O Estado de S. Paulo
Eliane Cantanhêde: Cartada final do STF
Ministros discutem solução engenhosa e complexa contra a prisão de Lula
Avançam as articulações de ministros do Supremo para, em tratativas com a defesa do ex-presidente Lula, acabar com a prisão após condenação em segunda instância e mudar os rumos da Lava Jato. Como a presidente Cármen Lúcia mantém firmemente sua palavra de não colocar a questão em pauta, a solução que emerge é criativa e sofisticada.
Habeas corpus (HC) só pode ser posto “em pauta” pela presidência ou “em mesa” por um deles, o que já não é usual, mas embargos de declaração em liminares podem ir ao plenário e os ministros foram buscar uma liminar de outubro de 2016 para ancorar toda a estratégia: justamente a liminar que permitiu a prisão após a segunda instância, confirmada pelo plenário em dezembro daquele ano por 6 a 5.
A defesa de Lula descobriu, e soprou aos ouvidos de ministros, que o acórdão da liminar nunca tinha sido publicado e isso abria uma brecha para a revisão. Ora, ora, o acórdão acaba de ser publicado agora, em 7 de março, abrindo prazo de cinco dias úteis para a apresentação de recursos. E, ora, ora, o Instituto Ibero Americano de Direito Público entrou com embargo de declaração no último dia do prazo, 14 de março, quarta-feira passada.
Um embargo de declaração numa liminar de um ano e meio atrás, que gerou dois meses depois uma decisão em plenário? Tudo soa muito estranho, muito nebuloso, mas faz um sentido enorme para aqueles que articulam o fim da prisão em segunda instância não apenas para Lula, mas para todos os poderosos que estão ou estarão no mesmo caso.
Lembram que escrevi, neste espaço, que havia um acordão dentro do Supremo para combinar o fim da prisão em segunda instância e do foro privilegiado? A base é uma equação: quem é contra Lula salva a pele dele para salvar a de todos os demais; quem é a favor de Lula salva a pele de todos os demais para salvar a de Lula.
Houve uma sequência de tentativas que acabaram batendo num muro intransponível: a opinião pública, que não consegue digerir a mudança de uma decisão – que já passou por três julgamentos no STF – com o objetivo óbvio, gritante, de evitar que Lula vá para a cadeia.
A primeira tentativa foi convencer Cármen Lúcia de por o habeas corpus preventivo de Lula em pauta, mas ela declarou que mudar uma jurisprudência para beneficiar um réu seria “apequenar” o Supremo. Depois, veio a sugestão de levar ao plenário os HCs de outros condenados, não especificamente Lula, mas ela divulgou a pauta de abril sem incluir a questão.
A terceira tentativa foi escalar um dos outros dez ministros para, driblando a decisão da presidente, colocar a questão em mesa e forçar a revisão. Mas quem? Gilmar Mendes já tinha o seu papel definido no script: inverter o voto e o resultado. O relator da Lava Jato, Edson Fachin, foi categórico ao dizer que não aprovava mais um julgamento sobre o mesmo assunto. Lewandowski, Marco Aurélio e Toffoli avisaram que não entrariam nessa bola dividida.
Criou-se até uma torcida para o decano Celso de Melo assumir o papel e foi aí que surgiu a solução – atribuída a Sepúlveda Pertence, ex-STF e atual advogado de Lula – de publicar a liminar de 2016, gerar um embargo de declaração e levá-lo ao plenário, criando a oportunidade para Gilmar Mendes mudar o seu voto e acabar com a prisão após a segunda instância.
Cármen Lúcia foi chamada para uma reunião na próxima terça-feira, provavelmente para discutir a ideia de, em vez da segunda instância, o plenário autorizar o cumprimento da pena após condenação no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A prisão de Lula seria adiada por muitos meses, caso mantida; os presos após a segunda instância entrariam com HC; os futuros condenados respirariam aliviados. E a Lava Jato? O que fez, fez; o que não fez, só fará em parte.
Luiz Sérgio Henriques: O caos ao redor
A esquerda abdicou da renovação do sistema político, contribuindo para sua deterioração
Os sinais de alarme agora soam com estridência e vêm das mais variadas partes: a democracia política, tal como a conhecemos, está submetida a tensões talvez inéditas, ameaçada por inimigos inesperados e considerada por muitos como incapaz de se expandir e garantir uma vida cívica à altura de suas promessas. A eleição de Donald Trump em 2016, mesmo descontado o fato não irrelevante de sua derrota no voto popular, como que acentuou brechas até então pouco percebidas: aqui e ali, vozes que se supunham definitivamente ultrapassadas ou, quando muito, com vocação minoritária adquiriram novo fôlego e, como se tornou comum dizer a partir de então, passaram a amplificar o mal-estar dos “perdedores” da globalização.
Na desorientação não só política, mas sobretudo cultural, que nos marca a todos e encurta nossos horizontes, houve quem, à esquerda, saudasse a ascensão do novo presidente americano como um revés fatal para o neoliberalismo globalista, tal como, algum tempo antes, a queda do Muro de Berlim havia selado a sorte do socialismo real. O nativismo e o protecionismo econômico de Trump seriam uma estratégia a ser imitada, com as devidas alterações, pela esquerda dita soberanista, que pressupunha assim as fronteiras nacionais como as mais adequadas para a defesa da cidadania política e social. Nenhuma reminiscência, nessa esquerda, do clássico internacionalismo do Manifesto marxiano, que cantava em prosa e verso a capacidade capitalista de arquivar provincianismos, dissolver barreiras nacionais e unificar, ainda que contraditoriamente, a sociedade dos homens e das coisas.
E talvez mais grave ainda: subestimava-se o impacto que a nova presidência teria, como tem tido, sobre a democracia na América e, consequentemente, em todo o mundo. De fato, as pulsões extremistas que sustentaram o triunfo de Trump, com sua carga de racismo, sexismo e xenofobia, inevitavelmente produziriam um efeito corrosivo sobre a coesão social. A polarização destrutiva viria a se confirmar como o novo padrão de enfrentamento político, amplificado, ainda por cima, por “guerras de cultura” em desfavor da mais recente geração de direitos, ambientais e de gênero, que pouco a pouco abria caminho. Projetando-se para além dos Estados Unidos, o trumpismo reforçaria tendências francamente reacionárias um pouco por toda parte, como nos é dado ver até bem perto de nós, entre outras coisas, com a instrumentalização irresponsável de valores familiares e religiosos.
Uma após outra, e já com exceções contadas, as democracias europeias entraram em sofrimento, arrastando nisso o extraordinário projeto da casa comum. A social-democracia alemã agora refaz sua aposta, não isenta de riscos, na grande coalizão com os democratas-cristãos de Angela Merkel, uma dirigente de exceção, como se viu no acolhimento dos fugitivos das guerras no Oriente Médio em 2015. Não fosse o fenômeno Emmanuel Macron, a repropor um “centro” que queremos ver ousado e renovador, a velha França de 1789 seria palco, hoje, de aventuras irresponsáveis. E na Itália, país de rica tradição de esquerda, duas modalidades relativamente distintas de populismo, uma das quais de extrema direita – a Liga de Matteo Salvini –, amealharam os votos de expressiva maioria. Ainda que por ora não se saiba o que farão exatamente com o largo consenso obtido, trata-se de uma mudança de tal ordem que faz do notório Silvio Berlusconi um exemplo de “moderação”. E a esquerda, quer a reformista do Partido Democrático, quer as formações radicais, terá de se reconstruir em condições críticas, com déficits programáticos e dificuldades de inserção, dada a mudança verdadeiramente epocal das estruturas econômicas e sociais.
O ciclo da esquerda latino-americana no poder não foi a luz no fim do túnel. A transição exemplar no Chile, com a passagem de bastão entre Michelle Bachelet e Sebastián Piñera, entre o centro-esquerda e o centro-direita, é acontecimento a ser saudado efusivamente na perspectiva de uma regular democracia de alternância. Processos muito diferentes entre si – eleições no Equador e na Argentina, impeachment no Brasil – sofrem o estigma do “golpe”, palavra que se vulgariza no pensamento único de uma certa esquerda populista e autoritária, que, como mostra o caso chileno, está longe de ser a única possível. Na Bolívia, reeleições indefinidas para sagrar o mesmo mandatário, ainda que contra o veredicto formal de um plebiscito, são justificadas como expressão de respeito aos direitos humanos do mandatário: nada mais do que um acinte. E a infeliz Venezuela, à beira de tragédia humanitária, contribui para desonrar o conceito de esquerda aos olhos dos democratas de todos os matizes. A insanidade, com efeito, não se detém diante de limites ideológicos. Será, ao contrário, uma das propriedades mais bem distribuídas entre dramas e atores de qualquer orientação.
A esquerda latino-americana, na floração mais recente, deu sua chancela à polarização que destrói o terreno comum representado pelas democracias constitucionais. Fugiu do tema crucial do centro político, apostando na contraposição entre povo e “elites”, aí incluídas as modernas classes médias e as profissões liberais, que seriam reacionárias por definição. Ou, então, considerou aquele tema de modo matreiro, acionando mecanismos de cooptação dos adversários/inimigos a partir do controle das alavancas estatais. Como mostrou o exemplo brasileiro, abdicou do papel histórico de renovação do sistema político, contribuindo antes para sua deterioração e ruína.
Os sinais são múltiplos e contraditórios – e nem todos auguram bom desfecho. Na falta de uma gazua ideológica, só por tentativa e erro será possível lê-los. Em outras ocasiões de risco extremo, houve uma esquerda, inclusive comunista, que soube interpretar o mundo real e acorrer em defesa da civilização. Só venceremos o caos ao redor se assim for também desta vez.
