O Estado de S. Paulo

Eliane Cantanhêde: Chacoalhada

Coronavírus mexe na balança do Planalto: Bolsonaro se isola, uns sobem, outros descem

A crise do coronavírus acabou dando uma chacoalhada no governo, com mudanças de posições, ministros em alta, ministros em baixa e um consenso constrangido entre todos eles: é preciso agir e atacar a doença em conjunto, isolando o presidente Jair Bolsonaro. Não por ser do grupo de risco, ter mais de 60 anos e estar cercado de contaminados por todos os lados, mas porque é urgente que ele pare de atrapalhar.

Em alta no próprio governo e na opinião pública está o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, sistematicamente desautorizado pelo presidente, mas reconhecido pelos colegas ministros, que temem a força do coronavírus e a demissão do personagem-chave do combate à epidemia. Demitir Mandetta seria esfacelar, no momento decisivo, toda a estrutura do Ministério da Saúde, que tem o controle da operação e o reconhecimento popular.

Além de Mandetta, dois generais estão em alta: Braga Netto, da Casa Civil e com sala próxima do gabinete presidencial, e Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, que despacha em outro prédio, mas é personagem assíduo no Planalto. Os dois têm duas características comuns: relacionam-se há anos com Bolsonaro e são respeitados pela cúpula do poder, que recorre a eles quando é preciso “dar um jeito no capitão”. Carioca jeitoso, Fernando foi colega de turma do insubordinado Bolsonaro no Exército.

Na balança, Braga Netto e Fernando Azevedo sobem, dois outros generais descem: Augusto Heleno, do GSI, sobre quem repousavam as melhores expectativas no início do governo, e Luiz Eduardo Ramos, secretário de Governo, que chegou ao governo para cobrir o vácuo de Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil que acabou trocado por Braga Netto. Heleno, que pegou coronavírus, parece estar se cansando do jogo. Ramos sofre pelas virtudes, não pelos defeitos: a personalidade contemporizadora, oposta à dos Bolsonaro.

Também em baixa o verdadeiro mito do governo, Sérgio Moro, alvo do mesmo ciúme que o presidente dedica agora a Mandetta e já despejou sobre Gustavo Bebianno, general Santos Cruz e até sobre Regina Duarte, logo na largada. Moro foi desautorizado inúmeras vezes, a última delas quando assinou o decreto suspendendo a entrada de estrangeiros de vários países. Bravo, Bolsonaro riscou sem pestanejar os cidadãos dos EUA – hoje, campeão de casos confirmados.

Depois das sucessivas desautorizações, Moro se recolheu e Bolsonaro passou a cobrar o contrário. Antes, condenava os “excessos” do ministro, que aparecia demais na mídia e lhe ofuscava a popularidade. Hoje, critica a “omissão” dele, reclamando que a área jurídica do governo está “acéfala”, o governo perde uma atrás da outra no Supremo e em todas as instâncias.

Na segunda-feira, 30, aliás, o ministro Dias Toffoli disse que não se combate o vírus com “achismos” e outros ministros do STF avisaram que vão derrubar medidas contrárias à saúde e à ciência. E, se Bolsonaro havia conclamado os políticos a saírem às ruas, como ele próprio fez no domingo, todos os líderes do Senado responderam com um sonoro “não”, em forma de manifesto a favor do isolamento social.

Assim, Bolsonaro está isolado dentro e fora do Brasil. Seguindo os líderes que prudentemente decretaram o isolamento social contra o coronavírus desde o início, também os teimosos Trump (EUA), Boris Johnson (Inglaterra) e Giuseppe Conte (Itália) se renderam às evidências. Ou seria à realidade?

Há poucos dias, Bolsonaro disse, todo orgulhoso, que Trump seguia “uma linha semelhante à nossa”. Mas, com quase 140 mil infectados e 2.500 mortes nas suas barbas (ou cabeleira), até Trump acaba de recuar e estender o isolamento para 30 de abril. O presidente brasileiro vai esperar tanto para cair na real?


Eliane Cantanhêde: Mandetta à equipe: ‘No meio do caminho, uma pedra’

Bolsonaro nas ruas foi forma de provocar a queda do ministro, mas Mandetta não caiu na armadilha, e enviou poema de Drummond a sua equipe

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou o domingo para exercitar sua birra contra o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que na véspera alertou: “Se o sr. for para metrô ou ônibus em São Paulo (como chegou a dizer em entrevista), vou ser obrigado a criticá-lo”. Ao que o presidente rebateu: “E eu vou ter que te demitir”.

Como não havia logística para ir a São Paulo ontem, Bolsonaro decidiu fazer o teste no Distrito Federal mesmo, indo a padarias, mercadinhos, fazendo até fotos com criança. Evidentemente, uma forma de provocar a queda do ministro, mas Mandetta não caiu na armadilha.

A atitude do presidente foi considerada “óbvia”, um pretexto para a exoneração – que, aliás, provocaria um efeito dominó no Ministério da Saúde. Assim, Mandetta se recolheu, pedindo paciência à equipe com um poema de Carlos Drummond de Andrade: No Meio do Caminho. Resta saber o que o ministro dirá na coletiva de hoje à tarde, além de pedir desculpas à mídia. Na guerra contra o coronavírus e a morte, ela é a sua grande aliada.

Outra grande expectativa hoje é se Bolsonaro vai mesmo editar um decreto para liberar todas as profissões para trabalhar em meio à pandemia ou se foi só mais uma ideia jogada ao ar, enquanto confrontava Mandetta nas ruas.

Se não sair decreto nenhum, essa história é mais uma para a longa lista de coisas que o presidente diz e ninguém leva a sério, nem lembra depois. Se sair, a coisa vai ficar muito grave. Além da crise sanitária, teremos uma crise federativa: a União contra os Estados, o presidente contra governadores e prefeitos.

Como o ministro do STF Gilmar Mendes alertou Bolsonaro no sábado, basta que São Paulo, Rio e Minas desobedeçam uma medida legal tomada pelo Planalto para essa medida virar pó, letra morta. Os três Estados reúnem quase cem milhões de pessoas e os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) não parecem interessados nem em quebrar a quarentena nem em cumprir decretos e maluquices de Bolsonaro numa hora de vida ou morte.


O Estado de S. Paulo: ‘Coronavírus isolou líderes populistas’, diz Steven Levitsky

Para Steven Levitsky, cientista político americano e coautor de 'Como as Democracias Morrrem', ignorar especialistas fez líderes como Trump e Bolsonaro reagirem tarde à pandemia

José Eduardo Barella / ESPECIAL PARA O ESTADO, O Estado de S.Paulo

Para o cientista político Steven Levitsky, coautor do livro Como as Democracias Morrem, que mostra as razões da expansão populista nos últimos anos, o desprezo pela ciência e pela elite caiu por terra com o avanço da pandemia. Pegos de surpresa pelo surgimento do coronavírus, líderes populistas como Donald Trump, nos EUA, Jair Bolsonaro, no Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, no México, correm risco de isolamento e de perder mais popularidade em razão da crise econômica.

