O Estado de S. Paulo
Everardo Maciel: Insegurança tributária
Temos um excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais
Um traço dominante da cena atual brasileira é, sem dúvida, a insegurança, que se revela de inúmeras formas, desde o desrespeito à propriedade e aos contratos até a dramática violência urbana, promovida pelo crime organizado e pelas milícias.
Nesse contexto, desponta a insegurança jurídica, com grande potencial para minar os valores básicos que regem a vida em sociedade.
No âmbito tributário, segurança jurídica é fator crucial para os investimentos.
Processos morosos e com elevado grau de imprevisibilidade, conceitos excessivamente indeterminados e interpretações ciclotímicas afugentam investidores e criam um clima hostil aos negócios.
As decisões judiciais sobre a natureza da substituição tributária constituem um bom exemplo de ciclotimia interpretativa.
Utilizada desde os anos 1970, ainda que de início restrita a um pequeno número de produtos e com nítido propósito de combater a evasão fiscal, a substituição tributária foi incluída na Constituição pela Emenda n.º 3, de 1993.
A inclusão justamente no âmbito das limitações do poder de tributar, tratadas no artigo 150 da Constituição, revela claramente uma pretensão de restringir o uso do instituto. Não foi, entretanto, o que ocorreu.
Logo após a promulgação daquela emenda, houve um aumento exponencial de uso da substituição tributária. Não raro foi utilizada com flagrantes extravagâncias, especialmente no que concerne à fixação das margens de valor agregado e abrangência dos produtos.
Instado a examinar a matéria, o STF adotou, por incrível que pareça, entendimentos completamente antagônicos.
A balbúrdia interpretativa torna, inclusive, duvidosa a jurisprudência prevalecente, que pode, a qualquer tempo, ser revertida, em virtude, por exemplo, de uma nova composição da Corte.
Esse fato, em boa medida, se explica pela descomunal extensão da matéria tributária constitucional, que gera espaço para uma miríade de questionamentos, sobretudo quando se considera a nossa irresistível vocação para litigar, traduzida nos 80 milhões de processos em curso no Judiciário brasileiro.
No caso específico da substituição tributária, mais adequado teria sido discipliná-la no Código Tributário Nacional (CTN).
Vivemos, assim, um paradoxo: excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais.
Em recente colóquio em Lisboa, Humberto Ávila, titular de direito tributário na USP, assinalou sua perplexidade com a crise das regras: “O julgador não gosta da regra? Azar da regra! Sabe-se lá com que critério. Se não reabilitarmos as regras para limitar a participação do intérprete e para controlar o poder, vamos eliminar o caráter normativo do direito”.
Se a substituição tributária é capaz de produzir tamanho imbróglio, o que não dizer do planejamento tributário, com sua desproporcional capacidade de gerar grandes litígios?
O enfrentamento do planejamento tributário abusivo é tema extremamente relevante para as administrações tributárias de todo o mundo, conquanto encerre muitas controvérsias.
No Brasil, efetivamente somente mereceu atenção após a introdução do parágrafo único do artigo 116 do CTN, por meio da Lei Complementar n.º 104, de 2001. O enunciado da norma esclarecia que ela só lograria eficácia plena com o estabelecimento de procedimentos especiais definidos em lei ordinária.
A Medida Provisória n.º 66, de 2002, nos artigos 13 a 19, preenchia o requisito do CTN: distinguia dissimulação de simulação, definia as hipóteses de aplicabilidade do instituto da desconsideração administrativa (falta de propósito negocial e abuso de forma) e estabelecia os procedimentos especiais aplicáveis à hipótese.
Infelizmente, o Congresso Nacional não converteu em lei aqueles dispositivos.
A mora legislativa de 16 anos não impediu, contudo, o Fisco de proceder a questionáveis e exorbitantes lançamentos, visando a coibir planejamento tributário abusivo. A matéria, algum dia, terá imprevisível desfecho no STF. Por que não estabelecer, logo, a regra demandada pelo CTN, eliminando esse foco de insegurança jurídica?
* Everardo Maciel é consultor tributário. Foi secretário da Receita Federal (1995-2002
William Waack: Aposta perdida
Imprevisibilidade das eleições ressuscita apreensão sobre economia
A equipe econômica que assumiu depois do desastre dos governos do PT é de primeira linha, mas a aposta feita pelo grupo não deu certo. O cálculo assumia poucas condições políticas para grandes lances, mas também que um pouco de cuidado com as contas públicas, um pouco de reforma trabalhista, um pouco de privatizações, um pouco de microgerenciamento de regras e tributos fariam boa diferença – principalmente com a esperada queda dos juros e da inflação.
Melhoraria um pouco o ambiente de negócios, o desemprego recuaria um pouco, o cenário internacional seria pouco ameaçador e a retomada de exportações ajudaria a impulsionar a economia. As pessoas se sentiriam menos angustiadas, especialmente na hora de tomar decisões de consumo e/ou investimento. A atmosfera política antes de uma eleição decisiva talvez ficasse menos carregada, haveria até espaço para campanhas discutirem como fazer o País crescer.
Notem que todas as premissas do ponto de partida da aposta da equipe econômica se cumpriram – menos, crucialmente, o fim da angústia e o início de um bom debate sobre rumos. E então vêm a subida do dólar, as taxas decepcionantes do nível de emprego, o anúncio de mais um estouro no caixa das contas públicas e confirma-se a percepção de que o atual governo (nem precisamos mais discutir as causas) tem escassas possibilidades de aprovar matérias que envolvam articulações e votações complexas.
É importante registrar aqui que nem a vulnerabilidade e fragilidades políticas do governo, nem a demora em aprovar reformas e muito menos as oscilações do dólar são fatores inesperados. Ao contrário, constam de relatórios periódicos elaborados por consultorias e agências de análise de risco nacionais e estrangeiras. Em outras palavras, eram pontos no radar de todo mundo que tenta prever para onde vai a economia. Mas eis que surge então a “surpresa”: o inegável recrudescimento, nos últimos dias, de um ambiente de apreensão e considerável ceticismo frente ao futuro da economia brasileira.
Esse mau humor é resultado direto da imprevisibilidade das eleições. Contudo, esse estado de espírito não expressa simplesmente a dúvida sobre quem será presidente depois do pleito. Os temores bem pouco subjetivos podem ser resumidos quase num trocadilho: candidatos reformistas com plataformas econômicas conhecidas não aparecem bem nas pesquisas e empolgam até agora pouca gente. Os candidatos que se destacam mais nas pesquisas neste momento até exibem porta-vozes e/ou frases de efeito sobre o fim do populismo fiscal e intervencionismo que ajudaram o Brasil a afundar em recessão, mas pode-se confiar neles?