Luiz Werneck Vianna: A vitória da Constituição
A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História
Para quem queria a ocupação das ruas pelo povo, o cenário deste carnaval que passou, com as multidões que mobilizou nos blocos e nas escolas de samba, principalmente na capital paulista, ainda sem tradição nesse tipo de manifestação carnavalesca, surpreendeu os mais céticos, que não esperavam a volta da alegria na vida popular. Embora sem perder a conotação de crítica social, o momento catártico foi o dominante entre a nova geração, que ainda não conhecia a experiência carnavalesca, em particular entre as jovens que acorreram em massa aos blocos, num movimento indisfarçável de afirmação de gênero.
Com esse registro, a que se deve acrescentar o do desfile das escolas de samba, a política conta com mais uma matéria para a reflexão nesta hora de seleção das candidaturas presidenciais, ainda sem definição. Relativizando o caso de alguns desfiles que optaram por uma crítica política contundente ao governo, uma vez não se pode evitar o comentário do jornalista Ancelmo Gois, ao lembrar que no Brasil “prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e uma escola comandada por um bicheiro, a querida Beija-Flor, vence o carnaval que fala de corrupção” (O Globo 15/2).
Essa hora de escolha que já tarda, não só pelas dificuldades naturais ao momento que se vive, mas também porque a cultura do golpismo, essa segunda pele da nossa política, já encontrou uma nova modalidade de conspirar contra o processo eleitoral, a partir de uma declaração de um delegado de polícia sobre um inquérito de presumidas ações praticadas pelo presidente da República. O mais triste desse episódio está no fato de envolver um alto membro do Poder Judiciário, de quem sempre se esperam atos e palavras de concórdia, e esteja ele puxando a corda em favor do prolongamento da nossa agonia.
A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História, em mais uma tentativa de destituição por um processo judicial do chefe do Executivo, como está em curso, uma vez que não contam nem com as ruas nem com os quartéis. Nos seus cálculos malévolos maquinam que com o governo acéfalo caberia ao Poder Judiciário o exercício de um governo de transição que dirigiria, amparado pela Polícia Federal, o processo eleitoral. Tal solução, ou algo próximo a ela, talvez seja o que nos falta para nos converter num imenso manicômio em que todos os internos se apresentem como candidatos à Presidência da República.
Mas o mundo gira e a Lusitana roda, imprevistamente o cenário e o enredo se transfiguram com um movimento de peças desse jogo de xadrez ainda distante de encontrar um vencedor. Nessa nova disposição, provocada pela intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, o centro de gravidade da crise se desloca do tema da corrupção política para o da violência e da criminalidade organizada, cujo poder já ameaçava nacionalizar-se e se projetar no campo da política. Mudando o repertório, o peso dos atores envolvidos igualmente muda, com a depreciação do papel do Poder Judiciário, até então o principal protagonista da conjuntura, que cede lugar ao Poder Executivo, que trouxe a iniciativa para si e para a corporação militar, numa arriscada operação que se esforçou por se manter, malgrado alguns senões, nos trilhos constitucionais, a essa altura chancelada por esmagadora maioria nas duas Casas legislativas.
Um dos efeitos colaterais dessa intervenção foi o de revelar o tema da segurança como central para partidos e candidatos na formulação dos seus programas. Ao contrário da blague famosa, parece que aqui, pelos sucessos recentes, o tema da economia valerá na hora do voto menos do que se previa.
Confirma-se, mais uma vez, o desamor da política brasileira pela linha reta. Aos sobressaltos, dia após dia, avança-se para o momento eleitoral, quando o destino das urnas será selado pelo êxito ou fracasso da intervenção federal na política de segurança.
Os dados estão lançados. E ainda sujeitos à manipulação humana, que pode ser decisiva para a boa sorte da iniciativa de alto risco do Executivo. Muitos não a querem por cálculo eleitoral, ou pelo temor de que as Forças Armadas, peça central na intervenção sobre os aparatos de segurança, venha atropelar a ordem constitucional em nome de uma política de salvação nacional, pondo-se no lugar dos juízes que tinham como alvo o mesmo propósito. Neste tempo em que reina a suspicácia, conta contra a hipótese malévola o fato forte de que a corporação militar se tem comportado sob estritos padrões constitucionais e das normas que regulam seus princípios hierárquicos.
A competição eleitoral, tenha o resultado que tiver, importa mais por provocar a agregação de vontades e de programas do que pela candidatura vitoriosa, que, seja qual for, estará pautada pela agenda das questões discutidas exaustivamente ao longo destes três últimos anos. Será uma oportunidade, que não pode ser perdida, para uma recomposição partidária que nos emancipe do domínio das corporações que às nossas costas pretendem guiar nosso destino. Desde as magistrais lições de Pierre Bourdieu sobre o Estado se sabe que o segredo da força das corporações está em revestir os interesses particulares dos seus membros em pleitos públicos de caráter geral. No nosso caso, liberar a política transita pela limitação do poder das corporações, que com frequência impõe a todos a sua agenda de interesses particulares, em detrimento dos da maioria.
Mas, apesar de tanta confusão, neste país onde todos querem ser califa no lugar do califa, há algo a ser comemorado, qual seja, o fato de que todos os envolvidos nesse charivari nacional jurem estar agindo em nome da Constituição. E, de fato, se as aparências ainda contam, a sorte parece que vai sorrir para quem persuadir o maior número de eleitores de ser aquele que melhor representa o espírito do texto constitucional, que favorece a igualdade.
Eliane Cantanhêde: Nem inferno, nem céu
Michel Temer deu uma cambalhota, mas nem por isso vira santo ou candidato
O presidente Michel Temer deu uma cambalhota. Deixou de ser o presidente mais impopular desde a redemocratização, sem horizonte e carregando nas costas o defunto da reforma da Previdência, para passar a ser o presidente que interveio no Rio de Janeiro, deflagrou uma guerra à violência e passou até, vejam só, a ser considerado candidato a um novo mandato.
Nem ao inferno, nem ao céu. Temer enfrentou uma pedreira desde o impeachment de Dilma, com a pecha de golpista e as denúncias de Rodrigo Janot, e sacou a arma que sabe manejar bem: a negociação com partidos e políticos, chegando a excrescências como nomear, e desnomear, Cristiane Brasil, sob intenso tiroteio da mídia e com o Ministério do Trabalho vago. Nem por isso era o diabo.
Mas também não vai virar santo – ou candidato –, de uma hora para outra, só com a intervenção na segurança. Apenas ganha fôlego, possivelmente alguns pontos nas pesquisas e discurso para enfrentar os áridos meses até a eleição e a passagem de cargo, com os holofotes nos candidatos, não num governo nos seus estertores.
Antes da intervenção, Temer só entrava mal na mídia. Com a intervenção, entra na boa e ganhando colunas, notinhas e análises sobre uma possível candidatura. Na eleição, tende a sair das manchetes, minguar, tendo de fugir de denúncias e dos malfeitos de companheiros do PMDB e de assessores no governo. Portanto, das páginas policiais.
O que dizer do encaminhamento de Gustavo Perrella como futuro ministro dos Esportes? Não é aquele famoso pela apreensão de um helicóptero da família com cocaína no Espírito Santo? Agora, Temer não tem mais a desculpa de ter de ceder tudo, anéis e dedos, por três ou quatro votinhos a mais para a Previdência. Livre, ele pode escolher melhor, certo? Sua própria equipe acreditava nisso.
E Henrique Meirelles? Presidente do Banco Central de Lula, ileso no desastre Dilma e ministro da Fazenda de Temer, ele só deixou o primeiro time do BankBoston e voltou ao Brasil com uma única ideia fixa: ser presidente da República. Faltou combinar com os adversários. E com ele próprio, sua falta de jeito e de talento para a política.
Além disso, Meirelles pode capitalizar os avanços positivos na economia, com previsão de crescimento acima dos 3% em 2018, inflação e juros historicamente baixos e balança comercial animada, mas... a pior herança de Dilma foi a cratera fiscal e isso continua sem solução. E teve azar. Sem ter quem lançá-lo, ele decidiu lançar-se. No mesmo dia, a agência Fitch rebaixou a nota do Brasil pela falta da reforma da Previdência e de perspectivas de sair do atoleiro fiscal.
É assim que o governo que não tinha nenhum candidato passou subitamente a ter dois, mas nenhum deles é capaz de convencer de que tem as condições de decolagem, voo seguro e pouso garantido. Tudo pode mudar, mas a expectativa é de que se gaste muita tinta e gogó com as candidaturas Temer e Meirelles para nada. Assim como se gasta com as de Lula, ficha suja, e Jair Bolsonaro, aquele que faz que vai, mas não vai.
Além deles, João Doria não deu para o gasto, Luciano Huck roeu a corda, ninguém mais fala em Rodrigo Maia, Marina Silva faz campanha escondida, Ciro Gomes ainda não foi assimilado pelo PT, Álvaro Dias é regional. Enquanto o centro e a direita vão de voo de galinha em voo de galinha e a esquerda está imobilizada pelo fator Lula, Geraldo Alckmin vê a Lava Jato avançando pelas searas do PSDB justamente no ano eleitoral. Ele tem as condições objetivas e trabalha com afinco para consolidá-las, aguardando pacientemente o apoio do Planalto. Mas precisa sobreviver e garantir as condições subjetivas: Alckmin precisa alavancar Alckmin.
Marco Aurélio Nogueira: Centro, esse escorregadio objeto de desejo
Ocupá-lo é uma necessidade, sem ele, nenhum sistema político ganha fluidez
Entra semana, sai semana, o centro continua em evidência. Todos querem atrair ou neutralizar suas correntes. Procuram-se também nomes que o unifiquem.