A pandemia, segundo Levitsky, é o maior desafio dos populistas. Primeiro, porque corrói a popularidade que os sustentam. Sem popularidade, fica mais difícil tomar medidas autocráticas para ameaçar a democracia. Em segundo lugar, por colocar a própria sobrevivência desses líderes em risco. “A pandemia está mostrando que o desprezo desses populistas pela ciência e pelos especialistas vai custar caro”, disse. A seguir, trechos da conversa com Levitsky.

Por que populistas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson foram lentos ao reagir à pandemia?
Líderes populistas costumam se eleger atacando o establishment, dizendo ao povo que, uma vez no poder, varrerão a elite. Mas parte dessa elite é formada por especialistas – economistas, cientistas, técnicos, profissionais de saúde, como os que lideram agora o combate ao coronavírus. E a primeira resposta dos populistas à pandemia foi rejeitar os conselhos dos especialistas, recorrendo a pessoas próximas que não são do ramo. Bolsonaro preferiu ouvir conselhos dos filhos. Trump, do genro. Não é por acaso que Trump, Bolsonaro e (Andrés Manuel) López Obrador (presidente do México) demoraram a reagir. Já o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é um caso à parte. Embora tenha demorado, ele acabou aceitando os conselhos de especialistas e foi mais rápido em adotar medidas. Mas ficou evidente que a inação inicial deve trazer consequências trágicas, como estamos vendo.

Se fosse possível formar um ranking, quem levaria a medalha de ouro em performance populista na reação ao coronavírus?
Todos cometeram erros, mas vale citar o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, cuja resposta à pandemia foi péssima – mas eu não chamaria ele de líder populista. Portanto, ele fica de fora dessa disputa. Sem sombra de dúvida, a medalha de ouro vai para Bolsonaro. Ele continua a desdenhar da crise. A maior parte do seu discurso (do dia 24) na TV continha inverdades que refletem um nível de ignorância que vai além da demonstrada por Trump. Vale notar que o desprezo do presidente brasileiro pelas recomendações de especialistas, parte da estratégia populista de rejeitar a elite, não tem precedentes na história recente do País. Políticos tradicionais, independentemente se eram de direita ou de esquerda, como José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula, tiveram ajuda de técnicos com experiência de governo.

No seu livro, o senhor afirma que parte da estratégia dos populistas é ignorar o respeito mútuo e a tolerância. Numa crise profunda, adotar essa estratégia autoritária tende a levar os populistas ao isolamento?
Depende do líder populista. Situações de emergência nacional, como guerras, desastres naturais e pandemias, exigem cooperação entre a classe política, entre o presidente e o Congresso, entre presidente, governadores e prefeitos, e entre governo e oposição. Os populistas costumam fazer de seus oponentes inimigos ferozes, o que dificulta esse tipo de cooperação durante uma crise.

Essa disputa costuma levar o líder populista ao isolamento?
Normalmente, o populista cria uma espécie de ambiente tóxico na política entre ele e seus oponentes. Isso não torna impossível reunir a classe política para responder a uma crise, mas certamente é mais difícil. Muitas vezes, durante situações do tipo, é comum uma união em torno do presidente. Aparentemente, isso não está acontecendo com Bolsonaro, que parece ser um caso claro de isolamento.

Tanto Trump quanto Bolsonaro culparam a China pela crise e evitaram adotar medidas drásticas, com medo de afetar a economia. Isso configura uma estratégia política populista?
Não sei se essa reação similar é coincidência ou o quanto Bolsonaro está copiando Trump. Mas não acredito que se trata de um movimento ideológico. Um dos mentores do trumpismo, Steve Bannon, foi defensor de uma resposta de saúde pública mais agressiva. Ou seja, neste aspecto, Bolsonaro agiu de forma diferente da preconizada pelo cérebro do trumpismo. Já Obrador, um populista de esquerda, agiu de forma semelhante à de Bolsonaro, criticando a paralisia da economia. Portanto, não acho que seja uma questão ideológica, e sim uma atitude intuitiva de um político personalista, nacionalista e, mais importante, antielitista. Um político com uma grossa camada narcisística, que acredita que ele mesmo, sozinho, sabe mais que os especialistas.

A gravidade da crise pode estimular os populistas a acumular mais poder?
É provável que líderes autoritários respondam a essa crise com medidas para ampliar seu poder. Mas não está claro quantos serão bem-sucedidos se começarem a tomar essas medidas. Um político isolado, como Bolsonaro, tentar aproveitar a situação para acumular poder tem menos chance de obter sucesso. O mesmo vale para Trump.

Mesmo numa situação especial como essa?
Sim. Se um líder não tem confiança do povo durante uma crise, deve evitar criar mais problemas para ele mesmo. É o que estamos começando ver no Brasil. Os brasileiros não estão respondendo bem a esse grande poder que o Bolsonaro tem para lidar com a pandemia.

Então o temor de que Bolsonaro se aproveite da crise para obter mais poder é exagerado?

Se você imaginar o cenário daqui a seis meses, com a economia em situação mais delicada do que hoje, Bolsonaro provavelmente terá menos apoio do que tinha, o que torna arriscado tentar algum movimento fora do jogo democrático.

É possível que o pronunciamento de Bolsonaro, no dia 24, tenha sido uma manobra para forçar uma situação que justifique medidas autoritárias?

Na crise em que o Brasil se encontra, não há nenhuma garantia de que Bolsonaro se comportará democraticamente. Precisamos nos preocupar todos os dias com o fato de Bolsonaro tentar quebrar as regras do jogo democrático. O fato de estar perdendo popularidade, e também porque muitos atores da política e da sociedade brasileira se recusam a apoiar uma aventura por parte dele, me leva a crer que, caso tente quebrar a ordem democrática, Bolsonaro fracassará.

Por que os populistas sempre buscam a polarização, mesmo em uma crise grave como agora?
Líderes populistas tendem a usar a mesma estratégia que funcionou para eles no passado. Se você chegar ao poder como populista, provavelmente continuará usando essa estratégia no poder.