Há sérias dúvidas se o empenho em dizer o que agrada a agentes de mercado prosseguiria além do que é dito em conversas e apresentações coreografadas. E qual é o cacife no Congresso para gente sem partido forte, na hora de governar? O que parece estar pesando “repentinamente” nesse conjunto de percepções do momento é mesmo o tradicional pano de fundo das mazelas da nossa economia – que precisaria ser modernizada, mais aberta, mais produtiva, mais competitiva, precisando de muito mais investimento.
Tudo agravado por uma desconfortável indagação: seja quem for, vai pegar um País governável? Virou consenso a constatação de que todas as questões importantes ficaram para 2019 – no momento, porém, não há qualquer certeza sobre qual força política terá de lidar com desafios cujo atraso em enfrentá-los só os torna mais pesados. Talvez essa apreensão que voltou a nos assombrar seja a coisa mais salutar dos últimos dias.
Eros Roberto Grau: Marx e Armênio, três séculos em maio!
Se me perguntarem o que me une aos dois, direi que é a Amizade
Eis de repente, aqui, o mês de maio e suas rosas. A uma delas - qual na canção de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy - ofereço meu coração. Ouço essa canção, agora, numa velha vitrola de discos de 78 rotações, lembrando-me de dois amigos.
Ao me aproximar dos 80 anos - chegarei lá? -, dúvidas tomam conta de mim e o esquecimento, uma coisa terrível, me comove. Não que não me lembre disto ou daquilo, não. O esquecimento dos outros e pelos outros é que me entristece.
No dia 27 de fevereiro passado participei de um debate organizado pelo Estadão cujo tema era “Modernizar a Constituição”. Ali pelas tantas, citei um trecho escrito por alguém no século 19: “Em um determinado estado do seu desenvolvimento, as forças materiais produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou - o que não constitui senão uma expressão jurídica delas - com as relações de propriedade no seio das quais vinham se movendo até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações se tornam entraves delas. Inicia-se então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura”.
O auditório estava completo, cheio de gente atenta a escutar-nos, mas apenas duas pessoas se deram conta de que eu acabara de ler algumas linhas escritas por um velho alemão, o camarada Karl Marx, no prólogo da Contribuição à Crítica da Economia Política!
A vida é maravilhosa, porém de repente tudo se vai. Como diz o Álvaro de Campos, vulgo Fernando Pessoa, depois que nos formos só seremos lembrados em duas datas, aniversariamente: quando fizer anos que nascemos e quando fizer anos que morremos; mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Um nasceu cem anos depois do outro. Os dois completariam, lado a lado, 300 anos neste mês em que estamos. Marx e meu amigo que se foi em março de 2015, o camarada Armênio Guedes. Tenho agora em minhas mãos os textos de um livro a ser publicado em homenagem ao centenário do Armênio, 33, escritos por amigos seus de verdade.
Armênio nasceu no dia 30 de maio de 1918, em Mucugê, na Bahia. O velho Marx, no dia 5 de maio de 1818, em Tréveris, na Alemanha. Estive seguidamente com os dois.
Ao alemão fui apresentado por meu pai - que também nasceu em maio, no dia 9, em 1916 - quando tinha 15 anos. Entregou-me um livro de Marx - não me recordo se o Manifesto ou outro -, recomendando-me que o lesse com atenção. Em 1955 a televisão e a internet ainda não existiam como instrumentos do modo de produção social que está por aí. Os jovens liam, alguns também escreviam.
Do Armênio aproximei-me nos anos 1980. Quando ele se foi, escrevi um pequeno texto no qual afirmei que lá se fora o Júlio, o Tio, como o chamavam seus companheiros de exílio - Cecília, sua mulher, minha amiga, passou a vida toda chamando-o de Júlio!
Afirmei então que naquele momento era como se eu corresse os olhos, dominando o tempo, por inúmeros instantes do passado. Em Paris, em minha casa em Tiradentes (MG), em São Paulo. Armênio ensinando o futuro a minha filha. A mim recomendando prudência, mais de uma vez.
Lá se fora o amigo mais sereno. Seu olhar desdobrava esperança, paz. Revolucionar o mundo, construir a fraternidade, mas em paz, harmonia e paz. Alguns amigos em volta do seu corpo, de repente o chão se abrindo para que a matéria fosse levada para sempre. Antes, durante breves instantes, confraternizamos. Estivemos mais próximos do que nunca, entre nós e a ele. Uns foram capazes de dizer algumas palavras. Faltaram-me forças para mencionar o quanto o meu velho camarada me ensinara, para ao menos sussurrar a palavra amizade. Alguém trouxera, para ser reproduzida, a gravação de uma canção que, naquele verso - nesta luta final -, ressoa em nossos corações.
Lá se fora o corpo de Armênio. A esperança refletida no fundo de seus olhos serenos restava, no entanto, entre nós. Iluminando os caminhos a serem experimentados pelos que ainda lá estavam. Um dia por certo nos reencontraremos na cidade de férias, férias boas que não acabam mais.
Tenho estórias e histórias a contar de nossas conversas, do Tio corrigindo e emendando artiguinhos que escrevi para serem publicados na Gazeta Mercantil e de minhas confidências de irmão. Durante o tempo todo em que exerci a magistratura, seu olhar, iluminado pela phrónesis de Aristóteles, me inspirou. Nada de ciência, prudência. Armênio iluminou o voto que proferi, como relator, no processo em que se discutia amplitude da anistia. Conversamos muito, longamente, foi ele que me conduziu em direção ao correto. Curiosamente, sempre o tive como um irmão, embora ele e meu pai tivessem nascido em 1916 e em 1918, nos meses de maio de então.
Com Marx estive também, em tudo quanto li do que escreveu. Guardo ao lado dos meus livros, cá em Tiradentes - onde estou agora a escrever - fotos desses meus dois amigos de verdade.
Como o espaço que aqui me resta é pequeno, basta-me repetir uma lição do então jovem Marx - quando a escreveu - a respeito do Direito e das leis: “A lei é universal; o caso que deve ser decidido através da lei é individual; para submeter o individual ao universal é necessário um julgamento; o julgamento é problemático; o juiz também faz parte da lei; se as leis fossem aplicadas por si mesmas, os tribunais seriam supérfluos”.
Se me perguntarem o que me une aos dois, direi que é a Amizade. Nós a cultivaremos em algum lugar do Espaço, para sempre.
