pensamento encaixotado, hoje, é fatal.
* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Marco Aurélio Nogueira: Exterminador do futuro
Em termos de capacidade de gestão, equilíbrio e solidariedade, de liderança, o presidente é um fiasco. Um caso grave, sem cura.
A máscara caiu. Não há uma Presidência da República no Brasil, mas um pesadelo. A cada dia fica mais evidente a tragédia que estava anunciada em 2018 e que não foi compreendida a tempo pela maioria do eleitorado. A partir de agora, teremos de matar um leão por dia. Não merecemos isso, nem o vírus que se dissemina, nem o presidente que não governa nem lidera o País nesse momento extremamente delicado.
É simplesmente patética a foto do presidente e de alguns ministros paramentados com máscaras descartáveis. Bolsonaro foi à manifestação, abraçou e beijou um monte de gente, acha que o distanciamento social e o confinamento não passam de histeria desnecessária. Depois, posou de higiênico e cuidadoso. Feitas as fotos, se atrapalhou para tirar a máscara. Ela caiu sozinha, por inteiro. Uma figura aparvalhada, sem saber o que fazer, sem atinar para a gravidade e a dimensão da pandemia. O olhar de todos à mesa de entrevista era de gente assustada.
Dá medo ver que há quem o aplauda e continue a tratá-lo como “mito”. Pessoas assim são uma correia de transmissão, espalham ódio e vírus. Quem são elas, como justificam suas atitudes perante os demais? A chave do fanatismo explica parte do fenômeno. Estamos diante de um tipo social – o indiferente com raiva do mundo — que não surgiu hoje, mas que, de repente, se espalhou e ganhou visibilidade. Gente que pede ditadura, Estado de exceção, AI-5, no exato momento em que mais se necessita de paz, diálogo, cooperação. Gente para quem a vida em sociedade é um fardo, conflito, atrito, violência, que não está nem aí para o bom senso e o espírito público. Um perigo.
A mentira, especialmente quando contumaz, é o pior modo de enfrentar o Covid-19 ou qualquer outro vírus. Desmobiliza e confunde. Trump mordeu a língua depois de passar semanas dizendo que o vírus nada mais era que uma “manobra chinesa”. Bolsonaro segue o mesmo caminho. Passará para a História como um exterminador do futuro.
Depois de banalizar o coronavírus e debochar das medidas sanitárias de seu próprio governo, Bolsonaro encaminhou pedido de calamidade pública. Medida dura e necessária. Mas são chocantes as oscilações presidenciais, que emitem sinais contraditórios para a população e ao fazer isso aumentam a exposição ao vírus. Os panelaços dos últimos dias estão a demonstrar que o bolsonarismo regrediu alguns pontos.
Em termos de capacidade de gestão, equilíbrio e solidariedade, de liderança, o presidente é um fiasco completo. Um caso grave, sem cura. Seu despreparo, seu caráter tosco e grosseiro, só faz atrapalhar. A cada dia, mais gente está se dando conta disso.
Rogério Furquim Werneck: O desafio da ação coletiva
A política de distanciamento social só vai ter sucesso com apoio maciço da população
O coronavírus vem pondo à prova a capacidade de ação coletiva eficaz nos países afetados. Os que souberam se antecipar no combate à pandemia, como Japão, Taiwan e Coreia do Sul, têm mostrado desempenho superior ao da China e da Itália, onde a epidemia tem sido bem mais devastadora.
Quando a China, afinal, se deu conta da gravidade da crise e anunciou medidas drásticas de estrito confinamento de 60 milhões de pessoas, a reação inicial do resto do mundo foi atribuir medida tão extrema à brutalidade do regime autocrático chinês. O que, de fato, fez soar o alarme foi ter a Itália, semanas depois, adotado medida similar. Mesmo diante das enormes dificuldades de confinar toda a população do país, numa democracia tão complexa, prevaleceu no Parlamento italiano o cálculo político de que a medida era inevitável. Ficou mais do que claro que tanto a Itália quanto a China haviam se dado conta de algo que o resto do mundo ainda não percebera.
A política de distanciamento social vem sendo replicada em boa parte da Europa e nos EUA. O nome do jogo é conseguir atenuar o crescimento exponencial da disseminação do vírus, de forma a que o número de casos graves se mantenha compatível com a limitada capacidade de tratamento adequado disponível no sistema de saúde. Redistribuir no tempo o impacto da pandemia para impedir que o sistema de saúde entre em colapso.
O Brasil tem a vantagem de só agora ter sido atingido pela epidemia. Como late comer, tem muito a aprender com a experiência dos antecessores. Para levar esse jogo adiante com sucesso, será preciso, em primeiro lugar, claro, que o governo, especialmente na área federal, saiba atuar com competência.
