O Estado de S. Paulo
Luiz Sérgio Henriques: Karl Marx e o nosso tempo
O filósofo agora parece readquirir o poder de inspirar uma visão do ‘presente como história’
Benedetto Croce, de quem se dizia ser o “papa laico” da cultura italiana e o líder intelectual do liberalismo europeu na primeira metade do século 20, costumava afirmar, apesar de seu proclamado laicismo, que “depois de Cristo todos somos cristãos”. Tratava-se de uma forma refinada de admitir o que havia de efetivamente universal no cristianismo do Novo Testamento, que interpelava a consciência de todos os homens, mais além dos círculos de proximidade tribal ou territorial. Segundo Croce, querendo ou não, a partir de então passamos a ver o mundo como cristãos, como de resto ainda o vemos, independentemente de fé ou adesão a qualquer visão transcendental do mundo.
Essa percepção não vale só para um fenômeno tão extraordinário quanto a vinda de um Deus. Pensadores notáveis, radicalmente terrenos em sua busca de explicações para os fatos da vida, à sua maneira também deixaram uma marca da qual nem sempre nos damos conta, mas que está presente no espírito do tempo, moldando juízos e modos de ver até do homem comum. Karl Marx, por exemplo, cujo bicentenário ora se celebra, é um desses homens notáveis, cuja obra múltipla, fragmentada e contraditória, nascida no calor da revolução industrial movida pela máquina a vapor, parece ter sobrevivido a regimes políticos despóticos que, ainda por cima, não raro o trataram como uma espécie de oráculo infalível ou moderna divindade, capaz de resolver de uma vez por todas o enigma da História.
Inscreve-se nessa tradição desafortunada o discurso de Xi Jinping, o líder máximo chinês, por ocasião da solenidade em Beijing. O marxismo – ou melhor, uma de suas inúmeras versões burocraticamente definidas – aparece como o recurso de legitimação possível num país cujo ritmo espantoso de crescimento tem definido em grande parte a globalização, ao mesmo tempo que deixa em seu rastro índices não menos consideráveis de desigualdade. Para os que apreciam medidas objetivas, a desigualdade chinesa hoje se situa em nível comparável ao dos Estados Unidos, o que repõe como atual o pensamento de Marx nas duas circunstâncias, desde que tomado criticamente e, portanto, afastado de qualquer ideia grosseiramente igualitária da vida social.
Esse, aliás, é um ponto curioso a ser anotado em nossa época de contraposições entre opostos e combinados doutrinarismos. O Manifesto Comunista – que também passa por uma dessas datas redondas, publicado que foi em fevereiro de 1848 –, sem delinear a sociedade futura, imagina-a, contudo, fundamentada no livre desenvolvimento de cada indivíduo e só a partir daí concebe o livre desenvolvimento de todos. Esse caráter fundador da liberdade individual esteve evidentemente sufocado nas diversas experiências do socialismo real. E, se na China contemporânea vigora a liberdade do Homo oeconomicus, dando um poderoso sopro de vida aos “espíritos animais” do mercado, a esfera política continua sob o controle rígido do partido-Estado e seus “sacerdotes”. E como sempre nesses casos, o que se pode prever é uma crescente e insustentável distância entre a realidade das coisas e a retórica oficial, cada vez mais vazia e ritual. Em algum momento aquela realidade cobrará seus direitos.
O Manifesto, como já assinalado por vários estudiosos, contém passagens inteiras que, sem nenhum esforço de falsificação, soam como apologia do mundo que o capital criou e só hoje se explicita aos nossos olhos em sua unidade repleta de problemas. Nenhuma condescendência com as formas idílicas e pastoris de um passado supostamente livre de dilaceramentos. Nenhum espaço, portanto, para qualquer forma de “anticapitalismo romântico”, e terá sido esse um dos motivos pelos quais soluções buscadas em Marx – num certo Marx – seduziram os países atrasados, como a Rússia de 1917 e a China de 1949, que se viram como os “elos fracos” de uma cadeia mundial e enveredaram por caminhos – de fato, extremamente autoritários – de chegada ao mundo moderno, urbano e industrial.
Em tais contextos se potencializaram as carências políticas da teoria marxiana, presa como estava à ideia de uma classe universal que, por meios violentos, subverteria a ordem dominante, colocando em seu lugar, mais ou menos aceleradamente, uma sociedade sem classes e sem Estado – mas com um único partido de estrutura vertical, vocacionado para o controle material e ideológico. Nas sociedades atrasadas, assim, autocracia e acumulação primitiva deram-se as mãos. E todos seriam marxistas ou, mais apropriadamente, fingiriam ser.
Contudo nas sociedades avançadas do Ocidente, mesmo sem ter inicialmente uma noção elaborada das formas da política, o movimento operário, apoiando-se numa leitura “revisionista” do legado do filósofo, acabou por ampliar significativamente a base de massas dos Estados liberais, enriquecendo-os com novas e poderosas figuras que vigoraram por todo o século passado, a exemplo dos sindicatos e dos partidos social-democratas. Essas figuras, entre outras, deram força e sentido às modernas democracias constitucionais, hoje sob ataque concentrado de autoritários de direita e de esquerda.
Houve quem afirmasse, em outra circunstância igualmente hiperideologizada, que Marx e o marxismo constituiriam o horizonte insuperável do nosso tempo, a base de uma futura civilização integral. Décadas se passaram, mudou a estrutura do mundo, ruiu a maioria dos regimes que diziam encarnar a doutrina do filósofo. Este, agora, parece readquirir o poder de inspirar uma visão do “presente como história”, contribuindo, sem exclusividade, para desbloquear a imaginação social. Mas há uma novidade: o horizonte insuperável do tempo só pode ser o Estado Democrático de Direito, que contém em si as regras – inclusive procedimentais – que devem ser plenamente assumidas por uma esquerda que saiba aprender, ou reaprender, a conjugar liberdade e igualdade.
Bolívar Lamounier: Quero ufanar-me de meu país
O quadro eleitoral para outubro é um dos mais nebulosos da nossa História
Quero, mas está difícil. Baseando-se em dados do IBGE relativos ao primeiro trimestre do ano, o Estadão de ontem informou que “27,7 milhões de pessoas estavam desempregadas ou trabalhando menos do que poderiam ou gostariam, e 4,6 milhões de desalentados desistiram de procurar emprego, um recorde”. A recuperação econômica ainda é precária. As mazelas sociais permanecem. Nas ruas, muita insegurança; nas almas, muito rancor.
Contra esse pano de fundo sombrio, podemos afirmar sem temor de erro que o quadro eleitoral para outubro é um dos mais nebulosos de nossa História. Sem uma mudança expressiva, cujos contornos por enquanto ninguém vê, o pleito certamente realimentará as incertezas que rondam a economia. Essa afirmação pode ser esmiuçada em três níveis: o perfil dos candidatos, o formato da disputa que deles se pode esperar e, menos perceptíveis, certas características de nossa estrutura social – das “elites”, especialmente – que dificultam a articulação de uma saída mais consistente.