* Eros Roberto Grau - advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Monica de Bolle: Orgulho e preconceito
No universo das políticas públicas, há muito mais entre o céu e a terra do que a simples adoção de cotas
A intenção não era intitular esse artigo à la Jane Austen, mas sim “Ignorância, Orgulho e Preconceito” que, infelizmente, não cabe nos limites do jornal. A ignorância reflete a absoluta falta de conhecimento a respeito da relevância de problema por mim já discutido nesse espaço: o hiato salarial persistente entre homens e mulheres no mundo, e no Brasil em particular. A esse respeito, já fui interpelada com argumentos que vão desde “quanta decepção ao ver você exaltar a vitimização da mulher” até “o Brasil tem tantos outros problemas mais importantes do que esse”.
O orgulho está nas propostas de alguns presidenciáveis, que consideram esse tema pouco importante ou irrelevante. Para esses, educar-se com fatos e evidências sobre o assunto não interessa, o que importa são bordões e platitudes. Por fim, o preconceito. Sobre isso, prefiro nada dizer. Basta ler os comentários das redes sociais toda vez que o tema é levantado em alguma discussão.
Mas quero retornar à ignorância. É estupendo – no pior sentido – que tanta gente não tenha a menor ideia do custo para a economia e para o desenvolvimento de um país proveniente da disparidade salarial. De acordo com relatório de 2017 da ONU, controlados diferenciais de produtividade, qualificação acadêmica, atividade profissional, idade, licença-maternidade, entre outros fatores, mulheres recebem remuneração 23% menor do que homens – ou elas ganham 77% dos salários deles. O Brasil está exatamente na média global, segundo estudos: mulheres recebem 77% dos salários dos homens. Visto de outro modo, uma mulher com a mesma qualificação, educação e produtividade do que um homem teria de trabalhar 16 meses para receber a mesma remuneração que eles ganham em doze. Por que isso interessa? Há vários estudos – do FMI, do Banco Mundial, da OCDE – mostrando que quanto menor a diferença de salários das mulheres e maior a participação feminina no mercado de trabalho, maiores as taxas de crescimento do PIB. Há estudos também mostrando que a inclusão feminina no mercado de trabalho e a facilitação do acesso ao crédito têm consequências distributivas relevantes, além de efeitos sobre a redução da pobreza. Portanto, políticas públicas voltadas para a redução do hiato salarial poderiam ajudar a resolver diversos graves problemas brasileiros. E as políticas públicas funcionam, para a surpresa de alguns de nossos presidenciáveis.
Em países como o Reino Unido, Chile, Portugal, Áustria, Dinamarca, Suécia, Espanha, Bélgica, entre outros, uma das políticas implantadas foi bem simples: requerer das empresas a transparência sobre os salários pagos por gênero para cada ocupação. Há documentação empírica revelando que a divulgação pública de como as empresas remuneram seus funcionários por ocupação e gênero criou incentivo para a redução de disparidades, sem a necessidade de maiores intervenções. Infelizmente, ao batalhão de desinformados sobre esse tema, prevalece a ideia de que quem fala em disparidade de gêneros no fundo quer a imposição de cotas para mulheres. No universo das políticas públicas, há muito mais entre o céu e a terra do que a simples adoção de cotas. Há medidas para reduzir a falta de informação, há políticas que introduzam no orçamento público gastos relativos às necessidades específicas das mulheres, como a provisão de créditos para aposentadoria de quem precisa se ausentar do mercado de trabalho por um tempo para cuidar dos filhos. Aliás, no Brasil em que ainda não houve reforma da Previdência, mas onde essa deve ser a prioridade do próximo governo, urge tratar desse tema em qualquer proposta que venha a ser elaborada.
A ideia de que políticas públicas em determinadas áreas tenham necessariamente de ser vistas como interferências indevidas do Estado não poderia ser mais equivocada, distante da realidade, ou mesmo daquilo que tão bem sabem os economistas preocupados com os fatos e as evidências: o mercado é um excelente mecanismo alocativo, mas muitas vezes ele falha. Quando falha, cabe ao governo prover os incentivos para resolver a falha. Isso nada tem de intervencionismo penoso, ou qualquer outro vício ideológico que passou a dominar crescentemente o debate político brasileiro.
Espero que o tema faça parte da pauta de debates da eleições. É demasiado importante para que fique relegado à ignorância, ao orgulho e ao preconceito.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Eliane Cantanhêde: Minas já foi Minas
Dilma, Aécio, Pimentel... não se fazem mais políticos mineiros como antigamente
Minas Gerais é um dos três principais Estados da Federação e tinha fama de ser, historicamente, o maior celeiro de políticos matreiros e competentes do País, as tais “raposas políticas”. Porém, se o Rio vive um caos e a eleição presidencial é uma grande interrogação, a situação de Minas não é nenhuma maravilha e a campanha no Estado é igualmente incerta.
Terceira maior economia do País, segunda maior população e segundo maior eleitorado (quase 11% do total), Minas continua sendo definidor de eleições presidenciais, mas seus principais partidos estão machucados e seus mais lustrosos líderes políticos andam em maus lençóis, devendo muitas explicações à Justiça, à Assembleia, à opinião pública.
Diferentemente de São Paulo e Rio, Minas aparece pouco na grande mídia e, em 2014, as análises políticas partiam de duas premissas: Dilma Rousseff ganharia no Nordeste e Aécio Neves levaria fácil em Minas, mas ele perdeu no primeiro e segundo turnos no seu Estado e seu candidato ao governo, Pimenta da Veiga, sofreu derrota fragorosa.
Para arrematar, a aposta de Aécio perdeu feio, dois anos depois, para a prefeitura de Belo Horizonte.
De outro lado, Dilma ganhou no Nordeste e em Minas, seu Estado de origem, apesar de ser gaúcha por adoção, e seu ex-ministro, conselheiro e amigo Fernando Pimentel levou o governo e assim dividiu o “Triângulo das Bermudas” pelos três principais partidos: São Paulo manteve o PSDB, Rio continuou com o agora MDB (apesar de tudo...) e Minas foi do PSDB para o PT.
A guerra entre PT e PSDB é particularmente encarniçada em Minas, mas o resultado é que quem levou a prefeitura da capital em 2016 foi o empresário e dirigente desportivo Alexandre Kalil, do insignificante PHS, que se tornou o mais lustroso “outsider” da eleição no País, apresentando-se como apolítico e apartidário.
