O Estado de S. Paulo
Eliane Cantanhêde: Candidatura Lula, uma ficção
Logo Lula vai perceber que politizar suas dificuldades na Justiça dá munição a sua tropa, mas não muda a realidade
O relator João Pedro Gebran contou uma história com princípio, meio e fim para comprovar que o ex-presidente Lula ganhou o triplex da OAS em troca de desvios na Petrobras. O revisor Leandro Paulsen discorreu do mensalão ao petrolão para concluir que Lula foi responsável pelos esquemas de corrupção e se beneficiou deles. E o desembargador Victor Laus já abriu sua fala deixando evidente um acórdão por unanimidade.
Foi assim que o TRF-4 ratificou a condenação de Lula pelo juiz Sérgio Moro e ampliou sua pena de 9 anos e meio para 12 anos e um mês, tornando a candidatura Lula à Presidência praticamente uma ficção. Condenado em segunda instância, réu em seis outros processos e indiciado em mais três, Lula não tem a mínima condição de se candidatar nem a ministro do Trabalho na vaga da deputada Cristiane Brasil, quanto mais a presidente.
Como previsto, houve manifestações tímidas a favor da condenação e protestos ruidosos, e vermelhos, contra. Mas o mundo não acabou, o país não parou e a vida continua, com a previsão de recursos na Justiça e uma frenética rearticulação das campanhas, a começar, claro, no PT.
Lula esgotou uma das suas armas mais poderosas tentando “sensibilizar” o TRF-4: a pressão dos movimentos alinhados. Logo vai perceber que politizar suas dificuldades na Justiça dá munição a sua tropa, mas não muda a realidade. Se há sobrevida, é à custa dos recursos no próprio TRF-4, no STJ e no Supremo, mas eles não reabrem a discussão do mérito, do conteúdo do inquérito, apenas possibilitam questionamentos de forma. Esticam a agonia, mas não mudam os fatos e Lula deve concentrar energias para não parar na cadeia.
A grande dúvida é se muitos que apoiam Jair Bolsonaro por medo de Lula se sentirão liberados para opções menos radicais e se os que votam no PSDB pela polarização com o PT buscarão novos caminhos. A saída inevitável do líder das pesquisas mexe bastante o tabuleiro eleitoral, mas o resultado era profundamente incerto com Lula e continua profundamente incerta sem ele.
Marco Aurélio Nogueira: Um julgamento para flertar com a História
Desçam todos, por favor. Faremos uma pausa. Passado o dia de hoje, 24 de janeiro, não haverá novo tempo nem outra época. A vida será a mesma. Com ou sem condenação, a democracia permanecerá, as regras do jogo não serão alteradas, as liberdades não falecerão, eleições continuarão a acontecer. Entre choros, palmas e velas, a institucionalidade jurídico-política prevalecerá, radicalismos à parte, que fazem parte do jogo. A viagem seguirá, após a parada obrigatória. Passageiros continuarão inquietos e divididos, mas seguirão em frente, refrescados uns, pilhados outros. O destino ainda não será vislumbrado, mas todos saberão que ele está logo ali, nas urnas de outubro.
Passado o julgamento, alguma redefinição terá de se impor, ainda que o clima de dramatização persista. Não mais o crime, a culpa ou a inocência, mas o futuro dos personagens, seu potencial e sua razão de ser. Reiterada a condenação de Lula, o PT judicializará a política, concentrando-se numa discutível batalha jurídica a ser travada nos tribunais. Absolvido o ex-presidente, o partido será vitaminado e voltará a ter chances de mostrar o que propõe para o país, além de Lula.
A tese partidária é que, com a condenação, “não teremos mais normalidade institucional no Brasil”, como diz Gleisi Hoffmann, sem se dar conta do tamanho das labaredas que carregam suas palavras. A perspectiva é tão burra politicamente que não é de se acreditar que todos os petistas pensem do mesmo jeito. Afinal, se as eleições serão uma “fraude”, como reza a cartilha, o certo seria ignorá-las. O partido, porém, nem pensa nisso.
O fato, mal processado sobretudo pelos petistas, é que Lula é só a ponta de um gigantesco iceberg, no qual se abraçam políticos de praticamente todos os partidos brasileiros, de centro, direita e esquerda. Todos estão sujos, mas só Lula estaria a pagar o pato? O problema é que sem Lula a esquerda não sabe se orientar. A direita tem vários nomes, além de ter, também, fortalezas muito mais poderosas para resistir ao cerco da Lava Jato.
A esquerda não pode cometer deslizes de corrupção, nem falcatruas, nem levar vantagens pessoais, nem trambicar com os poderosos, nem manter relações promíscuas e não transparentes com quem quer que seja. Se faz isso, deixa de ser esquerda, converte-se numa vertente degenerada da esquerda, tendo ou não consciência dessa opção.
A esquerda dominante não admite isso. Minimiza a sujeira que acumulou quando esteve no poder. Alegar que não há provas suficientes nem crimes é fazer como o avestruz. É desrespeitar a inteligência alheia.
Não se trata somente de Lula. Ele está no centro, domina a planície, é tratado como um semideus imune a críticas. É visto como um raro talento político e os mais empolgados a ele se referem como “o maior líder popular da história”. Lula não se constrange de ser mitificado, talvez na expectativa de que a idolatria ajude a iluminar o caminho da salvação. Não admite ter errado e dormido no ponto no caso do tríplex: como então, uma pessoa rica não pode comprar um apartamento de 1 milhão de reais? Sua opção por não ter propriedades imobiliárias à altura de suas rendas e posses levanta mais suspeitas que aplausos, e seus advogados erraram feio ao não alertá-lo para isso.
O problema é que os que patrocinam e endeusam Lula comprometem parte importante do campo progressista. Não se dão conta disso. Engajam-se, PT à frente, numa viagem de destino impreciso, mas que não poderá seguir roteiros já pisados anteriormente. Ficam paralisados, como a rã diante da luz. Mas se mexem sem cessar, sem um foco claro e sem uma mensagem sintonizada com as carências do pais.
Deixam de perceber que, se não souberem ir além das idiossincrasias e agruras do líder, se não forem maiores do que ele, perderão autoridade e força moral.
Dilemas existenciais
Seria então o momento ideal de se pôr a mão na consciência e resolver alguns dilemas de tipo existencial. Há perguntas incômodas, que não querem calar.
Não haverá mesmo opção melhor, em termos políticos? Não valeria a pena virar o disco e ouvir as canções do lado B? Quem ganhará e quem perderá com a insistência em manter tremulando o estandarte da redenção? Do que necessita o País real? De que homens e mulheres, de que ideias, valores e programas, de quais compromissos? Vamos permanecer pendurados no mesmo mastro, alegando que nele se decide o futuro da Humanidade, que nele estaria inscrito o segredo da democratização brasileira? É isso que chamamos de Esquerda do século XXI?
O principal dilema de Lula e do PT é saber o que fazer no dia seguinte. Não há plano alternativo se Lula for impedido de concorrer. A estratégia é esticar a corda até o limite, manter o mito vivo e sensibilizar o eleitorado para, eventualmente, receber de braços abertos o ex-presidente sofrido e calejado, ou um seu sucessor, fresco de tinta. O espectro de uma segunda Dilma passeia pelo campo petista, mas nem o partido nem a militância parecem preocupados com isso. Para eles, a política deixou de ser praticada com os olhos no interesse mais geral. O importante é salvar o patrimônio acumulado, mantê-lo como um trunfo, um recurso para batalhas vindouras. “O PT vai para o tudo ou nada com Lula”, falou Jilmar Tatto, vice-presidente do partido em São Paulo.