Você ficou surpreso com o pronunciamento de Bolsonaro, indo na contramão das medidas de isolamento?
O que me impressionou mais foi como ele está copiando Trump. O pronunciamento foi consistente com seu comportamento desde que comecei acompanhar sua trajetória. Fiquei chocado com seu grau de ignorância – e, para ser sincero, não sei se ele é de fato tão ignorante quanto demonstra, como quando afirma acreditar que 90% dos jovens não serão contaminados pelo coronavírus e, portanto, devem voltar às aulas. Mas é arrepiante ver os dois maiores países do hemisfério, Brasil e EUA, governados por presidentes que vivem mentindo, respondendo a essa crise dessa maneira ignorante e irresponsável. Infelizmente, é o custo que temos de pagar por tê-los escolhido. O mundo estará olhando para a eleição presidencial nos EUA deste ano com atenção redobrada.

Com o impacto do coronavírus na economia, uma derrota de Trump sinalizaria que a onda populista pode murchar?
É o que espero. Tudo que Trump pretende agora é reviver a economia para que possa ganhar a reeleição – é com isso que ele se importa. Não há como prever os efeitos que ocorrerão nos próximos meses. De qualquer forma, a tendência é termos uma eleição muito disputada.

Mesmo a economia tendo pouco tempo para se recuperar?
Antes do coronavírus, apesar de a economia estar indo bem e Trump tivesse boas chances de se reeleger, é importante lembrar que sua aprovação era de apenas 43%. Ele não é um presidente muito popular, mas tem uma base muito forte. Não sabemos o que vai acontecer com a economia. Mas há projeções que indicam uma forte queda no segundo trimestre, com recuperação ao fim do terceiro trimestre – o que ajudaria Trump. Mas os EUA são vistos como um modelo para o restante do mundo. Se um líder populista for tirado do poder aqui nos EUA, acho que será um duro golpe para o populismo. É o que espero.


Eliane Cantanhêde: Isolamento sim!

Governo emite sinais trocados e Brasil começa a se dividir. Coronavírus agradece

Eta gripezinha que está custando caro! O presidente da República fala para um lado e os ministérios agem para o outro, anunciando montanhas de dinheiro para enfrentar o abandono dos miseráveis que precisam do Bolsa Família, a insegurança dos informais e a dramática ameaça aos empregos. Isolamento, sim, para salvar vidas. E medidas emergenciais para reduzir os danos na economia.

É a realidade se impondo, com as lições vindo assustadoramente de fora. Se não quer ouvir a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério da Saúde, a ciência e as estatísticas, o presidente deve ao menos se informar sobre o que aconteceu nos dois países mais afetados pelo Covid-19 no mundo. Nos Estados Unidos, seu tão amado Trump foi obrigado a recuar e agora clama para os americanos ficarem em casa. Na Itália, o mea culpa do prefeito de Milão é um grito de alerta.

Trump, como o “amigo” brasileiro, minimizou o coronavírus até que os EUA passaram a ser o epicentro da doença, ultrapassando os cem mil infectados e beirando 1.500 mortos. Só aí ele se rendeu à única “vacina” contra a pandemia: o isolamento social. Na Itália, o prefeito de Milão desdenhou do tsunami, animando as pessoas a saírem. Agora admite: “Errei”. Tarde demais. Os italianos já contabilizam mais de 9 mil mortes, 919 só na sexta-feira.

“Infelizmente, algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco”, conformava-se o presidente brasileiro no mesmo dia, ignorando alertas e estatísticas, a lógica, o bom senso, a humanidade. Pior: a responsabilidade. Tudo em nome do seu novo slogan político: “O Brasil não pode parar”. O problema é que, se milhões são contaminados e milhares morrem, aí é que o Brasil vai parar. Só não vê quem põe sua visão pessoal acima das evidências.

Num país dividido, com um governo que emite sinais trocados, governadores e prefeitos, em maioria, decidem deixar o capitão falando sozinho e se articulam para enfrentar a pandemia, acolher os infectados e evitar mortes, enquanto os do Nordeste lançam manifesto “pela vida”. Mas o efeito do comando do presidente contra o isolamento já se faz sentir, com governadores aliados de Mato Grosso, Santa Catarina, Rondônia e Roraima se assanhando para flexibilizar o isolamento.

Na sociedade, o mesmo. CNBB (bispos), OAB (advogados), ABI (imprensa), SBPC (ciência), ABC (ciência) e Comissão de Direitos Humanos de São Paulo fazem alerta “em defesa da vida” e conclamam a população a “ficar em casa”, em respeito à ciência, aos profissionais de saúde e à experiência internacional.

Do outro lado, as falas e a campanha do presidente produzem aumento de pessoas nas ruas, shoppings de Minas reabrindo, a ofertazinha bacana da CNI em tempos de gripezinha: testes rápidos de coronavírus, de 15 em 15 dias, para 9,4 milhões de trabalhadores industriais. Isolamento social? “Só para pessoas com exame positivo.”

Bolsonaristas vão alegremente às ruas contra o isolamento. Mas de carro, que ninguém é besta, enquanto defendem que seus empregados se exponham ao vírus em ônibus e metrôs e garantam seu lucro. Só não entenderam ainda, e vão entender na marra, que, se os trabalhadores se contaminarem, eles também vão se contaminar, depois contaminar seus amores, famílias, amigos. E, “infelizmente, algumas mortes virão...”, lembram?

É profundamente importante, sim, reduzir os danos na economia, nos empregos, na pobreza. E é por isso que o Estado está devidamente flexibilizando a prioridade fiscal para tomar as medidas necessárias. O que não pode é desdenhar da morte em nome da economia. Até porque nada comprova a eficácia desse método ignorante e desumano (para não buscar adjetivos e referências pavorosas na história).


Vera Magalhães: O mundo pós-corona

Da economia às relações pessoais, passando pela política, nada será como antes

Se há uma única certeza a respeito de como sairemos dessa pandemia que bagunçou o dia a dia das pessoas, as relações interpessoais, a economia e a geopolítica do planeta é que nada, em nenhum desses territórios, voltará a ser como antes quando (e se) tudo isso passar.

Governantes populares até a virada do ano foram solapados pela crise; outros cuja imagem já parecia desgastada renasceram das cinzas; aqueles com uma reeleição certa no horizonte padecem na incerteza, enquanto os casos escalam em seus países; lideranças jovens aparecem em países não centrais do globo, e chamam a atenção pela forma segura com que conduzem seus governados no combate a um inimigo invisível, mas poderoso.

Na economia, na meca do capitalismo mundial, os Estados Unidos, Donald Trump, depois de flertar em ondas com o negacionismo em relação à pandemia, terminou a semana acionando o Ato de Proteção de Defesa, uma lei da época da Guerra da Coreia, para exigir que empresas como as icônicas montadoras de veículos produzam ventiladores para respiradores pulmonares e os forneçam ao Estado.

O Reino Unido, outro país que tentou ser blasé, deu um cavalo de pau e terminou a semana com restrições severas à circulação e o príncipe Charles e o premiê Boris Johnson “coronados”, símbolo imagético dificilmente superável.