No que toca aos candidatos, o ponto de partida só pode ser Jair Bolsonaro, que no momento mantém folgada dianteira nas pesquisas. O que sabemos sobre sua candidatura é muito pouco, mas suficiente para sustentar alguns juízos preliminares. Ex-militar, tendo passado para a reserva no posto de capitão, está para completar 30 discretíssimos anos na Câmara dos Deputados. Tenta capitalizar o sentimento de insegurança que grassa na sociedade – com muito sucesso, a julgar pelos 28% de intenções de voto que as pesquisas lhe têm atribuído. Nada em sua biografia sugere que tenha desenvolvido um pensamento econômico coerente. Um vago intervencionismo nacionalista, semelhante ao da maioria dos políticos. Um pensamento liberal ele com certeza nunca desenvolveu, mas o coordenador de seu programa, Paulo Guedes, é um dos economistas mais consistentemente liberais do País. A esse bico de pena é preciso acrescentar que Bolsonaro é apoiado por um partido inexpressivo, o que desde logo autoriza a premonição de graves dificuldades no Congresso, com o nosso famigerado “presidencialismo de coalizão”. Mas isso não é tudo. Bolsonaro também oferece ao distinto público a curiosa proposta de colocar um general no Ministério da Educação, como se um militar, só por ser militar, pudesse dar andamento adequado aos problemas educacionais brasileiros. Sua retórica política não é menos tortuosa. Poucos dias atrás, quando se divulgou que o general Geisel, na condição de presidente da República, autorizara pessoalmente a execução de integrantes da luta armada, Bolsonaro comentou: “Mas quem um dia não deu uma palmada no bumbum de uma criança?”.
Dado esse perfil, o que se discute é se Bolsonaro já está no segundo turno ou, ao contrário, se sua candidatura é autoincinerável. Não me arrisco a responder. Os adeptos mais afirmativos de sua candidatura, como antes sugeri, são os que cultivam o mito de um governo “forte”, capaz de acabar com a criminalidade num abrir e fechar de olhos, e outros, ideologicamente orientados, que o veem, finalmente, como o messias “de direita” pelo qual tanto ansiaram.
No polo oposto, que seria a “esquerda”, não sabemos quem será o candidato, nem mesmo se haverá alguma candidatura. Lula, inelegível, carreará votos para algum candidato nessa faixa, mas a quantidade de votos com certeza dependerá do candidato adotado pelo PT. O ex-prefeito Haddad não me parece ser o beneficiário ideal da transferência dos votos de Lula, em parte por seu perfil pessoal e em parte por não encarnar o radicalismo dos setores à esquerda do partido e dos chamados “movimentos sociais”.
O espaço deste artigo não me permite percorrer todos os nomes, mas dois – Marina e Ciro Gomes – me parecem merecer um comentário. Se é verdade que a situação tumultuária em que o País se encontra favorece uma candidatura “carismática”, eu, no lugar de Marina, já mudaria meus planos. Não a vejo com a autoridade, a habilidade e a energia necessárias para enfrentar nosso serpentário legislativo. Seu lugar, e aí ela poderia desempenhar um papel importante, é o Senado. Por questões totalmente distintas, digo mesmo opostas, penso que esse deveria ser também o objetivo de Ciro. Ele foi governador do Ceará e esteve ministro da Fazenda durante alguns meses, e não há dúvida de que tem “energia”. Mas sua energia beira o destempero e mesmo a truculência. Teria muito a ganhar com o convívio legislativo, mormente em nosso plácido ambiente senatorial.
O segundo nível de análise que sugeri no início é o formato da disputa. Estamos caminhando para uma eleição radicalizada ou para uma convergência de centro? Do que acima foi dito, é difícil extrair um cenário radicalizado, seja no sentido clássico de esquerda x direita como no de uma logorreia virulenta, daquelas que geram muito calor e pouca luz. O cenário de centro, inegavelmente mais conveniente à recuperação econômica, depende do crescimento de Geraldo Alckmin, outra incógnita.
Meu terceiro ponto diz respeito à estrutura das “elites” brasileiras. O PT passou anos e anos vituperando-as, pintando-as como um pequeno círculo de conspiradores, sem se dar conta de que o problema brasileiro é exatamente o oposto. É a inexistência de um ou mais grupos que mantenham sequer uma remota semelhança com o que os livros de sociologia designam como elites. Temos, isso sim, corporações, grupos de interesse, setores aguerridamente engalfinhados, cada um querendo sua parte no erário. Um naco da riqueza geral do País. Mas perde seu tempo quem imagina que tais grupos, mesmo percebendo o risco enorme a que o País está exposto, tenham disposição ou coragem para dialogar em busca de uma convergência. Estamos em maio. Eles têm pouco mais de quatro meses para me desmentir. Rezo para que o façam.
* Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Consultoria Augurium e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Eliane Catanhêde: Murro em ponta de faca
Nada do que Temer fala, faz ou anuncia cola; tudo o que é contra ele vira um sucesso
Tudo o que o presidente Michel Temer diz, faz ou anuncia se volta contra ele, como se batesse num muro intransponível. A própria “festa” pelos dois anos de governo sucumbiu diante de um slogan inacreditável e das longas reportagens sobre um ano do áudio com Joesley Batista. Só cola o que é contra Temer.
Depois do “Bora, Temer”, agora uma nova piada pronta: “O Brasil voltou, 20 anos em 2”, ou “o Brasil voltou 20 anos em 2”? Dezenas de páginas de discurso do presidente versus uma frase de uma infelicidade gritante. Adivinhe quem ganhou essa disputa na internet e na mídia... E a nova peça publicitária, com um afogado, além de inoportuna nesses tempos difíceis, é de mau gosto incrível.
Até quando Marcela Temer se meteu no lago Paranoá para salvar a cachorrinha não houve tempo para capitalizar e humanizar a imagem presidencial. O Planalto sabotou uma reação simpática, punindo a agente responsável pela segurança da primeira-dama.
No discurso de segunda-feira, Temer elencou todos os avanços da economia, os juros em queda, a inflação mínima, o fim da recessão. O resto da semana, porém, foi derrubando, um a um, os dados do presidente. O Banco Central interrompeu o processo de queda dos juros, o dólar passou ontem dos R$ 3,70 e a Bolsa caiu 3,37%. E a subutilização atingiu 24,7% da força de trabalho, algo em torno de 30 milhões de brasileiros – 30 milhões!
E o fim da recessão? Na conversa com o presidente, na sexta-feira, ele falava animadamente da recuperação econômica e citou um crescimento de 3% neste ano. Questionei, porque o mercado já estava revendo essa previsão para baixo. Pois é. Com o resultado negativo do primeiro trimestre, a perspectiva agora é só de 2,3%.
Tudo parecia ir muito bem para Temer, que convocou um “dream team” para a economia e aprovava tudo o que queria no Congresso Nacional. Até que, exatamente há um ano atrás, veio explodir a degravação da conversa com Joesley Batista, da J&F, com a frase que acompanhará Temer para todo o sempre: “Tem que manter isso, viu?”.
Afora o fato de que o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, editou a sequência do diálogo – o que é, não apenas pouco profissional, mas imoral –, aquele áudio veio acompanhado de uma imagem demolidora: a da corridinha ridícula do então assessor Rodrigo Rocha Loures com a mala entupida com R$ 500 mil.
Em sua primeira manifestação pública, Temer usou o tom e a argumentação de jurista, com uma comparação constrangedora para Janot. Se a presunção era de que a mala de Rocha Loures seria na verdade do próprio Temer, era legítimo deduzir também que os milhões que o procurador Marcelo Muller recebia como advogado seriam também do próprio Janot.