Não se trata de defesa ou solidariedade ao velho chefe cansado de guerra. Mas de estratégia política. Com seus limites, sua frieza e sua indiferença pelas consequências. O PT não delineia qualquer alternativa e nem ela surge a partir de fora dele.
Há outro dilema, não exclusivo do PT e ainda mais decisivo. Quem pode determinar se Lula é ou não culpado? Nas democracias, é o sistema judicial quem decide isso. Sim, Moro, os tribunais, o TRF-4, o STF – essas instituições mesmas, que estão sendo postas em dúvida pelos defensores do ex-presidente. O dilema, aqui, é se se deve ou não aceitar tal prerrogativa institucional. Elas só seriam legítimas se prendessem todos os larápios ao mesmo tempo, de uma só vez? Ou também é razoável que se hierarquizem investigações e penas? Pessoas especiais devem ter tratamento especial? Devemos ou não respeitar a Justiça, ou ela está irremediavelmente maculada pela “direita” e pelo “grande capital”?
A melhor condenação que Lula poderia receber seria mesmo nas urnas: o povo desconstruindo o mito, mostrando ter assimilado a mensagem da Lava Jato, fazendo livremente suas escolhas. Mas, caso venha a concorrer estando condenado judicialmente, o precedente será complicado demais: mostrará que a Justiça não tem força moral e institucional para controlar os demais poderes, que não há mais o império da lei, que a própria lei não vale para todos.
Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Mas é o que se tem para hoje, na conturbada área da esquerda dominante. Tema para ser considerado com atenção.
* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política na Unesp
Eliane Cantanhêde: Aparelhada e abusada
Desvios e aparelhamento da CEF jogam bancos públicos na fogueira da Lava Jato
As revelações sobre a Caixa Econômica Federal trazem à tona como os bancos públicos não escaparam do assalto à administração direta, às estatais e aos fundos de pensão. Regras de governança? Pra quê? E, sem regras de governança, a CEF foi virando mais entre tantas casas da mãe Joana, como a Petrobrás. Aparelhada, abusada, a instituição passou a servir mais aos poderosos de plantão do que à população brasileira.
Por que um banco público precisa de 12 (12!) vice-presidentes? Para acomodar o máximo de apadrinhados políticos? Cada um responda com base no que souber, achar ou quiser achar, mas o fato é que a CEF é alvo de três operações da PF, Patmos, Sépsis e Cui Bono?, sem contar uma quarta, a Greenfield, sobre desvios no Funcef, o fundo de pensão dos funcionários.
Elas apuram empréstimos duvidosos, em torno de figuras bem conhecidas, já atrás das grades, como Eduardo Cunha e os ex-ministros (de Dilma e Temer) Geddel Vieira Lima e Henrique Eduardo Alves. E não é que Geddel, que mantinha um apartamento só para caixas e malas de dinheiro, foi vice da Caixa?!
Era a esse tipo de mandachuva que os demais vices, diretores e funcionários respondiam, sem falar que, indicados por PR, PP, MDB e sei lá mais o quê, os vices tinham de pagar favores, geralmente com juros, correção monetária e muita generosidade.
O resultado é quase aritmético: assim como na Petrobrás, o índice de corrupção na CEF corresponde ao tamanho do rombo, que ninguém sabe como pagar. A ideia mais criativa é abocanhar R$ 15 bilhões do FGTS, que não dá em árvore e não é dessa nem de nenhuma outra mãe Joana, mas efetivamente tem dono: o trabalhador brasileiro.
Os governos desfalcam e criam rombos, e o trabalhador é chamado a arcar com o prejuízo. Mas não fica nisso. Conforme o Estado, de um lado a cúpula da Caixa quer meter a mão na poupança do trabalhador; de outro, articula (ou articulava?) um aumentozinho camarada, de 37%, justamente para sua multidão de vice-presidentes.
Então, além de serem 12 e além de quatro deles terem sido afastados por suspeita de corrupção, os vice vão (ou iriam?) ter uma remuneraçãozinha de R$ 87,4 mil por mês, incluídos “ganhos por metas e desempenho”. A inflação ficou em 2,95%, o reajuste dos bancários foi de 2,75% e o teto constitucional, que vale até para o presidente da República, é de R$ 33,7 mil.
É ou não o fim da picada? Mas os “donos” da Caixa – o PP (que indicou Gilberto Occhi para a presidência) e, quem sabe, o próprio MDB de Temer – já estão em pé de guerra contra o estatuto aprovado na sexta-feira com novas regras para nomeação dos vices. Armados até os dentes, os partidos avisam que as vagas são deles e ninguém tasca. Leia-se: ou mantêm as vagas ou não votam a reforma da Previdência.
Onde a Lava Jato meteu a mão, lá estavam falcatruas na administração federal, nos governos estaduais, na principal estatal e nos fundos de pensão, mas os bancos públicos só sofreram arranhões. No Banco do Brasil, o escândalo ficou praticamente no ex-diretor Henrique Pizzolato e no ex-presidente Aldemir Bendini, também ex-Petrobrás. Mas é a CEF, o “banco do povo”, que joga o setor na fogueira.
Por falar nisso, a Lava Jato escarafunchou as maiores empreiteiras e remexe agora as entranhas do maior produtor de carne, mas nunca chegou perto das instituições financeiras. Como se fosse possível desviar bilhões, Brasil e mundo afora, sem passar pelos bancos.
Aquilo roxo. O lançamento de Fernando Collor à Presidência parece piada (de muito mau gosto), mas aumenta o preço do seu partido no leilão do Centrão e é um soco no estômago de quem liderou seu impeachment. O Brasil derrubou Collor para dar no que deu?
Rodrigo de Lemos: Intelectuais e ideólogos no debate público: um pensamento a partir de John Stuart Mill
O discurso estereotipado e o empenho em esconder suas incertezas são as marcas do ideólogo. O equilíbrio entre o distanciamento e o engajamento é a virtude do intelectual.
Em On Liberty (1859), John Stuart Mill funda sua defesa da discussão pública irrestrita em três possibilidades. A primeira é a de que a opinião dominante em uma sociedade esteja errada, e a opinião minoritária, certa. Quantas posições correntes já passaram a ser tidas por falsas, quantas posições marginais se impuseram como verdadeiras? Mill dá como exemplo o próprio cristianismo, tão caro ao leitorado que ele buscava persuadir, opinião perseguida nos primeiros séculos mesmo por um imperador virtuoso como Marco Aurélio e reabilitada nos dois milênios seguintes. Não faltam na História amostras do intelecto humano em sua falibilidade.
A suposta infalibilidade de alguma opinião não seria melhor argumento contra a liberdade de pô-la em questão. Mill reconhece como natural que, com o tempo, algumas opiniões sejam reconhecidas como imunes: quem gostaria de voltar atrás na convenção de Genebra sobre o tratamento humano dispensado a prisioneiros de guerra? Ainda assim, pode acontecer de mesmo opiniões tidas universalmente como verdadeiras perderem algo se furtadas à discussão. Seu confronto com supostas falsidades serve, quando não mais, para animá-las com energias renovadas. Sem o aguilhão da disputa, seu assentimento pode ser mais automático do que racional. É possível que ela se congele em dogma, tenha seu poder persuasivo diluído, degenere em um preconceito frio e impensado. Por isso, pode haver ganho em discuti-la.
Finalmente, e esse seria o caso mais comum, posições conflitantes podem ser ambas parcialmente verdadeiras. Seria assim com opiniões populares sobre temas não palpáveis pelos sentidos: para Mill, “elas são parte da verdade; às vezes uma parte maior, às vezes menor, mas exageradas, distorcidas e separadas de verdades pelas quais devem ser acompanhadas e limitadas”. Seria assim também com a disputa política em sociedades democráticas; nelas, a vida pública se beneficia da existência de partidos “da estabilidade ou da ordem” e partidos “do progresso ou da reforma”, cada qual suplementando as lacunas na verdade do adversário. Ao mesmo tempo, por meio da resistência oferecida pelo opositor, eles podem guardar nos “limites da razão e da sanidade” pela lembrança constante das suas próprias deficiências.