Não será possível retornar - depois que o mundo sair de uma quarentena dura, que separa famílias e obriga as pessoas a redescobrirem desde regras de higiene pessoal até técnicas de trabalho e estudo remotos - ao estado em que estávamos, de um mundo polarizado e radicalizado em certezas tão absolutas quanto estúpidas.

Sim, alguns países fecharam mais suas fronteiras e a ideia de um “vírus chinês” infectando o mundo favorece uma sinofobia que campeia pelas purulentas redes sociais, mas a evidência de que a mesma China que iniciou o contágio tem muito a ensinar ao mundo em termos de contenção e continuará a ser imprescindível na hora de “religar" a economia planetária forçam, por exemplo, a que o mesmo Trump teça loas ao amigo “Xi”.

Não será possível imaginar um futuro pós-pandemia sem que a ciência finalmente, na marra, passe a ser levada em conta em decisões políticas e econômicas. Epidemiologistas, sujeitos antes exóticos que podiam ser bons consultores de filmes-catástrofe, viraram consultores de Estado e estrelas televisivas. E será preciso que sejam ouvidos sobre o timing da retomada da normalidade.

O negacionismo científico, essa chaga do século 21, que levou à eleição de néscios aqui e alhures, está cobrando um preço em forma de vidas humanas bem antes de fritarmos graças ao subestimado aquecimento global. Isso é devastador, e não há dogmas econômicos ou narrativa que sejam capazes de dar conta da resposta necessária.

O que nos traz ao momento atual do Brasil. Jair Bolsonaro parece ter resolvido dobrar todas as apostas mundiais em termos de irresponsabilidade. Pode até levar alguns mínions entediados a tirarem suas SUVs blindadas das garagens para um rolê com cafonas bandeiras do Brasil no capô, mas já está claro que não vai calar as panelas, algumas delas nas mesmas varandas gourmet.

E, o que é mais dramático, pode comprometer seriamente nossa resposta a essa pandemia. O preço será cobrado em cadáveres. Quando a irresponsabilidade de um governante é sentida na pele das pessoas e daqueles a quem elas amam, não há rede de robôs na internet que contenha o estrago.

Já não somos os mesmos que éramos em janeiro. Em São Paulo, Nova York, Milão ou Wuhan. Não seremos os de antes quando um dia sairmos de casa. Ou os governantes percebem que o mundo é outro e que deles se exige lucidez, ou serão varridos do mapa.


José Márcio Camargo: Como confinar?

Algumas peculiaridades de países como o Brasil são especialmente preocupantes

Como enfrentar a pandemia do novo coronavírus? Essa a questão que domina hoje o debate no Brasil e no mundo. Confinamento horizontal, com todas as pessoas recolhidas em casa e um mínimo de contato físico entre elas, ou confinamento vertical, quando apenas as pessoas que fazem parte do grupo de risco, acima de 60 anos e que tenham um histórico de doenças anteriores, ficam confinadas?

Com o rápido aumento do contágio e do número de mortes em diferentes países, a solução pelo confinamento horizontal tem sido recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotada pela maioria dos países ocidentais. Entretanto, os casos mais bem-sucedidos, Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan e Japão, adotaram uma estratégia diferente: incentivar o distanciamento social (manter pelo menos dois metros de distância de outra pessoa), maximizar o número de testes e isolar os infectados.

Independentemente da estratégia adotada, a dinâmica da pandemia é a mesma: rápido aumento do número de pessoas contagiadas no início, que, eventualmente, leva a um rápido aumento do número de mortes. O Brasil está neste estágio. A questão é qual a estratégia mais eficiente no sentido de minimizar os custos pessoais, econômicos e sociais, para fazer com que o número de infectados pare de crescer e entre em trajetória de queda.

As duas estratégias têm custos. No confinamento horizontal, como as pessoas não podem sair de casa, a economia é quase totalmente paralisada, com forte queda da produção, do emprego e da renda. Dependendo do tempo necessário para fazer com que a curva de contaminação estabilize – o que não sabemos –, o custo econômico, social e até mesmo de vidas humanas é muito elevado.

No caso do confinamento vertical, a economia continua funcionando, certamente a uma taxa menor. A questão é qual a evolução da curva de contágio e qual o número de mortes. A OMS tem declarado que os custos, em termos de vidas humanas perdidas, nesta estratégia podem ser significativamente maiores, em razão da maior probabilidade de contágio.

Algumas peculiaridades de países como o Brasil são especialmente preocupantes. Nas grandes cidades brasileiras, uma boa parte da população vive em favelas. Nessas comunidades, famílias de quatro, cinco ou mais pessoas, de diferentes idades (crianças, adultos e idosos), vivem em residências de um cômodo, com menos de dez metros quadrados, muitas vezes sem janelas e, em alguns casos, sem as mais básicas condições de higiene. O potencial de transmissão e de letalidade do vírus neste ambiente deve ser extremamente elevado. Antes de impor um confinamento horizontal, o poder público deveria isolar o grupo de risco, por exemplo, transferindo os idosos para hotéis ociosos ou abrigos públicos.

Como as residências são pequenas, com pouca ventilação, é praticamente impossível permanecer dentro de casa durante o dia. Esta, certamente, é uma das razões pelas quais as ruas de muitas das favelas do País, durante o dia, continuam cheias. Neste contexto, será que as crianças estão menos expostas ao vírus nas comunidades ou nas escolas?

Como a decisão de confinar generalizadamente as pessoas começou a ser implementada no Brasil há aproximadamente dez dias, poderemos ver um trágico aumento do número de contaminados e de mortes nessas comunidades nas próximas semanas.

Considerando que, no início, a dinâmica da contaminação é similar nas duas estratégias; que cada país está num diferente estágio da evolução da doença; que alguns dos países bem-sucedidos não fizeram confinamento horizontal; além da precariedade das condições de moradia e higiene nas comunidades pobres das cidades brasileiras, não temos como saber, com certeza, qual das duas estratégias terá o menor custo em termos de vidas humanas no Brasil. Entre outras razões, porque não sabemos quanto tempo o confinamento terá de persistir para que a curva de transmissão se estabilize.

*Professor do departamento de economia da puc/rio, é economista chefe da genial investimentos


Adriana Fernandes: Quem vive e quem morre

O orçamento “paralelo”, para apartar os gastos da crise, é uma boa ideia

O enfrentamento da grave crise econômica provocada pela pandemia da covid-19 não pode se transformar numa disputa política de quem dá mais dinheiro. Dos “R$ 3 bilhões, R$ 4 bilhões ou R$ 5 bilhões” anunciados pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, no último dia 13 de março, para “aniquilar” o coronavírus, o governo passou nesta sexta-feira para uma promessa de injeção de R$ 700 bilhões na economia brasileira nos próximos meses.