Assim como Rocha Loures era assessor dileto de Temer no Planalto, Muller era o braço direito de Janot na PGR. E acumulava duas funções incompatíveis por definição: em metade do expediente, era o procurador que investigava a J&F e fechava o acordo de delação com Joesley; na outra metade, o advogado pago a peso de ouro para ensinar a Joesley como engabelar a PGR e se dar bem.
É dessas histórias em que não há mocinhos e em que ninguém se sai bem, mas quem mais perdeu, sob todos os aspectos, foi Temer. Com ele, perdeu o governo, que acabou precocemente. E perdeu o País, que interrompeu bruscamente sua recuperação e a chance de aprovar a reforma da Previdência.
Temer está rouco de tanto falar das vitórias do seu governo, mas ninguém lhe dá ouvidos. O que fica são o “tem que manter isso, viu?”, o vídeo de Rocha Loures, o “Brasil voltou 20 anos em 2”... E, agora, a reviravolta na economia. Seria só melancólico, não fosse trágico. E 2019 vem aí.
Fernando Gabeira: Um fio de esperança
Talvez o novo não surja com o frescor da pele de um bebê, mas se infiltre no que já existe
Sempre que examino o horizonte próximo das eleições presidenciais, não consigo dissociá-las dos rumos da Lava Jato num aspecto fundamental: a ruína dos maiores partidos brasileiros. O PT sofreu o maior impacto, com a prisão de Lula. PSDB e MDB arrastam-se em escaramuças jurídicas, sem perceber que também estão em decadência aos olhos dos eleitores.
Ambos tiveram seus operadores presos pela Lava Jato e soltos por Gilmar Mendes – Paulo Preto e Milton Lyra, respectivamente. No futebol costumamos dizer que o juiz quando apita uma falta de ataque inexistente na grande área, apita perigo de gol. Gilmar apita perigo de delação premiada, tentando evitar a derrocada total dos dois grandes partidos.
PSDB e MDB possivelmente respirem aliviados com operadores soltos ou mesmo, no caso de Geraldo Alckmin, com seu processo sendo retirado da competência direta da Lava Jato. Mas essa sensação de alívio momentâneo não leva em conta o fato de que tudo está sendo feito relativamente às claras, diante de uma opinião pública atenta. O desgaste é permanente e tende a crescer.
A ruína dos três grandes partidos revela também um paradoxo nas eleições deste ano. Ao mesmo tempo que estão em queda, são eles que devem deter a maior parte dos R$ 2,6 bilhões destinados a financiar a campanha eleitoral.
Em cada um desses três grandes partidos há candidatos mais ou menos capazes de atrair o voto popular. Mas as siglas foram marcadas pelo processo de corrupção. Dificilmente qualquer de seus candidatos conseguirá neutralizar esse estigma.
Esse raciocínio leva muitos analistas a considerarem a hipótese de um outsider nestas eleições. Alguns enfatizam o perigo de uma crise maior no caso da ascensão de alguém “de fora do sistema político-partidário”.
Duas potenciais candidaturas passaram pelo noticiário como cometas: as de Luciano Huck e de Joaquim Barbosa. A razão de sua escolha era precisamente oferecer um nome de fora, alguém que não se tivesse envolvido com os grandes partidos e pudesse captar o desejo de renovação.
Isso não é inédito na política brasileira. Dirigentes do atual DEM tentaram algumas vezes convencer Silvio Santos a disputar as eleições presidenciais. De modo geral, estamos acostumados aos quase candidatos, aos que se aproximam, flertam com a campanha, mas voltam logo para suas carreiras na iniciativa privada.
A perda de legitimidade dos grandes partidos, no entanto, nem sempre conduz a um candidato absolutamente estranho à cena política. Fala-se muito na campanha de Emmanuel Macron, mas sob muitos aspectos, inclusive experiência de governo, ele era um insider.
As pesquisas revelam, por seu lado, uma grande tendência à renovação, algo que todos sentimos nas conversas de rua. Quando essa tendência existe, pode haver resultados devastadores para os partidos. Mas ela pode também ser transferida para o interior do sistema político-partidário.
Uma das tarefas é dissecar o que define o novo na política. O processo não deixa dúvidas de que um elemento essencial é a promessa de combate à corrupção. Nesse sentido, os candidatos terão de reelaborar aquele projeto assinado por mais de 2 milhões de pessoas e que foi trucidado na Câmara. Não era um projeto perfeito, continha artigos potencialmente discutíveis à luz da Constituição.
Não creio que os 2 milhões de brasileiros que assinaram esperavam que fosse aprovado na íntegra. Se isso acontecesse, poderíamos revolucionar o Brasil com abaixo-assinados.
Mas o que ficou claro é que desejavam uma política contra a corrupção e apontavam suas linhas mestras. Sua pergunta continua no ar: que resposta política institucional será dada ao trabalho da Lava Jato, reconhecidamente incapaz de, por si só, equacionar o problema de forma satisfatória?
Outro aspecto que também pode preencher o desejo de novidade é a capacidade do candidato de se aproximar do País real. Um dos dramas dessa distância entre políticos e realidade nacional é a crise de segurança pública. Há muitos anos se tornou evidente a organização do crime em nível nacional no Brasil, até mesmo com ramificações na América do Sul.
No entanto, apesar de tentativas tímidas, presidentes sempre consideraram a segurança pública algo que deve ser resolvido no âmbito dos Estados. Ambas, corrupção e segurança, são temas atraentes para a demagogia, porque seduzem os que esperam soluções milagrosas.
Um terceiro ponto da renovação é realmente intrincado para mim. Ela demandaria um certo nível de unidade nacional para reconstruir um País arrasado.
Mas quando as pesquisas aparecem, e o nome de Lula nelas, torna-se evidente que, nesse ponto, as preferências pelos extremos são mais numerosas. Em outras palavras, o chamado centro do espectro político não é visto como a alternativa de uma transformação.
Há, entre outras, duas formas de encarar essa realidade. Uma delas é encontrar uma base real nas pesquisas e concluir que o centro é incapaz de encarnar essas aspirações. A outra é admitir que em outros países o centro perde substância, como na eleição de Trump, nos Estados Unidos, e no Brexit, na Inglaterra.
Esses fatores, a crise brasileira e o processo de globalização, não são idênticos, mas revelam uma dificuldade comum às forças moderadas. A tentação é concluir que nada de novo surgirá da campanha.
Porém aí seria também subestimar a capacidade de novas ideias políticas surgirem no cenário. Talvez o novo não apareça com o frescor da pele de um bebê, mas se infiltre no que já existe, produza composições e mudanças imperfeitas que possam representar algum avanço.
Diante desse quadro, as esperanças não podem focar apenas em candidatos, mas na capacidade social de produzir algumas direções de que eles não possam fugir, ainda que imprimam nelas suas marcas e seus defeitos pessoais.
William Waack: Dois heróis
Juiz Sérgio Moro e PM Katia – nessa dupla a população acredita
No dia em que Michel Temer organizou uma cerimônia para lembrar seus dois anos de governo as atenções estavam em Nova York, na entrega de um prêmio como personalidade do ano ao juiz Sérgio Moro. E na reprodução incessante de um vídeo no qual uma corajosa mãe PM mata um bandido assaltante na porta de uma escola na Grande São Paulo. Um símbolo perfeito para o estado atual da política brasileira. O que o governo diz que tem para mostrar importa pouco, muito menos nas eleições. Os heróis não são da política – ao contrário, são os que resolveram passar as coisas a limpo.