Quis o destino ou, quem sabe, um dos deuses da sorte, que, entre tantos ministérios tão mal tripulados, a pasta da Saúde tenha caído em boas mãos. Tem sido uma grata surpresa para o país constatar que o ministro Luiz Henrique Mandetta e sua equipe parecem à altura dos desafios que terão de ser enfrentados. O que, sim, preocupa, e vem sendo motivo de justa e generalizada indignação, é a espantosa leviandade com que o presidente Bolsonaro vem lidando com a questão.
Além de competência do governo, o sucesso na contenção da epidemia deverá exigir que o país se mostre capaz de levar adiante, com eficácia, um gigantesco esforço de ação coletiva. A política de distanciamento social só terá os resultados que dela se espera se puder contar com apoio maciço da população. E, quanto a isso, sobram razões para apreensão.
São bem estudadas, em economia, as dificuldades de ações coletivas em grande escala. Muito fáceis de perceber no caso em pauta. Não há no país quem não queira que a epidemia seja prontamente debelada. Mas cada pessoa mostra disposição distinta de incorrer nos custos que dela serão requeridos para que isso ocorra. Há quem queira deixar a outros o ônus do distanciamento. Quem prefira pautar seu comportamento pela taxa de mortalidade de pessoas da sua faixa etária específica. E, ainda, quem considere proibitivos os custos em que teria de incorrer para participar desse esforço coletivo. Tudo isso conspira contra a adesão maciça da população, condição necessária para que a epidemia seja debelada, objetivo comum de todos.
Há fatores óbvios a ter em conta, para entender como diferentes países podem lidar de forma distinta com o desafio de ação coletiva envolvido do combate à epidemia: o nível de coesão social, a equidade na distribuição de renda, as virtudes cívicas da sociedade e o grau de discernimento dos seus cidadãos.
Salta aos olhos que estamos fadados a ter mais dificuldades que a Itália. É fundamental que, em tempo hábil, saibamos compensar nossas deficiências em cada um desses fatores, com campanhas maciças de esclarecimento dos menos informados, mitigação dos custos em que terão de incorrer os segmentos mais desfavorecidos da população e, se não for sonhar demais, articulação de apoio suprapartidário inequívoco às medidas que se fazem necessárias à contenção da epidemia.
O Estado de S. Paulo: Varejistas TNG e Gregory vão demitir 600 pessoas como efeito do coronavírus
Com shoppings fechados e demanda em forte queda, associações do varejo projetam perda de 5 milhões de empregos até abril
Renato Jakitas, O Estado de S.Paulo
Em meio às ordens para fechamento de shopping centers ao redor do País e após três dias de isolamento voluntário da população, como tentativa de conter a escalada dos casos de coronavírus nas principais cidades, os varejistas refazem as contas, renegociam pagamentos a fornecedores e dizem que, inevitavelmente, começarão a demitir seus funcionários a partir da semana que vem.
Estimativas de entidades patronais, como a Associação Brasileira das Lojas Satélites (Ablos), que reúne as lojas maiores dos shoppings, e a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), falam em até 5 milhões de desempregados no comércio pelo País, até o fim de abril
Segundo Paulo Solmucci, da Abrasel, os empresários já vêm de um longo período de vendas fracas e não têm, neste momento, caixa para manter impostos, aluguel de ponto e folha salarial com os empreendimentos fechados. “A situação já estava péssima, agora ficou dramática”, diz.
Já Tito Bessa Júnior, da Ablos, afirma que o capital de giro dos comerciantes mal consegue suprir um mês fraco de vendas, o que dirá cinco semanas sem faturamento – a maioria das ordens de fechamento vão da semana que vem até o fim de abril. “Eu mesmo vou demitir cerca de 40% dos meus funcionários a partir da semana que vem”, diz Bessa Júnior, que também é dono da rede TNG, com 170 lojas e 1.600 funcionários. “Acabei de encerrar o contrato com a empresa de limpeza, hoje (ontem) já cortei o pessoal que presta serviço para o TI e, na semana que vem, vou ter de dispensar 500 pessoas das operações das lojas.”
Coletivas
Segundo ele, os shoppings centers empregam direta e indiretamente 4 milhões de pessoas pelo Brasil. Se a situação permanecer como está, a tendência é que a metade seja liberada pelas empresas. “Eu estou há três dias conversando com lojistas e todos dizem que vão cortar 50%, 40%. Alguns vão dar férias coletivas primeiro, mas a partir de abril não tem o que fazer”, conta.