Entre a primeira resposta da equipe econômica à crise até a nova cifra, passaram-se 14 dias. Mudança louvável e tomara que ainda tenha chegado a tempo de mitigar o cenário devastador já em curso no Brasil e no mundo.

Que se gaste todo dinheiro necessário para salvar vidas, o emprego dos trabalhadores e impedir uma quebradeira geral.

Mas a hora agora é também de foco e muita transparência. Mas muita transparência! Ainda estamos longe dela. Medidas foram anunciadas pelo governo sem o texto legal pronto, no afã de dar respostas à cobrança crescente por ação.

É preocupante demais a tentativa do presidente de restringir os instrumentos da Lei de Acesso à Informação (LAI), justamente agora. Péssimo sinal.

Não pode haver drible na contabilidade e muito menos espaço para escolhas do tipo “quem vive e quem morre”.

Vale para as pessoas e também para as empresas. Em crise passadas e ainda muito presentes na memória, muitas escolhas foram feitas para beneficiar os amigos do rei. O presidente Jair Bolsonaro tem também seus empresários de estimação – apoiadores de sempre. Muitos deles dos setores mais afetados pelo isolamento forçado e a paralisação do comércio.

Nos primeiros dias de enfrentamento das crises econômicas de grande magnitude, como a que vivemos agora, é comum a confusão inicial na busca pelo caminho das medidas. Faz parte do processo. Agora, com o risco de contaminação, a tarefa é ainda mais complicada.

É por isso que o momento exige ação forte da política fiscal, com expansão dos gastos, mas também muita visibilidade de como essa montanha de dinheiro será gasta e o seu tamanho real. Se o Tesouro capitalizar os bancos públicos, tudo tem que estar bem visível.

A sociedade precisa saber com clareza o que está empenhando dos seus recursos para combater a crise do novo coronavírus. E precisa estar informada para combater o oportunismo que pode surgir durante esse processo.

Com lupa, essas horas cruciais serão mapeadas no futuro. A ajuda tem que ser feita com máximo cuidado para que não haja direcionamento, discriminações e muito menos transferência de dinheiro para quem menos precisa agora.

Por isso, o orçamento “paralelo”, para apartar os gastos da crise, é uma boa ideia. Para isso, a PEC do “orçamento de guerra” articulada pela Câmara é a ideal, mais abrangente e com melhor controle para a sociedade.

Empurrado pela pressão do Congresso e da sociedade, o governo acordou e começou a dar sinais nessa sexta-feira de que deixa para trás a morosidade, com o anúncio de medidas mais potentes. O time de Guedes e os presidentes dos bancos públicos negociaram um plano de salvamento.

A cartilha liberal dos “Chigago Oldies” foi colocada na gaveta. Há um ano, o discurso da equipe econômica era deixar Caixa, Banco do Brasil e Petrobrás “bem magrinhas”. Quem não lembra?

A estratégia da equipe econômica era essa, para depois privatizar essas estatais, num eventual segundo mandato do presidente Jair Bolsonaro. Esses planos devem passar uma revisão mais tarde?

Bancos públicos, principalmente a Caixa, que é a ponte principal do governo com a população de baixa renda e vulnerável, assumem um papel essencial na crise. Os bancos privados, como se viu na última semana, se fecham até que o governo vá lá e abra as portas para eles.

O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, terá que conduzir esse momento com zelo e cuidado para defender a sustentabilidade do banco, que está muito líquido.

O momento é de guerra.


Marco Aurélio Nogueira: O bolsonarismo, o presidente e o vírus

O importante é defender as instituições, apoiar o sistema de saúde, respaldar Doria, Caiado...

Dias de pandemia pedem solidariedade, clareza, entendimento. Alimentar o confronto, a disputa, a politização é contribuir para a disseminação do mal. Exigem-se ações coordenadas, sintonia, orientação. Nenhum cidadão pode deixar de contribuir. Teremos de reaprender a viver e quanto antes desarmarmos os espíritos, melhor.

Jair Bolsonaro permanece alheio aos sinais do tempo. É assustador. Seu último discurso à Nação (24/3) foi uma provocação recheada de platitudes, mentiras e agressões. Nenhuma grandeza, nenhuma generosidade, a mesma falação colérica de sempre. Em vez de passar confiança, provocou insegurança. Continuou a radicalizar, a debochar, a fazer pouco-caso, a atacar. Brigou com as diretrizes sanitárias da própria administração e aumentou o ruído com os governadores estaduais, em detrimento da unidade federativa tão necessária. A reação foi forte, mas não houve recuo.

Sua intervenção não se deve só ao baixo nível e a uma instável condição emocional. Há cálculo nela. O olhar repousa em 2022 e no esforço para recuperar o capital político que, a esta altura, está em franca evaporação. É um cálculo rasteiro, repleto de espasmos de ódio, mesquinharia e paranoia, narrativa e ideologia. Torpedeia o bom senso, esbofeteia a realidade.

Criar confusão é um caminho clássico das manobras contra a democracia. Todo autoritário gosta de respirar o ar da beligerância. Não é diferente com Bolsonaro. O foco é confundir a população, desorganizar os sistemas, passar por vítima, para que se fomente a expectativa de que apareça a figura sinistra do “salvador”.

O presidente parece acuado e se deixa guiar pelas áreas mais extremadas de seu núcleo principal, o “gabinete do ódio”. Os ministros, salvo uma ou outra exceção isolada, batem-lhe continência. Fecham-se num mutismo incompreensível, covarde. Nos bastidores, muito ruído e informações cruzadas, indício de que o clima ficou pesado.

Há quem o aplauda e reverbere suas ideias. São pessoas encolerizadas, que trafegam pela estrada do irracionalismo. O desleixo e a irresponsabilidade de Bolsonaro são vistos como prova da disposição de não ceder à pressão dos políticos, da imprensa e dos interesses internacionais. Suas falas destrambelhadas e reacionárias são desculpadas em nome da ideia de que “antes dele era pior”. Pelas redes, o “gabinete do ódio” manda: batam nos governadores e prefeitos, que estão a causar recessão e desemprego. Os bumbos soam.

Os eleitores circunstanciais de Bolsonaro, aqueles que nele votaram para derrotar o PT, já devem ter percebido o engodo em que caíram. Mas os bolsonaristas de “raiz” permanecem ativos. Gostam do estilo grosseiro de Bolsonaro, o “mito”. São fanáticos, agressivos, ressentidos, preconceituosos, têm profunda aversão à política e à democracia representativa.