Existe alguma comparação entre o que está acontecendo agora e períodos que antecederam pleitos anteriores? As atuais são inéditas numa feição da qual nem suspeitávamos ainda em 2014. Quanto ao clima pré-eleitoral há, sim, alguma semelhança, como num espelho sujo, com 1989, quando a votação teve lugar ao final de outro governo impopular, o de José Sarney (que, como Temer, não tinha chegado lá pela disputa nas ruas), abominado por quase todos os candidatos e incapaz de colocar a máquina pública a serviço de qualquer deles.
Ao contrário de Sarney, que conduziu o País à hiperinflação e à moratória, Temer tem alguma coisa para dizer que fez, mas não há muita gente disposta a ouvi-lo. Ninguém liga a queda dos juros ou da inflação ao nome dele. Muitos acham que a Petrobrás se recuperou sozinha do desastre petista. O “legado” desse governo – mesmo uma equipe econômica na qual se confia na competência – não constitui um fator eleitoral de peso.
Pois o que pauta a disputa política no momento são dois grandes temas que fogem ao controle de um governo que, mais uma vez, veio a público simplesmente para dizer que é menos pior do que se pensa. Um dos temas é a questão muito mais abrangente da corrupção – em relação à qual a atual administração é largamente considerada o que se pretende erradicar, e não qualquer tipo de solução.
O outro é o da segurança pública, uma catástrofe nacional que nos faz ter a esperança de que existissem milhares de cabos Katia Sastre, a mãe PM que matou o bandido assaltante na porta da escola, defendendo outras mães e outras crianças. Para a cabo Katia existem dezenas de exemplos de Estados e polícias falidos, corrompidos e incapazes de enfrentar a expansão do crime organizado que há tempos já penetrou o aparelho de Estado. Os especialistas sabem que a resposta ensaiada pelo governo federal para situações pra lá de críticas, como a do Rio, jamais trará soluções duradouras.
Arrisco-me a dizer que aos olhos de grande parte da população o juiz Sérgio Moro, o paladino “solitário” na luta contra a corrupção, e a mãe PM Katia Sastre, enfrentando sozinha o bandidão armado, formam uma dupla de heróis que resolvem pelo empenho e coragem pessoais aquilo que hierarquias, burocracias, aparatos, instituições – governos, partidos e os políticos – não são capazes ou nem querem enfrentar.
Com o que chegamos ao que me parece realmente inédito nas eleições que se aproximam. O controle da esfera da política é exercido hoje por uma elite engajada de juízes, delegados, procuradores e figuras do STF. Elite educada em boas escolas, que segue boas carreiras de Estado, com um difuso propósito político-ideológico, além de saberem que eles sabem melhor do que ninguém (pois tem a sociedade a apoiá-los) como deve ser o jogo da política – fora a defesa mais ou menos exaltada de seus interesses corporativos, pois ninguém é de ferro.
Inédito nessas eleições é o fato de que os políticos, neste momento, são vistos como as figuras mais distantes daqueles valores que realmente importam nas emoções e sentimentos de quem os elege: honestidade e coragem.
Zander Navarro: Marx, o marxismo e a esquerda brasileira
A utopia do novo paraíso societário, à luz do socialismo real, não atraiu maiorias sociais
Eis uma tarefa de alto risco. São temas vastíssimos, associados a uma literatura oceânica. Uma biblioteca dedicada a esses assuntos seria gigantesca, 200 anos após o nascimento de Karl Marx. Ao propor uma sociedade radicalmente diferente em nome do socialismo, essa foi uma tradição política que estimulou amor e ódio, ideologias sacrossantas e também guerras e extermínios. E foi um ideário dominante durante quase meio século, pois entre 1949, a chegada de Mao ao poder na China, e 1989, com a queda do Muro, quatro em cada dez cidadãos do mundo viveram sob governos que se diziam marxistas.
Li tudo o que foi escrito por Marx, desde que me apaixonei pelas aparentes certezas defendidas pelos marxistas brasileiros na lendária revista Encontros com a Civilização Brasileira, na década de 1960. Jovem, quem não seria magnetizado por promessas de igualdade e uma sociedade justa? Não consegui concluir apenas os três volumes das áridas Teorias da Mais-Valia, que o autor alemão escreveu disciplinadamente entre 1861 e 1863 na biblioteca do Museu Britânico, em Londres. Eram os volumes preparatórios para sua maior obra, O Capital, cujo primeiro volume veio a lume em 1867.
No doutoramento, também na Inglaterra, continuei estudando essa tradição política. São quase cinco décadas de pesquisa. Assim, submeto curtas e simplificadas formulações sobre os três temas principais deste comentário.
Sobre Marx: um autor genial, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Febrilmente criativo e capaz de interpretar a sociedade humana como um todo, Marx foi leitor insaciável, movido por raríssima inteligência.
Percebeu como nenhum outro autor a chegada de um novo modo de vida, o capitalismo. Ainda que sua obra contenha inúmeros erros, ninguém, antes ou depois, identificou tão claramente os mecanismos essenciais desse regime econômico, em especial a sua intrínseca instabilidade, o que produz crises cíclicas. Causa perplexidade a sua capacidade analítica, considerando que escreveu quando inexistiam dados factuais adequados. A leitura de Marx, se feita desapaixonadamente, é essencial para todos os que desejarem entender o mundo dos humanos.
A maior insuficiência, não exatamente uma falha, desse modelo reside na sua teoria do valor trabalho. É uma tese lógica e irresistivelmente sedutora. Afirmada simplificadamente: o valor dos bens e mercadorias produzidos decorre do trabalho dos humanos, mas estes são remunerados apenas em parte. Por isso o capitalismo embute um veio de exploração social e, como resultado, um processo de acumulação da riqueza por uma minoria. Daí decorreriam a luta de classes e outras implicações sociais e políticas que propôs em sua copiosa produção. O problema: a teoria jamais foi provada empiricamente, senão de forma indireta. Competindo com outras explicações capazes de quantificar seus conceitos, a teoria de Marx foi se enfraquecendo com o tempo. Num mundo cada vez mais matematizado, a teoria, sem irrefutável comprovação quantitativa, foi sendo marginalizada pelos economistas e estudiosos. Tornou-se apenas uma curiosidade do pensamento social.
O marxismo é o outro tema de imensas proporções. Marx legou uma obra de interpretação, mas o marxismo não cresceu como ciência, e sim como ação política até meados da década de 1970, não fazendo parte de universidades e centros de investigação. Somente nessa década, especialmente na França, é que houve a tentativa de transformar aquele arcabouço numa “ciência”. Ou seja, ao contrário de teorias suas competidoras (a economia neoclássica, por exemplo), ao adentrar o mundo da pesquisa universitária o marxismo já encontrou seus opositores entrincheirados e foi incapaz de oferecer uma rota alternativa convincente para desalojá-los. Adicionalmente, no mundo real, os anos de expansão capitalista do pós-Guerra já haviam moldado a mentalidade dos cidadãos. A utopia do novo paraíso societário, à luz do chamado socialismo real que então existia na antiga União Soviética, não atraiu maiorias sociais para empurrar as sociedades para outro modo de produção.