Kalil é, assim, o maior exemplo de que em Minas não se fazem mais políticos como antigamente, ou como Afonso Arinos, Milton Campos, Gustavo Capanema, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves e Itamar Franco, que tinham lá suas idiossincrasias, mas com imensa liderança ou matreirice política.
Os ex-governadores e ex-presidentes do PSDB Eduardo Azeredo e Aécio Neves estão mal, um com o pé na prisão, o outro réu no Supremo. E a Assembleia Legislativa acaba de acatar o pedido de impeachment do petista Fernando Pimentel, candidato à reeleição contra o ex-governador tucano Antonio Anastasia, caçado a laço pelo presidenciável Geraldo Alckmin. A contragosto, ele cedeu.
E por que tanto empenho do PSDB por Anastasia? O PT reina no Nordeste, o Rio virou a casa da mãe Joana, Álvaro Dias capitaliza o desencanto com Aécio no Sul e Jair Bolsonaro embrenhou-se pelo Centro-Oeste. Alckmin só terá chance se, além de recuperar São Paulo, conquistar Minas – algo que nem Aécio conseguiu.
Como complicador tanto para tucanos quanto para petistas, Dilma Rousseff resolveu aproveitar o jeitinho do Senado, que lhe cassou o mandato, mas manteve a elegibilidade, e quer disputar o Senado por Minas, apesar de alternar residência entre Rio e Porto Alegre. Se tende a tirar votos do PSDB, ela já entra rachando a aliança entre PT e MDB.
Depois do impeachment de Dilma e do colapso político de Aécio, os dois mineiros do segundo turno de 2014, sobra como consolo para Minas ser ainda o Estado mais cobiçado na escolha de vices. O empresário Josué Gomes da Silva é o melhor exemplo. De um Estado-chave, dono de uma das maiores fortunas do Brasil e filho do vice de Lula, José Alencar, ele se filiou a um partido, o PR, e tem tudo para ser o vice ideal e salvar a imagem da política mineira em outubro. Só falta o principal: querer.
Eliane Cantanhêde: Acórdão ou acordão?
Suspense: só com acórdão ficará claro até onde a Segunda Turma quer chegar
Há uma final de campeonato entre dois times de ministros do Supremo Tribunal Federal: um que joga com a defesa do ex-presidente Lula, preso em Curitiba; outro, com o juiz Sérgio Moro e a força-tarefa da Lava Jato. Ora o decano Celso de Melo desempata para um lado, ora a ministra Rosa Weber desempata para o outro, mas os times estão equilibrados.
Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli levantaram a bola e os (muitos, aliás) advogados de Lula cortaram. Os três ministros mudaram seus votos de apenas meses atrás e retiraram do juiz Sérgio Moro trechos das delações premiadas da Odebrecht que citam Lula. Ato contínuo, os advogados pediram a Moro que enviasse os processos contra Lula para a Justiça em São Paulo.
No pedido, que nem sequer aguardou a publicação do acórdão da Segunda Turma, a defesa requer a “imediata remessa” dos autos processuais quanto ao sítio de Atibaia, fala em “incompetência desse Juízo” (a Vara de Moro) e provoca: “A menos que se queira desafiar a autoridade da decisão proferida pelo Supremo”.
Essa tentativa de retirar de Moro os inquéritos contra Lula deixa um rastro de dúvidas sobre a amplitude e as intenções da decisão da Segunda Turma e até a suspeita de uma grande jogada: tirar os trechos da delação da Odebrecht, depois o sítio e o Instituto Lula e, por fim, requerer a nulidade da própria condenação a 12 anos e 1 mês pelo triplex do Guarujá.
O time adversário está mudo, não indiferente. Os demais, a presidente Cármen Lúcia e os vencidos na Segunda Turma, Celso de Melo e Edson Fachin, não se manifestaram a favor ou contra a decisão sobre as referências da Odebrecht a Lula, mas há troca de impressões, até de pareceres. Como a procuradora-geral Raquel Dodge e como nós, meros mortais, também eles não captaram até onde Gilmar, Lewandowski e Toffoli querem chegar.
Pelo time de Moro, falou o próprio Moro. Em despacho em que diz aguardar a publicação do acórdão “para avaliar a extensão do julgado”, o juiz afirma que a investigação sobre o sítio de Atibaia começou muito antes das delações da Odebrecht, com base em outras provas. E frisa que, no voto do relator Toffoli na Segunda Turma, “não há uma referência direta” ao processo do sítio nem “alguma determinação expressa” sobre sua competência para julgar essa ação.
Assistindo de camarote ao campeonato, o Ministério Público Federal engrossa a torcida do time Moro-ministros perplexos do STF. Em petição para manter os autos em Curitiba, condena a decisão da Segunda Turma e “o lamentável tumulto processual” causado pela remessa de trechos das delações da empreiteira para São Paulo.
Quanto a Raquel Dodge: ela já disse e repetiu que aguarda o acórdão de Toffoli para decidir se entra ou não com recurso contra a decisão da turma e qual é exatamente o recurso cabível nesse caso. Moro, demais ministros do Supremo, advogados, imprensa e sociedade também aguardam o acórdão e a reação de Dodge.
É assim que o mundo político e jurídico, sacudido por tantos lances e emoções, está com a respiração suspensa à espera do acórdão (atenção: acórdão, não acordão) da Segunda Turma revelando qual a real dimensão da surpreendente decisão que favorece Lula e esvazia Moro.
Logo, o foco está em Dias Toffoli, que assumiu audaciosamente a linha de frente do seu time e será o próximo presidente do Supremo a partir de setembro. Após seu acórdão da decisão da Segunda Turma, todos os recursos irão para ele, não mais para Edson Fachin, que é o relator da Lava Jato e do time adversário. E, depois de setembro, Toffoli terá, nada mais, nada menos, o controle da pauta do Supremo. Seja o que Deus quiser.
Marco Aurélio Nogueira: Força e fraqueza das instituições
Mal-estar institucional é real, insegurança e falta de confiança são seus principais indicadores
Devemos relativizar a ideia de que as instituições estão funcionando a contento na vida brasileira. Não estão.
A avaliação do quadro precisa ser ponderada. Bem ou mal, a democracia política vem sendo acatada como regime de governo e representação. O País segue em frente, a coesão social não se desfez nem há retrocessos políticos à vista. Além disso, a Justiça vem acumulando vitórias contra a corrupção e a desigualdade jurídica entre os cidadãos, passando à sociedade a sensação de que a impunidade está sendo combatida. A controvérsia é grande entre políticos e especialistas, mas a população vê com bons olhos a atual fase de ativismo judicial.