O advogado Leonardo Tavano, do escritório Tavano Maier Advogados, que atende grupos de varejo, diz que sua equipe trabalha sem parar nas últimas 72 horas preparando demissões e alternativas, como redução de jornada de trabalho de 25%, férias individuais e coletivas. “O que estou vendo é que as lojas vão fechar unidades, principalmente aquelas que já vinham com baixa performance, e enxugar de 30% a 50% do o quadro de colaboradores.”
Além das demissões, os comerciantes tentam renegociar os contratos de locação, assim como prolongar os pagamentos dos fornecedores. “Imposto, aluguel de shopping, essas coisas esquece, não vou pagar. A minha meta é preservar a maior quantidade possível de empregos”, conta Angelo Augusto de Campos Neto, da MOB, com 34 lojas. “Estou tentando conversar com os shoppings para ver se eles paralisam a cobrança de aluguel e condomínios, já que estamos fechados mesmo”, conta Andrea Duca, da Gregory, com 62 lojas. Ela vai dar férias coletivas aos funcionários e começar a demitir os vendedores comissionados. “Vamos agora cortar os funcionários que ainda não concluíram o período de experiência, deve dar uns 100”, diz.
Para o economista Claudio Felisone de Angelo, coordenador do programa de administração de varejo da FIA, os comerciantes não têm outra alternativa a não ser reduzir o quadro de funcionários. “É uma decisão muito dura, mas é isso ou quebrar.”
Zeina Latif: Batalhas perdidas
Políticas macroeconômicas tradicionais para lidar com a crise são quase inócuas
É possível que um quadro epidêmico mais grave no Brasil não pudesse ser evitado, a julgar pelo que ocorre no mundo. No entanto, não restam dúvidas que o governo federal demorou a agir, podendo implicar em maiores custos, em vidas e na economia.
O mercado financeiro reage à piora do quadro doméstico. Estancar perdas não é para já.
No dia 23 de janeiro, o ministro da Saúde afirmou que o País estava em nível 1 de alerta, em uma escala de 1 a 3. Risco iminente. Mesmo com a aproximação do carnaval, não houve comunicação em massa sobre os cuidados mínimos dos indivíduos e medidas sanitárias efetivas nas fronteiras.
Somente após quase dois meses desde o alerta de Mandetta ocorreu a coletiva do presidente e seus ministros para dar satisfação à sociedade e apresentar as iniciativas a serem tomadas.
O governo fala em “operação de guerra”, mas batalhas importantes já foram perdidas, começando pela da comunicação, sendo que o presidente muito atrapalhou nessa frente.
Não houve qualquer coordenação interna do governo. Ministros das várias áreas envolvidas se omitiram e o governo ficou paralisado. O presidente, ao alimentar conflitos e fazer da epidemia uma bandeira política, impediu a coordenação de esforços com entes da federação e os demais poderes.
Na coletiva de ontem, faltou resposta à altura ao grave quadro e nada muito concreto foi anunciado sequer para conter o contágio de pessoas e preparar a rede hospitalar. Segundo o ministro da Saúde, a estabilização de novos casos da doença poderá ocorrer apenas em julho; isso em um cenário benigno.
De batalha em batalha perdida, o País caminha rapidamente para o isolamento social, sofrimento da sociedade e quadro recessivo, sem contar os riscos de desabastecimento. O que não se sabe é em qual intensidade.
Políticas macroeconômicas tradicionais para lidar com a crise são praticamente inócuas. Nem mesmo as localizadas, como as intervenções do Banco Central no mercado de câmbio.
Se em condições menos agudas as intervenções têm eficácia bastante limitada, agora, ainda mais, pois todos os vetores puxam o dólar para cima. As incertezas no mercado global se somam aos riscos internos derivados da escalada da epidemia no Brasil. Essa política, na melhor das hipóteses, pode ajudar a dirimir problemas de liquidez no mercado cambial. Mesmo a contenção de movimentos de manada, quando o mercado fica sem referências, ficou bastante dificultada.
Do lado da política monetária, não será o corte da Selic para 3,75% que mudará o cenário econômico. As respostas dos bancos centrais no mundo que reduzem as taxas de juros parecem uma tentativa de acalmar os mercados do que fruto de uma visão mais estruturada de médio prazo. O crédito na economia não irá reagir aos juros ainda mais baixos.
Por essa mesma razão, ainda que o mercado venha a reagir positivamente à medida – o que não está claro já que a decisão do Copom veio dentro do esperado e com sinalização de pausa adiante –, será algo de curtíssimo prazo. Nada que acalme os mercados efetivamente e limite o contágio financeiro na economia.