Luciano Huck mostrou a dificuldade do processo. Desejou ser o centro renovador: o novo em política. Excitou os movimentos cívicos e reiterou a ideia de que os partidos precisam reinventar-se. Criou turbulência no interior do PSDB, mexendo com os brios de Geraldo Alckmin. A operação não deu certo, mas serviu para realçar a necessidade de preencher o vazio que se reproduz na política nacional: um vazio de nomes, de ideias, de projetos que sacudam a poeira das velhas vestes que ainda recobrem a política.
O excesso de movimentação demonstra que o centro é um espaço em busca de quem o organize. Seu magnetismo se impõe porque não há vitória eleitoral ou políticas positivas que não tenham ao menos um pé centralizado.
Os dogmáticos falam que a afirmação de um centro seria uma estratégia da direita, assustada com a liderança de Lula nas pesquisas. Os liberais querem um centro que neutralize os “excessos” e proteja a liberdade. Os conservadores mais à direita, por sua vez, veem no centro um obstáculo para seus planos de conter a renovação dos costumes. Mesmo setores da esquerda, quando pensam em sua própria articulação, concebem um “centro-esquerda” que se una para enfrentar o “centro-direita”.
Os democratas entendem o centro como um fator de ultrapassagem do atual padrão de competição política, muito polarizado. O suposto é que sem o centro o sucesso será mais difícil, posto que saturado pela reposição mecânica do velho padrão. O desafio passa pela reconstrução de algo que, em boa medida, foi a força propulsora da redemocratização. Como a vida mudou e a política entrou em parafuso, reconstruir o centro tornou-se ao mesmo tempo problema e estratégia.
Ruim em termos de articulação, a situação tem como contraponto positivo a pressão social, a hostilidade popular à política praticada, a indignação contra a corrupção, os privilégios e a ineficiência dos políticos. Procura-se um nome “novo”, mais que um novo projeto. Não se conseguiu, até agora, definir que forças políticas poderão articular-se em torno de propostas claras para a questão fiscal, o formato do Estado, a agenda social, o desenvolvimento. Sem isso tanto fará se o candidato for “novo” ou “velho”.
Mas o que seria o centro político, esse objeto de desejo tão escorregadio?
O centro é sempre importante, mas não é tudo. É parte do jogo, um vir a ser, uma aspiração ou uma obsessão. Não é uma igreja de salvação, nem a praia de todos. Ocupá-lo é uma necessidade. Sem ele nenhum sistema político ganha fluidez.
Particularmente no Brasil, o centro não é o Centrão. Também não é igual a maioria parlamentar ou ao polo que controla essa maioria. Não é governismo. Para ser viável e consistente precisa ir além dessa dimensão, dirigi-la, subordiná-la, por maior que seja a atração exercida pelo poder central. Um centro comandado pelo poder central amarra o País. Autônomo e consciente de si, faz o País avançar.
Em geometria, o centro é o ponto que está no meio de uma figura. Numa reta, divide-a em dois lados iguais. Num círculo ou numa esfera, é o ponto a partir do qual equidistam todos os pontos pertencentes à circunferência. Nas figuras geométricas em geral, o centro pode ser determinado com precisão desde que elas sejam simétricas, regulares.
Em termos políticos, não é assim. Um centro político não tem determinação exata, não é fixo nem equidistante de nada. Pode flertar mais com um lado do que com outro, buscar superar as extremidades, atraindo-as e submetendo-as a si, ou pode simplesmente funcionar como um administrador das forças em presença. Suas figuras e seus espaços de operação são irregulares, dinâmicos.
Trata-se, pois, de uma posição relativa, que só pode ser proclamada tendo em vista uma esquerda e uma direita, entendidas essas duas posições em sua tradução pura, extremada. Como tal pureza não existe, o centro também não se configura com precisão. Como lembrou o cientista político Marcus Mello, citando Maurice Duverger, “o centro é um lugar imaginário, não existe em política”: chamamos centro ao “lugar geométrico donde se reúnem os moderados de tendências opostas”. Para compensar sua limitação costuma ser associado a termos outros, como união, serenidade e temperança.
Há centros que existem para conservar e outros que se dedicam a fazer uma revolução. Um centro inclinado à direita anda para trás. Inclinado à esquerda, é uma chance de avanço, tanto no plano moral quanto em termos de igualdade. Um centro autoritário, burocrático, promove a passividade e a subserviência dos aderentes. Realizado democraticamente, promove a autonomia, o pluralismo e a multiplicidade das vozes. O primeiro é potencialmente regressista, o segundo é progressista.
O centro não existe como algo dado: é uma construção. Por isso somente ganha sustentabilidade se tiver programa e projeto. Sem raízes sociais é como uma casa sem alicerces. Pode assentar telhas e janelas, mas ruirá no primeiro vendaval.
Um centro inclinado à esquerda não é a solução, mas pode ajudar a que ela seja encontrada. Sua virtude repousa na articulação dialética Estado-sociedade, no molejo democrático que faz com que se ouça a voz de todos e na disposição de abraçar a causa de um país. Seu programa se volta para o encontro de um novo modo de pensar e organizar a política, atualizando-a aos patamares civilizatórios em que nos encontramos.
2018 promete avançar em meio à incerteza, ao mal-estar social, a crises e polarizações. Não dá para saber se um centro forte possibilitará que se desanuviem as brumas que nos cegam. Mas dá para cravar que sem reformismo democrático, respeito aos direitos e articulação social nenhum centro fará coisa que preste.
Monica de Bolle: Sai Porcina, entra Sassá
A maior parte das medidas depende do Congresso, o mesmo Congresso que tenta a sobrevivência pós outubro
Ah, os anos 80. Década de desarranjos políticos e econômicos, década perdida, de povo em desvario. Década do rock brasileiro engajado, das seleções de futebol que foram sem jamais terem ido, das telenovelas inesquecíveis. O Brasil de Temer é versão apagada dos anos 80, com pitadas próprias de surrealismo.
Em artigo para este jornal publicado em agosto do ano passado, descrevi a agenda Porcina de Temer em alusão à viúva inesquecível. Na ocasião, escrevi sobre as chances de que as reformas de Temer viessem a ser “Porcinadas”, ou, por si, nada: que permanecessem no papel e nas melhores intenções sem os votos suficientes para que fossem a lugar algum.
Como sabemos agora, esse foi o destino da controvertida reforma da Previdência, cujo enterro nem tão prematuro foi anunciado pelo governo na segunda-feira. Vale lembrar que a reforma da Previdência era o pilar de sustentação do teto dos gastos, aprovado com imenso alarde em dezembro de 2016. Disse-nos a equipe econômica na época – mas não era muito difícil chegar à mesma conclusão sem dar ouvidos a Meirelles –, que as reformas estruturais para resolver os problemas fiscais de médio prazo do Brasil seriam feitas em duas etapas, e que a Previdência era fundamental para garantir a sustentabilidade das contas públicas e a solidez da recuperação econômica brasileira.
O problema era a ideia de “duas etapas”: como argumentei em entrevistas e escrevi na época, as chances de que o teto ficasse sem o seu principal pilar eram altas. Depois do episódio no porão do Jaburu em maio do ano passado, era quase certo que a reforma da Previdência seria “Porcinada”. Algumas diluições mais tarde, cumpriu-se a profecia.
Fala-se muito que o governo Temer tirou o País da recessão, e é verdade. O problema é que o governo Temer também prometeu colocar a economia nos trilhos de modo a evitar que os desarranjos dos governos anteriores ressurgissem. Como essa promessa não foi cumprida, o quadro pós-eleições é pouco auspicioso: com as contas públicas destrambelhadas e sem reforma da Previdência, em algum momento a inflação haverá de subir, a turbulência deve voltar, os juros sairão de seu patamar historicamente baixo, e a recuperação esmorecerá. Mas para impedir que muita reflexão seja feita sobre os desmandos permanentes do País, Temer tirou Porcina de cena e a substituiu por Sassá Mutema. Lembram-se dele, o Salvador da Pátria? Sassá era ingênuo boia-fria que acaba sendo usado e manipulado por experientes políticos da fictícia cidade de Ouro Verde.
Enterrada a agenda Porcina, inaugurou Temer com a anuência de seus ministros a agenda Sassá, cujo conteúdo resume-se a retalhos de medidas com a única intenção de desviar a atenção do grave quadro fiscal não resolvido. A açodada agenda Sassá vislumbra a reforma do PIS/Cofins que provavelmente não irá a lugar algum; a privatização da Eletrobras; o aperfeiçoamento do cadastro positivo para reduzir os juros do crédito ao consumidor – déjà vu; o fim do fundo soberano que, na verdade, já não existe faz tempo; a reoneração da folha de pagamentos, que tampouco haverá de prosperar em final de governo; a autonomia do Banco Central, perdida em meio aos farrapos do anúncio.
A maior parte das medidas da agenda Sassá depende da aprovação do Congresso, o mesmo Congresso que estará mais do que ocupado tentando garantir sua sobrevivência pós-outubro. Ainda que fosse possível imaginar que parte das medidas teria alguma chance de aprovação, é equívoco achar que a lista é "plano B" para a reforma da Previdência, como alguns têm se referido a ela. Plano B seria se atacasse os desequilíbrios fiscais de forma menos eficaz do que a reforma que morreu. Não à toa, a agenda Sassá não agradou os mercados ou as agências de risco que ainda não rebaixaram novamente a nota soberana do Brasil como fez a S&P há pouco tempo.