O mal-estar institucional, porém, é real. Insegurança e falta de confiança são seus principais indicadores. Hoje, no Brasil, o sistema vive numa espécie de “caos estável”: funciona, mas está cheio de problemas e gera pouca adesão cívica. Os cidadãos “obedecem” às regras instituídas, mas fazem isso sem muita convicção. A adesão se faz por “gratidão” ou receio da punição, não por algum critério racional de “respeito” ou “apreço”.
O sistema político expõe a céu aberto suas chagas e contradições. Parte expressiva dos parlamentares está submetida a investigações judiciais ou já é condenada. A população olha para eles com um misto de indiferença, “esperança” e temor. A elite política não goza da confiança dos cidadãos. Incentiva os cidadãos a buscarem lideranças messiânicas como uma válvula de escape para a sobrecarga de problemas. A contraposição ideológica e a fragmentação são intensas, mas os confrontos que disso decorrem são toscos. Não opõem esquerda e direita, socialismo e capitalismo ou Estado e mercado. Depois de ter assumido a configuração artificial PSDB versus PT, a polarização decaiu mais um pouco e hoje gira em torno de lulistas e antilulistas. Seu efeito complica a formação de consensos e envenena o debate democrático.
O sistema eleitoral e partidário está estabelecido, mas muitos o veem como mal articulado, dispendioso demais e eficiente de menos. Os partidos, que são os principais operadores políticos, têm poucas ideias e não percebem onde erraram e o que deveriam fazer para melhorar. Vivem para obter vantagens e controlar os votos já obtidos, dos quais julgam ser donos.
No Executivo, a administração pública melhorou seu desempenho ao longo do tempo. É o fator que garante o funcionamento de organismos vitais para a vida social e a execução de políticas públicas complexas. Os servidores públicos, porém, vivem cercados por uma névoa de desconfiança da população, que não consegue compreender as particularidades das carreiras de Estado nem as dificuldades inerentes às atividades dos servidores, que são criticados por um sem-número de problemas e “pecados” que não são por eles provocados. Os gestores pagam alto preço pela falta de comando e pelos desacertos governamentais.
A outra parte do Executivo tem que ver com o governo e, nesse caso, com o governo Temer, que hoje carrega a mesma imagem negativa dos parlamentares. É visto como um governo de patotas e suspeitos de corrupção, para dizer em poucas palavras.
Sobra, por fim, o Poder Judiciário. Ele também conhece crise e desgaste, mas tem conseguido “mostrar serviço” e obter reconhecimento social. Em boa medida, é o que as Repúblicas democráticas esperam do sistema judiciário, que deve nelas funcionar como um veículo de estabilização institucional graças às funções que desempenha, de garantir o cumprimento da Constituição e de fazer valer a máxima “todos são iguais perante a lei”.
O sistema de Justiça como um todo, porém, sofre sempre que suas instâncias superiores (o STF) não mostram coesão, coerência e serenidade. Suas disputas internas arrastam o sistema para o purgatório e rebaixam sua qualidade. A Corte Suprema, em particular, age como se tivesse o destino da vida nas mãos. Mergulha no jogo político, faz e desfaz decisões ao sabor de conveniências, com direito a reviravoltas pouco razoáveis, tudo para beneficiar políticos e cortar a autonomia da Lava Jato, como se viu na decisão da segunda turma desta semana. Quando ministros como Toffoli, Gilmar e Lewandowski atuam para “estancar a sangria” e frear a Lava Jato, o STF tem sua imagem ofuscada e sua funcionalidade prejudicada. Joga o País na insegurança e compromete avanços importantes obtidos pelo próprio sistema de Justiça.
Somos uma nação atravessada por privilégios, na qual os mais ricos e poderosos usufruem vantagens comparativas perversas, devidamente alimentadas por uma cultura normativa e corporativa de tipo bacharelesco, com advogados aos montes, recursos protelatórios abusivos e esquemas de proteção. O Judiciário ressente-se disso e nos últimos anos passou a experimentar forte disputa interna em torno de seu funcionamento e de sua reforma. Falamos em “garantistas” e “punitivistas” por comodidade: o que há é uma tensão entre republicanos retóricos e republicanos ativos.
A posição institucional do Judiciário deveria levá-lo a funcionar com um fator de reposição da virtuosidade sistêmica. Congestionado pelo facciosismo de ministros, o STF rebaixa-se como instituição. Fica impossibilitado de “educar” a sociedade para o respeito às garantias constitucionais e ao Estado de Direito e não mais recebe da sociedade a disposição de defender a República democrática.
Os eventos dos últimos anos mostram que o Judiciário se converteu no Poder que atrai maior confiança e expectativa social. Isso se deve ao fracasso dos demais Poderes, particularmente do Legislativo, bem mais do que a uma intenção deliberada de juízes, procuradores e servidores do Judiciário. O problema é que, se esse arranjo não encontrar barreiras, poderá levar a uma sobreposição da política pela Justiça, com consequências que não seriam benéficas para a democracia.
Eliane Cantanhêde: Ataques em série
Intenção é favorecer Lula e esvaziar Moro, ou favorecer todos e esvaziar a Lava Jato?
A Lava Jato enfrenta três ataques frontais: a pressão para revogar a prisão após condenação em segunda instância, a autorização do Supremo para o senador cassado Demóstenes Torres ser candidato em outubro e, agora, a retirada de trechos das delações da Odebrecht da mesa do juiz Sérgio Moro. Aí tem!
São três frentes e três ministros da Segunda Turma do Supremo, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, com um aliado atuante na Primeira Turma, Marco Aurélio Mello, que decidiu matar no peito a prisão em segunda instância.
A nova jogada, envolvendo os trechos sobre o ex-presidente Lula nas delações da Odebrecht, gerou perplexidade e uma única certeza até no próprio Supremo: há uma trama não apenas para favorecer Lula e esvaziar Moro, mas para favorecer os demais peixes graúdos fisgados e esvaziar a própria Lava Jato. Só por isso, Gilmar, Lewandowski e Toffoli teriam mudado o voto dado em outubro de 2017.
A partir dessa certeza, acumulam-se dúvidas sobre qual a amplitude da decisão e quais serão os próximos passos. Um ministro do Supremo chegou a encomendar parecer de auxiliares para tentar desvendar o mistério e não ser surpreendido mais adiante.
Até agora, há esforço para tentar minimizar a decisão da Segunda Turma, alegando que foi uma “mera formalidade” e que Moro continua com os inquéritos do sítio de Atibaia e do Instituto Lula, podendo até pedir o compartilhamento de provas (como as delações da Odebrecht), se julgar necessário.
Não é tão simples. Se fosse, os três ministros não mudariam o voto de poucos meses antes, nem passariam por cima de uma constatação óbvia para juristas e leigos: as delações da Odebrecht tratam didática e diretamente das relações triangulares entre Lula, a empreiteira e a Petrobrás. Logo, são parte inquestionável da Lava Jato, que está sob a jurisdição de Moro.
Isso é tão óbvio quanto a importância da prisão em segunda instância no combate à impunidade. Ou quanto a irrelevância das revisões no STF e no STJ de julgamentos em tribunais regionais – como, aliás, mostrou o ministro Luís Roberto Barroso com números contundentes. Apesar disso, persistem as tentativas de retrocesso no Supremo e também no Congresso.
E o que dizer da decisão de Toffoli, em liminar, e depois da Segunda Turma, em julgamento, autorizando a candidatura de Demóstenes apesar da cassação pelo Senado? Ou melhor, depois de tudo? Uma ironia que se faz em Brasília é que Toffoli não decidiu assim por morrer de amores por Demóstenes, mas talvez por morrer de amores por outro personagem: Lula, que, hoje, está preso em Curitiba e tecnicamente inelegível pela Lei da Ficha Limpa.
Não custa lembrar que, num mesmo dia, a terça-feira passada, Gilmar admitiu de manhã em São Paulo, em tese, a possibilidade de redução da pena de Lula; à tarde, chegou esbaforido ao STF para votar pelo envio das delações da Odebrecht sobre Lula para a Justiça paulista; à noite, foi se encontrar com o presidente Michel Temer no Palácio Jaburu. A ironia, no caso de Gilmar, é que ele não fez tudo isso por amor a Lula nem por algum personagem específico, mas por vários deles. Além de fazer também por rigor na interpretação da lei, que ninguém lhe nega.
Agora, tenta-se adivinhar os próximos movimentos de Toffoli, Lewandowski e Gilmar na Segunda Turma e de Marco Aurélio correndo por fora, mas com o Ministério Público na cola e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, compartilhando a perplexidade geral e as desconfianças que assolam Brasília.
Meio de brincadeira, meio como provocação: a delação de Antonio Palocci também não tem nada a ver com a Lava Jato? E será retirada de Sérgio Moro? Tudo parece possível.
José Serra: Para inglês não ver
Aprovado no Senado, PL 428 objetiva induzir a administração pública ao gasto eficiente
No Brasil de hoje prevalece grande insatisfação com a qualidade dos serviços públicos, notadamente nas áreas de saúde, educação e segurança. Não poderia ser diferente, pois, até agora, os recursos destinados a essas áreas têm sido insuficientes ou mal empregados, ainda que vultosos.
Por isso é fundamental promover – até para estabelecer prioridades – avaliações transparentes e sistemáticas, nas três esferas de governo, dos custos e benefícios das políticas sociais postas em prática. E, paralelamente, reconhecer que será preciso reforçar as ações do Estado, tornando-as mais fortes e eficientes.
Nesse contexto, conviria começar por uma avaliação das experiências internacionais bem-sucedidas, com o intuito de subsidiar a formulação e a implantação das reformas em nosso país. Foi com base numa dessas experiências que se introduziu na agenda legislativa do Congresso o Projeto de Lei 428/2017, que objetiva criar no País um instrumento de gestão de gastos semelhante ao adotado em várias democracias modernas: o Plano de Revisão Periódica de Gastos. Esse projeto, apresentado na semana passada, acaba de ser aprovado quase por unanimidade no Senado. A rapidez deveu-se não só a entendimentos políticos, mas, sobretudo, à compreensão pelas forças políticas da sua importância, o que aumenta o otimismo quanto a uma rápida tramitação na Câmara.
Com o objetivo induzir a administração pública ao gasto público eficiente, o PL 428 institucionaliza no País um sistema permanente de revisão dos gastos, conhecido internacionalmente como Spending Reviews. É um modelo que já tem sido testado em diversos países – Austrália, Canadá, Reino Unido, Holanda e Dinamarca –, especialmente depois da crise de 2008, com bons resultados.
Os planos de revisão de gastos adotados pelos países da OCDE são instrumentos para garantir sustentabilidade fiscal a partir de um objetivo bem específico: propor alternativas para redução de gastos ou para dar prioridade a gastos mais importantes. Segundo Marc Robson, renomado especialista no tema, os países que adotam Spending Reviews geram economias ou ganhos de eficiência persistentes, de 2% a 3%, mesmo nos gastos obrigatórios. No Brasil isso poderá significar economia de até R$ 40 bilhões.
A proposta aprovada no Senado foi inspirada pelo encontro dos Poderes Legislativo e Executivo que se realiza anualmente nos Estados Unidos – o famoso State of Union. Previsto na Constituição, esse evento político é dos mais relevantes na democracia americana. Na abertura dos trabalhos do Congresso, o presidente dos Estados Unidos apresenta aos membros do Parlamento as condições do país e o que precisa ser feito – tudo transmitido e até debatido pela maioria dos meios de comunicação.
A Constituição brasileira também prevê o encontro entre os Poderes. De acordo com seu artigo 84, cabe ao chefe do Poder Executivo “remeter mensagem e plano de governo ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa, expondo a situação do País”. Essa solenidade, entretanto, não suscita ainda maior interesse na sociedade. O próprio Congresso tende a encará-la como um ato de natureza cerimonial. Por seu turno, o governo prepara um documento formal, em geral desinteressante.
O que se impõe como medida prioritária é a apresentação pelo presidente da República, na abertura das sessões legislativas a cada ano, de um verdadeiro plano de revisão de gastos, que apresente avaliações de custo e benefício de cada programa governamental. Paralelamente, devem ser apresentadas as medidas necessárias para o aprimoramento das políticas públicas, incluindo uma agenda legislativa consistente com esse programa.
O documento elaborado pela Presidência deve consolidar as alternativas de economia de gastos com base em avaliação sistemática e no cenário fiscal – que demonstre as consequências de manter a inércia dos gastos. As propostas devem ser apresentadas de maneira transparente, com prioridades e medidas específicas de poupança ou eventual deslocamento de recursos para ações prioritárias. É esta a missão de um governo eficiente: privilegiar programas com maiores benefícios para a sociedade, reduzindo desperdícios e encerrando políticas públicas que não deem resultado.
A instituição do Spending Review, em lei, garantira ao País uma sistemática de revisão de gastos não associada a grupos políticos. Todos os presidentes da República, independentemente de ideologias e crenças, teriam a obrigação de mostrar à sociedade a situação das contas públicas e o que precisar ser revisado para preservar a sustentabilidade fiscal e o desenvolvimento do País.
A criação desse sistema permanente de revisão de gastos é essencial para a sobrevivência do novo teto de gastos, aprovado pelo Congresso em 2016, que impede o crescimento real da despesa pública nos próximos dez anos. Nesse novo regime fiscal, repriorizações, escolhas alocativas, economias orçamentárias e ganhos de eficiência têm de ser a essência do processo orçamentário.
A prática de Spending Reviews nos permitirá avançar na maneira de fazer políticas públicas. A sociedade poderá acompanhar melhor as ações do governo, a evolução dos principais gastos e a qualidade dos programas de ajuste fiscal. Trata-se de uma medida que reforça o espírito da responsabilidade fiscal: “Uma ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e se corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”.
No Reino Unido, as revisões periódicas de gastos são a marca registrada das finanças públicas desde 1998. A grande vantagem do modelo é a ampla aceitação pública e política. No período de 2010 a 2014, o Tesouro daquele país economizou cerca de 81 bilhões de libras.
O Brasil pode fazer o mesmo: uma gestão fiscal que economize, de fato, e não um ritual “para inglês ver”.
* José Serra é senador (PSDB-SP)
William Waack: Falta de pressa
Acreditamos que o tempo trabalha a nosso favor, e optamos por ignorar evidências
Um dos aspectos mais fascinantes da crise política brasileira e do comportamento de elites pensantes é a perda da noção de tempo. Não se detecta sentido de urgência no trato de qualquer questão essencial para arrancar o País do buraco ao qual teríamos chegado de qualquer jeito – à incompetência, irresponsabilidade e voracidade de governos do PT e seus associados devemos “agradecer” por terem apressado nosso encontro com a hora da verdade (a de que estamos ficando velhos sem termos ficado ricos).
Sociedades caem vítimas de seus próprios mitos com mais frequência do que se pensa. Para permanecer em tempos recentes, e como caricatura para ilustrar o argumento, pensem nos nazistas (que se achavam imbatíveis) ou nos soviéticos (que se achavam donos do futuro). No caso brasileiro, o título do clássico de 1941 de Stefan Zweig – Brasil, Um País do Futuro – às vezes parece uma maldição. É óbvio que o livro não tem a menor culpa disso, mas a postura de boa parte de elites aqui sugere terem se tornado adeptas da crença de que o futuro nos pertence e inevitavelmente será risonho. Como se sabe, em História não há o inevitável.
Em outras palavras, acreditamos que o tempo trabalha a nosso favor, sobretudo quando lidamos com prazos mais dilatados, e optamos por ignorar evidências. A principal chama-se janela demográfica, que está se fechando e foge ao nosso controle. Nos acostumamos a crescer nos últimos 30 anos incorporando ao mercado de trabalho um número grande e aparentemente inesgotável de jovens mal qualificados. Para crescer e enfrentar agora a competição lá fora teremos de melhorar índices de produtividade estagnados há décadas, e com menos jovens à disposição – algo que já se reflete no eleitorado: pela primeira vez a proporção de jovens entre 16 e 24 anos diminuirá em 2018 em relação à última eleição, enquanto cresce o peso relativo dos eleitores acima dos 60.
Para quem comemora o aumento da nossa renda per capita nos últimos, digamos, 15 anos, cumpro aqui o papel chato de lembrar que a diferença para a renda per capita dos países avançados permanece inalterada, ou até um pouco pior para nós. Embora briguem sobre quais fatores afetam diretamente o crescimento de países, economistas não duvidam da forte influência exercida por uma taxa mínima de investimento anual. A nossa é baixíssima e piorou, pois o setor público, do qual tanto dependemos, perdeu essa capacidade de investimento. Em outras palavras, estamos jogando contra o tempo.
Há outros sinais preocupantes, dos mais variados, indicando que nós gostamos de acreditar que as coisas se resolvem por decurso de prazo. Abominamos o sistema político-eleitoral, por exemplo, mas deixamos passar recente oportunidade para reescrever as regras das próximas eleições, que provavelmente asseguram a permanência de boa parte das figuras e dos métodos que detestamos. E, recentemente, ao considerar o habeas corpus para Lula, o Supremo Tribunal Federal forneceu um exemplo acabado da mentalidade dos estamentos burocráticos que mantém o País sob seu firme domínio: a mentalidade que prefere manipular prazos e evita abordar frontalmente problemas difíceis.
Filmes e exposições na Alemanha lembraram no ano passado os 75 anos do suicídio de Stefan Zweig (um dos escritores mais populares na Europa na metade do século 20) e sua mulher, ocorrido em Petrópolis. Ainda em vida seu livro sobre o Brasil como um país do futuro tinha sido criticado como ingênuo. Consigo entender o que Stefan Zweig, transformado em “Kulturpessimist” pela catástrofe europeia daquela era, enxergou como esperança no Brasil. O problema é a nossa falta de pressa.
O Estado de S. Paulo: Ajuste fiscal e crescimento econômico
Os números não deixam muito espaço para criatividade. A política tem seu tempo, mas a economia também
Felipe Salto e Josué Pellegrini
Os dados sinalizam melhora da economia. Considere a média dos três meses encerrados em fevereiro, em relação à média do trimestre concluído em novembro. A produção industrial sobe 2,0%; o IBC-Br (prévia do PIB), 1,0%; o comércio, 0,7%; e os empregos, estacionados, mas com demissões caindo a 0,4%. Para sustentar a recuperação será preciso redobrar o cuidado com as contas públicas. Essa é a prioridade, conforme diagnóstico da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal. Qual o tamanho do ajuste requerido? O cumprimento da Emenda Constitucional n.º 95, de 2016, que define a inflação do ano anterior como teto para o aumento dos gastos federais a cada ano, impõe queda nessas despesas dos atuais 19,5% para 15,2% do PIB até 2030.
Neste cenário, a dívida pública bruta subirá dos atuais 75,1% para 86,6% do PIB, em 2023, mas cairá paulatinamente nos anos seguintes. Sem o referido ajuste, a dívida manterá a tendência atual de crescimento (estava em 51,5%, ao fim de 2013), o que, em certo momento, trará dúvidas a respeito da solvência do setor público. Os financiadores da dívida perceberão risco crescente associado ao cumprimento das obrigações do governo e, assim, exigirão juros cada vez mais elevados para financiar os déficits e refinanciar a dívida vincenda.
Além de evitar a degradação do ambiente econômico, o ajuste pode apoiar ainda um círculo virtuoso de relações macroeconômicas: o corte de gastos reduz a pressão sobre a demanda da economia vis-à-vis a oferta de bens e serviços, ajudando a controlar os preços médios do País. Neste cenário, os juros diminuem, o que incentiva o direcionamento do crédito para investimento e consumo. As taxas de juros mais baixas facilitam também o controle da expansão da dívida pública, como proporção do PIB, ao diminuir o resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros devidos) requerido para estabilizá-la. Para exemplificar, a redução da Selic, de 14,25% ao ano, em setembro de 2016, para os atuais 6,5%, representa economia com juros brutos de quase 3% do PIB, em 12 meses.
Ajustes fiscais se processam por meio de aumento de receitas ou corte de gastos públicos. No Brasil, a experiência mostra que a primeira alternativa tem sido a preferida. Por isso, o País caracteriza-se por elevadas receitas e despesas públicas em relação ao PIB, comparativamente ao que se observa em países em estágio similar de desenvolvimento econômico.
A ênfase agora precisa recair sobre os gastos. Mas o ajuste não poderá vir simplesmente do corte de despesas discricionárias, pois a margem nessa área vem diminuindo ano a ano. A principal vítima dessa estratégia são os investimentos federais, que despencaram 30%, em 2017. Por isso, é hora de rever programas ineficientes; reduzir desonerações tributárias que não geram impacto social e econômico; reformular a administração pública; e batalhar pela reforma nos gastos obrigatórios. Só em renúncias fiscais, o governo federal deixou de arrecadar 4,2% do PIB, em 2017. Com pessoal, incluindo inativos, outros 4,3% do PIB em gastos, enquanto a Previdência acresce mais 8,5% do PIB na conta.
Do lado da arrecadação, a receita extraordinária poderá ajudar, mas não na dimensão observada em 2017. A receita impulsionada pela recuperação da economia deverá ser o fator preponderante, o que já vem ocorrendo, em certa medida. O que precisa ser evitado é concentrar o reequilíbrio fiscal em medidas tributárias, um balde de água fria sobre o crescimento econômico, em um país com carga tributária muito elevada.
Os números não deixam muito espaço para criatividade. A política tem seu tempo, mas a economia também. O ajuste fiscal definirá a rota do País entre dois caminhos: o círculo virtuoso, com ajuste fiscal e crescimento econômico; ou o vicioso, do desequilíbrio fiscal e estagnação, para dizer o mínimo.
Felipe Salto é diretor executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal
Josué Pellegrini é Consultor Legislativo do Senado Federal e Analista da IFI
Eliane Cantanhêde: Pulga atrás da orelha
Ao tornar Demóstenes Torres elegível, o STF lança uma boia para salvar candidatura Lula?
Dúvida atroz: por que o Congresso não reagiu ao Supremo Tribunal Federal, quederrubou a inelegibilidade do ex-senador Demóstenes Torres, cassado e tornado inelegível pelo Senado? E a independência entre os Poderes?
Há a suspeita de que Demóstenes foi beneficiado pelo Supremo para abrir caminho para outros políticos que estejam ou venham a estar inelegíveis. Por exemplo, Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba. Se vale para Demóstenes, pode valer para outros. Se vale para outros, por que não para Lula?
Em 2012, o plenário do Senado cassou o mandato e tornou Demóstenes inelegível por 8 anos após o fim da atual Legislatura, ou seja, até 2027. Entretanto, a Segunda Turma do Supremo (a boazinha) acaba de manter a cassação do atual mandato, mas derrubando a inelegibilidade. Estranho, não é?
Procurador do Ministério Público de Goiás e acusado de ser uma espécie de funcionário de luxo do bicheiro Carlinhos Cachoeira no Senado, Demóstenes continua cassado, mas com direito a se candidatar em outubro de 2018. A Segunda Turma alegou que as provas contra ele haviam sido anuladas, porque ele tinha foro privilegiado e não poderia ser grampeado sem autorização do Supremo. E, se foram anuladas, está também anulada a inelegibilidade. Mas mantida a cassação (?!).
É o samba do Brasil doido e vale destacar que os votos para devolver a elegibilidade de Demóstenes foram, primeiro, uma liminar do ministro Dias Toffoli, acompanhado depois na turma por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. O resultado foi por 3 a 2, com votos contrários dos ministros Celso de Mello e Edson Fachin.
“Estamos indo de encontro à decisão do Senado Federal”, disse Fachin com todas as letras, ao discordar de Toffoli, Gilmar e Lewandowski – que, aliás, presidiu a sessão do impeachment de Dilma Rousseff no Senado, que criou uma nova forma: cassação do mandato, mantida a elegibilidade. Ninguém entendeu nada, a não ser que houve um acordão entre as forças políticas, articulado pelo então presidente do Senado, Renan Calheiros, e ratificado pelo então presidente do Supremo – o próprio Lewandowski.
Se a Segunda Turma do STF agora desautoriza uma consequência natural da cassação de Demóstenes (a inelegibilidade), por que senadores e deputados não se impregnaram de indignação e de brios institucionais para reclamar e clamar por autonomia?
Por que os atuais presidentes do Senado, Eunício Oliveira, e da Câmara, Rodrigo Maia, não questionaram a decisão da Segunda Turma – agora do próprio Supremo –, alegando interferência entre Poderes? A resposta parece constrangedora, mas é razoavelmente simples: porque assim como “pau que dá em Chico dá em Francisco”, também funciona o contrário: decisões pró-Demóstenes hoje podem muito bem ser pró-Lula amanhã e depois, consolidadas, de todos os implicados que tenham se tornado inelegíveis.
A diferença entre Lula e Demóstenes, neste caso, é que o ex-presidente está automaticamente tornado inelegível pela Ficha Limpa, depois de condenado por um colegiado, o TRF-4. Se, e quando, ele registrar sua candidatura, ela será alvo de questionamento e a chapa deverá ser indeferida pela Justiça Eleitoral.
Quanto a Demóstenes, ele foi cassado em 2012 e tornado automaticamente inelegível com base na Lei Complementar 64, de 1990, que estabelece causa e efeito: cassado, o político se torna inelegível por 8 anos.
Lula é ficha-suja, Demóstenes caiu na Lei 64, mas o fato é um só: assim como houve um jeitinho para Dilma e outro para Demóstenes, por que não haveria um para Lula e para sabe-se lá quantos depois? A Lava Jato não está com uma, mas com várias pulgas atrás da orelha.