Talvez o mais adequado teria sido aguardar para cortar os juros, guardando munição para o futuro, quando as políticas de estímulo à demanda poderão ser mais eficazes. E o futuro que nos aguarda poderá ser muito difícil a depender da capacidade de ação do governo.
Trazer algum alento aos mercados, contendo perdas e o aperto das condições financeiras, dependerá de ação conjunta do governo. Não se pode esperar tanto do Banco Central.
A sociedade pede ação, o setor produtivo pressiona por ajuda e o mercado financeiro por medidas econômicas que estanquem as perdas.
Nessa guerra será necessário estratégia para definir as batalhas de cada dia e coordenação de esforços. Atirar às cegas, não.
*Consultora e doutora em economia pela USP
Roberto Macedo: Na economia, mais por fazer. E rapidamente
Cabem afrouxamento monetário e medidas para os trabalhadores informais
O noticiário internacional continua focado no coronavírus e seus impactos. Há muitas notícias de medidas econômicas para amenizá-los e de outras que há tempos já vinham sendo adotadas ou cogitadas contra um esfriamento da economia mundial, agora agravado pela covid-19.
No Brasil segue o debate sobre a crise econômica, a novela das reformas propostas pelo ministro Paulo Guedes e a retomada ou não de um crescimento mais forte, com o não subindo nas apostas também por causa do coronavírus.
O que fazer na economia? Internacionalmente, destacam-se medidas recém-adotadas nos EUA pelo seu banco central, conhecido como Fed. Primeiro, no dia 3 deste mês reduziu a taxa básica de juros, que corresponde à nossa Selic, para um valor entre 1% e 1,25% ao ano, procurando estimular a economia. E no último dia 15, um domingo, também como reação ao impacto econômico do coronavírus, anunciou não só outra redução dessa taxa, para entre zero e 0,25%, como também um quantitative easing (QE), ou afrouxamento monetário
No QE, o Fed adquire títulos da dívida pública em poder no mercado, bem como créditos privados, como os de hipotecas imobiliárias. O QE veio na crise de 2008 e se recomenda quando a taxa básica de juros e a de inflação se tornam zeradas ou próximas disso, e a primeira deixa de estimular a demanda de crédito.
Aqui, em artigos entre julho e setembro de 2019, defendi a adoção do QE no Brasil pelo Banco Central (BC), mas só para créditos de hipotecas imobiliárias, para estimular a construção civil, grande geradora empregos. E para créditos ligados a obras de infraestrutura, como os concedidos ou a conceder pelo BNDES.
Ao argumento de que nem a inflação nem a Selic estão próximas de zero no Brasil para um QE, respondo que na nossa economia ainda é ampla a indexação de preços, tarifas públicas e rendimentos, ou seja, sua correção pela inflação, com o que esta tende a se perpetuar. Se fosse para esperar que ela e a Selic cheguem a zero ou muito próximas disso, um QE não ocorreria, com o que a política monetária perderia a oportunidade de recorrer a um instrumento que se tem revelado útil, como nos EUA e na área do Banco Central Europeu (BCE).
Também propus que fosse liberado um valor significativo de parte dos depósitos compulsórios que os bancos mantêm no BC. Isso foi feito em pequena magnitude no ano passado, mas em 19/2/2020 foi anunciado um valor bem maior, de R$ 135 bilhões, porém sem o direcionamento que propus, como no QE.
Ele se justifica porque nosso sistema bancário é disfuncional e só excepcionalmente dá crédito a juros razoáveis, como para adquirir imóveis. Em geral as taxas que cobra são muito altas para necessidades importantes como as de capital de giro e crédito pessoal. E há casos em que suas taxas são escorchantes, como no cheque especial e no financiamento rotativo dos cartões de crédito.
Ontem o Comitê de Política Monetária do BC deve ter decidido novamente sobre o valor da Selic. Não sei o que virá, mas ele deveria refletir muito acerca do potencial de reduções adicionais sobre a expansão do crédito da economia. Com as características dos bancos já citadas, com uma Selic menor eles tomam recursos a taxas menores, mas em cima desses custos mais baixos põem spreads enormes, que contêm enormemente o estímulo que viria das reduções da Selic. Ademais, como a Selic já está próxima da taxa de inflação, novas reduções poderão afetar a demanda por títulos da dívida pública, dificultando sua rolagem e ampliação.