Por fim, as chamadas “esquerdas”, os agrupamentos sociais assim intitulados porque são motivados por uma orientação política cujo epicentro conceitual retornaria a Marx e ao marxismo. O comentário, desesperadamente breve, nos remete apenas a dois aspectos da esquerda brasileira, tal como a conheci durante este longo período. Primeiro, a rígida convicção daqueles que tomam posição à esquerda, sobre a categórica segurança acerca da transformação social. Foi o que me atraiu quando jovem, mas posteriormente quis entender as origens dessas inquebrantáveis certezas sobre o mundo e seu destino histórico. Não precisei estudar muito para entender que inexistiam razões bem fundamentadas para manter essa proposição, como se dogma fosse. Por que meus amigos marxistas insistiam em apregoar a inevitável ruptura do capitalismo, com repetidas e cansativas loas sobre uma vaga “crise iminente” que nunca chegava?
Após essa decepção teórica, veio outra, porém mais mundana. Foi perceber que a maioria dos marxistas brasileiros lia pouco, discutia menos ainda e, mais grave, no geral apenas repetia um monocórdio rosário de frases feitas, com escassa e insuficiente comprovação. De fato, um credo. Até meados dos anos 1980, por exemplo, a maior parte da obra de Marx nem sequer era conhecida pela maioria da esquerda brasileira, pois não fora traduzida do alemão ou do russo. Mas, ainda assim, prosseguiam as visões religiosas sobre a derrocada próxima do regime capitalista.
A conclusão é inevitável. Marx e o marxismo são encantadores como um movimento de ideias, mas deixaram de ser a arquitetura possível de uma nova sociedade. As esquerdas, em geral, não souberam manter aberto esse roteiro histórico.
* Zander Navarro é sociólogo, pesquisador em ciências sociais
Monica De Bolle: FMI em xeque
A Argentina pode ter sido o canário da mina de carvão, mostrando que há países vulneráveis a um tranco
Não é preciso acompanhar de perto as oscilações dos mercados internacionais para saber que há algo de novo e pernicioso no horizonte. Há poucos meses, quando ainda predominavam os cenários de calmaria associados à visão de que as taxas de juros internacionais permaneceriam baixas por tempo prolongado, jorravam recursos para os países emergentes, inclusive para economias vulneráveis como a Argentina e a Turquia. Passadas algumas semanas, o quadro mudou subitamente. Investidores finalmente se deram conta não apenas de que o quadro de juros baixos pode se alterar mais rapidamente, mas também de que aumentaram as chances de que a economia mundial sofra as consequências da política comercial de Trump e das várias convulsões geopolíticas que se alastram com rapidez mundo afora. O resultado foi a busca por ativos seguros, o que sempre significa saída de recursos de países emergentes. Para os que não seguem com atenção as minúcias dos mercados, os acontecimentos evidenciaram-se na cotação do dólar e na volatilidade da bolsa. Evidenciaram-se, também, no pedido de socorro da Argentina ao FMI.
A turbulência é para preocupar. Ela teve origem na leve alta dos juros dos títulos de 10 anos do Tesouro americano, de cerca de 2,8% na média de abril-maio para 3% nas últimas semanas. Até agora, meros 0,20 pontos porcentuais a mais na taxa do ativo mais seguro e líquido do mundo foram suficientes para desarticular posições em ativos de emergentes causando imensas flutuações. Imaginem quando os mercados passarem a precificar essas taxas ao redor dos 4%, nível considerado compatível com o atual estado da recuperação americana. É possível, inclusive, que com a taxa de desemprego norte-americana abaixo de 4% e os efeitos das políticas de expansão fiscal adotadas no final de 2017, o rendimento dos títulos do Tesouro supere os 4% nos próximos meses, o que não traz alento para os países emergentes. Há menos alento ainda quando se considera que o Banco Central Europeu pode estar se preparando para dar fim às políticas de estímulo monetário excepcionais assegurada a retomada da zona do euro. Portanto, o mais provável é que esses movimentos de reprecificação de ativos continuem a fazer refluir recursos de países emergentes para as economias avançadas, eliminando o quadro de liquidez abundante.
Nesse sentido, a Argentina pode ter sido o canário da mina de carvão, o alerta. Há muitos países emergentes com solidez macroeconômica suficiente para aguentar o tranco. Contudo, há também muitos países vulneráveis. Diante de possíveis riscos crescentes, bom seria se pudéssemos contar com o poder de fogo do FMI. Hoje, dispõe o FMI de cerca de US$ 1,4 trilhão para enfrentar turbulências financeiras e crises embrionárias, ou montante quase quatro vezes maior do que dispunha às vésperas da crise de 2008. O problema é que mais de 30% desses recursos provêm de arranjos bilaterais de empréstimos com 40 países-membros, e não das tradicionais cotas a partir das quais financia-se o FMI e confere-se aos países poder de voto. Os arranjos bilaterais foram solicitados e acordados depois que a 15ª revisão de cotas – o processo a partir do qual o FMI revisa periodicamente suas necessidades de recursos junto aos 189 países-membros – foi adiada. Que fique claro: a fonte tradicional de recursos para o FMI são as cotas dos países, calculadas a partir de fórmulas específicas. No entanto, nos últimos anos impasses levaram a instituição a financiar-se por meio de empréstimos diretos.
Os atuais empréstimos ao FMI, no montante de US$ 450 bilhões, expiram em 2020. Ou seja, daqui a menos de dois anos pode ser que o Fundo conte com bem menos recursos do que conta hoje caso não se resolva o dilema das cotas e na eventualidade desses empréstimos não serem renovados. Preocupa a posição dos EUA. Membros do governo Trump responsáveis pelas organizações multilaterais já se posicionaram contra mudanças expressivas nas cotas ou aumentos de empréstimos dos EUA para manter o poder de fogo atual da instituição. Cabe lembrar que os EUA possuem poder de veto sobre as decisões do conselho do FMI, embora não possam impedir que outros países-membros aumentem unilateralmente suas contribuições à organização.
A possibilidade de que diminua em pouco tempo a capacidade do FMI de ajudar países em crise é extremamente preocupante nesse ambiente em que a era da liquidez abundante para emergentes chega ao fim. FMI em xeque e Argentina-canário não são auspiciosos para a economia global.
Eliane Cantanhêde: ‘Vaquinha virtual’
Doar para campanhas mobiliza e engaja o eleitor no projeto de seus candidatos
Começa hoje uma etapa das eleições que envolve diretamente o eleitor, ou seja, o senhor, a senhora, você. Entra em vigor oficialmente a “vaquinha virtual”, ou “crowdfunding”, pela qual a pessoa física pode participar ativamente da campanha, não só votando, mas contribuindo financeiramente para o candidato que julgar melhor para o País.
Nos seis cenários traçados pelo Datafolha após a prisão do ex-presidente Lula, os votos brancos e nulos variaram de 23% a 24%, mais do que todos os demais candidatos. Logo, os nulos e brancos “ganhariam a eleição”, confirmando a desilusão, o cansaço e o desprezo pela política, pelos partidos e pelos candidatos.
Isso é bom? É péssimo. Péssimo para o eleitor, que se omite numa decisão tão importante, para o candidato, que perde legitimidade, para os melhores, porque abrem espaço para os piores, e para a própria democracia, que é “do povo, pelo povo e para o povo”.