Não à toa, a agenda Sassá deixa em evidência o conflito de se ter uma equipe econômica encabeçada por um ministro presidenciável, ministro que dia desses falava sobre as vicissitudes do tamanho do Estado afirmando que estaria ele desvirtuando os valores das famílias, “ocupando o lugar das igrejas, das comunidades, das organizações comunitárias”. Compreenderam? Eu também não. Viva Sassá.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
O Estado de S. Paulo: Karl Jaspers analisa responsabilidade do povo alemão pelo nazismo
Em livro escrito no calor dos acontecimentos, o filósofo examina a culpa alemã sem se deixar tomar pelo lado emocional
Por Caio Sarack, de O Estado de S.Paulo/Aliás
Se o leitor estivesse sob a pressão dos acontecimentos e conseguisse ainda sentir o ar espesso pela fuligem da guerra, daria conta de acalmar as paixões diante das pilhagens, dos escombros e dos mortos? Karl Jaspers, em seu A Questão da Culpa – A Alemanha e o Nazismo, publicado pela editora Todavia, trata no calor dos meses que seguiram o final da 2.ª Guerra Mundial sobre uma das heranças do Terceiro Reich: a culpa do povo alemão. O nazi-fascismo deixava espalhados pelo mundo intelectuais judeus e não judeus; tentavam expor o absurdo da destruição arquitetada pelo regime totalitário. Karl Jaspers, junto de Hannah Arendt, Theodor Adorno, Wilhelm Reich e tantos outros, buscavam descrever o caso alemão como desdobramento que ultrapassava as noções de nação, língua ou território; como, portanto, um sinal do alcance implosivo das crises econômicas internacionais e processos de esfacelamento da autonomia de pensamento dos homens e mulheres.
Quando enunciamos a palavra “culpa”, vários matizes cobrem nossos pensamentos: indireta, direta, moral, objetiva, subjetiva... Os adjetivos são muitos, mas a sensação de embrulho no estômago num só gesto enche de significado o verbete. Em suas palestras, Jaspers tenta acalmar as emoções e os ressentimentos; ao buscar na tão evidente culpa que sobrevoava o céu alemão do pós-guerra, o filósofo perguntava-se como poderíamos esclarecer o limite intuitivo (ainda que complexo) que separava todos os alemães dos condenados de Nuremberg: mesmo que não confundamos o criminoso da SS com o alemão médio das décadas de 1930 e 40, persiste sobre todos uma responsabilidade pelos crimes que foram cometidos. E agora, Jaspers? A guerra acabou. As paixões enrijeceram o coração do homem e da mulher, o Mal radical já foi descoberto. Ajuizar já não pode? Ajuizar não é inevitável?
“Em sua configuração especial, a miséria hoje é bem diferente. Certamente todos têm preocupações, limitações severas, sofrimento físico, mas trata-se de algo bem diferente: (...) Todos tendem a interpretar grandes perdas e sofrimento como sacrifício, mas a razão desse sacrifício tem interpretações tão abissalmente distintas que num primeiro momento isso separa as pessoas” (p. 15). Se analisarmos o sentido jurídico do crime, vítima e criminoso assumem pesos diferentes na balança da Justiça; o caráter isento de uma deusa que, de olhos vendados, deixa a materialidade das provas julgarem o réu e assegurar a vítima, já não encontra mais suporte e se perde em meio aos escombros do Holocausto e dos crimes de guerra. Como avalia Jaspers, no Estado moderno todos agimos politicamente, da militância explícita ao silêncio da indiferença: se assim é, como podemos evitar a culpabilidade de um povo inteiro?
Se não me sinto representado por nenhum dos candidatos, se a disputa política não tem eco nas minhas convicções políticas e mesmo assim, não participante, sou responsável, como posso ser cidadão alemão e não compartilhar a culpa de todos os assassinatos e violências que o Estado Moderno Alemão, com suas maiúsculas, torna-me inevitavelmente corresponsável? Não havendo um “fora” do Estado moderno, de que modo o cidadão alemão poderia expurgar a culpa?
Jaspers precisa compreender e para isso é necessário que a razão assuma o lugar das emoções. Qual o custo, no entanto, de pedir calma a alguém que viu todo traço de humanidade de seus filhos e filhas, pais e mães desfigurados nos corpos raquíticos dos campos de extermínio? A capa verde-clara e geométrica desta edição da Todavia parece me precaver de um intenso contraste: a descrição calma dos mais abjetos argumentos dados durante o ano que seguiu a capitulação da Alemanha hitlerista, a análise quase cartesiana da tipologia da culpa nos colocam entre o furor emotivo e o vigor intelectual. A ordem das instituições entra em choque com a ordem do humano e deixa as duas à míngua, o que traz ainda mais força ao contraste do livro – “pertencermos a um povo de um Estado irremediavelmente derrotado, entregues à graça ou à desgraça dos vencedores; a falta de um chão comum que nos una a todos; a dispersão: cada um essencialmente só tem respaldo de si mesmo e, ainda assim, está desamparado. Comum a nós é a ausência de comunidade.”
Como dizê-lo em frases ordenadas? Como se reconhecem as perdas uns dos outros? As palestras de Jaspers partem da avaliação material da guerra, das análises dos eventos históricos e dos dilemas morais que foram condicionados por esse contexto para poder experimentar a esperança de uma comunidade entre os homens e mulheres. Se repararmos bem, o diálogo que trava nessas páginas não é a exposição de alguém que quer delimitar o assunto, mas o tatear de quem se encontra imerso nas contradições da ressaca bélica dos anos 1940; é um gesto para si, mas que só é possível de ser feito com o outro – o verdadeiro diálogo, Jaspers nos faz crer, é o espaço de aparição daquilo que nos comunica e nos comunga.
*Caio Sarack é mestre em filosofia pela FFLCH-USP e professor do Instituto Sidarta e do Colégio Nossa Senhora do Morumbi
Eliane Cantanhêde: Lula: golpe de mestre?
A inclusão de Pertence na defesa de Lula tem poder simbólico e risco aritmético
O ex-presidente Lula deu um golpe de mestre para tentar escapar da prisão depois de o TRF-4, de Porto Alegre, julgar os embargos de declaração contra sua condenação a 12 anos e 1 mês: a contratação do advogado José Paulo Sepúlveda Pertence, ex-presidente do Supremo.
Pertence é grande amigo de Lula e um dos ícones do Supremo, sempre citado e reverenciado nos votos de ministros dos mais diferentes estilos e correntes. Seu reforço na defesa de Lula não tem apenas esse significado, ou esse peso simbólico, mas pode ter resultados práticos.
Analistas da cena jurídica e política veem na inclusão de Pertence na defesa de Lula (pro bono ou não) uma possibilidade também de um novo equilíbrio de votos no STF quanto à questão mais sensível: a prisão já após segunda instância, ou seja, sem o processo passar pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), chegar ao Supremo e ser considerado “transitado em julgado”.
O que chamou a atenção é que houve dois movimentos simultâneos: enquanto a defesa anunciava o reforço de Pertence, as redes sociais espalhavam que ele é primo da presidente do Supremo, Cármen Lúcia, mineira como ele. Isso foi encarado como uma tentativa de acuar a ministra, que votou sempre a favor do cumprimento da pena após a segunda instância e poderia se considerar impedida para julgar um caso do “primo” Pertence.
A isso se soma uma outra questão: a chefe de gabinete do ministro Luiz Fux é casada com um filho de Pertence, o que poderia gerar o mesmo efeito: o de levar o ministro a se considerar impedido para julgar a questão. Como Cármen Lúcia, Fux também votou a favor da prisão após a segunda instância.
Pertence foi o patrono da indicação de Cármen Lúcia para o Supremo no governo do amigo Lula, cheio de elogios para aquela procuradora de Minas, que tinha sido boa aluna de Direito e cultivava a fama de ser dura e “de esquerda”. Um é de Sabará, a outra é de Espinosa, na região de Montes Claros, e um parente distante da ministra tinha o sobrenome Pertence. Por isso os dois se cumprimentavam como “primos” no Supremo, mas eles não são primos nem têm parentesco direto.
Aliás, já há um precedente para manter Cármen Lúcia no julgamento de questões que tenham Pertence na bancada de defesa. Ela julgou normalmente um processo contra o banqueiro André Esteves, que era defendido pelo ex-ministro, sem nenhum motivo para se declarar impedida.
A questão tem um aspecto praticamente aritmético. Como, em 2016, o plenário do Supremo aprovou, por seis a cinco, a prisão após condenação em segunda instância, qualquer mexida pode inverter o placar e impedir a prisão. Seria o caso, por exemplo, do impedimento de Cármen Lúcia e de Fux, dois dos votos vitoriosos.
Uma das dúvidas que havia foi respondida nesta semana, quando o ministro Alexandre de Moraes, que assumiu na vaga de Teori Zavascki, morto em acidente aéreo, votou pela primeira vez sobre a questão e se manifestou a favor da prisão após a segunda instância num outro processo, o do deputado João Rodrigues (PSD-SC), condenado pelo mesmo tribunal de Lula, o TRF-4.
Isso tudo significa que os dois personagens-chave no destino de Lula no STF passam a ser Sepúlveda Pertence, que pode levar ao impedimento de Fux, e, ora, ora, o ministro Gilmar Mendes, que votou a favor da execução da pena em segunda instância, mas admitiu mais de um vez rever sua posição. Logo, eis mais um dilema típico da confusão que o Brasil vive: Lula está nas mãos de um grande amigo, Pertence, e de um adversário público, Gilmar Mendes.