Também no Brasil, o ministro Guedes anunciou no último dia 16 um pacote de medidas para conter impactos econômicos e sociais do coronavírus. Numa lista neste jornal, contei 13 novas medidas, além de cinco previamente anunciadas. Não tenho espaço para detalhá-las, mas um traço comum é que não são medidas com impacto fiscal relevante, notando-se assim a cautela do ministro no sentido de preservar seu esforço pelo ajuste das contas públicas. Mas ontem soube da notícia de que o governo pediria o aval do Congresso para declarar calamidade pública e gastar mais na área de saúde.
É uma emergência séria e não vejo outra saída. Mas isso não deve ser feito em prejuízo do teto de gastos para as demais despesas. Nem com aumento de impostos. Vi que a Constituição (artigo 167, III), permite operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital se autorizadas via créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Legislativo por maioria absoluta. Cabe ampliar a dívida, não vejo outra saída.
Não vi, contudo, medidas mais voltadas para os trabalhadores do mercado informal, exceto uma ampliação do Bolsa Família, destinada a reduzir em apenas um terço a fila desse benefício. Muitos desses trabalhadores dependem das pessoas que se movimentam pelas ruas, cujo número se vem reduzindo rapidamente, principalmente nas cidades de maior porte. É preciso fazer algo por eles. E rapidamente.
*Economista (UFMG, USP e HARVARD), professor sênior da USP, é Consultor Econômico e de ensino superior
O Estado de S. Paulo: Só com fortalecimento do SUS País pode enfrentar pandemia, diz Serra
O ex-ministro da Saúde e do Planejamento José Serra, senador pelo PSDB-SP, conversou com a Coluna sobras as crises na saúde e na economia provocadas pelo coronavírus. Segundo ele, é preciso “ampla coordenação com a política fiscal” e “fortalecer o SUS“
Alberto Bombig, O Estado de S. Paulo
Coluna do Estadão – Qual a avaliação do senhor da crise até agora?
José Serra – O cenário é, sem dúvida, grave. Creio que ainda estamos na primeira fase, experimentando o choque e caindo na real, tentando lidar com os preparativos para um surto de gripe que deve vir, segundo os dados da OMS e a experiência dos países asiáticos e europeus. Como vamos lidar com a saúde e a economia nas próximas semanas fará toda a diferença lá na frente. A contração econômica em escala mundial e os tropeços dos mercados de capitais e do sistema financeiro internacionais poderão gerar corridas bancárias e insolvência de grandes empresas e bancos de investimentos, refletindo-se em seguradoras e fundos de pensão. O mundo terá que se coordenar fiscal e monetariamente. Isso é imperativo. Inclusive, a autonomia dos BCs mundiais já vinha sendo revista desde 2008 e está sendo posta em xeque por esta crise, que requer ampla coordenação com a política fiscal. Logo, não devemos sequer voltar a discutir este tema antes de superá-la e conhecermos o novo arranjo econômico que se estabelecerá. No tocante à saúde, creio que só conseguiremos enfrentar essa pandemia com um fortalecimento a curto prazo do SUS, com ampliação emergencial do número de leitos em UTI e dos serviços de saúde, reforçando atendimento nas unidades básicas. Por isso também o decreto de calamidade é fundamental, para que se possa redirecionar recursos para o SUS.
Coluna do Estadão – Como o Legislativo pode contribuir para o enfrentamento?
Serra – O primeiro passo é reconhecer o estado de calamidade. Eu apresentei um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nesse sentido, antes de o governo anunciar o pedido ao Congresso. Mas, independentemente da paternidade desta ou daquela medida, é importante apoiar as iniciativas emergenciais do governo. Além disso, devemos suspender pautas que não sejam prioritárias, especialmente as que se chocam com medidas urgentes, como a PEC Emergencial, que vedaria a contratação de temporários, novas linhas de financiamento e subsídios, que nesse cenário devam ser necessárias. A reforma tributária, com um cronograma de 45 dias que já era inexequível, não pode ser discutida com esse cenário de crise. Após a crise precisaremos de propostas com potência imediata sobre a atividade e a produtividade, não as propostas que parcelam queda de arrecadação, aumento de carga, choque de preços, desemprego e complexidade adicional por 10 longos anos. O debate das propostas em discussão deveria ser arquivado dada a realidade desta crise e seus desdobramentos econômicos e fiscais.
Coluna do Estadão – O Brasil deve fechar as fronteiras?
Serra – Claro que não. Só devemos reagir contra a importação de fatores de crise, mas podemos usar nossa pauta de alimentos essenciais para barganhar melhores termos de troca para medicamentos, suprimentos médicos e outros insumos básicos essenciais para o enfrentamento deste momento. Para as pessoas, teremos de observar o avanço da pandemia aqui. Se houver um risco de propagação maior do vírus, seria recomendado.