A “vaquinha virtual” é uma forma de mobilizar a sociedade e de engajar o eleitor no projeto do seu candidato a deputado, senador, governador ou presidente da República. Além de ser uma forma irrisória, mas objetiva, de cobrir a lacuna deixada pelo veto ao financiamento de empresas às campanhas. É um recurso a mais, de fonte limpa e com significado todo especial: o eleitor, a eleitora.
Segundo o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luiz Fux, “a possibilidade de impulsionar o seu candidato, através do voto e do financiamento, gera no eleitor o desejo da vitória, a sensação de disputa e de que está integrado ativamente no processo eleitoral”.
É isso aí. E não se esqueça: não votar no melhor é favorecer o pior. Por isso, o fundamental é se informar sobre o candidato, seu partido, seus companheiros, suas propostas, seu passado, seu compromisso, se cumpriu as promessas de campanhas anteriores. A partir da convicção, por que não contribuir com o candidato que mais representa o que você defende e quer para seu Estado, para o Brasil?
Podem doar pessoas físicas que não tenham permissão pública para, por exemplo, ter um táxi ou uma banca de revista. Atenção: o limite é de até 10% do rendimento bruto declarado no Imposto de Renda do ano anterior e a multa é de 100% do valor excedido. Pode ficar salgada para os desatentos.
Qualquer modalidade bancária de arrecadação é válida, boleto, crédito ou débito, mas com duas exigências: a identificação do CPF do doador e, nos valores acima de R$ 1.064,10, o uso de TED bancário, do doador para o candidato. Esses cuidados são importantes para evitar uso de doadores fantasmas, ou de “laranjas”, esses “personagens” tão comuns nas eleições brasileiras até aqui. Com CPF e TED, a fiscalização é mais eficaz, com contas a cada 72 horas para a Justiça Eleitoral.
Partidos políticos e candidatos podem doar sem limites. Se forem muito ricos, poderão bancar integralmente suas campanhas (que estão pela hora da morte). Mas e o candidato que é um líder, tem ideias claras e legitimidade para disputar, mas não tem recursos? É exatamente para eles que essa forma de financiamento é mais importante. Vai ficar fora por falta de dinheiro?
As “vaquinhas virtuais” começam hoje, mas os candidatos só vão poder usar os recursos a partir de 15 de agosto, com o início oficial do período eleitoral. E se desistirem entre hoje e 15 de agosto? Vão ter de devolver, centavo por centavo.
E há limites de gastos. Pela lei eleitoral, candidatos à Presidência podem chegar a R$ 105 milhões no primeiro turno, mais 50% se chegarem ao segundo. Para deputados federais, R$ 2,5 milhões. Eleições são muito caras, mas não são só “deles”. São de nós todos. Do senhor, da senhora e de você também.
Pedro Malan: Como nos vemos? Como somos vistos?
O que estabelece a diferença na sorte dos mortais pode ser reduzido a três determinações fundamentais
O que estabelece a diferença na sorte dos mortais pode ser reduzido a três determinações fundamentais. O que alguém é; portanto, a personalidade no sentido mais amplo. Nessa categoria se incluem a saúde, a força, a beleza, o temperamento, o caráter moral, a inteligência e seu cultivo. O que alguém tem – a propriedade e posse em qualquer sentido. O que alguém representa: aquilo que se é na representação dos outros e que, portanto, consiste nas opiniões deles a seu respeito.”
Assim escreveu Schopenhauer, em 1851. E a propósito dessa reflexão volto a um tema que me é caro: essas determinações fundamentais seriam igualmente aplicáveis à sorte dos países? Aquilo que um país é– sua “identidade” no sentido mais amplo; aquilo que um país tem – seus recursos naturais, o estoque de capital físico e humano; e, por último, o que o país representa na percepção de outras sociedades e culturas? Essa percepção condiciona a sua reputação, que não repousa apenas sobre a autoavaliação. Uma pessoa, e talvez um país, precisa também ver-se sob a lente da opinião dos outros.
Como nos vemos a nós, brasileiros? Como somos, vistos por outros? Cada sociedade tem ideias, mais ou menos compartilhadas, precárias que sejam, sobre seu passado, seu presente; bem como vislumbres do futuro possível. Recente pesquisa do Datafolha identificou “valores comuns à grande maioria” dos brasileiros, dentre os quais sobressaem “a crença no governo, depositário das esperanças nacionais” e “a moral cristã em relação a costumes”. Para 76% dos entrevistados, “o governo deve ser o maior responsável pelo investimento e pelo crescimento”. Nada menos que 83% dizem que “acreditar em Deus torna as pessoas melhores”. No editorial Ideologia nacional em que comenta a pesquisa, a Folha de S.Paulo opina que, “com raízes que remetem ao surgimento da Nação, tais valores não são imutáveis, mas ainda parecem os guias mais genuínos do que seria uma ideologia brasileira”. Ou, pelo menos, de uma certa ideia de Brasil, real ou desejado.
Ocorrem-me duas ilustrações relevantes do enraizamento de certas ideias de Brasil. Joaquim Falcão reuniu em belo livro artigos publicados entre 1982 e 1988 por Raymundo Faoro na revista Istoé/Senhor, em que incluiu entrevista com Faoro a propósito da transição do regime militar para a Presidência civil. Ancorado em seu clássico Os Donos do Poder, Faoro argumenta que em 1985 o Brasil tentava encontrar mais uma solução de conciliação intraelite, de longuíssima tradição entre nós. Tratava-se claramente de “uma certa ideia do Brasil’. Como a tem, seguramente, José Mutilo de Carvalho. Seu recente e belíssimo Pecado Original da República reúne artigos e ensaios que ajudam a compreender por que, embora uma democracia, tanto nos falte para constituirmos uma verdadeira República. Para Faoro, como para José Murilo, são necessários avanços que exigem mediações e lideranças de forma a conter os inevitáveis conflitos de interesse – e o consequente potencial de instabilidade, polarização e violência. Tancredo Neves era, à sua época, o principal depositário das esperanças de mediação – e foi-se exatamente quando dele e de pessoas como ele mais se precisava. Como precisa o Brasil de agora, com urgência. De muitas pessoas, não de um messias.
Entre os quase 200 países soberanos, contam-se nos dedos de uma mão os que estão simultaneamente na lista dos dez maiores em termos de extensão territorial, população e tamanho de sua economia. Uma década antes do surgimento da sigla Bric, George Kennan antecipou que os países em questão – Brasil, Rússia Índia e China –, além dos EUA, tinham o que chamou de hubrys of inordinate size: “Certa falta de modéstia na autoimagem do grande país; um sentimento de que seu papel no mundo deveria ser equivalente à sua dimensão nas três áreas acima, com a consequente tendência a superlativas pretensões e ambições”. Prossegue Kennan: “Em geral, o país grande tem uma vulnerabilidade a sonhos de poder e glória, aos quais Estados menores são menos inclinados”. Os países-monstro, como os designa o autor, “por vezes criam problemas para si próprios, mesmo quando não constituem problemas para outros”.