O Estado de S. Paulo: “Há uma mudança no conceito de prova, de processo e de delito”, diz José Eduardo Faria
Professor de Direito da USP e FGV analisa as tensões entre duas "arquiteturas jurídicas" em choque no Brasil da Lava Jato
Estado da Arte
O ex-presidente Lula foi condenado sem provas pelo TRF-4. O Supremo Tribunal Federal protege a classe política. Os procuradores da Lava Jata criaram seu próprio Direito. Essas são afirmações muito comuns, ouvidas nos mais diversos espectros da política partidária e da vida nacional. Elas mostram como as tensões da política e da justiça estão entrelaçadas no Brasil atual, apresentando aos que querem entender o país questões muito complexas. Em entrevista ao Estado da Arte, o professor José Eduardo Faria tentou esclarecer as atuais tensões jurídicas e políticas do país analisando os novos paradigmas globais do direito penal econômico, sua assimilação na vida jurídica brasileira, e também o modo como processos emblemáticos como o Mensalão e a Lava Jato impõem novos entendimentos e procedimentos nas relações entre as instituições políticas e as instituições da Justiça.
Igualmente bem sucedido em suas carreiras como jornalista e como jurista, Faria iniciou sua vida profissional no Jornal da Tarde em 1967, tendo trabalhado também no Estado da São Paulo, onde atualmente é editorialista. Na mesma época, ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde seguiu carreira acadêmica, tornando-se em 1998 professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Professor visitante na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas desde 2004, se dedica particularmente à pesquisa de temas como a relação entre direito e economia; ensino jurídico no Brasil; poder, legitimidade, discurso político e crise de governabilidade, e é autor de vários livros, dentre eles O direito na economia globalizada (1997), e Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social (1984). Para Faria, a atualização do direito econômico penal brasileiro, especialmente no que diz respeito à lavagem de dinheiro, à corrupção e ao crime organizado, tem contribuído para “uma mudança no conceito de prova, uma mudança no conceito de processo e uma mudança no conceito do próprio delito.” Confira abaixo a íntegra da entrevista.
O senhor tem afirmado que há uma tensão entre visões distintas do direito em jogo nos processos de combate à corrupção no Brasil atualmente. Que tensão é essa?
Eu acredito que há aqui uma questão importante para verificarmos a mudança das gerações principalmente no campo do Direito Penal e no campo do Direito Econômico, mudança decorrente de uma atuação cada vez mais sofisticada do crime organizado e das organizações terroristas na Europa. Os países europeus que vinham estudando nos anos 1980 a possibilidade de formar uma União Europeia, saindo da mera zona econômica e constituindo uma comunidade integrada, perceberam que seria necessário dar um passo semelhante na área do Direito Penal, o qual deveria ser globalizado. Esse processo foi pensado a partir da premissa de que ao invés de reprimir o crime organizado nas suas consequências seria melhor asfixiá-lo financeiramente – o mesmo valeu para o terrorismo.
Com esse propósito, em 1989 foi constituído em Paris um grupo chamado GAFI [Grupo de Ação Financeira, Financial Action Task Force em inglês] para operar na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e que formará uma minuta de uma legislação penal econômica para todos os países membros da OCDE. A ideia seria trabalhar com o princípio da globalização econômica, o que exigiria, com o tempo, também a globalização de partes do Direito – não de todo ele, evidentemente.
E como isso repercutiu no Brasil?
A minuta foi adotada pelos países membros da OCDE e, a partir daí, alguns países que não pertencem à OCDE, como é o caso do Brasil, foram convidados a adotar essa legislação em troca de uma série de vantagens, como acesso a mercados, novas tecnologias, linhas de financiamento com juros favorecidos…
Quando se deu a entrada do Brasil?
Essas negociações se deram entre 1998 e 2000, e o país passa a ser membro go GAFI em 2000. Nesse momento, o Brasil começa a trocar sua arquitetura jurídica no que diz respeito ao direito econômico penal. É a partir dessa mudança que se torna possível identificar nas novas gerações de graduandos e pós-graduandos de nossas faculdades de Direito – e com o tempo, esses novos quadros serão juízes, promotores e advogados – a consciência de que quem quisesse se especializar nessa área do Direito teria de estudar fora. E isso por uma razão muito simples: não houve uma renovação do pensamento penal brasileiro nas universidades, que ficaram encasteladas e presas a doutrinas superadas, com um viés que nós podemos chamar de romano-germânico – bastante litúrgico, cheio de entraves burocráticos, cheio de sistemas de prazos e recursos que permitiam aos advogados discutir não grandes questões factuais mas sim teses, pleitear vícios, aguardar que tais pleitos fossem julgados lentamente e, assim, obter a prescrição dos crimes dos seus clientes.
E o que mudou com as gerações mais recentes que buscaram no exterior essa formação na área?
Esses alunos vão estudar fundamentalmente em universidades americanas e inglesas (e italianas, em menor escala). O resultado dessa formação foi uma renovação da mentalidade na Justiça brasileira, especialmente na primeira instância da Justiça Federal e no Ministério Público de um modo geral. Foi essa renovação que, a meu ver, ocasionou os conflitos geracionais, em particular nessa esfera do direito penal a que eu venho me referindo.
A partir de que momento podemos enxergar esse conflito? Com a Lava Jato?
Antes, com o julgamento do Mensalão. Nesse julgamento, os personagens envolvidos contrataram os grandes criminalistas brasileiros, inclusive com a articulação do falecido ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Esse pessoal sofreu uma derrota, especialmente nos votos do relator, Joaquim Barbosa, que já tinha uma visão mais americana, mais voltada a esse direito penal que vai direto ao foco, que trabalha com a identificação de atos que fogem a determinados padrões. Em geral, essa nova visão do direito penal é, de fato, sustentada por pessoas e equipes que entendem de contabilidade, que usam bem a tecnologia, que têm formação interdisciplinar, que sabem identificar procedimentos de ocultação de propriedades e de patrimônio. É uma turma capaz de descobrir os rastros deixados por documentos em vastas cadeias utilizadas para ocultar patrimônio ou dinheiro sujo.
Isso parece ter se traduzido também no trabalho integrado e internacional de organismos como polícias, procuradores e órgãos supranacionais.
Sim, de certo modo esse processo gerou, por exemplo, a ENCCLA (Estratégia Nacional para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), criada em 2003. Mas o que quero mostrar é que o que está acontecendo hoje é consequência de algo que começou a ser percebido já a partir do processo do Mensalão e cujas origens remontam à década de 1980. É essa a história do conflito geracional e das visões do Direito que nós estamos vendo hoje, e são poucas as faculdades de Direito hoje com professores preocupados em mostrar aos alunos esse confronto entre duas arquiteturas jurídicas – uma romano-germância, tradicional; outra de corte anglo-saxão, atrelada aos mecanismos de controle de uma economia globalizada.
É esse conflito de visões do Direito que sustenta a argumentação daqueles que dizem, no caso da recente condenação do ex-presidente Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, que “não há provas”?
Quando alguém diz que não há provas, quer isto dizer que não haveria provas do ponto de vista de uma leitura germano-românica do direito penal econômico. O que se procurou mostrar, tanto no caso do juiz Sérgio Moro quanto no caso dos desembargadores da 8a turma do TRF-4, é que, independente da inexistência de um título de propriedade ou do chamado “ato de ofício”, o que se tem é o desmonte de uma cadeia de documentos que identificam o crime e que justificam a condenação. Ou seja, é uma mudança no conceito de prova, uma mudança no conceito de processo e uma mudança no conceito do próprio delito. No Brasil, isso é novo. Mas não, frise-se, a arquitetura jurídica que essa novidade expressa: a mudança no paradigma do direito penal econômico já tem aproximadamente 30 anos. O que é novo, repito, é a ascensão desse modelo no Brasil.
Que existam essas visões divergentes e esse conflito de gerações que o senhor identifica não é algo que possa justificar a alegação daqueles que se sentem prejudicados em seu direito de defesa? O próprio ex-presidente Lula alegou cerceamento desse direito por variadas razões…
Acredito que não. Eu sou um sociólogo do Direito, estou acompanhando tudo isso a partir da dinâmica desse processo e não vejo razões para isso. Há um dado nesta pergunta que merece ser visto com mais atenção com respeito à defesa. Tome-se o caso da Lava Jato. Muitos dos advogados de empreiteiras envolvidas no processo foram meus alunos, alguns foram meus orientandos, ex-alunos que mantiveram contato comigo – como seu ex-professor, seu ex-orientador de mestrado ou doutorado. Por outro lado, a minha geração é a dos velhos advogados. Uma coisa que tenho percebido é que houve por parte das grandes empresas, em um primeiro momento, a preferência pelos advogados da velha tradição. Posteriormente, quando essas empresas se deram conta de que estratégia de defesa era ruim – pois girava em torno do garantismo –, perceberam que, pela nova legislação e pelo novo entendimento do direito penal (com destaque para a delação premiada e para os acordos de leniência), o custo financeiro das condenações seria muito alto. Muitas das grandes empreiteiras envolvidas na Lava Jato trocaram seus advogados. Há um momento em que vários advogados na faixa de 40, 45 anos de idade passam a atuar nos acordos de delação premiada das empreiteiras. Na avaliação delas, o impacto financeiro foi menor quando elas assumiram as culpas e assinaram os acordos de delação premiada do que se tivessem insistido na estratégia do garantismo, com altos gastos de defesa aos quais se somariam prováveis pesadas condenações.
A delação premiada e os acordos de leniência são parte dessa renovação da compreensão do direito penal brasileiro?
Também, e do ponto de vista do direito penal econômico, são desdobramentos de casos como os [do escândalo financeiro] da Enrom, que levou a um aperto no combate a crimes do sistema financeiro, e, posteriormente, do que ocorreu com os bancos na crise de 2007 e 2008. Pela legislação americana, uma empresa daquele país cujas franquias ou subsidiárias em qualquer parte do mundo se envolvam em casos ilegais pode ter a matriz condenada nos Estados Unidos. Assim, empresas com matriz nos Estados Unidos, ou que queiram operar por lá, passaram a se orientar pela legislação americana e a adotar normas de compliance nesse sentido.