O questionamento da política democrática é uma pérola dos manipuladores do sentimento popular. Está no miolo da extrema direita atual, encontrando sua câmara de eco na figura daqueles “engenheiros do caos” tão bem analisados por Giuliano Da Empoli. Sob a bandeira do iliberalismo e do autoritarismo reúnem-se populistas, nacionalistas, ultraconservadores, neonazistas, uma fila imensa de gente com ódio no coração. Todos falam em combater os políticos, lutar contra a esquerda, fechar a nação, defender a “pátria” e as pessoas comuns.

O bolsonarismo emergiu sem base organizada, liderado por um deputado tosco e inexpressivo. É uma agitação com baixa densidade associativa. Sua reprodução se dá nas redes. Luta para erguer a Aliança pelo Brasil, uma incógnita. Está limitado pela ausência de propostas para o País, pela baixa qualidade de seus quadros, por sua escassa civilidade, pelo uso intensivo da mentira. O bolsonarista-raiz é intolerante, tem instinto persecutório e vê traidores por toda parte, sinal de uma fragilidade psíquica que se traduz em arrogância. Está também desprovido de pensadores com capacidade de elaboração intelectual. Vive do combate a inimigos imaginários. São traços que dificultam a construção partidária e levam ao canibalismo dentro da própria organização.

A pandemia é um repto à humanidade e aos diferentes países. Desafia os democratas, que precisam se articular para agir sobre a vida. Quem chegou ao governo deve mostrar que sabe enfrentar um quadro de calamidade pública. Até agora, o bolsonarismo tem sido um fiasco. Seu líder máximo explora uma crise epidêmica mortífera, indiferente à desgraça da população. Os recorrentes panelaços dos últimos dias indicam que a base bolsonarista se estreitou e muitos cidadãos estão escandalizados com a conduta insensata e insensível de Bolsonaro.

Veremos se essa tendência se confirmará. O importante, agora, é defender as instituições democráticas, apoiar o sistema de saúde e respaldar governadores e prefeitos, de Doria a Caiado, que fazem um trabalho de coordenação que Bolsonaro, na ânsia de tiranete sem preparo, jamais será capaz de fazer.

*Professor titular de teoria política da UNESP


Eliane Cantanhêde: Isolamento vertical

Bolsonaro teme crise na economia e nas ruas, com derrota em 2022. E busca culpados

Uma pergunta sobrevoa os ares de Brasília nesses tempos de coronavírus: por que, com toda a tragédia e péssimas previsões para a economia, o presidente Jair Bolsonaro não dá um tempo nas suas guerras pessoais e assume mínima postura de estadista? A resposta inevitável é o temperamento incontrolável do presidente, mas isso é só uma parte da explicação.

Além da incapacidade de ouvir a própria assessoria, da mania de perseguição e da inveja de quem brilhe mais do que ele, o presidente tem motivações políticas e econômicas para a radicalização e o confronto, como no fatídico pronunciamento em que mandou às favas o isolamento social para se concentrar na economia. Os dois não são excludentes, mas isso é outra história.

Bolsonaro quer jogar a culpa da crise na mídia, governadores, prefeitos, Congresso, STF e até na China, porque teme perder apoio da base (aliás, do topo) bolsonarista – grande capital, empresariado e a tropa da internet. Logo, começou a bater o pânico de não ter gás para 2022. Com a economia derretendo, ou derretida, fica tudo mais difícil.

Há, também, outros fatores nas manifestações erráticas de Bolsonaro. Além de seu “passado de atleta”, de ter sobrevivido a uma facada e não temer “gripezinhas” e “resfriadinhos”, como esse tal de coronavírus, ele não é homem de esperar calado os ataques que imagina vindo de toda a parte. Sobretudo da esquerda, pretexto para tudo.

Antes mesmo da chegada do coronavírus ao Brasil, Bolsonaro já temia manifestações de rua, a exemplo do Chile. A esquerda, tão recolhida e tão morna desde a posse do novo governo, no ano passado, estaria se articulando para “dar o bote” no melhor momento – que corresponderia ao pior momento do presidente.

Forças Armadas, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Agência Brasileira de Inteligência (Abin) monitoram e acompanham riscos de eventuais distúrbios. Em avaliações internas, esses riscos já existiam e podem ser potencializados pela pandemia, quebradeira de empresas e o horizonte de milhões a mais de desempregados.

Assim, o Ministério da Defesa montou dez comandos de emergência, oficialmente para a necessidade de Exército, Marinha e Aeronáutica virem a entrar no combate à doença, mas também como prevenção para o caso de convulsão social provocada pela realidade e instrumentalizada pela esquerda, com manifestações, saques e tumultos.

Bolsonaro teria uma certa obsessão com isso, achando que, mais cedo ou mais tarde, algo assim possa ocorrer e enfraquecer sua autoridade e sua posição de presidente. O que não percebe é que o ex-presidente Lula, o PT e seus satélites não estão com essa bola toda e ações radicais seriam rechaçadas maciçamente pela sociedade. Assim, quem tem trabalhado incansavelmente para enfraquecer sua autoridade e sua posição é o próprio Bolsonaro.

Após ambientalistas, estatísticos, jornalistas, professores, governadores, presidentes de outros países Congresso, STF e as áreas de Direitos Humanos, pesquisa e Cultura, ele bate de frente de novo com a ciência e inclui a área de saúde, ao minimizar o coronavírus, apesar de todas as evidências, e defender a troca do isolamento social por um “isolamento vertical”, apesar de todos os protocolos da OMS que o Ministério da Saúde e os Estados seguem.

Bolsonaro teria se saído muito melhor se ouvisse mais seus generais e assessores, menos Carlos Bolsonaro e o “gabinete do ódio”, e tivesse feito o discurso da prioridade zero, um, dois e três para o combate ao coronavírus e para salvar vidas, mas sem perder a perspectiva de preservar o possível da economia, das empresas e do emprego. O velho e bom equilíbrio. O capitão, porém, prefere sair atirando. Inclusive no próprio pé.


Pedro Doria: A digitalização do mundo acelerou

A transformação cultural estava em curso, de forma lenta. A pandemia pode acelerá-la.

Quando este nosso pesadelo coletivo passar e pudermos novamente ganhar as ruas, o mundo será outro. Nas últimas duas décadas, a ciência foi barbaramente questionada. Mas é a ciência que vai resolver o problema do novo coronavírus. Estamos há anos falando sobre ensino à distância, medicina à distância, trabalho por home office. E, no entanto, o processo de evolução é lento. Se passarmos mesmo alguns meses em quarentena, e é isto que tem cara de que vai acontecer, nossa relação com tecnologia e a natureza da economia se transformará de forma irreversível.

Alguns dos motivos são pragmáticos. Embora o presidente Jair Bolsonaro sugira por aí que, sem quarentena, a economia brasileira aguentaria o tranco, isto não é verdade. Porque a economia do mundo todo irá numa direção só. O Senado americano não acaba de aprovar um pacote de estímulo econômico no valor de 10% do PIB do país à toa. A nação mais conservadora do mundo no ponto de vista fiscal vai injetar US$ 2 trilhões na economia porque o tombo vai ser pesado. Ali do outro lado, quando tudo acabar, inúmeras empresas terão um problema de liquidez. Aí vão olhar para a quantidade de imóveis que têm. Ou para o preço do aluguel. Vão avaliar sua experiência com trabalho remoto. E não serão poucas que dirão: aprendemos algo. Este gasto em dinheiro é, ao menos, parcialmente desnecessário.

Quantos de nós não estamos descobrindo ferramentas como Zoom ou Google Hangouts, nos servindo em casa de uma taça de vinho ou de uma long neck e batendo papo com quem está à distância como se fosse uma mesa de bar?

É uma mudança cultural deste vulto que estamos para encarar. Não é apenas na vida profissional, é também na pessoal. Quantos de nós não deixamos por vezes de sair numa sexta à noite ou sábado com amigos porque o dinheiro está curto, porque temos que ficar com os filhos, por qualquer outro motivo? E quantos de nós não estamos descobrindo ferramentas como Zoom ou Google Hangouts, nos servindo em casa de uma taça de vinho ou de uma long neck e batendo papo com quem está à distância como se fosse uma mesa de bar. Na primeira é meio esquisito, mas aí vamos acostumando e de repente é rotina. Este não é um hábito que será perdido.

Em paralelo, os serviços de entrega entraram em colapso. De supermercados e farmácias tradicionais às startups de aplicativos. Ninguém tinha estrutura para aguentar uma realidade que se tornou quase toda online. Mas, como nos outros casos, este é um jogo de tempo. Quanto mais tempo ficarmos nesta situação, mais tempo os negócios vão se adaptar e mais nós nos acostumaremos. Em três meses, a maneira como se organizam vai mudar. Lojas físicas não vão desaparecer, mas haverá um boom dos serviços de entrega. Cada vez mais vamos preferir a comodidade de pedir online e deixar que os mantimentos venham a nós. Sim, já o fazíamos. É só que faremos mais.

Educação à distância não é novidade. Pesque qualquer adolescente que esteja próximo do Enem. Não há um que não assista aulas por YouTube ou não assine um serviço tipo Descomplica. Hoje, são supletivos. Complementam a aula, ajudam a reexplicar aquela fórmula que ficou mal compreendida na escola. Mas cursos universitários online não são absurdos. Neste exato momento, Stanford e Harvard, Yale e Princeton, as melhores dentre as melhores universidades americanas estão se direcionando rapidamente para a internet de forma a manter suas aulas.

Não é absurda a ideia de se formar numa das melhores universidades do mundo sem sair do interior do Piauí. É preciso entrar, claro. Mas sai muito mais barato.

Faz uma semana hoje que o historiador israelense Yuval Noah Harari publicou, no jornal britânico Financial Times, um longo artigo que mergulha nesta transformação cultural. Ela já estava em curso, de forma lenta. A pandemia pode acelerar a transformação digital do planeta.


Elena Landau: Perigo real e imediato

Se algo positivo pode sair dessa crise é o fim da carreira desse protótipo de ditador 

Este governo nunca expressou empatia por ninguém. À essa indiferença se juntou a falta de noção. Não chega a ser uma surpresa: o obscurantismo sempre foi a sua marca. Bolsonaro tratou tudo com desdém: “histeria, se eu estiver infectado o problema é meu, vamos manter cultos e missas, sobrevivi a uma facada, não é uma gripezinha que vai me pegar”. Afinal, ele tem histórico de atleta. A lista de despautérios é imensa. É todo dia um.

Seu pronunciamento foi o ápice dessa marcha da insensatez. Ele tem um padrão que parece errático, mas é bem pensado. Faz e desfaz, e vai testando os limites. Começou a semana dando sinais de que tinha entendido a gravidade da crise. Também se reuniu com governadores, a quem havia chamado de lunáticos. Tudo parecia caminhar para um mínimo de normalidade.

Seus cinco minutos em rede nacional mostraram que não passava de uma farsa. O desatinado se revelou em toda sua mesquinharia, fez piadas com Drauzio Varella, atacou a mídia, jogou por terra todos os esforços que a equipe do Ministério da Saúde vinha fazendo para manter o distanciamento social e provocar o achatamento da curva da epidemia. E ainda criou uma crise institucional com os governadores. Ele acha que está num jogo ganha-ganha; se o isolamento for mantido por eles, e funcionar, vai manter a tese da gripezinha.

Nada é feito sem pensar. Empresários ligados a ele coordenaram uma campanha nas redes sociais defendendo a estratégia de isolamento vertical. Era um teste. Gostou da repercussão e partiu para o confronto com governadores e infectologistas. Nosso presidente já era considerado o pior líder mundial na condução do combate ao vírus. Agora, virou hors-concours.

Muitos votaram nele esperando que o “capitão”, que nem sequer carreira militar conseguiu seguir, fosse comandar o país na “guerra contra o comunismo”. Se mostrou despreparado para liderar qualquer coisa, a não ser sua própria família, composta de outros incompetentes. A incapacidade intelectual para conduzir o país era esperada, a ela se juntou a psicológica e, mesmo, ética. Bolsonaro embrulhou seu discurso contra o isolamento com a necessidade de preservar empregos. Populismo puro. Ele não está preocupado com a vida de seus cidadãos, nem com o sustento de famílias vulneráveis ou com os milhões de brasileiros que veem sua renda ser interrompida da noite para o dia. O foco dele é 2022, bem revelado no bate boca com Doria.

O Tesouro e o Banco Central atuaram para garantir recursos para saúde e injetar liquidez na economia. Mas não é suficiente. As iniciativas têm se concentrado no mercado de trabalho privado e formal, enquanto nada tem sido proposto para o setor público, onde estão os 20% mais ricos da população, e com estabilidade de emprego. O governo segue a reboque das iniciativas do Legislativo, sugestões da sociedade civil e especialistas fora do governo. Mas sem a urgência necessária. Nem mesmo os míseros 200 reais foram viabilizados. Governo só se mexeu quando a Câmara assumiu o projeto e ampliou o valor.

A epidemia revelou os males de um país terrivelmente desigual. Como lavar as mãos onde falta saneamento e sabão é item de luxo? Como fazer distanciamento social para famílias que dividem um único cômodo? A solidariedade vem suprindo a ausência de poder público nas comunidades. A falta de proteção social a esse enorme contingente da população nas medidas anunciadas escancara a desumanidade do governo.

Na ausência de uma rede de proteção social, é natural que bata um desespero e as pessoas prefiram trabalhar a ficar em casa. A resposta à angústia não é colocar vidas em risco. Só que na economia, o piloto sumiu. A calibragem entre medidas econômicas e o controle da epidemia precisa de um coordenador com credibilidade. Guedes continua obcecado com as reformas, quando estamos em meio a uma guerra. Elas sempre foram necessárias, mas governo jogou um ano fora.

Bolsonaro só está preocupado com os efeitos da recessão sobre a avaliação de seu governo. Em mais um de seus sincericídios, afirmou que se a economia desanda, o governo perde apoio, e lá se vai a campanha de reeleição para o brejo.

Se algo de positivo pode sair desta crise é o fim da carreira política deste protótipo de ditador. Ele busca o confronto com o Legislativo, parecendo querer testar sua popularidade com uma tentativa de impeachment frustrada, que dê a ele o que sempre quis: governar sozinho, sem a chateação dos outros poderes e da imprensa.

Que em 2022, não seja a polarização a comandar os votos. E que a competência e experiência, que foram ignorados no primeiro turno de 2018, sejam fatores determinantes na escolha de um líder capaz de conduzir o país numa crise.

O negacionismo científico do presidente, especialmente na educação e no meio ambiente, já estava comprometendo gerações futuras, mas agora é mais grave; está colocando em risco vidas, milhares delas. O perigo é real e imediato. Bolsonaro quer colocar a conta da recessão nos governadores e prefeitos. Com quem ficará a conta dos mortos?


Josué Pellegrini e Felipe Salto: Gestão fiscal na guerra contra o coronavírus

Além de provocar queda da receita, a crise exigirá forte aumento dos gastos públicos

O Brasil vive uma guerra contra o coronavírus. O custo fiscal chegará a centenas de bilhões de reais. Cada real utilizado valerá a pena se servir para salvar vidas, preservar empresas e atividades e garantir a subsistência dos milhões de trabalhadores que perderão renda em razão da paralisação da economia.

Dado que os recursos necessários serão bastante vultosos e o País já se encontra em situação fiscal frágil, as decisões a serem tomadas nesse âmbito terão de seguir duas diretrizes principais: 1) alocar os recursos disponíveis de modo a maximizar os resultados no enfrentamento da crise e 2) distribuir o custo da guerra entre diferentes fontes de financiamento.

Em relação ao primeiro item, a principal preocupação é garantir agilidade e efetiva utilização dos recursos. Um conselho no âmbito da União, com participação dos Poderes e boa articulação com os governadores e prefeitos, seria um arranjo conveniente. Todas as grandes decisões relativas à crise passariam por esse núcleo decisório.

Esse conselho contaria, ainda, com um regime extraordinário de funcionamento e uma espécie de orçamento que acompanharia as fontes de financiamento das medidas e o caminho da utilização dos recursos, incluídos os créditos, até a destinação final, necessariamente relacionada ao combate à crise. Com esse arranjo seria possível coordenar as ações, conferir agilidade, acompanhar e fiscalizar o gasto.

Vale registrar que a crise atingiu o Brasil numa situação fiscal particularmente ruim. A meta de déficit primário do governo central para 2020, somada à necessidade de contingenciamento, resulta numa necessidade inicial de financiamento na esfera federal de R$ 150 bilhões a R$ 160 bilhões. Soma-se a esse montante o gasto extra do combate à crise de cerca de R$ 350 bilhões, considerando complementação de renda, correções no Bolsa Família e despesas na área da saúde. Sem contar os créditos a serem concedidos por meio dos bancos públicos.

É preciso levar em conta também os efeitos da forte queda da atividade econômica e de medidas tributárias de ajuda ao setor privado. Várias projeções indicam queda do produto interno bruto (PIB) de 4% ou mais. A isso se soma o forte impacto da crise sobre o preço do barril de petróleo e o tamanho dos royalties e participações especiais. Não é pessimismo exagerado acreditar que a receita possa cair mais de R$ 120 bilhões.

Conjugando os números acima se conclui que a necessidade de financiamento do setor público em 2020 deverá ultrapassar os R$ 600 bilhões. A maior parte dessa necessidade será atendida pelo aumento da dívida pública.

Tal fato remete à segunda diretriz apontada, que é o balanceamento adequado das fontes de financiamento para evitar novos problemas, tão logo o País retorne à normalidade. Dois canais de financiamento complementares, além do endividamento federal, são a redução de ativos e o remanejamento dos gastos públicos.

O resgate antecipado dos créditos do Tesouro no BNDES estará limitado em 2020, se o banco tiver papel importante no enfrentamento da crise, pela concessão de crédito a empresas e entes federados. Já a venda de reservas internacionais será relevante, uma vez que o Banco Central tem usado esse instrumento para controlar a instabilidade da taxa de câmbio.

A venda de reservas permite que o Banco Central reduza dívida (operações compromissadas), o que diminui a dívida bruta e abre espaço para financiar os gastos necessários para mitigar os efeitos da crise.

O espaço para a venda de reservas é dado pelo nível mínimo prudencial, ainda mais na presente crise. Recorrendo à métrica do Fundo Monetário Internacional (FMI), chega-se a um limite de R$ 291,9 bilhões, inclusa uma margem de segurança de 25%. Comparativamente ao nível atual de reservas, de R$ 358,5 bilhões (em 13 de março), a venda até o limite propiciaria US$ 66,6 bilhões em recursos, o equivalente a R$ 333 bilhões, a uma taxa de câmbio de R$ 5.

Outra fonte de financiamento a ser explorada é o remanejamento de despesas, reduzindo as que não dizem respeito à crise, em favor das que atacam diretamente o problema. Contudo não basta ater-se ao remanejamento das despesas discricionárias, pois estas são muito reduzidas, ainda mais com as emendas parlamentares. O ideal seria aprovar com urgência uma autorização temporária para envolver também os gastos obrigatórios.

Uma alternativa próxima a essa seria o uso dos empréstimos compulsórios, previsto na Constituição, de grupos de alta renda. Essa medida e o remanejamento não são contracionistas, pois os recursos liberados serão destinados à mitigação da crise.

Em resumo, a crise surge numa situação inicial de desequilíbrio das contas públicas e, além de provocar queda da receita, exigirá forte aumento dos gastos. Esse quadro requer uma gestão fiscal atenta ao emprego adequado dos recursos no enfrentamento da crise e à distribuição equilibrada das fontes de financiamento, de modo a não provocar problemas de difícil solução logo após o retorno à normalidade.

RESPECTIVAMENTE, DIRETOR DA INSTITUIÇÃO FISCAL INDEPENDENTE (IFI) E CONSULTOR LEGISLATIVO DO SENADO FEDERAL; E DIRETOR EXECUTIVO DA IFI DO SENADO FEDERAL