Mill desejaria que grupos políticos contrários expandissem sua “apreensão mental” para se tornarem enfim partidos “igualmente da ordem e do progresso, sabendo e distinguindo o que cabe ser preservado e eliminado”. Não seria, em parte, o que ocorre com os grandes partidos de governo em democracias maduras? É comum que marxistas critiquem as agremiações de centro-esquerda inglesas, alemãs ou francesas como sendo em verdade liberais e que direitistas radicais acusem os partidos conservadores nesses mesmos países de serem na prática indistinguíveis dos socialistas.
Críticas desse tipo manifestam a dificuldade humana, apontada por Mill, de lidar com esses confrontos entre pontos-de-vista contrários, não porque apenas um é verdadeiro, mas porque ambos o são em parte e de modos distintos. “Na mente humana”, ele observa, “a unilateralidade é a regra, e a multilateralidade, a exceção”. Essa tendência à unilateralidade faz-se evidente quando de uma revolução de opinião. Raros são os casos em que, como no exemplo das democracias maduras, os opostos (ordem e progresso, livre-mercado e bem-estar social) se sintetizam em um centro cujas diferenças são feitas de mais ou menos sutis modulações. A dificuldade com a multilateralidade leva-nos a destronar uma verdade parcial por outra – que durará ela também o tempo que durar o entusiasmo ou a paciência com o que há nela de lacunar.
Para ilustrar esse movimento, Mill retorna a essa fase fundadora da Modernidade que foi o século XVIII. Os homens cultos de então se teriam perdido em uma admiração pela civilização e por si mesmos como protagonistas desse século em que as artes, as ciências e a literatura teriam superado as conquistas dos Antigos. Rousseau teria surgido para lembrá-los o valor da natureza e da frugalidade, mas sua obra não apenas corrigiu o que havia de excessivo no sentimento prevalente; antes, carregou consigo a opinião na direção contrária, à denúncia das hipocrisias intrínsecas à vida civilizada e ao elogio da vida bucólica, das emoções genuínas e simples.
Também o Brasil contemporâneo parece atravessar uma dessas revoluções de opinião em que é contestado muito do que passava por consenso entre as classes educadas desde a democratização. As redes sociais, a crise econômica, a violência urbana, os escândalos de corrupção, a onda internacional de populismo – as lufadas são muitas que fizeram girar o cata-vento da opinião pública. O arremedo de Estado social imaginado em 1988 curva-se sob as críticas que põem em questão sua sustentabilidade financeira. A retórica dos direitos humanos perde em poder de persuasão numa sociedade temerosa da violência. A ascensão de grupos religiosos desafia a laicidade e os direitos minoritários que ela assegura.
Essas perturbações incitam todos os lados a intervirem com veemência na discussão política. Daí a necessidade de discernir a qualidade dessas intervenções. Muito dessa agitação favorece aqueles desejosos de presidir, por quaisquer meios que sejam, à mutação da opinião dominante. Os que querem resistir à mudança não se mostram menos aguerridos. Em ambos os casos, a unilateralidade identificada por Mill é um recurso amplamente utilizado. Trata-se, para intelectuais que sustentam visões extremas, de reduzir debates entre posições opostas parcialmente verdadeiras a um combate entre uma opinião completamente certa (a sua) e outra completamente falsa (a alheia). É o que ocorre quando sabemos de antemão a posição de um site, de um escritor ou de um grupo de intelectuais sobre um tema polêmico antes mesmo de lê-los. O ideólogo se deixa reconhecer pela estereotipia do discurso e por seu empenho em esconder suas falhas possíveis, suas incertezas.
A abundância de personagens desse tipo na arena política não deveria fazer com que os menos comprometidos se recolham ao espaço privado, abandonando os ouvidos públicos a demagogos. A virtude primeira do intelectual em tempos conflagrados deve ser o equilíbrio – difícil – entre distanciamento e engajamento. Trata-se de apreciar o debate público como que de cima, com sensibilidade à verdade do adversário, por parcial que ela seja. Simultaneamente, é indispensável conservar a capacidade de intervir sem abandonar a consciência do que há de precário na sua própria posição. Seu desafio é transcrever o menos imperfeitamente possível para a discussão pública aquela constatação de Montaigne sobre o valor do debate entre simples particulares unidos pela “causa da verdade”: me instrui aquele que me contradiz. Remonta aos Ensaios do filósofo gascão a preferência liberal, expressa também na filosofia Mill, por aquelas verdades que nascem da colaboração entre adversários honestos e que sobrevivem às contusões e às feridas da contenda.
Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.
Celso Ming: A Embrapa envelhecida
Muita coisa no setor público lembra um verso de Belchior cantado por Elis Regina: “O passado é uma roupa que não nos serve mais”. É, por exemplo, o caso da Embrapa.
Criada em 1973, a Embrapa cresceu, virou referência em pesquisa agropecuária e ganhou posição de destaque na consolidação do agronegócio brasileiro. Escreveu uma história de orgulho, mas agora está fragilizada porque se nega a admitir que não é mais a mesma.
No último dia 5, o sociólogo Zander Navarro, ainda como pesquisador da Embrapa, fez críticas aos rumos da empresa, em artigo no Estadão. Apontou excessos, de burocracia e de pesquisas em desenvolvimento, mais de 1,1 mil. Dias depois, foi demitido, sem justificativa pública. Entre os gestores da estatal, circulou documento em que o presidente da Embrapa, Maurício Lopes, alegou “comportamento irresponsável e destrutivo” por parte de Navarro.
Desde o tempo dos profetas do Antigo Testamento sabe-se que o corporativismo não gosta de críticas e quase sempre se defende com atitudes autoritárias. O vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira, Pedro de Camargo Neto, é um dos que denunciam o comportamento: “A Embrapa, tão elogiada no passado, agora acha que não deve prestar contas para a sociedade”. Para ele, o artigo teve o mérito de expor graves problemas.
Já havia sinais de alguns desses problemas por aí. Em entrevistas recentes, o próprio presidente da Embrapa admitiu que o desenvolvimento da pesquisa agropecuária do Brasil ficara para trás e recomendou que a empresa encontre novas fontes de financiamento para não depender só de verbas públicas. O orçamento da empresa, de R$ 3,3 bilhões por ano, provém do Tesouro. Hoje, cerca de 70% da receita vai para o pagamento dos funcionários, dos quais apenas 45% são pesquisadores e técnicos.
Especialista na área agro, o economista José Roberto Mendonça de Barros adverte que as críticas de Navarro têm grande importância, ainda que possam ter fugido do tom. E acrescenta que o maior problema da Embrapa é de governança. “A empresa tem história respeitável, mas precisa assumir novas prioridades. Mantém número excessivo de trabalhos teóricos, que deveriam ser das universidades, mas se afasta das pesquisas aplicadas, seu verdadeiro objetivo. É preciso repensar o incentivo aos pesquisadores.”
O professor da Faculdade de Economia da USP Decio Zylbersztajn admite que a Embrapa já não é a mesma, mas não pode ser apontada como origem dos males da pesquisa no agronegócio brasileiro. Para ele, a Embrapa é vítima de problema mais amplo: a falta de uma política nacional de incentivo à pesquisa. Essa é a principal razão pela qual a rede pública de ensino superior não produz estudos convergentes que tenham alguma relevância internacional.
O ex-ministro da Agricultura Alysson Paolinelli, um dos criadores da Embrapa, não quer acirrar os ânimos: “Sou bombeiro, que procura apagar o incêndio antes que se espalhe”. Para ele, as críticas podem restringir o fôlego de que a empresa precisa para avançar.
Resta saber se evitar o debate e punir autoritariamente os críticos não produzem efeito contrário: em vez de acabar com os focos de fogo, jogam mais lenha na fogueira.
Luiz Sérgio Henriques: A difícil identidade do petismo
Seu militante típico se move à força de slogans e de uma visão maniqueísta do mundo
Mesmo sem nunca ter tido a carga antissistêmica dos antigos partidos comunistas, o petismo, surgido essencialmente de um núcleo sindical moderno, vocacionado simultaneamente para o confronto e para a negociação trabalhista, continua a responder por boa parte das turbulências da vida brasileira nestes 30 anos de País redemocratizado. Por isso, constitui para intérpretes e comentaristas um desafio que se torna ainda mais agudo em momentos de espesso nevoeiro, como este que temos atravessado, com os fatos relativos a seu maior dirigente, novamente candidato presidencial contra todo e qualquer empecilho legal que lhe possa ser oposto, segundo a vontade reiterada dos organismos partidários e de sua “sociedade civil”.
Em vão procuramos a identidade daquele partido, pouco nítida mesmo após os sucessivos períodos à frente do Poder Executivo, interrompidos por um impeachment traumático. O controle de inúmeros governos municipais e estaduais, bem como as amplas bancadas legislativas, para não falar no lastro eleitoral consistente, parecem não ter trazido aquele mínimo de cultura de governo que caracteriza os agrupamentos conscientes de sua própria força e capazes, por esse motivo, de dirigir todo um país, cumprindo uma função nacional que só se alcança com a superação de vícios de origem, limites programáticos e sarampos ideológicos. Traços, em suma, que os leninistas de antes, com todo o pathos revolucionário que os abrasava, chamavam de doença infantil, cuja irrupção os isolava e criava, à direita, um virulento espírito reacionário de massas.
A comparação sempre imperfeita com os comunistas – porque, repetimos, quando falamos de PT, de comunismo não se trata, sem contar que hoje nem sabemos delinear minimamente qualquer ordem anticapitalista – serve ao menos para afirmar que tais distantes antepassados, em certos casos, desenvolveram um certeiro e valioso sentido institucional. Não se conta a história da Itália moderna sem o PCI, permanece digna de respeito a cautela estratégica do PC chileno nos tempos de Allende, deu provas de serenidade o partido espanhol na transição pós-franquista. E o pequeno e clandestino PCB, durante o regime militar, abriu-se para o liberalismo político e a democracia representativa, que alguns de seus setores, em certo momento, passaram a considerar patrimônio de qualquer esquerda que viesse a se firmar a partir daí.
E nem nos aprofundemos na trajetória social-democrata, o outro ramo dos partidos de origem operária que poderia servir como termo de comparação. Aqui, a plena adesão ao programa reformista foi menos acidentada e mais em linha com o Ocidente político, resultando na construção de algumas das mais interessantes sociedades de que até hoje se tem notícia. Mesmo que o primeiro desses ramos da esquerda do passado tenha desaparecido e o segundo atravesse dificuldades cuja extensão não conhecemos, o fato é que se trata de um legado teórico-político a ser cuidadosamente avaliado na nova configuração que o mundo assumiu neste início tumultuado de século.
O petismo não parece ter-se preparado para esta crucial avaliação, que não é só conceitual, mas envolve modos de ser e agir na sociedade, requisitos de lealdade institucional e compromisso firme com a renovação de hábitos e costumes. Bem mais organizado do que os partidos tradicionais, provincianos e com escassa vitalidade interna, pôs essa sua capacidade organizativa a serviço de uma subcultura sectária, voltada para a cisão e o confronto. Seu militante típico se move à força de slogans e de uma visão maniqueísta do mundo. Muitos de seus intelectuais se soldam à massa dos militantes nesse mesmo plano, abdicando de qualquer esforço de educação democrática. Ao ver e ler uns e outros, podemos ter o sentimento de estar a bordo de uma máquina do tempo: um intelectual comunista dos anos 1950, treinado no catecismo mais elementar, não faria diferente, com a denúncia repetida contra agentes do imperialismo, oposições antinacionais e traidores da pátria, que certamente não teriam lugar na democracia popular que então se propunha com fé e agora retoricamente se quer atualizar.
O trauma comunista do “culto à personalidade” não está superado. Em vez de grupos dirigentes amplos, capazes de autorrenovação constante e porosos ao surgimento de novas elites partidárias, seguem intactos os mecanismos daquilo que mestre Graciliano, ele mesmo contraditoriamente prisioneiro do culto de Prestes, uma vez chamou de “canonização laica”. E, agora, os problemas judiciais em torno do líder canonizado nada mais seriam do que a continuação do golpe que teria vitimado o governo popular de Dilma Rousseff, ainda que o PT e vários de seus intelectuais “orgânicos” tenham requerido o impedimento de todos os presidentes, de Sarney a Fernando Henrique, sem exceção. Tertium non datur: ou bem o impeachment é golpe, e nesse caso o petismo deve admitir um golpismo renitente, ou bem é um remédio amargo, com danos consideráveis, mas plenamente integrado aos dispositivos legais.
Nesse mesmo sentido, estamos por todos os títulos longe do apregoado “estado de exceção” – cuja denúncia em foros internacionais, falsa e artificial, denota a persistência do desprezo que a parte atrasada da velha esquerda votava às liberdades civis e políticas, sob as quais, depois de árdua travessia, vivemos desde 1988. Como se dizia de Weimar e podemos dizer de nós mesmos, impossível ter uma democracia sem democratas. O legado a ser mantido, inclusive e principalmente pela esquerda, é o assinalado pelos valores de um patriotismo de novo tipo: o patriotismo constitucional. Ele é que nos ensinará a nutrir sempre, de modo imperturbável, nojo e horror por todas as ditaduras, como queria um grande liberal. Mesmo as que, por aí, mal e toscamente se disfarçam de progressistas.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘obras’ de Gramsci
Alberto Aggio: De Beijing a Roma, os dilemas do pós-comunismo
O ex-PCI aprofundou a democracia e a China se aferra ao nacionalismo autoritário histórico
No ano passado relembraram-se os cem anos da revolução bolchevique, referência maior do chamado “comunismo histórico”. Muitos livros foram publicados, um sem-número de artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo. Seria excessivo imaginar que uma revisão daquele processo histórico, por mais bem feita que fosse, tivesse o condão de superar todas as polêmicas em torno dele. O dado positivo, contudo, é que a “celebração” da efeméride não produz mais o mesmo efeito. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove as divisões que antes promovia entre os simpatizantes do seu ideário.
Imposto o comunismo na Rússia, não apenas o país foi revolvido, como o mundo passou a ser impactado por um sistema antagonista do capitalismo que se transformou num fenômeno global, influenciando vários países e milhões de pessoas. A crença no poder dos comunistas tornou seu movimento uma força global, não havendo no século 20 nenhuma dimensão da vida que não tenha sofrido sua influência. Mas esse movimento guardava paradoxos que, com o tempo, lhe seriam fatais.
Talvez não haja síntese mais fiel à glória e à tragédia do comunismo do que a formulada por Silvio Pons no seu livro A Revolução Global (Fap/Contraponto, 2014). Para ele, o comunismo se constituiu simultaneamente em “realidade e mitologia, sistema estatal e movimento de partidos, elite fechada e política de massas, ideologia progressista e dominação imperial, projeto de sociedade justa e experimento com a humanidade, retórica pacifista e estratégia de guerra civil, utopia libertadora e sistema concentracionário, polo antagônico da ordem mundial e modernidade anticapitalista. Os comunistas foram vítimas de regimes ditatoriais e artífices de Estados policiais”.
Entre os historiadores, em sua maioria, há um consenso quanto ao fracasso do “comunismo histórico”, levando em conta os objetivos que nortearam suas estratégias. De um ponto de vista analítico, não se aceita mais quem busque “erros” específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e postas como parte dos desafios e dilemas que se afirmaram no processo histórico. É a história in acto o que importa aos historiadores e aos demais intérpretes, e não uma discussão ideológica e justificativa. O que torna evidente a virada na perspectiva de muitos pesquisadores é o fato de a chamada “história do cotidiano” ter garantido o seu ingresso nessa historiografia, retirando centralidade da discussão sobre poder revolucionário e colocando sob novas luzes a história de homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo.
O resultado não é em nada surpreendente. Diversos investigadores têm demonstrado que o comunismo foi incapaz de inspirar uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. Concluem que a revolução bolchevique e o poder soviético não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria em uma “hegemonia civil”) que lhe pudesse dar sustentação. O julgamento é assim categórico e definitivo.
Enganam-se os que pensam que foi uma questão de tempo. Que o capitalismo se afirmou durante séculos e o comunismo necessitaria ser pensando nessa chave. Equivocam-se. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Hoje, numa nova fase da humanidade, o comunismo não é mais do que história e, por essa razão, não há como sustentar que sua prática e seus horizontes possam ainda fazer sentido para os homens e mulheres do século 21.
Entretanto, essa história não está inteiramente arquivada, por conta da fulgurante presença da China na economia global. A sobrevivência do “comunismo capitalista” chinês, baseado num regime ditatorial, que instaurou o capitalismo como modo de produção material, constitui-se hoje no maior enigma quanto aos destinos do pós-comunismo.
Essa alternativa estava inteiramente descartada para os partidos comunistas no Ocidente, em particular para o maior deles, o Partido Comunista Italiano (PCI), ao abandonarem, no início dos anos 1990, o nome, seus símbolos e, especialmente, o que era reconhecido como sua “dupla alma”, isto é, a adesão ao comunismo soviético, (no caso do PCI) sobreposta à defesa da República democrática italiana, vinda à luz com sua colaboração ativa. Acabou prevalecendo o segundo termo da equação como orientação que seguirá presente até o tramonto do comunismo italiano.
A fase pós-comunista do partido de Gramsci, Togliatti e Berlinguer, ao contrário dos chineses, aprofundou a democracia ao se estabelecer como uma força política reformista voltada para a modernização do país e defesa da União Europeia. Abrindo-se para diferentes movimentos e culturas políticas, dentre elas os católicos progressistas, assumiu várias denominações: Partito Democratico di Sinistra (PDS), Democratici di Sinistra (DS) e, por fim, Partito Democratico (PD), nos últimos dez anos.
O pós-comunismo chinês aferra-se ao legado nacionalista e autoritário do comunismo histórico ao mesmo tempo que abre sua economia para o mundo. Essa linha se aprofunda de Deng Xiaoping a Xi Jinping, sem desvios.
Mesmo diante das incertezas da Europa, o caminho do PD parece ser o de superar a fase pós-comunista buscando combinar a ética de defesa do trabalho dos antigos comunistas com o europeísmo social-democrático e sua vertente democrático-reformista. A preponderância de uma ou outra vertente ora o empurra para a oposição, ora lhe abre possibilidades de ser governo.
Não mais comunista nem sequer pós-comunista, o PD talvez seja, na Europa, a possibilidade de um novo sujeito político. Imersa no pós-comunismo, a China parece estar longe disso.
Murillo de Aragão: Sobre culpas e omissões
A questão da segurança pública até hoje não foi tratada com a prioridade que a cidadania merece
As crises na segurança pública repetem-se periodicamente no Brasil. Ainda que os índices melhorem aqui e ali, em 2016, por exemplo, registraram-se quase 70 mil mortes por homicídio e latrocínio no País. Rebeliões em presídios são recorrentes. Greves de policiais também, assim como o pedido de participação das Forças Armadas na segurança dos Estados.
A sequência de eventos, que só pioram a cada ano, alimenta o debate sobre de quem seria a culpa por esta situação. União e Estados acusam-se mutuamente. Já especialistas dizem que ambos erram, ou seja, a responsabilidade seria de todos. É verdade. A culpa é de todos, e não só dos Estados e da União. A culpa também é, portanto, das elites brasileiras, que tratam o tema de forma episódica.
Quem pode contrata segurança privada e usa carro blindado. Quem não pode sofre. E o tema não chega às mesas de decisão por indiferença das elites e omissão da classe política. As próprias categorias profissionais envolvidas em geral só se mobilizam para tratar de interesses da corporação, pouco contribuindo para o aprimoramento das políticas de segurança no País. Só em Brasília, mais de dez delegados de polícia devem se candidatar a deputado distrital e federal neste ano. A agenda preferencial, porém, é equiparar salários com a Polícia Federal, e não melhorar a segurança pública.
Ao permitirem que o corporativismo prevaleça sobre as agendas do bem comum, nossas elites assumem culpa grotesca. Semelhante à culpa das elites venezuelanas, que fracassaram e deixaram o país chegar às mãos de Hugo Chávez. A Venezuela paga até hoje pela omissão das elites. Quando o Brasil flerta com Jair Bolsonaro, está trilhando um caminho semelhante ao percorrido pelo país vizinho.
Paradoxalmente, temos uma imensa responsabilidade e um cuidado extremo com o sistema financeiro. Nosso Banco Central é um dos melhores do mundo, assim como o sistema adotado é um dos mais lucrativos e seguros do planeta. Caso levássemos para a segurança pública 30% da competência aplicada às finanças, a situação no País seria muito melhor.
Nossas elites se omitem quando não percebem o dano que a insegurança pública causa à economia. Nosso turismo é ridículo perto de nossas potencialidades. Pessoas deixam de sair de casa por medo de assalto. Empresários dos ramos relacionados ao turismo deveriam ser os primeiros a se mobilizar para melhorar a segurança no Rio de Janeiro, por exemplo.
Existem ainda duas tradições gravíssimas: a apologia da cultura do crime e a criminalização da atividade policial. O policial, em princípio, é considerado um problema, até que se precise dele. Há um enorme preconceito, em especial em relação à Polícia Militar. É verdade que quase todos os dias se noticiam mortes acidentais de cidadãos por causa de confrontos com policiais, mas desqualificar a atividade é ser contra o Estado de Direito.
As autoridades tampouco cumprem o seu papel. A polícia prende, a Justiça solta. E milhares de presos aguardam julgamento há anos: em um terço das prisões 60% dos presos estão nessa situação. E não há a devida indignação a esse respeito. O debate é enviesado, como no recente episódio do indulto de Natal.
A distribuição de salários dentro do sistema é absolutamente desproporcional. Compare-se o salário médio de um policial militar com o de um promotor. O Ministério Público, como defensor da sociedade, deveria ser mais atuante no que diz respeito a essas distorções. Verbas postas à disposição pelo governo federal não são usadas pelos Estados por falta de planejamento e excesso de burocracia. Apenas 4% dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional foram utilizados em 2016. É incrível a omissão e incompetência dos Estados, que não sabem administrar seus respectivos sistemas prisionais nem sequer utilizar as verbas federais disponíveis para a segurança pública.
A Força Nacional, cuja concepção é muito boa para a nossa realidade, carece de recursos, de pessoal e de maior institucionalização. Iniciativa para melhorar esse quadro foi arquivada pelo Congresso. Tampouco há investimento significativo no sistema de inteligência, apesar de avanços recentes, com maior engajamento dos serviços de inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal no combate ao crime organizado.
O Congresso demora a dar a devida resposta à questão. Temos iniciativas que deveriam ser postas em votação, como a proposta de emenda constitucional que estabelece para a segurança pública competência comum da União, de Estados e municípios. Deveríamos refletir sobre a unificação das Polícias Militar e Civil. Outra iniciativa é a criação de um sistema único de segurança pública, nos moldes do SUS, que integraria políticas, recursos e ações sob a supervisão do Ministério da Justiça ou de um Ministério da Segurança Pública. Tais propostas tramitam lentamente.
Devemos ir além e envolver municípios e comunidades em iniciativas como as que se veem, por exemplo, no Chile. Destaco a Segurança Ciudadana da Municipalidad de las Condes, que recentemente começou a utilizar drones para ampliar a vigilância da região. O desperdício de recursos do Fundo Penitenciário Nacional é uma prova de que não falta dinheiro. O que falta é planejamento e vontade política. Mas falta, sobretudo, participação da sociedade civil no debate e na alocação das verbas tanto da segurança pública quanto das Forças Armadas.
Vivemos tempos de guerra civil. E não é de hoje. Na guerra civil da Síria morreram, em 2016, cerca de 60 mil pessoas, menos do que no Brasil no mesmo período. A imagem das balas traçantes nos morros do Rio na virada do ano nos remete à guerra que estamos vivendo. E combatê-la é responsabilidade de todos. A questão, sob todos os pontos de vista – cultural, econômico, social e político –, até hoje não foi tratada com a prioridade que a cidadania merece.
* Murillo de Aragão é advogado, consultor, cientista político, professor, é doutor em sociologia pela UNB
Marco Aurélio Nogueira: Liberalismos
Manifesto que defende discurso liberal na economia e conservadorismo nos costumes trava a evolução do liberalismo político
Não é de hoje que se sabe que existe liberalismo na economia, na política e no plano dos costumes. Há muitos modos de ser liberal.
Nem sempre esses três focos estão em sintonia coerente. Como há ramos distintos no campo liberal – desde sempre dividido entre um liberalismo democrático e um liberalismo conservador, passando por um liberalismo liberal –, os liberais se distribuem num gradiente flexível, que muitas vezes surpreende e confunde, levando-os ora a flertar com modalidades suavizadas de socialismo, ora a pender para um conservadorismo vetusto, mais próximo da direita.
Os que se proclamam liberais podem, por exemplo, pensar a economia segundo os dogmas da doutrina (livre-mercado, afastamento do Estado, desregulação, privatização) e ficarem abertos a políticas igualitárias de distribuição de renda, direitos e autonomia individual. Nesse registro, podem ser favoráveis à atenuação da propriedade privada e à taxação das grandes fortunas. No polo oposto, podem ser liberais em economia mas “egoístas” socialmente e conservadores em termos morais, sacrificando a autonomia individual no altar da “ordem social”.
Um dos critérios empregados (por exemplo, por Norberto Bobbio) para resolver o enigma e organizar o campo liberal é a maneira como os liberais se relacionam com a democracia política. De modo simplificado, podemos tratar a democracia em termos mais substantivos ou mais formais, isto é, mais como igualdade ou mais como regras do jogo. Historicamente, foi assim que a democracia emergiu no mundo moderno, fato que levou a que todas as doutrinas se posicionassem diante de suas duas faces. Os liberais que se associam ao componente mais igualitário da democracia tendem a caminhar para a esquerda, os demais compõem o que se costuma de chamar de “centro liberal” ou caminham para a direita. Todos os liberais, porém, aceitam o princípio da igualdade perante a lei, a igualdade dos direitos, a igualdade das oportunidades e a igualdade na liberdade, ou seja, a liberdade que não colida com a liberdade dos demais ou que não ofenda a liberdade dos outros.
Democratas e liberais convergem, também, no que diz respeito à reiteração da soberania popular, cuja tradução histórica mais bem acabada é o sufrágio universal masculino e feminino. As ideias liberais encontraram assim no método democrático o critério para se aproximarem da democracia política, o que fez da democracia parte decisiva da evolução do liberalismo propriamente dito. Nasceram assim o liberalismo radical, liberal e democrático, e o liberalismo conservador, liberal mas não democrático. E, por extensão, surgiram democratas liberais e democratas não liberais, os primeiros mais preocupados em limitar o poder e os segundos, em distribui-lo.
Lembro tudo isso, esquematicamente, para dizer que não basta alguém se proclamar liberal para que o liberalismo flua de sua mente como água pura da fonte. Há diversos liberalismos.
Manifestação típica disso pode ser encontrada no “Manifesto” que o presidente do grupo Riachuelo, Flávio Rocha, lançou em Nova Iorque propondo uma candidatura presidencial que “tenha a coerência de um discurso liberal do ponto de vista econômico” e seja “conservador nos costumes”. O empresário afirma que sua intenção é sugerir que “chegou a hora de uma nova independência: é preciso tirar o Estado das costas da sociedade, do cidadão, dos empreendedores, que estão sufocados e não aguentam mais seu peso. Chegou o momento da independência de cada um de nós das garras governamentais”.
Ele vai além, criticando os candidatos até agora surgidos que, na sua opinião, até conseguem defender políticas liberais na economia, mas “tropeçam nas questões sociais”, mostrando-se reféns do que o empresário chama de “marxismo cultural”, uma formosa jabuticaba que floresce abundantemente no Brasil do conservadorismo.
Não sobra nem sequer para Bolsonaro, que na visão de Flávio Rocha se apresenta como conservador socialmente e “de esquerda na economia”. Também Luciano Huck não é bem visto pelo empresário, por não ser suficientemente conservador nos costumes.
Rocha preside o Movimento Brasil 200, que defende uma agenda aberta para o porte de armas e fechada para questões de gênero.
A manifestação demonstra a disposição de parte do empresariado brasileiro de se envolver mais diretamente na disputa política de 2018. Mas, ao misturar alhos com bugalhos e não separar adequadamente o joio do trigo, fazendo chegar ao público uma proposta nominalmente liberal mas de fato muito pouco liberal e quase nada democrática, o manifesto de Flávio Rocha contribui para aumentar a confusão em que o país está mergulhado. Trava, em vez de impulsionar, a evolução do liberalismo político entre nós.
Afinal, se há algo de que o Brasil necessita é de clareza de propósitos. De que liberalismo estamos mesmo falando? De qual democracia? Os doutrinadores de plantão precisam assumir plenamente os postulados de suas doutrinas perante os desafios da hora presente e do estágio civilizacional em que nos encontramos.
* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política na Unesp
Monica de Bolle: Talentos desvalorizados
Cerca de 77% das vezes, os livros de economia usam exemplos masculinos para explicar conceitos fundamentais
Em meio ao furor gerado pelos escândalos de assédio sexual nos Estados Unidos – assédio, não galanteios –, perdida ficou uma discussão para lá de urgente: o papel da mulher na academia, sobretudo na Economia. Na última reunião da American Economic Association, convenção que reúne milhares de economistas acadêmicos todo início de ano, houve uma sessão especialmente dedicada ao papel da mulher na economia e às evidências de discriminação que saltam aos olhos na profissão. Para o Brasil rebaixado devido às falhas da equipe de homens de Temer, pode ser que essa pareça discussão menor, sem sentido, bobagem. Não é.
Betsey Stevenson, professora da Universidade de Michigan, analisou a ocorrência de nomes e pronomes masculinos nos exemplos dos livros-texto mais utilizados nos cursos básicos de economia. Seus achados? Cerca de 77% das vezes, os principais livros de economia valem-se de exemplos com homens para explicar conceitos fundamentais: “Fulano de tal é um fazendeiro que vende trigo em um mercado onde há concorrência perfeita. Ele é, portanto, um tomador de preços”.
As mulheres aparecem apenas 18% das vezes, e, quando aparecem, são consumidoras, donas de casa, ou pessoas que sofrem a ação de outras – elas raramente aparecem como tomadoras de decisão e quase nunca são citadas como gestoras de política econômica. A única citada com frequência é a ex-dirigente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) Janet Yellen. Ela foi a primeira mulher a ocupar o cargo e ficou apenas um mandato na posição, tendo sido recentemente substituída por Jerome Powell, cujas credenciais acadêmicas e experiência como gestor de política econômica não chegam aos pés das de Yellen.
Passemos a outro artigo, o de Erin Hengel da Universidade de Cambridge. Hengel examinou o tratamento conferido às mulheres nas principais publicações científicas. Artigos acadêmicos de autoria de mulheres levam, em média, seis meses a mais para passar pelo processo de peer review – o controle de qualidade da academia. Evidentemente, esse resultado controla a qualidade do artigo e sua relevância científica. Ou seja, mulheres que produzem artigos com a mesma qualidade e importância que os homens enfrentam critérios mais rigorosos na avaliação de sua pesquisa.
Como a publicação em uma revista científica de ponta é a métrica fundamental a partir da qual a competência de um pesquisador acadêmico é avaliada, não surpreende que haja menos mulheres com status de professoras titulares nos principais departamentos de economia das mais importantes universidades americanas do que homens.
Por fim, o artigo de Tatyana Avilova, da Universidade de Columbia, e de Claudia Goldin, da Universidade Harvard. As autoras mostraram que nos cursos de graduação nos EUA há menos mulheres do que homens em uma razão de 1 mulher para cada 3 homens. Tamanha diferença não se constata em disciplinas percebidas como majoritariamente masculinas, como a matemática, a física, a engenharia. Depois de controlar para diversos fatores, concluem as pesquisadoras que há algo nos cursos de economia que afeta o interesse das mulheres em seguir a carreira.
E o Brasil? Não há no Brasil pesquisas equivalentes. Contudo, um passar de olhos pela composição dos quatro mais importantes departamentos de economia do País é revelador. Entre 80 pesquisadores e professores titulares há apenas 6 mulheres na mesma posição. Seis. Evidentemente, isso não é prova de que existe viés ou discriminação de gênero na profissão de economista no Brasil. Mas é fortíssimo indício que convida a uma avaliação mais rigorosa do tema. Sobretudo porque, ante minha experiência pregressa de docente no Brasil, as turmas de graduação e de pós-graduação em alguns desses mesmos departamentos são, hoje em dia, bem balanceadas – o número de homens e de mulheres é mais ou menos o mesmo. No entanto, eles tornam-se acadêmicos reconhecidos em proporção muito maior do que elas. Eles também são chamados a ocupar posições importantes no governo em razão bem superior.
O Banco Central do Brasil jamais teve uma dirigente mulher. Conta-se em uma só mão o número de mulheres ex-diretoras do BC. No atual colegiado não há mulher alguma.
É muito talento para uma desvalorização maior ainda.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
O Estado de S. Paulo: Uma releitura da história do Brasil
Novo livro do jornalista e cientista político Jorge Caldeira põe em xeque as visões dos clássicos sobre processo de acumulação de riqueza no País
José Fucs, O Estado de S. Paulo
Ao longo de sua fértil trajetória como autor de livros históricos, o jornalista e cientista político Jorge Caldeira alcançou um feito invejável. Com uma prosa agradável e contagiante, aliada a pesquisas profundas e criteriosas e a uma abordagem quase sempre original dos temas tratados em suas obras, ele não se tornou apenas um dos maiores produtores de best-sellers do gênero no País.
Mais que isso, Caldeira ofereceu uma “contribuição milionária”, nas palavras perpetuadas pelo escritor Oswald de Andrade no Manifesto Pau Brasil, para despertar ou ampliar o interesse dos brasileiros de todas as idades, formações e posições socioeconômicas, pelos grandes acontecimentos e personagens de nossa história.
Mas, mesmo para alguém com tal retrospecto, seu novo livro – História da Riqueza no Brasil: Cinco Séculos de Pessoas, Costumes e Governos, que chegou recentemente às livrarias – representa uma empreitada ambiciosa. Num campo minado, em que brilharam nomes como os do economista Celso Furtado e do historiador Caio Prado Júnior, que construíram narrativas aceitas e respeitadas pela academia e pelo público, Caldeira se propõe a apresentar nada mais, nada menos que uma releitura profunda da história econômica do País, desde os tempos do descobrimento até os dias de hoje.
Com o uso de novas ferramentas metodológicas, como a antropologia e a econometria, para analisar milhares de documentos e dados digitalizados e realizar o cruzamento das informações, Caldeira chegou a conclusões bem diferentes das alcançadas pelos clássicos, sem prejudicar a narrativa com a inclusão de uma numeralha intransponível aos mortais.
Como no programa Myth Buster (Destruidor de Mitos), do canal de TV por assinatura Discovery, em que os apresentadores usam métodos científicos para testar a veracidade de crenças e lendas populares, ele vai desmantelando ao longo do livro, com sólida fundamentação, uma série de ideias predominantes até agora sobre a nossa história econômica. “Em raros períodos, os resultados dos números e dos estudos antropológicos coincidem com o que indicava a história tradicional”, afirma (ler quadro ao lado e entrevista abaixo).
Excedentes. Caldeira sustenta, por exemplo, que, no Brasil ao contrário do que dizem os clássicos, não havia apenas uma economia de subsistência, à margem do sistema monopolista de exportações para a metrópole, mas um mercado interno robusto, movido à base de trocas informais de gêneros básicos e produtos artesanais.
“Os levantamentos quantitativos sugerem que não há como sustentar o conceito de uma economia colonial formada por um setor interno sem dinâmica mercantil e um setor exportador que concentrava o processo acumulador de produção”, diz o autor no livro. “Quando se reconhece na economia nativa a capacidade de gerar excedentes e promover a sua circulação, tudo muda.”
Caldeira argumenta também, com base nos dados que levantou em suas pesquisas, que a chamada República Velha (1989-1930) não foi um período retrógrado, no qual o modelo agrário de exportação se manteve inalterado, como diz a versão corrente da história. De acordo com ele, foi uma fase dinâmica, de forte crescimento econômico, marcada pela aceleração do processo de urbanização e de industrialização, pela modernização da infraestrutura e dos transportes e por uma alta expressiva da renda da população.
Segundo Caldeira, os dados oficiais mostram que, em 1907, quando foi feito o primeiro censo industrial, havia 3,25 mil fábricas no País, com 151 mil operários. Em 1920, já eram 13,3 mil indústrias, com 275 mil empregados. Em 1890, as ferrovias no Brasil somavam 9,9 mil quilômetros. Em 1930, eram 32 mil quilômetros, mais que o triplo do que existia no final do Império. Já o número de objetos postados anualmente pelo correio aumentou de 50 milhões para 642 milhões de itens entre 1890 e 1920 e para 2,1 bilhões de itens em 1929.
Para além da economia, apenas 17,4% da população era alfabetizada em 1890. Em 1920, esse número chegou a 28,8%, mesmo considerando o aumento de 3,15% ao ano da população em idade escolar no período.
Capitalista. “O padrão de crescimento da economia brasileira mudou com a República”, afirma Caldeira. “Comparada com o passado imperial, a economia deixou para trás a estagnação ao iniciar o desenvolvimento capitalista. E, comparado com o mundo, o Brasil deixou a posição de atraso crônico, mostrando uma economia não só vigorosa, mas das que mais cresceram no período.”