O estatuto da delação premiada, sobre o qual muito se tem debatido no Brasil, sofreu um grande baque com o episódio envolvendo os irmãos Batista e o caso mal-sucedido de delação protagonizado, entre outros, pelo ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Qual foi o tamanho do estrago sofrido até agora?
Há aí um problema de erro e acerto. A vida do Direito não é lógica, é experiência. E não sou eu que digo isso: essa é a tradição do realismo americano, liderado, entre outros, por [Oliver] Wendell Holmes. Você pode ter uma legislação muito boa nas mãos de quem não sabe aplicar; ou uma legislação nova nas mãos de quem ainda não tem a habilidade necessária para lidar com ela. Mas isso não invalida a legislação. Claro, abre espaço para que ela seja atacada, como tem sido, o que pode levar, no futuro, à sua revogação, ou à aprovação de uma legislação que tipifique o chamado “crime de interpretação” do juiz. Isso pode tirar do Ministério Público a base que ele tem para agir no combate à corrupção.
Nesse caso, não se trata mais de uma tensão entre duas “arquiteturas jurídicas”, como o senhor denominou, mas sim de um conflito pesado da política propriamente, não?
Aí é a política, é o jogo corporativo. Há uma evidente união dos partidos quanto a isso. Isso se mostrou claramente nas recentes declarações da ministra Carmem Lúcia, na abertura do ano do Supremo Tribunal Federal, em discurso no qual defende a Justiça de ataques, que podem ser tanto aqueles deferidos por pessoas vinculadas ao ex-presidente Lula na semana de sua condenação pelo TRF-4, como os de alguém como o Ministro do governo Temer Carlos Marun (PMDB – MS), criando, por inabilidade, mais uma crise para o governo. Há um ponto de convergência de todas as forças políticas envolvidas nos escândalos de corrupção no ataque ao seu inimigo comum, o que leva o judiciário a tentar se manter coeso, especialmente quando, mais recentemente, passou a ser atacado em virtude da remuneração acima do teto. Isso é o que a sociologia americana chama de “guerras palacianas”, as guerras de corporações.
Já que falamos em delação premiada, o mesmo parece ter ocorrido com a chamada condução coercitiva, considerada por muitos um abuso, mas comum no Direito de países como Estados Unidos, Inglaterra, França…
De novo, erro e acerto, erro e acerto. E bom senso. Assim como houve a condução coercitiva do ex-presidente Lula, frequentemente apontada como um abuso, nós já tivemos também a prisão de um ex-prefeito de São Paulo constrangido de pijamas [Celso Pitta, durante a operação Satiagraha], ou, agora mesmo, a transferência do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, com algemas nas mãos e nos pés. Aí é falta de bom senso – e, claro, um pouco da lógica das guerras palacianas de que eu falava. Veja o caso do novo diretor da Polícia Federal, Fernando Segóvia e suas declarações, como foi o caso recentemente do programa da Mirian Leitão na Globo News. Segóvia foi indicado pelo presidente Michel Temer, e a justificativa apresentada para a saída de Leandro Daiello foi a de que ele estava cansado, já havia postergado sua aposentadoria e vinha sofrendo pressões da família para encerrar suas atividades. De bastidores, sabe-se que havia fortes movimentos para removê-lo da direção da Polícia Federal porque ele não cedia a pressões políticas, e Segóvia era um delegado com carreira no Maranhão e indicado pelo ex-presidente José Sarney. Agora considere o seguinte: sempre houve um tipo de rivalidade corporativa entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal em matéria de prestígio, de controle dos inquéritos. Do ponto de vista da Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba, houve um trabalho muito sincronizado e sem essa rivalidade, o que tornou possível o avanço e a celeridade dos processos na primeira instância no Paraná. Com a entrada de Segóvia, isso muda: com suas declarações provocativas sobre a mala de dinheiro, ele vive endereçando farpas à Procuradoria e ao MP. Qual é a lógica disso? Claramente é estimular tensões corporativas que abram brechas para os advogados de defesa atuarem pela impugnação das ações do Ministério Público ou da própria Polícia Federal. Olhando do ponto de vista da sociologia do Direito, acompanhando essa dinâmica, o comportamento dele é tal que abre o leque de possibilidades de argumentos de defesa para os réus da Lava Jato. E a ser correta essa análise, esse é o tipo de comportamento que precisa ser visto com mais cuidado e cautela pela sociedade.
A sociedade brasileira tem razão em esperar que surja desse conflito de visões do Direito uma nova visão de país, menos disposta aos arranjos que garantem a impunidade a políticos e poderosos em geral?
Essa é uma questão muito ampla e complexa. Vou tentar responder de forma precisa. Tradicionalmente – e essa discussão vem dos anos 1980 –, há uma interpretação do Direito que favorece uma certa confusão, sugerindo que a dignidade da Justiça estaria nos seus ritos, no seu formalismo, na sua linguagem pomposa, nos argumentos prolixos. Isso sempre fomentou correntes críticas do Direito engajadas na tarefa de desnudar esses mecanismos. Se nós olharmos para a forma como os desembargadores da 8a Turma do TRF-4 embasaram seus votos – não estou entrando no conteúdo, aqui, mas na forma –, percebe-se que eles procuraram jogar a discussão no chão, com uma linguagem clara e um propósito absolutamente pedagógico. Quebraram, com isso, aquela ideia do “juridiquês” como o latim das missas.
Quer dizer, em um contexto em que se tem TV Senado, sociólogos e filósofos do Direito analisando esses temas abertamente, novos operadores do Direito fugindo do formalismo, tudo isso somado a condenações expressivas como as de grandes empreiteiras, as de dois ex-presidentes da Câmara dos Deputados, a do ex-presidente Lula, forma-se na sociedade, pouco a pouco, um sentimento de igualdade perante a lei.
É um sentimento difuso, ainda sem grande penetração nas camadas populares, mas é um processo novo e importante.
Já no Supremo Tribunal Federal…
É perceptível que quando os processos saem dos Tribunais Regionais Federais e chegam ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal, a vulnerabilidade a uma pressão política é extremamente grande. Como sociólogo e filósofo do Direito eu não advogo, então estive poucas vezes nos tribunais superiores, e sempre como professor. Certa vez, no STJ, um ministro me disse: “Isso aqui é muito bonito, custou caro, foi feito pelo Niemeyer, mas não se esqueça, tem dono: um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama Antônio Carlos Magalhães; um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama Marco Maciel; um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama José Sarney; e o outro quarto é um ‘x-tudo’.” Quer dizer, ele chamava atenção justamente para essas injunções políticas. E essas injunções políticas podem ser ainda mais extremas no caso do Supremo. Basta ter em mente que, quando chegarem os recursos do ex-presidente Lula no Supremo daqui a alguns meses, o presidente da Casa será o ex-advogado do Partido dos Trabalhadores…
Quais seriam os antídotos para esse problema?
Eu já vi muita discussão sobre os critérios de indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Confesso que temo profundamente que haja uma mudança no sentido de permitir algum tipo de interferência da OAB e do Ministério Público nas indicações para ministros do Supremo.
Por quê?
Porque pode ocorrer o que se deu com o CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Quando o CNJ começou a ter um representante do Senado, um representante da Câmara, um representante da sociedade civil e um representante da OAB, o resultado foi a imediata partidarização. Quando o ex-presidente Lula entrou com um pedido de habeas corpus no STJ, o relator foi o vice-presidente da corte, Humberto Martins, cujo filho era correspondente do escritório de defesa do ex-presidente Lula em Brasília. Quando nós olhamos a trajetória do Humberto Martins, vemos que é um advogado de Alagoas que foi, pelo Quinto Constitucional, membro do Tribunal de Justiça e, como membro dos tribunais, acabou indicado pelo Senado para a vaga no Supremo. Percebe-se desde a origem que sempre teve o apadrinhamento de uma figura política, no caso, pelo que li a respeito, do Senador Renan Calheiros (PMDB – AL).
No caso específico do Supremo, eu acredito que o critério atual é adequado. O que precisamos evitar é o abastardamento. Quer dizer, interferências de órgãos como a OAB, o Ministério Público, juízes federais, estaduais, trabalhistas, etc., cujo resultado será a extrema partidarização e um engessamento corporativo. E eu acredito que o Supremo deve ter uma visão de mundo mais aberta, mais cosmopolita, menos corporativa.
Eu tenho acompanhado uma produção acadêmica excelente de pesquisas que têm mostrado a mudança de perfil do Supremo ao longo do tempo, e uma das coisas interessantes que tem me chamado a atenção é o comportamento de alguns ministros que, indicados no tempo da ditadura militar (1964-1985), demonstraram tremenda independência e profunda coragem cívica, por exemplo, concedendo habeas corpus, contrariando os presidentes do regime que os indicaram. Não se encontra necessariamente essa coragem cívica nos períodos da democracia.
E isso é um reflexo dessa partidarização?
Não apenas. Há um razoável consenso entre nós do meio jurídico que a atual configuração do Supremo é fraca. São magistrados sem formação doutrinária, ou sem pós-graduação, ou com cursos mais fracos, e, acima de tudo, são magistrados que não estão à altura do cargo. Tanto mais se comparados a alguns ministros do Supremo do passado que tiveram grande dignidade no cargo. Vamos dar dois nomes? Adauto Lúcio Cardoso e Aliomar Baleeiro, este último presidente do STF (1971-1973). Ambos tinham sólida formação jurídica, professores de Direito, eram conservadores da antiga União Democrática Nacional (UDN). Adauto Lúcio Cardoso, por exemplo, que já tinha votado em favor de habeas corpus para o líder estudantil Vladimir Palmeira e para o ex-chefe do Gabinete Civil de João Goulart, Darcy Ribeiro, em 1971. Foi o único voto pela inconstitucionalidade do decreto de Médici que instituía a censura prévia. Depois disso, como se diz, rasgou a toga e foi embora. Aliomar Baleeiro foi, igualmente, um crítico muito desperto do regime. Voltando à questão do mecanismo de indicações do STF, o mecanismo propriamente não é ruim – agora, não se pode aviltá-lo, colocando os interesses partidários acima da Justiça.