É, inequivocamente, o caso do Brasil. Nossos problemas são autoinfligidos, não somos vítimas passivas de eventos externos, fora de nosso controle – essa cantilena que, durante muito tempo, encontrou ampla acolhida entre nós. Não tenhamos dúvida: assim nos veem os outros. E esperam que possamos resolver esses problemas, pelos quais ninguém podemos culpar. O mundo nos olha através de nossos indicadores sociais e econômicos relevantes. Somos a sétima ou oitava economia do mundo, mas em termos de PIB per capita há mais de 40 países à nossa frente. Na avaliação internacional da OCDE sobre o aprendizado (alunos na faixa dos 15 anos) em linguagem, matemática e ciências estamos entre os dez últimos colocados em universo de quase 70 países, resultado de desigualdades e deficiências de aprendizagem nas idades certas. Outros dados relevantes – sobre a precariedade de nossas finanças públicas, por exemplo – abundam.
Nosso futuro está em nossas próprias mãos. Como sempre esteve, e estará. Nas eleições de outubro o eleitorado brasileiro tomará decisão histórica. O próximo quadriênio permitirá avaliar quão correta é a inquietante observação do jornalista Hélio Schwartsman Folha, 25/3: “Estamos, muito provavelmente, condenados a ser um país de renda média e um pouco menos civilizado do que teria sido possível”. Apesar de tudo, e paradoxalmente, também nos vemos, e somos vistos, como um país extraordinário na sua diversidade, de enorme potencial, com recursos naturais, humanos, técnicos, bem como recursos culturais, morais e criatividade. Que podem e devem nos levar, talvez, à superação das dificuldades presentes, que são parte real e sofrida – parafraseando Aguinis – do “atroz encanto” de ser brasileiro.
* Pedro Malan é economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
Eliane Cantanhêde: Geisel sem pedestal
Não há ‘meio ditador’, mas Geisel foi um ditador que operou pelo fim da ditadura
Tudo nestes tempos revoltos vira uma guerra insana e até cruel na internet e é exatamente esse o caso, agora, da bombástica revelação da CIA de que o então presidente Ernesto Geisel transformou a execução de opositores em política de Estado. Isso mexe com as mais profundas feridas e as mais arraigadas ideologias, mas a radicalização, para qualquer lado, continua sendo o pior caminho.
Como ponderou o presidente Michel Temer, em conversa comigo na sexta-feira, não se trata de uma versão nacional, mas da CIA, e nem tudo o que a CIA diz é necessariamente verdade. Acrescente-se: os Estados Unidos invadiram e aniquilaram o Iraque, sem aval do Conselho de Segurança da ONU, com base na informação da sua agência de inteligência de que Saddam Hussein desenvolvia sofisticadas armas químicas e biológicas. Foi um erro grosseiro. Ou uma mentira intencional.
O documento trazido à luz pelo professor Matias Spektor é uma nova frente de pesquisa sobre a verdadeira identidade e os reais propósitos do governo Geisel. Mas funciona como uma delação premiada: é uma versão, precisa ser recheada de provas. Dúvidas: como a reunião e a decisão de Geisel jamais vazaram no próprio Brasil? Por que um ou mais generais envolvidos contariam justamente para os norte-americanos, se eles se baseavam no velho nacionalismo que exalava ojeriza aos EUA? Para agradar a Washington?
Mas, “se non é vero, é ben trovato”. Apesar da “distensão lenta, gradual e segura” de Geisel, a ditadura continuou executando e torturando os adversários – ou “subversivos perigosos”, como registra a CIA.
Presidentes não são obrigados a saber tudo (assim como Lula nunca soube do mensalão?) e Geisel poderia até não saber de uma ou duas mortes. Mas de tantas? Ele demitiu o general Ednardo D’Ávila Mello após o assassinato de Wladimir Herzog, mas pelas mortes e torturas? Ou porque ele desafiava a abertura e o que o então presidente mais prezava: sua autoridade?
O fato é que o documento atinge profundamente a biografia de Geisel, com quem eu conversava uma a duas vezes por ano, depois da Presidência. E ele sempre com muito cuidado de não se vender como o “mocinho” lutando contra os “bandidos” do seu próprio regime. Criticava genericamente a “linha dura”, mas nunca foi enfático, indignado, contra seus métodos. Subliminarmente, era como se fossem um “mal necessário”.
A partir da CIA, há dois personagens num só: o ditador determinado a devolver o País aos civis e o pragmático convencido de que tinha de dançar conforme a música dominante no regime: a favor de matar e torturar, inclusive quase meninos, em nome do combate ao comunismo. Esse confronto entre as intenções de Geisel e sua submissão ao regime é claro na obra magistral de Elio Gaspari sobre a ditadura. E foi bem resumido, ontem, por Spektor: “O que Geisel fez foi chamar para si a responsabilidade (da repressão), para poder abrir”.
Ceder para avançar.
Seria mais fácil, e aplaudido, escrever um texto apaixonado contra o ditador assassino ou, muitíssimo pior, em defesa da guerra contra o comunismo. A política e a história, porém, não se fazem com paixão. Se comprovada, a informação da CIA derruba Geisel do pedestal de quem jamais compactuou com os “desaparecimentos”. Mas não apaga a realidade de que ele efetivamente se empenhou pela abertura. Não existe “meio ditador”, mas Ernesto Geisel foi um ditador que operou para derrubar a ditadura.
Que o documento da CIA reabra serenamente a Comissão da Verdade e o debate sobre o reconhecimento de responsabilidade das Forças Armadas, como defende seu último presidente, Pedro Dallari. A verdade às vezes dói, mas nada como a verdade para curar velhas e evitar futuras feridas.
Eliane Cantanhêde: Guerra de nervos
De repente, um frenesi para acabar com o foro de todo mundo. Será já? E para valer?
Os atos seguintes à restrição de foro privilegiado de deputados e senadores confirmam que a questão já está madura nas instituições e na sociedade brasileira. Seja retaliação ou não, há mobilização para limitar o foro também para os outros Poderes, o Executivo e o próprio Judiciário. Resta ver se vai andar mesmo.
O próximo presidente do Supremo, Dias Toffoli, não perdeu tempo. No mesmo dia da decisão sobre os parlamentares, um funcionário já entregava no seu gabinete uma caixa de um palmo e meio de altura com os processos contra quem tem mandato. No dia seguinte, ele já enviava nove deles para outras instâncias.
Nesta semana, Toffoli deu um passo ainda mais largo, ao levar para a presidente Cármen Lúcia duas propostas de súmulas vinculantes, ou seja, para submeter todas as instâncias abaixo à decisão do Supremo. Mas com uma interpretação, digamos, ampliada.
A primeira proposta é para a regra que passa a valer para deputados e senadores ser estendida a todos os que têm foro privilegiado no Legislativo, Executivo, Judiciário e Ministério Público. A segunda proposta é para tornar inconstitucionais todas as previsões de foro privilegiado nas constituições estaduais e na Lei Orgânica do Distrito Federal. A intenção é limitar o foro de 55 mil agentes públicos nas esfera federal, estadual e municipal.
No mesmo embalo, o ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), empurrou para a primeira instância em João Pessoa um processo contra o governador Ricardo Coutinho (PSB) por crime que teria sido cometido antes do atual mandato. O ministro usou a decisão do STF, mas a verdade é que essa decisão não gerava vinculação automática.
Logo, ele quis foi jogar luzes para a questão, que agora vai parar na Corte Especial do STJ, que é, ou era, foro privilegiado para governadores, desembargadores e conselheiros dos tribunais de contas dos Estados.