Embora o foco do livro seja a evolução econômica e o processo de acumulação de riqueza, ele dedica longos capítulos ao ambiente político e institucional do País e de Portugal nas diferentes épocas da história, para permitir uma compreensão mais ampla do leitor sobre os acontecimentos. Mas, talvez, nesse campo, Caldeira tenha descido a detalhes menos relevantes para desenhar o novo perfil histórico da nossa economia.
Apesar de abranger os cinco séculos da história brasileira, o livro explora principalmente o Brasil colonial, o Império e a Primeira República. Nas 600 páginas da obra, o autor dedicou apenas 27 ao período que vai de 1930 a 1964, e outras 47 ao período de 1964 a 2017. Nesses capítulos, ele realiza um relato menos ambicioso e mais convencional dos fatos. Não deixa de oferecer um panorama do processo histórico da época, mas suas interpretações não parecem tão consistentes quanto as de períodos anteriores.
Discussões apaixonadas. Não por acaso é no período de 1500 a 1930 que se concentram as grandes contribuições do livro, com novas e surpreendentes interpretações da nossa história. Em razão das visões inovadoras de Caldeira para esse longo ciclo histórico, o livro vai render, provavelmente, por anos a fio, discussões apaixonadas nas universidades e nas mesas de bar, entre estudantes e professores de história, ciência política e economia, que incorporaram como verdade absoluta as visões dos autores clássicos sobre o assunto. Desde já, porém, o que se pode afirmar, sem medo de errar, é que, daqui para a frente, o debate sobre a evolução da nossa economia nesse período jamais será o mesmo.
Pedro de Camargo Neto: Embrapa em alerta!
Tomar para si o sucesso da agropecuária do País talvez tenha sido o que mais a prejudicou
Neste mesmo espaço, com o título Por favor, Embrapa: acorde!, o pesquisador Zander Navarro incitou o debate sobre o investimento público em pesquisa agronômica realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Apresentou diversas questões pertinentes, cujo debate público e aberto com a sociedade em geral, e não só com seus pares ou os mais diretamente envolvidos tanto academicamente como na prática, pode contribuir para o avanço das ideias. A troca de ideias é o fundamento para o aprofundamento do conhecimento.
Muitos dos desafios que a Embrapa enfrenta hoje não são muito diferentes de inúmeras outras instituições públicas. Decidir sobre a alocação de recursos entre centenas de projetos, todos apresentados como prioritários; avaliar resultados de pesquisas, bem como o desempenho de seus 10 mil funcionários em 47 centros espalhados pelo País; evitar corporativismos, prestigiando a meritocracia; incentivar o diálogo, permitindo que do debate as melhores ideias prosperem – isso seria o dia a dia de qualquer gestor.
A Embrapa não é uma universidade, embora seja essencial que esteja próxima de todas. Pesquisa aplicada é diferente e complementa a pesquisa pura. Seu método de avaliação é também diferente da pesquisa acadêmica. A governança de alocação de recursos e avaliação de resultados precisa incorporar a vinculação com a prática.
Em minha atividade profissional, embora longe da pesquisa, sou usuário de seus resultados. Já avaliava que a Embrapa se havia tornado uma instituição burocrática e com poucos resultados práticos. Vivia de um passado de bons resultados para alguns produtos. Embora tenha centros de pesquisa para as diversas produções, nem sempre sua pesquisa tem grande relevância para os produtores.
O sucesso da agropecuária, que inclui significativos aumentos de produtividade agronômica, não pode ser atribuído só à Embrapa. A participação de inúmeras empresas privadas, nacionais e multinacionais, teve importante relevância.
Tomar para si o sucesso da agropecuária brasileira talvez tenha sido o que mais a prejudicou. Não se trata de negar valor à Embrapa. É um orgulho nacional. Teve, e ainda tem, um quadro profissional de excelência. Teve profissionais dedicados e intimamente vinculados ao campo. Mas não se deve exagerar. A prestação de contas sobre sua relevância para a sociedade deixou de ser uma preocupação interna, pois estaria acima de qualquer dúvida. Protegida por essa aura, burocratizou-se, perdeu agilidade, isolou-se em sua suposta indiscutível competência.
Enfrentamos hoje um momento de inflexão. A rapidez com que os avanços tecnológicos, em todos os setores, ocorrem é surpreendente. Precisamos estar muito atentos. Manter a competitividade da agropecuária continuará a ser um grande desafio, maior do que foi no passado. Produzir mais e melhor, dentro de um ambiente extremamente competitivo e com a pressão das transformações ambientais e econômicas globais, não será tarefa fácil.
Mesmo com uma empresa pública eficiente e revigorada, os avanços virão de todos os cantos, principalmente do setor privado. O desafio incluirá articular e induzir o setor nacional a ocupar esses espaços.
A biotecnologia produz resultados inimagináveis, gostemos ou não, com investimentos cada dia menores, muito menores, e numa velocidade que qualquer burocracia terá dificuldade de acompanhar. Certamente, a da Embrapa não acompanha. O Brasil demorou para incorporar a biotecnologia, registre-se, não por culpa da Embrapa. Mas hoje a empresa vem sendo incapaz de apoiar e induzir a criatividade de nossos pesquisadores e facilitar empreendedores, aí, sim, tarefa para uma empresa pública.
A nanotecnologia representa um futuro ainda pouco nítido, porém com a certeza de que estará presente e com a capacidade de resultados impressionantes. A tecnologia digital, acoplada à de georreferenciamento, acelera sua incursão no setor agropecuário, com automatização de inúmeras atividades. Sensores, drones, robôs, processamento de megadados, acesso a satélites, a precisão de milímetros onde eram metros transformam a atividade produtiva e o produtor. Como exemplo, entre os três destaques da participação, esta semana, do presidente norte-americano, que pela primeira vez compareceu ao congresso anual da American Farm Bureau Federation, entidade de agricultores, foi o anúncio de investimento em infraestrutura em rede de internet, banda larga, no meio rural. Os outros dois destaques, de igual nível de importância, foram a questão tributária e de trabalhadores imigrantes.
Os equipamentos que serão utilizados estão hoje sendo inventados, e numa velocidade surpreendente. Não saberia dizer o que será o futuro. O futuro de alguns poucos anos.
Precisamos da Embrapa. O artigo do pesquisador aqui citado tem o mérito de expor, e oferecer destaque, à sociedade em geral para os desafios que precisarão ser enfrentados. Desafios difíceis de ser alcançados e que exigirão o esforço de todos, a ser construído em amplo e aberto debate. Recebeu, infelizmente, como resposta, sua demissão. Demitido por publicar um artigo expondo à sociedade questões extremamente pertinentes. Artigo que, como qualquer outro, contém sua visão, certamente não a única, e que deve participar com as demais visões da construção do futuro. Não teria seguido as normas internas e os canais de diálogo. Teria infringido o código de ética da empresa. A Embrapa entendeu não ser necessário contestar publicamente os argumentos do autor. Julgou que, como funcionário, não teria o direito de expor publicamente suas críticas.
A empresa é pública. O pesquisador é funcionário público. Os canais internos claramente não deram resposta a contestações que, antes de serem dele, são de todos nós, principalmente nós agricultores e pecuaristas. O debate precisa também ser público.
A reação da empresa com a sumária demissão do pesquisador, na rapidez em que ocorreu, horas após a publicação do artigo, é inadmissível. Nossas cultura e instituições democráticas não aceitam esse tipo de reação.
* Pedro de Camargo Neto foi presidente da Sociedade Rural Brasileira