Isso não seria algo que tem menos relação com a normatização dos mecanismos de nomeação do que com a qualidade de nossa vida pública? Por exemplo, nos Estados Unidos é natural que um presidente Democrata ou Republicano indique para a Suprema Corte alguém alinhado com a visão de mundo que seu Partido e seu governo representam, mas jamais um advogado do partido, que jamais conseguiu ingressar na carreira pública…
Sim, advogado do partido, que foi reprovado duas vezes em concursos para a magistratura – você se refere ao Ministro Dias Toffolli. Ou, no caso do atual governo de Michel Temer, a indicação de Alexandre de Moraes, que tem no currículo uma reprovação para seu ingresso como professor da Faculdade de Direito da USP – no caso, uma reprovação minha.
Mas para ficar em sua comparação americana, quando eu comecei a dar aulas de Direito, ainda nos anos 1970, eu mostrava aos alunos como era possível compreender como votariam os juízes da Suprema Corte com base em seus escritos, em suas sabatinas, isto é, com base na coerência doutrinal de suas posições. No Brasil, os votos dos juízes do Supremo não chegam a formar essa coerência, pois não apenas os ministros muitas vezes votam de maneira contraditória com seu próprio histórico de entendimento de uma mesma matéria, como, para agravar ainda mais a situação, mesmo quando formam maioria, suas justificativas são frequentemente diferentes – quando não divergentes – entre si, o que impede a formulação de um entendimento claro sobre aquela matéria. Não se formam maiorias orgânicas: vence o “sim” ou “não” por mera contagem de votos. Veja o caso do ministro Gilmar Mendes, que após voto favorável à prisão após condenação em instância colegiada, deu a entender que poderia mudar o seu voto e, mais recentemente, afirmou que não era exatamente isso. Ora, isso gera insegurança jurídica, enfraquecendo a posição do Supremo.
Para encerrar. O senhor falou muito sobre as tensões entre essa nova geração do Direito, formada ou influenciada pela tradição jurídica anglo-saxã e mais globalizada do ponto de vista do direito penal econômico, e a velha tradição romano-germânica. Se um julgamento como este do ex-presidente Lula se desse em um ambiente constitucional como o americano ou o inglês, em vez de um terreno em disputa, quais seriam as diferenças?
Em primeiro lugar, a defesa jamais poderia ter se comportado do jeito que se comportou. Em segundo lugar, ela teria se voltado fundamentalmente para o foco do problema, e não às questões periféricas de natureza meramente processual, como insistiram em fazer. Terceiro: quando se trata de direito penal econômico, a interação do legislador e do executivo com o funcionamento da economia é um dado claro. No Brasil, ainda há certa dificuldade para se entender essas questões, mas como procurei mostrar, isso está mudando.
O Estado de S. Paulo: ‘O voto não pertence aos partidos e aos políticos’, diz Marina Silva
Herdeira de eleitores de Lula, caso ele fique de fora da disputa, ex-ministra afirma que ‘lei é para todos’ e ‘quem errou vai cumprir sua pena’
Marianna Holanda, de O Estado de S.Paulo
A pré-candidata da Rede à Presidência da República, Marina Silva, afirmou que a “lei deve ser para todos”, mesmo se significar a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado em segunda instância por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá (SP). “Não temos que ter uma lei para o Lula, para o Aécio (Neves), para o Jader Barbalho ou para o Renan Calheiros”, disse, em entrevista ao Estado, a ex-ministra do Meio Ambiente na gestão do petista.
Ao lado do ex-governador Ciro Gomes (PDT), Marina é a maior herdeira do eleitorado petista, em um cenário de ausência de Lula nas urnas, segundo a mais recente pesquisa Datafolha. Questionada como pretende arregimentar esses votos, ela afirma que “o voto não pertence nem aos partidos, nem às figuras políticas”. A disputa, segundo diz, segue aberta até outubro.
• O ex-presidente Lula foi condenado na segunda instância e corre risco de não concorrer nas eleições de outubro. Como seria uma eleição sem Lula?
Se reduzirmos a eleição a pessoas, ainda que sejam muito importantes, a gente vai diminuir a importância do debate para os problemas que estamos vivendo. Lula está fazendo aquilo que a lei lhe assegura, que é buscar todos os mecanismos de revisão para as decisões que foram tomadas pela Justiça. Meu entendimento, com base nos autos, é que foi uma decisão técnica. Obviamente que ele tem o direito de fazer esse percurso, mas chegará o momento em que teremos que nos deparar com o cumprimento da lei e eu advogo que a lei deve ser cumprida por todos, independente do poder econômico ou político. Espero que nessas eleições cada candidatura se coloque independente dos concorrentes.
• A sra. concorda com a condenação? Se for confirmada, após recursos, Lula deve ser preso?
A lei deve ser para todos. Não podemos ter dois pesos e duas medidas, essa é a minha posição. Você não pode ter a demanda por impunidade em função de quem está sendo julgado, nem a demanda por justiça, por vingança em função da pessoa que está sendo punida. Temos que ter o correto equilíbrio – justiça é reparação. Quem errou vai cumprir sua pena de acordo com o que é estabelecido pela lei, assegurados todos os direitos da democracia. Obviamente que a gente precisa agora cumprir com o imperativo ético do fim do foro privilegiado. Com certeza, com isso, não teríamos seis ministros escondidos no Executivo, o próprio presidente da República e cerca de 200 parlamentares investigados na Lava Jato. Os parlamentares que têm foro, alguns deles investigados, se não fosse o autoinduto que lhes deram, estariam provavelmente nas mesmas condições que está o ex-presidente Lula. Nós não temos que ter uma lei para Lula, para Aécio (Neves), para Jader Barbalho ou para Renan Calheiros.
• A Lava Jato é alvo de crítica de setores da política. A operação cometeu algum excesso?
A ação do MP, de parte da Justiça, da Polícia Federal, que se materializou em uma frente chamada Lava Jato é uma das maiores contribuições que nós temos para o País desde a retomada da democracia. E hoje ela (Lava Jato) está sob ameaça, porque há uma aliança dos grandes partidos, das lideranças dos grandes partidos, porque todos estão envolvidos, em enfraquecer os trabalhos.
• A sra. se arrepende de ter apoiado no segundo turno, em 2014, Aécio Neves (PSDB-MG)?
Se fosse hoje, jamais teria dado o apoio. Se tivéssemos as informações que foram trazidas pela Lava Jato, com certeza a maioria (da população) não teria votado, declarado apoio, nem na Dilma, nem no Aécio. Porque ambos eram praticantes dos mesmos males e mazelas da corrupção e do caixa 2.
• Jair Bolsonaro (PSC-RJ) aparece liderando o primeiro turno nas pesquisas eleitorais. O deputado também disputa com a sra. o eleitorado evangélico?
É um momento difícil, em que a sociedade está envergonhada, decepcionada com tudo que aconteceu. Nesses momentos, sempre surgem aqueles que querem evocar o lado cinza da força. Vou entrar nessa campanha oferecendo, literalmente, a outra face. Para a face do ódio, a face do amor. Porque eu já sei o que me espera. Me dirijo aos cidadãos debatendo ideias e respeitando cada uma dessas pessoas. Nós estamos num Estado laico. Estado laico não é Estado ateu, devemos ter respeito pela liberdade de expressão, inclusive a religiosa. Sou cristão evangelica.
O Estado de S. Paulo: Brasil precisa de ‘renovação’, diz Huck
Apresentador aparece em vídeo durante evento para bolsistas do RenovaBR, em São Paulo; fala do ex-presidente FHC também é transmitida
Por Gilberto Amendola, de O Estado de S. Paulo.
No evento de apresentação dos cem primeiros bolsistas do RenovaBR, projeto empresarial criado para capacitar futuros candidatos ao Legislativo, realizado ontem no teatro do World Trace Center, em São Paulo, duas participações gravadas em vídeo chamaram a atenção dos convidados: a do apresentador e empresário Luciano Huck e a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A fala de Huck foi marcada por uma afirmação: “O que a gente precisa no Brasil é renovação”.
Durante a apresentação dos futuros candidatos ao Legislativo apoiados pelo Renova, Huck disse, em vídeo, que o Brasil precisa de gente “com vontade de pôr a mão na massa”. “Na minha geração eu consigo enxergar competência, gente engajada e que eu admiro em vários setores. Na política é muito difícil conseguir encontrar muita gente da nossa geração, que está a fim de servir de fato e que esteja fazendo um bom trabalho. Então, o que a gente precisa no Brasil é renovação.”
Já FHC ressaltou a importância da “formação” e também se disse favorável à renovação: “Você não pode imaginar que a vida política seja simples, porque ela não é, é complexa. Você não pode imaginar, portanto, que as pessoas não têm alguma preparação, algum treinamento”, disse. “Isso não resolve tudo, eu sei, mas é fundamental e o RenovaBR é uma maneira de você permitir, que aqueles que se dispõem a ter uma certa disciplina vão ter um certo apoio para que possam se preparar para então enfrentar os desafios da política. Por isso, eu sou muito favorável para que haja essa renovação e que o RenovaBR faça parte disso”, completou.