Se o Judiciário pisou no acelerador, o Legislativo não ficou atrás e a Câmara instalou a Comissão Especial para analisar a restrição de foro para todo mundo, inclusive ministros de Estado e ministros de tribunais superiores. Pelo projeto em discussão, só manteriam, ou manterão, a prerrogativa os presidentes da República, do STF, da Câmara e do Senado.
É claro que os parlamentares vão jurar que isso não tem nada a ver com retaliação, mas a data da criação da comissão – na semana seguinte à restrição de foro só para deputados e senadores – indica exatamente o contrário. Soa assim: “Se vale para nós, por que não vale para os outros?”
Tudo parece muito rápido, mas calma lá! Estamos falando de Brasil, de Justiça e de Congresso Nacional. No Supremo, há ainda um longo caminho para as duas propostas de súmulas vinculantes de Toffoli, que ainda irão à análise da Procuradoria-Geral da República e dependem depois de Cármen Lúcia pôr ou não em pauta. Quanto tempo isso pode demorar? Vá se saber...
E, no Congresso, há um obstáculo de ordem prática, objetiva: enquanto durar a intervenção federal na segurança pública do Rio, nenhuma emenda constitucional pode ser votada. E há outros mais prosaicos: com Copa do Mundo, convenções partidárias e campanha eleitoral, quando haverá quórum para uma votação assim? Possivelmente, só no ano que vem. Se houver...
Então, há muita correria, mas não esperem que seja para chegar logo a algum lugar. Por enquanto, é só guerra de nervos, para não falar em confronto entre Poderes.
Lula
Por que, em rara unanimidade, o plenário virtual da Segunda Turma negou o agravo para anular a prisão de Lula? Porque os votos foram estritamente técnicos.
José Serra: Transparência nos subsídios creditícios
Eis uma boa agenda para o Congresso Nacional, em prol da estabilidade fiscal
No início da atual legislatura, tramitou no Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) 663, que autorizava a União a equalizar taxa de juros nas operações de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no âmbito do Programa de Sustentação do Investimento (PSI). Nessa oportunidade foi aprovada emenda que tornou obrigatória a publicação bimestral, pelo Ministério da Fazenda, do impacto fiscal das operações do Tesouro Nacional com o BNDES, juntamente com a metodologia de cálculo utilizada. Essa foi uma providência correta, com vista a maior transparência dos subsídios fiscais.
De fato, o relatório Boletim de Subsídios do Tesouro Nacional no âmbito do PSI e nos empréstimos ao BNDES – criado para atender a exigência da emenda – tem sido importante fonte de informação sobre o custo fiscal das operações realizadas pelo banco. Note-se que os subsídios creditícios dos empréstimos ao BNDES atingiram nada menos que R$ 15,7 bilhões em 2017.
No ano passado o Congresso aprovou a substituição da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) pela Taxa de Longo Prazo (TLP) nos novos financiamentos do banco, com um prazo de adaptação de cinco anos.
Depois de intensos debates no Senado e na Câmara dos Deputados, prevaleceu o texto elaborado pelo Poder Executivo, com poucos ajustes. Em resumo, o custo dos empréstimos com a TLP serão muito próximos do custo de captação do Tesouro Nacional em títulos de cinco anos, inclusive com o componente inflacionário.
Nas discussões havidas demonstramos que a medida teria impactos orçamentários adicionais decorrentes da elevação dos custos de captação do banco. É simples: a redução dos subsídios implícitos, almejada pelo Ministério da Fazenda, levaria a um aumento dos subsídios explícitos no Orçamento.
Como argumentamos na ocasião, a TLP provocaria uma enxurrada de iniciativas parlamentares para concessão de novos subsídios explícitos. O setor agrícola não deixaria de pleitear taxas diferenciadas com recursos do BNDES, especialmente quando soubesse que o Brasil, na comparação internacional, concede subsídios em montante muito abaixo do usual em termos do que se produz no País. De acordo com a base de dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil gastou em 2016 cerca de 0,45% do produto interno bruto (PIB) com subsídios fiscais, ocupando a 23.ª posição numa lista de 27 países. Países como Chile, França, Itália, Grécia, Alemanha, Reino Unido e Austrália gastam mais do que o dobro, considerando subsídios explícitos.
No final do ano passado o próprio governo iniciou o processo, com a edição da MP 812, que introduziu regras específicas de determinação da TLP no cálculo dos encargos financeiros incidentes sobre os financiamentos de operações de crédito com recursos dos fundos constitucionais das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A taxa final contemplaria as diferenças regionais por meio de um redutor chamado Coeficiente de Desenvolvimento Regional, incluindo também fatores de ponderação por tipo de operação e de bônus de adimplência.
Acontece que, na comissão mista que apreciou a matéria, o Congresso introduziu um novo dispositivo autorizando a União a conceder subsídios nos financiamentos do BNDES a projetos de infraestrutura destinados a favorecer empresas das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O mesmo texto de 2015, exigindo transparência dos custos fiscais das operações realizadas com o banco, foi introduzido na MP 812, que agora tramita na Câmara.
É fundamental, portanto, desenvolvermos um sistema de controle e avaliação da política creditícia adotada no País. O Poder Executivo – nas três esferas de governo – deveria obrigatoriamente publicar avaliações técnicas periódicas do impacto fiscal das operações de financiamento realizadas por órgãos da administração direta e indireta, incluindo fundos. Os relatórios deveriam ser elaborados para possibilitar avaliações precisas dos custos e dos benefícios dos financiamentos concedidos pelo setor público, especialmente os voltados para os projetos de infraestrutura.
Uma boa fonte de inspiração é a reforma promovida nos Estados Unidos conhecida como Federal Credit Reform Act of 1990. Essa lei revolucionou os mecanismos de apuração e controle da política creditícia americana. Nos primeiros dispositivos a norma já apresenta seus principais objetivos: medir com mais precisão os custos dos programas de crédito federais; traçar o custo dos programas de crédito numa base orçamentária semelhante à de outros gastos federais e trazer conceitos relevantes de contabilidade para a política creditícia; incentivar a entrega de benefícios na forma mais adequada às necessidades dos beneficiários; e melhorar a alocação de recursos entre programas de crédito e outros programas de gastos.
Chama a atenção, também, a parte que estabelece uma coordenação entre o Office of Management and Budget, equivalente à Secretaria de Orçamento Federal, e o Congressional Budget Office, equivalente à Instituição Fiscal Independente. A lei prevê a necessária coordenação entre os dois órgãos para permitir avaliações criteriosas sobre o desempenho histórico dos programas de empréstimos do governo. A lei garante ao Congressional Budget Office, por exemplo, o acesso a todos os dados que permitam a melhoria das estimativas de custos.
Essas inovações promovidas na avaliação das políticas creditícias norte-americanas – e outras adotadas em países democráticos com governança mais avançada – devem inspirar novas ideias para um sistema moderno de avaliação da política creditícia no Brasil. Na era da TLP, nada se mostra mais relevante do que um bom arranjo institucional para permitir avaliações precisas dos custos e benefícios dos financiamentos concedidos pelo setor público brasileiro.
Está aí uma boa agenda para o Congresso brasileiro, em prol da estabilidade fiscal.
*José Serra é Senador (PSDB-SP)