As “presenças”, mesmo que virtuais, reforçaram a proximidade do tucano com Huck e o entorno do apresentador. A amizade entre os dois é pública. Além disso, FHC já deu sinais de que a presença de Huck na eleição seria bem-vinda – principalmente se a candidatura do governador Geraldo Alckmin (PSDB) não decolar.
Huck é um dos apoiadores do RenovaBR e amigo do idealizador do projeto, o empresário Eduardo Mufarej. O apresentador também faz parte ou é próximo de diversos movimentos cívicos que possuem bolsistas no próprio RenovaBR, como é o caso do Agora!, Acredito, Livres e Raps. Mesmo entre os bolsistas filiados à Rede e ao Novo, Huck é visto como um nome “pelo menos interessante” e “com qualidades para disputar a Presidência”. Em alguns casos, membros desses partidos se mostram mais animados com a ideia de uma candidatura Huck do que com as da ex-ministra Marina Silva (Rede) e o empresário João Amoedo (Novo).
Mufarej nega que o movimento possa apoiar algum candidato majoritário na próxima eleição e diz que o movimento é plural e está comprometido com bolsistas de diversas matizes políticas. Sobre Huck, Mufarej disse “ser uma pessoa com quem trocou muitas ideias no início do Renova”. Já em relação a FHC, Mufarej afirma que o ex-presidente “é um entusiasta da renovação”. Articulação. Nos bastidores do evento, interlocutores de Huck, do PPS e dos movimentos cívicos admitem que o apresentador ainda cogita uma candidatura presidencial. Mas, para tomar qualquer decisão, ele ainda estaria esperando os resultados das próximas pesquisas. Huck quer saber se os 8% de intenções de votos da última pesquisa Datafolha representam um “piso” ou o “teto”.
No campo da articulação, Huck e os movimentos cívicos estão cada vez mais próximos do PPS. O partido pode até mudar de nome para receber candidatos oriundos dos movimentos. O nome mais provável, mas ainda não definido, seria o de “Cidadãos”. Assim, a ideia seria agregar representantes do Agora, Acredito, Livres, Raps, entre outros – além de ser o partido que lançaria Huck à Presidência. O PPS aguarda a definição dos movimentos, principalmente do Agora!.
Para o PPS, o relógio corre um pouco mais rápido. O partido preciso de uma palavra final de Huck e movimentos até a primeira quinzena de março. Isso para não atrapalhar outras alianças caso o projeto “Cidadãos e Huck” não evolua.
Na semana passada, pessoas próximas ao apresentador também estiveram com o estrategista de campanha do presidente francês Emmanuel Macron, Guillaume Liegey – que anteontem ministrou uma aula sobre campanha eleitoral para os bolsistas do RenovaBR. Liegey chegou a declarar que Huck poderia repetir, no Brasil, o mesmo fenômeno de Macron.
Pesquisa. Uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva/Ideia Big Data para o projeto RenovaBR e divulgada durante a apresentação dos bolsistas, mostrou que 96% dos brasileiros afirmam não se sentirem representados pelos políticos em exercício. Ao mesmo tempo, 93% da população afirma que é preciso formar novas lideranças políticas para mudar o País.
Ainda de acordo com a pesquisa, 88% das pessoas acham que deveria haver mais espaço para cidadãos comuns se candidatarem. Por exemplo, 78% dizem que não votariam em um político que esteja exercendo mandato parlamentar atualmente e 74% acreditam que a própria população é quem mais tem condições de promover a renovação na política.
O presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, afirmou que os resultados da pesquisa mostram que existe espaço para um “outsider” na corrida presidencial desse ano. “Um nome como o de Luciano Huck pode ser forte nesse contexto”, disse.
Miguel Reale Júnior: Homem incomum
Ele se julga acima da lei. As comparações com Tiradentes, Mandela e Jesus ajudam a entender
Em 10 de agosto de 2016, editorial deste jornal intitulado O que resta a Lula já denunciava a estratégia por ele adotada de transformar “a vitimização em sua principal – se não única – linha de defesa”. Anotava-se que o ex-presidente não se importava em achincalhar a imagem da Justiça brasileira no exterior, pois seu interesse estava em inventar argumentos que transformassem os agentes da lei, dedicados a investigá-lo, em algozes “a soldo das elites interessadas em alijá-lo da eleição presidencial de 2018”.
Essa desonesta e simplista explicação assomou a grau mais elevado diante da confirmação da condenação por unanimidade no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região. Na noite da decisão, na Praça da República, em São Paulo, Lula voltou com a cantilena ao dizer, com absoluta irresponsabilidade, ter havido um pacto entre o Poder Judiciário e a imprensa: “Resolveram que era hora de acabar com o PT e com a nossa governança no País. Eles já não admitiam mais a ascensão social das pessoas mais pobres desse país e dos trabalhadores”.
O PT, por sua vez, em nota acusa “o engajamento político-partidário de setores do sistema judicial, orquestrado pela Rede Globo, com o objetivo de tirar Lula do processo eleitoral”.
O confronto com o Judiciário, acusado de fazer parte de plano das elites para impedir a candidatura de Lula, permitiu que mal informado deputado do Bloco de Esquerda de Portugal, em artigo no jornal O Público, chegasse à desfaçatez de afirmar que o juiz Sergio Moro é “um homem do PSDB”.
A vitimização torna-se mais eficaz quando se cria um inimigo imaginário, que encarna o mal e persegue quem faz o bem apenas por maldade e egoísmo. Assim o PT e Lula decretaram o monopólio da sensibilidade moral de se preocupar e implementar soluções para a imensa desigualdade social existente no Brasil. Inventa-se um mal-estar da elite, incomodada com a melhoria de condições de vida da população pobre, como se a riqueza geral e o desenvolvimento de todos não fossem, até por motivos de lucro – se não por busca de justiça social – um objetivo da denominada “elite”.
Lula e seus acólitos relativizam a moralidade administrativa, transformando, sem nenhuma vergonha, fatos concretos de flagrante desonestidade em mera perseguição, adotando o ataque a monstros imaginários (complô do Judiciário, imprensa e elite incomodada) como expediente de defesa, na falta de argumentos jurídicos.
Mas se há um governante que se aliou às forças mais retrógradas deste país foi Lula. Tornou-se amigo dos donos e diretores das principais empreiteiras e uniu-se a políticos, homens da ditadura, representativos do que há de pior como atraso e amoralidade na nossa política: José Sarney e Paulo Maluf.
Ao Maluf foi beijar a mão em sua casa no Jardim América. De Sarney tornou-se grande amigo. Assim, em 2009, quando Sarney, presidente do Senado, era acusado de autorizar nomeações secretas, Lula disse o absurdo próprio de tratamento entre membros da elite: “Penso que ele tem história no Brasil, suficiente para que não seja tratado como uma pessoa comum. O MP deveria prestar a atenção na biografia do presidente Sarney. Sarney não roubou, não matou. Nem todo desvio administrativo é crime”.
Em 2010, ao ser perguntado, em visita ao Maranhão, se lá estava “para agradecer o apoio da oligarquia Sarney”, Lula, enraivecido, acusou o repórter de ser preconceituoso, aconselhando-o a se tratar: “Quem sabe fazer uma psicanálise para diminuir o preconceito”. Nessa entrevista, mostrou a pior mentalidade da elite atrasada ao arrematar: “Uma pessoa, na medida em que toma posse, ela passa a ser uma instituição e tem de ser respeitada”.
Na eleição de 2010, Lula apoiou Roseana Sarney como candidata ao governo do Maranhão. Agora Sarney afirma em nota: “Lula é um grande líder do Brasil. Sua condenação gera uma grande frustração a expressiva parcela do povo brasileiro. Seu amigo pessoal, sempre testemunhei sua preocupação com a coisa pública. Lamento a decisão”.
Lula considera-se alguém, tal como ajuíza Sarney, a não ser tratado como pessoa comum. Além da vitimização, apenas é possível explicar suas atitudes, após a decisão do TRF-4, como fruto de se achar também incomum, uma instituição da elite intocável pela lei; esta é para pessoas comuns. Tanto assim que bravateou, dizendo dispor-se a ficar com os três juízes um dia inteiro, televisionado ao vivo, para que lhe “mostrem qual o crime que o Lula cometeu”. Réu VIP, a merecer dos julgadores tratamento especial: passar um dia inteiro discutindo o processo com o condenado!
No dia seguinte, ungido candidato à Presidência, Lula pôs-se como juiz dos juízes, acima da lei, ao dizer não haver razão para respeitar a decisão que o condenou. As comparações com Tiradentes, Mandela e até Jesus Cristo ajudam a entender.
Quanto ao processo, Lula e seus sequazes repetem à exaustão não haver provas, acentuando o fato de não constar como dono do apartamento. Provas há, basta prestar atenção aos votos proferidos. O argumento de o imóvel não estar em seu nome é confessar o crime de lavagem de dinheiro, disfarçando a propriedade, cuja titularidade seria depois decidida, ocultando o bem recebido.
Inverte-se, com má-fé, o raciocínio: o Lula deixa de ser candidato porque foi condenado diante de fatos concretos de corrupção e lavagem de dinheiro, e não condenado para não ser candidato. Mas ser eleito presidente não deixa de ser um modo de tentar escapar dessa e de outras possíveis condenações.
Lula fala tanto de medidas em favor dos pobres, mas a herança deixada por Dilma e pelo PT foi uma imensa recessão, com PIB negativo na ordem de 3,7% e mais de 12 milhões de desempregados, além da inflação de dois dígitos. Nada foi pior para os pobres do que a errática política econômica e o populismo fiscal eleitoral do PT. Mas, isso Lula tenta esconder.
* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça