O Estado de S. Paulo

O Estado de S. Paulo: ‘Único caminho de acesso ao poder é pelo voto’, diz ministro da Defesa

General afirma que pedidos de intervenção incomodam os militares, por parecer que há conivência deles

Por Tânia Monteiro, de O Estado de S.Paulo

Incomodado com as manifestações de pedido de intervenção militar, principalmente na greve dos caminhoneiros, que parou o País nos últimos nove dias, o ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, rechaçou essa possibilidade, em entrevista ao Estado. O ministro lembrou que as Forças Armadas só agem dentro da legalidade e declarou que o “único caminho” para os militares chegarem ao poder “é pelo voto”. Primeiro militar a assumir o Ministério da Defesa, o general Silva e Luna disse ainda que as Forças Armadas estão 100% empenhadas no estabelecimento do abastecimento do País. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Estamos vendo seguidos apelos de grupos pedindo intervenção militar. Existe essa possibilidade diante dos problemas que estamos enfrentando?
As Forças Armadas trabalham 100% apoiadas na legalidade, com base na Constituição e sob a autoridade do presidente da República. E esse dispositivo, intervenção militar, não existe na Constituição.

Incomoda a vocês, militares, esses pedidos de intervenção?
Incomoda sim, porque pode dar a impressão de que as Forças Armadas estão por trás de uma insuflação, o que não é verdade. Além disso, intervenção militar é inconstitucional. O caminho do acesso ao poder é pelo voto. É o único caminho.

A que o sr. atribui esses pedidos de intervenção?
Com relação a manifestações políticas, não nos cabe comentar intenções partidárias de segmentos da população, que tem direito de se manifestar.

As paralisações que se mantêm são por interferência política ou ainda por reivindicações não atendidas?
O movimento reivindicatório se esgotou depois do acordo que o presidente da República fez com os representantes dos caminhoneiros, concedendo tudo que foi pedido. Daí para a frente, as resistências têm pouco a ver com essas reivindicações. Passa a impressão de que há mais fundo político-partidário.

A convocação das Forças Armadas para esse tipo de ação de desobstrução de pistas e fim de greve é um problema para vocês?
O emprego das Forças Armadas em Garantia da Lei e da Ordem é 100% legal. Está na Constituição. Nós estamos agindo em todo o País, evitando um dano muito maior.

Há previsão de quando a normalidade volta ao País?
Terminar uma consequência. Insisto que não se pode fazer promessas. Temos de entregar resultados. E resultados, estamos entregando.

Que resultados o sr. destacaria?
Abastecimento de combustível de aviação em todo o País. Normalidade de transporte nas principais capitais. O volume de carga transportada, por exemplo, dobrou de segunda para terça em todo o País. Foram liberados 300 caminhões de hortifrutigranjeiros no Rio. Tivemos 270 carretas de combustíveis transportadas.

As Forças Armadas podem atuar para tirar os caminhões e manifestantes que estão impedindo a passagem de outros trabalhadores nas estradas?
As Forças Armadas podem tirar sim. Mas o que é que se faz primeiro? Esgota-se os meios policiais presentes (policiais militares ou Polícia Rodoviária Federal).

O governo está falando em grupos infiltrados impedindo o fim da greve e agitando manifestações? O sr. sabe quem são?
Não temos identificação. Mas está caracterizado que existe.


Eliane Cantanhêde: Brincando de golpe

Tentar derrubar Temer da Presidência é o típico, e inútil, ‘chutar cachorro morto’

Assim como nos aviões, são duas as decisões mais tensas de uma greve: quando e por que começar, quando e por que parar. A greve dos caminhoneiros começou na hora certa, jogou luz nas agruras do setor, criou um caos no País e foi um estrondoso sucesso. Os caminhoneiros, porém, estão perdendo o timing de acabar a greve e capitalizar as vitórias.

As pessoas apoiaram a revolta, mesmo sofrendo diretamente as consequências, porque se identificaram com as dificuldades dos caminhoneiros e, como eles, estão à beira de um ataque de nervos diante de tanta corrupção. Mas é improvável que apoiem agora, simultaneamente, o “Fora Temer”, o “Lula livre” e a “Intervenção militar já”.

É uma salada indigesta. Pepino, abacaxi e pimenta não combinam e, cá para nós, focar o protesto na queda do presidente Michel Temer raia o ridículo, é como “chutar cachorro morto”. Faltando seis meses para o fim do governo? Com Temer já no chão? É muita artilharia para pouco alvo.

O governo cedeu exatamente em tudo que eles pediam: preço do diesel, redução de impostos, previsibilidade nos reajustes, tabela mínima de fretes e mudança nos pedágios federais, estaduais e municipais. Uma brincadeira que vai custar de R$ 9,5 bilhões a R$ 13,5 bilhões ao Tesouro. Leia-se: a você, leitor, leitora. Agora, a munição do governo acabou. Não há o que fazer.

Eles exigiam mais do que 30 dias de suspensão de aumentos, o governo admitiu o dobro. Exigiam aprovação já, o governo assinou medidas provisórias, que entram em vigor imediatamente. Exigiam publicação do acordo no Diário Oficial da União, o governo fez uma edição extra. Depois de tudo, eles passaram a exigir o corte de R$ 0,46 nas bombas, antes de voltar à ativa. Estão enrolando. Com outras intenções?

Uma coisa é a paralisação de caminhoneiros com reivindicações justas. Outra coisa, muito diferente, é um movimento político com exigências difusas, até contraditórias, e absolutamente inexequíveis. A paralisação deixa de ser justa, perde a legitimidade e passa a ser um ataque oportunista, não a um governo agonizante, mas às instituições e a toda a sociedade.

Ontem, manifestantes já circulavam pela Praça dos Três Poderes e confrontavam o Palácio do Planalto, como ocorreu em junho de 2013. Amanhã, os petroleiros podem começar uma greve sem pauta, movida a ódio e a política. No que isso vai dar? Há um clima de insegurança, de temor, de exaustão, no qual o que mais falta é racionalidade. Não estão medindo as consequências.

Estão todos brincando com fogo: governo, caminhoneiros, os que amam Lula, os que odeiam Temer, os saudosos da ditadura militar... Mas todos eles, que comemoram e se divertem hoje, poderão ter muito o que chorar e espernear amanhã, porque todo esse ódio e essa “revolução” miram um governo em fim de festa, mas podem acabar fazendo a festa de quem menos eles esperam em outubro.

Diz a inteligência, e confirmam os estrategistas, que você só dá passos sabendo onde quer chegar. E deve saber o momento de parar, para renovar energias, ou até recuar, para não bater com a cara na parede. O que se vê hoje, nos radicais que ameaçam as vitórias dos caminhoneiros, e na turba que os aplaude maliciosa ou ingenuamente, é justamente a falta de objetivos, de propósitos. É se jogar de cabeça, sem pensar nos riscos, nos perigos.

Derrubar Temer e colocar Rodrigo Maia na Presidência não pode ser um objetivo sério, um propósito de boa-fé. É uma manifestação irracional de ódio, um desserviço ao Brasil, uma aventura com repercussões nefastas. Quem gosta de brincar com fogo parece torcer por um golpe, mas um golpe de verdade. Que não venham depois chorar sobre o leite derramado, tarde demais.


O Estado de S. Paulo: ‘É um movimento contra a corrupção e contra os políticos’, diz Gabeira sobre paralisação

Para o jornalista e ex-deputado federal, greve dos caminhoneiros abre chance de união dos brasileiros por retomada de ‘sentimento de Nação’

Por Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo

O jornalista e ex-deputado federal Fernando Gabeira classifica o movimento dos caminhoneiros como uma “revolta difusa” contra “o que chamam de roubalheira” e “contra os políticos”. “Mas não tem uma visão do que colocar no lugar.” Para Gabeira, o movimento abre a chance de os brasileiros se unirem em torno da ideia de uma cultura, a retomada de um “sentimento de Nação”, sacudindo o “País de fantasia” na qual se encerraram políticos e elite burocrática. Em entrevista ao Estado, o jornalista aprofunda sua análise sobre o momento do País. Leia os principais trechos.

Em seu artigo A falta que um governo faz, em O Globo, o sr. diz que a retomada de um sentimento de Nação pode sacudir a “ilha da fantasia” de Brasília. Por quê?
Eu acredito que é uma oportunidade, pois é muito difícil ver o País se desmanchando. Ficou claro o processo de ausência de uma ação do governo de antecipação, de informação de negociação no princípio. Depois ficou clara a vulnerabilidade do País. Eles criaram uma situação que tornou difícil até a intervenção das Forças Armadas.

Por que o sr. acha que apesar dos acordos anunciados pelo governo o movimento não parou?
Não parou porque a imprensa não está vendo o movimento em sua amplitude. A imprensa vê nele um movimento econômico, mas na verdade ele é um movimento econômico e político. Muitos caminhoneiros e grupos que participam desse movimento esperavam uma mudança do próprio governo. Desejam uma mudança do governo. Existe um conteúdo político que foi esvaziado. Ninguém fala que, além de todas as reivindicações, eles querem um novo governo.

O que seria esse novo governo? Falou-se muito que alguns pretendem a volta de um regime de força, uma ditadura militar.
Eu acho que eles não têm noção do que seria o novo governo. Aqueles que articulam essa ideia veem na volta dos militares uma alternativa, mas ao mesmo tempo a gente ouve e sente uma revolta difusa contra o que chamam de roubalheira. É ao mesmo tempo um movimento contra a corrupção e contra os políticos, mas não tem uma visão do que colocar no lugar.

Existiria um certo moralismo autoritário difuso no movimento?
Existe uma visão potencialmente autoritária que coincide com uma noção apressada e falsa de que o processo democrático fracassou. Não que eu não dê razão a quem acha que o sistema partidário e político está na ruína, mas eu não acho que o sistema democrático fracassou.

O sr. acha que esse movimento pode evoluir como em 2013 para uma rejeição à política?
Até o momento quase todo apoio que ele recebeu foi difuso e mais ou menos voltado à condenação dos políticos. Há uma parte de gente que não está ligada ao preço do diesel e às condições de trabalho dos caminhoneiros que acha que vale a pena (protestar) porque o governo não presta. Essa é uma atitude comum e se manifesta na entrega de alimentos e material de infraestrutura para os caminhoneiros. E há o apoio dos motoristas de aplicativos, de táxis e de vans escolares que encaminharam uma espécie de apoio econômico e esperam se beneficiar com essas conquistas.

Quando o sr. diz que o preço da gasolina não precisava ser tão alto, aborda a questão sobre a quem o Estado serve. O sr. considera que as pessoas também estão questionando isso?
Eu acho que sim, embora não o façam de uma forma articulada, elas questionam os gastos e a roubalheira da política, mas, simultaneamente, o que reivindicam representará o aumento de gastos do Estado. A melhor maneira de tratar o assunto, além de ter um serviço de inteligência, coisa que andou longe nesse caso, é ter uma visão de como diminuir o preço por meio da redução de impostos. Houve uma ideia brilhante que surgiu que é ter uma espécie de gatilho que, aumentando o preço do petróleo, diminua o imposto para garantir o equilíbrio. Isso devia ser feito antes pelo governo.

Por que o sr. acha que a política não conseguiu vislumbrar essa crise que se avizinhava?
Primeiro porque os políticos criaram um universo distante do mundo real e frequentam muito pouco esse mundo real. Depois, mesmo se frequentassem, o objetivo deles está voltado para as suas respectivas eleições ou, no caso de um grupo pequeno, entre os quais incluo o presidente da República, à sobrevivência em relação à Lava Jato. Esse conjunto de preocupações com os interesses eleitorais e sobre como escapar da polícia dificulta muito ter uma visão da realidade brasileira.


Eliane Cantanhêde: Escolhendo o inimigo

Governo e PT poupam caminhoneiros e partem para cima de transportadoras

Quase ninguém percebeu, mas o governo Temer e o PT assumiram um discurso parecido diante do caos que a paralisação dos caminhoneiros gerou no País inteiro. Para os dois ex-parceiros de poder, agora inimigos ruidosos, o protesto dos caminhoneiros é “justo” e os verdadeiros culpados são os donos das transportadoras. A uns, solidariedade; aos outros, a lei.

Em nota, o partido de Lula condenou as empresas de transporte, “que se aproveitaram do movimento para realizar um locaute”. Em entrevista no Planalto, ministros destacaram que greve de trabalhador é legal, mas locaute de patrão é crime. Raul Jungmann, da Segurança, enumerou imputações e penas: incitação à violência, tantos anos, ameaça à segurança dos trabalhadores, mais tantos...

O presidente Michel Temer abriu a sexta-feira anunciando o uso de “forças federais” e atacou a “minoria radical” que ignorou o acordo com o governo e manteve a paralisação. Seus ministros, porém, deixaram os radicais para lá e, cuidadosos com os caminheiros que impõem ao País falta de comida, remédios, água e combustíveis, anunciaram medidas duras contra seus patrões.

Carlos Marun, da Articulação Política, disse que o governo optou pela negociação “por entender justas as reivindicações”. Eliseu Padilha, da Casa Civil, até elogiou: “O movimento foi plenamente exitoso”. Enquanto isso, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) investiga as empresas de transportes e a Polícia Federal convoca vinte empresários do setor para depor.

E por que os adversários PT e governo assumiram esse mesmo discurso? Primeiro, porque a população, já exausta de corrupção e abusos, e também atingida diretamente pelos aumentos de combustíveis, identifica-se com os caminhoneiros, trabalhadores e vítimas como ela própria.

Mas a coisa muda de figura quando a população percebe, ou é devidamente informada, que são patrões oportunistas e aproveitadores que estão criando o caos, impondo as filas em postos de combustíveis, cancelando ônibus e voos e ameaçando hospitais, o fornecimento de comida e água.

Até por isso, uma palavra mágica no Planalto foi “desabastecimento”. Quem fica feliz e aplaude a falta de tudo? Nesse espírito, e bem treinado antes, o primeiro militar a assumir a Defesa, general Silva Luna, justificou assim o uso das Forças Armadas em todo o território nacional: “Para garantir o abastecimento”.

As reações do governo e do PT têm um alvo poderoso: a opinião pública. Mas o governo esconde, e o PT assumiu explicitamente, um temor de “aventuras autoritárias”. E, evidentemente, o efeito nas eleições de outubro. Como o movimento remexeu o mau humor nacional, e a esquerda e as bandeiras vermelhas de PT, CUT, MST... estão ausentes nos caminhões parados de Norte a Sul, é razoável supor que tudo isso possa favorecer Jair Bolsonaro. Aí, bate o pânico.

Nesse inferno, o governo ficou entre a cruz e a espada também ao negociar suspensão e “previsibilidade” de reajustes, mas sem piorar as perdas da Petrobrás, de muitos bilhões na Bolsa e também de credibilidade: voltou a ingerência populista na política de preços da companhia, que, em horas, deixou novamente de ser a número 1? Assim, o governo interfere nos reajustes, viu, caminhoneiro, viu, sociedade? Mas arcando com o grosso do prejuízo, viu, investidor, viu, acionista?

Há, porém, um problema aí: essa engenhosa negociação é para o diesel. E a gasolina, que bate direto no bolso do cidadão e da cidadã? A resposta do governo é que não é por causa da gasolina, e sim do diesel, que sobem os preços da carne, dos ovos, de toda a cadeia produtiva. Ok. Agora, vai lá combinar com os russos. Ou explicar o litro a R$ 5 para quem tem pouca opção e precisa encher o tanque para tocar a vida.


Vera Magalhães: Ensaio sobre a cegueira

Ódio ao governo Temer uniu esquerda e direita no apoio cego a um movimento chantagista

As cenas vividas no Brasil de 2018, com desabastecimento de combustíveis e toda sorte de produtos, filas em postos de gasolina, estradas paradas por caminhoneiros e pessoas indo aos supermercados para estocar víveres cada vez mais caros e a concessão do governo na forma de lautos subsídios lembra em tudo crises anteriores do Brasil, da superinflação de José Sarney à greve dos caminhoneiros do governo FHC.

A escalada de um movimento que começa como uma reivindicação setorial e se alastra por outras categorias, pegando de surpresa governos, imprensa e analistas também leva a um paralelo com junho de 2013.

Mas a soma de tudo isso, a reação entre incompetente e covarde de governantes e candidatos e um apoio histérico da esquerda e da direita radicais a um movimento que parou o País me remetem ao magistral romance Ensaio sobre a Cegueira, do Nobel de Literatura português José Saramago.

O livro narra o avanço da chamada “epidemia branca”, que começa no dia em que um único homem é acometido de uma cegueira que o faz deixar de enxergar. O mal aos poucos se alastra para praticamente toda a população, gerando a perda paulatina da humanidade e da civilidade.

No Brasil de 2018, a cegueira branca que levou esquerda e direita radicais a apoiarem um movimento baseado na chantagem com o conjunto da sociedade é o ódio ao governo zumbi de Temer.

Como na escalada da irracionalidade construída por Saramago à medida que avançava o desespero dos cegos com sua nova condição, pessoas que estão sendo coagidas por grevistas movidos por interesses sectários defendem a greve como se fosse uma reação à corrupção, aos privilégios dos políticos, aos altos salários do Judiciário e aos impostos abusivos.

Como se dá, na cabeça das pessoas, a relação entre o combate a esses problemas (reais) e concessões a uma só categoria que custarão pelo menos R$ 13 bilhões aos cofres públicos é algo que nem o engenho narrativo de um Saramago seria capaz de explicar.

Jair Bolsonaro se pôs a fazer matemática: se o petróleo é quase todo produzido aqui, por que o Brasil segue o preço internacional? O PT se pôs a saudar a mandioca passadista: nos tempos de Dilma é que era bom, pois a Petrobrás controlava preços. São dois lados da mesma moeda que num passado recentíssimo levou o País à bancarrota: o populismo.

Os cegos de ódio por Temer saem repetindo que os impostos sobre os combustíveis são escorchantes. E são. Mas o governo não vai reduzir a carga tributária por decreto. Diante da situação fiscal do País, o que for retirado do diesel será compensado: se não for por aumento de impostos em outra área, pelo corte de gastos em investimentos ou programas sociais ou rolagem da dívida (que leva a alta de juros).

Mudar essa situação não passa pelo apoio instrumentalizado a uma greve ilegal e injusta. Mas sim pelo voto em uma proposta consistente em outubro. Que inclua reformas estruturais nos impostos, nos gastos públicos (e, portanto, na Previdência), nos altos salários do funcionalismo e na relação com empresas públicas e de economia mista, como a Petrobrás. Nada disso é pauta dos que pararam o País. O mais assustador é que quem bateu palmas para eles e para os imensos prejuízos que causaram parece longe de se recuperar da cegueira.

No livro de Saramago ela passa, mas dá lugar ao desalento. Reproduzo o diálogo final entre a mulher do médico e o marido (tomo a liberdade de mexer na pontuação característica de Saramago para facilitar o entendimento, algo difícil ultimamente): “Por que foi que cegamos? Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Diz. Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”


Luiz Werneck Vianna: O centro político, a democracia e as reformas

Como sistema de orientação, meus artigos vêm observando a crise que nos assola a partir da nossa experiência na matéria

Como sistema de orientação, meus artigos vêm observando a crise que nos assola a partir da nossa experiência na matéria, que ensina a reparar inicialmente a fim de medir seu potencial disruptivo, as ruas e os quartéis como os lugares mais sensíveis para o registro de sua gravidade. Salvo momentos episódicos de pico, as ruas estão vazias e os quartéis, silenciosos, fazendo profissão de fé à ordem constitucional. De forma inédita em nossa História, é da família do campo do Poder Judiciário em associação também inédita com a imprensa – combinação sempre explosiva aqui e alhures – que, faz tempo, provêm as tentativas de desestabilizar a ordem reinante, levando o presidente da República às barras dos tribunais mesmo a poucos meses das eleições gerais, como já é o caso.

Duas das corporações mais influentes na conjuntura presente – a militar e a jurídica –, como seria natural, falam de perspectivas distintas, a do poder a primeira e a segunda, do princípio republicano da moralidade e dos seus valores diante da degradação pública que, nos últimos anos, sofreram nossas instituições políticas, hoje justamente repudiadas pela cidadania. O momento eleitoral pode constituir, se levado a sério, uma oportunidade de ouro para o saneamento, pelo voto, dos partidos e da própria atividade política.

Ambas são animadas por lógicas distintas, mas que podem e devem exercer papéis complementares, tanto para garantir que a competição eleitoral obedeça às vias democráticas quanto para interditar o acesso a candidaturas que, na forma da lei, estejam proscritas.

Se este país se tornou, a partir dos anos 1930, um caso clássico de modernização por cima, conduzindo pela mão do Estado a industrialização, valendo-se de todos os meios para a realização dos seus objetivos, borrando desde aí os limites que devem separar as esferas públicas das privadas, tal modelo se esgotou sob o governo Dilma, que pretendia radicalizá-lo, contra todos os sinais que apontavam para sua exaustão.

Nesse sentido, o processo eleitoral que já vivemos pode ser considerado como um momento quase constituinte, na medida em que deve impor pelo voto uma radical mudança nas relações entre o Estado e a sociedade civil. O movimento de junho de 2013 da juventude anunciou com tintas fortes a profundidade da crise dessa relação, enquanto a devassa nos negócios entre agentes públicos e empresas privadas procedida pela chamada Operação Lava Jato fez o resto, jogando ao chão o que ainda restava dela. Decerto que o momento de uma campanha eleitoral não seria o mais oportuno, pelas paixões que ela suscita, mas, por ora, só contamos com ele.

A seleção das candidaturas e suas alianças devem, portanto, considerar a excepcionalidade deste processo eleitoral. No caso, não se pode deixar de considerar, nesta hora de falta de rumos confiáveis para o nosso futuro, em meio às ruínas em que sobrevivemos, o manifesto Por um polo democrático e reformista, lançado a público por iniciativa de dois parlamentares, o deputado Marcus Pestana e o senador Cristovam Buarque, já subscrito por Fernando Henrique Cardoso, uma extraordinária personagem das que nos sobraram de tempos menos sombrios do que os que agora vivemos, que parece ter saído das páginas dos textos políticos de um Max Weber, pela coragem sóbria, sempre fiel às suas convicções de fundo, defendidas com responsabilidade, que nos afiança os caminhos preconizados nesse bem-vindo manifesto, a rigor, um programa de ação de um novo governo.

Nesse manifesto-programa se conclamam “todas as forças democráticas e reformistas em torno de um projeto nacional que, a um só tempo, dê conta de inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento social e econômico, a partir dos avanços alcançados nos últimos anos, e afaste um horizonte nebuloso de confrontação entre populismos radicais, autoritários e anacrônicos”. O texto continua para afirmar que para o sucesso dessa iniciativa se devem agregar, de forma plural, liberais, democratas, social-democratas, democratas cristãos, socialistas democráticos, numa frente que se empenhe, nesta hora decisiva para a construção do futuro, na realização de um programa de desenvolvimento com mudança social que abra as portas para o moderno no Brasil, pondo fim aos processos de modernização autoritária que levaram o País a um lugar sem saída.

O tempo é curto para que essa iniciativa possa encontrar seu ponto de maturação. É preciso invocar a sabedoria dos nossos maiores, que no passado, do Império à República, como no caso recente da transição do regime militar para o democrático, sempre pela via da negociação souberam encontrar soluções para os nossos impasses políticos e institucionais. Seus adversários são conhecidos e ambos desejam vias de ruptura: à direita, os que desejam uma saída neoliberal clássica – desejo mal escondido de poderosa rede de comunicação; à esquerda, os que visam a uma retomada das vias bolivarianas.

O papel do centro político como estratégico na nossa formação não pode ser ignorado, e para só falar do período republicano, a exemplo de Vargas, que em 1945 fundou o PSD com lideranças tradicionais a fim de respaldar sua obra social reformadora, reeditado em grande estilo por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves para abrir caminho à democratização. O manifesto, que ora circula em busca de adesões, segue as pegadas de momentos criativos e fecundos da política brasileira, que nos seus estonteantes ziguezagues nunca perdeu de vista seus compromissos com a obra da civilização singular que fazemos aqui.

Como palavras finais, deve-se mencionar que tal movimento, ao menos in pectore, admita que sua vitória trará consigo um momento de concórdia, reeditando a época do movimento da anistia, que envolva a sociedade, o Congresso e, principalmente, o sistema de Justiça, que pacifique de verdade esta praça de guerra que desgraçadamente nos tornamos.

* Sociólogo, PUC-Rio


Marco Aurélio Nogueira: Aquilo que une e divide

Aumentou a percepção de que a dispersão pesa como ameaça real sobre todos os candidatos

Iniciativa coordenada por Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes (PSDB-SP), Cristovam Buarque (PPS-DF) e Marcus Pestana (PSDB-MG) começou a divulgar o manifesto Por um polo democrático e reformista, para defender a urgente “união política de todos os segmentos democráticos e reformistas” nas eleições. É uma notícia para ser comemorada.

Outros partidos podem seguir caminho parecido, certos de que há um “centro” a ser conquistado. Enquanto Rodrigo Maia e Henrique Meirelles procuram o “centrão” em busca de apoio, a esquerda mais próxima do PT oscila entre levar a candidatura de Lula até o fim ou reforçar uma frente em torno de Ciro Gomes.

Aumentou a percepção de que a dispersão pesa como ameaça real sobre todos os candidatos.

O centro é ladeado por uma esquerda (mais igualitarista) e por uma direita (mais vinculada à ordem que à liberdade), mas há mais de uma esquerda e mais de uma direita. O centro, portanto, mesmo que deseje ser um fator de equilíbrio e serenidade, tende a pender para um desses lados. Não existe em termos puros.

Para a resolução do enigma faltam ideias. Cabeças batem sem que surja uma saída viável, que consiga agregar mais do que desunir. Por isso o manifesto pela criação de um “polo democrático e reformista” pode cumprir um relevante papel. Ele se apoia numa necessidade real e num conjunto de proposições que sugerem um desenho de país.

O momento é excelente para que se tente dar destaque ao que une e divide os cidadãos que se põem no território da democracia política, hoje ocupado por diferentes tipos de liberais, conservadores, socialistas e comunistas.

Nenhuma posição democrática séria pode descartar, por exemplo, um relacionamento ativo com o campo liberal, celeiro de valores importantes para o mundo moderno. O liberalismo político – avesso ao neoliberalismo – tornou-se praia comum da democracia, sobretudo no que tem de remissão aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Mesmo que na política prática as diferenças pesem bastante, o diálogo em termos de pensamento tem bases efetivas de convergência.

Há consensos, também, quanto à importância do reformismo democrático. São conhecidas as dificuldades para que emerja uma candidatura que seja ao mesmo tempo competitiva, democrática e reformadora. Seriam muitos os riscos da adesão popular a candidaturas autoritárias do tipo Bolsonaro. Mas há os que entendem que uma postulação de “centro” precisa conter uma clara inflexão social (uma “inclinação à esquerda”), como a que transparece no manifesto, e há os que pensam que o centro democrático é um valor em si, construído no âmbito do sistema político e sustentável pelo livre mercado.

A corrupção não é inerente ao “patronato político” e a luta contra ela não é o que levará à “refundação” da política. É preciso descobrir a melhor maneira de combatê-la como questão democrática e de justiça social, sem descuidar dos demais problemas nacionais e sem cair no romantismo. Varrer a corrupção para baixo do tapete, ou naturalizá-la, é tão deletério quanto colocá-la num pedestal de salvação da pátria. Mas há os que pensam que se deve dar tratamento pontual à corrupção e outros que acreditam que ela seja um problema a ser subordinado ao jogo político e por ele resolvido, quando possível. Há, ainda, quem veja a corrupção como a maior desgraça nacional e quem entenda que a desigualdade é o verdadeiro complicador.

Hoje a luta contra a corrupção sensibiliza a sociedade e a sociedade civil, mas não recebe tratamento adequado na sociedade política. Os democratas precisam trabalhar para que esse quadro se altere. A “política dos cidadãos” não é antagônica da “política dos políticos”, mas um vetor decisivo para fazer que ela se complete. E vice-versa.

Há também a questão do Judiciário. Ele tem sua própria crise, mas usufrui uma posição favorável para defender a Constituição, a democracia e a lisura eleitoral. A “judicialização” é mais o resultado de uma perda de potência do sistema político do que uma deliberada usurpação voltada contra a política.

Isso tem a ver com a Lava Jato. A divergência, aqui, pode aparecer na interpretação da Constituição ou no que se refere ao papel da Polícia Federal, do Ministério Público e de Sergio Moro. Há quem veja nos fatos recentes as digitais de uma corporação interessada em enquadrar a política – os “tenentes togados” – e há quem os veja como uma oportunidade para oxigenar a atividade política no País. A divergência precisa ser processada para que se produza um entendimento comum, refratário à adesão “salvacionista” e ao rebaixamento da luta contra a corrupção.

Uma agenda nacional está composta por temas e problemas ainda mais complexos, como são os que dizem respeito ao desenvolvimento econômico, à recuperação do emprego e à legalização das novas formas de trabalho, à promoção da saúde e da educação. O quadro de carências e bloqueios é assustador.

Um bom princípio para equacionar tudo isso é fixar a democracia e a Constituição como parâmetros não negociáveis, cláusulas pétreas da transição que terá de ser viabilizada. O momento pede generosidade e desprendimento. Se a esquerda precisa pensar menos em seus próprios botões, os democratas de centro, mais liberais ou mais conservadores, precisam ir aonde o povo está. Se a serenidade deve presidir a busca de articulação, a ousadia é indispensável para que se vislumbrem os desafios do País e as soluções necessárias. Passou da hora de as “elites” saírem do marasmo em que se encontram.

O ciclo que se abrirá com as eleições de 2018, seja qual for o vencedor, não trará consigo a imediata reorganização política do País nem entronizará uma forma categórica de reformismo. Os desafios permanecerão em aberto. No mínimo por isso, o manifesto Por um polo democrático e reformista serve para que nos lembremos do fundamental e nos esforcemos para superar divergências tópicas.


William Waack: ‘Projeto nacional’

Há um apelo para que elites se juntem em torno de um projeto. Mas, que elites?

Sempre um hábil piadista, consta que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso encontrou-se recentemente com um arcebispo brasileiro em jantar. “Seu nome eu conheço bem”, teria dito o sociólogo ao prelado. “Mas não é curioso que a gente não se lembre do nome praticamente de mais nenhum bispo ou cardeal?” E acrescentou, enquanto a ironia ocupava o recinto: “Mas tem sido assim também com os generais, com os empresários – a gente não lembra de muitos deles”.

Fernando Henrique tem sido lembrado nos últimos dias como o autor do mais recente apelo para que grupos de liderança, especialmente políticos, se unam em torno de uma plataforma democrática e reformista – interpretada precipitadamente por alguns como “união do centro” quando, me parece, é muito mais abrangente. No fundo, é um apelo para que elites se juntem em torno de um projeto. Mas, que elites?

Na insuperável descrição de “elites brasileiras”, publicada aqui no Estado no último sábado por Bolívar Lamounier, o que temos não é nada remotamente parecido com o que os livros de sociologia designam como elites. “Temos, isso sim, corporações, grupos de interesse, setores aguerridamente engalfinhados, cada um querendo sua parte no erário”, escreveu Bolívar. Quando, em recentes tempos, houve algo parecido a uma união em torno de um projeto, boa parte dessas elites comprou o projeto do... PT.

Não estou falando das empreiteiras envolvidas na Lava Jato, nem dos tais “campeões nacionais” igualmente enrolados em propinodutos em troca de acesso a crédito barato e proteção de mercados. Refiro-me a vários exemplos de empresários que achavam que instalar um escritório de assessoramento de gestão no 3.º andar do Planalto ajudaria a dar um “choque administrativo” na coisa pública – sem perceber, ou fazendo de conta que não percebiam, que a máquina de aparelhamento montada pelo PT e seus associados (como o MDB) era, sobretudo, um formidável instrumento de assalto ao cofre público.

Para mencionar um item no centro do noticiário dos últimos dias, com a Venezuela não foi diferente: a entrada do embuste chavista no Mercosul por uma molecagem diplomática da qual o Brasil participou foi acolhida como positiva para os negócios. Talvez alguns que celebraram as “oportunidades” que Chávez sugeria em 2012 se lembrem desse entusiasmo agora que são vítimas de calotes. Por outro lado, entende-se que qualquer um que enfrente o cipoal tributário, regulatório, trabalhista e jurídico brasileiro acabe pensando se não é melhor empenhar-se em ser amigo do rei.

“Projeto nacional” é uma expressão associada ao último regime militar, que o entendia sobretudo como ocupação do espaço físico, crescimento econômico e projeção regional de poder. Se “leio” corretamente o que me parece que desponta em alguns grupos de liderança setoriais, sobretudo os mais jovens, “projeto nacional” hoje começa a ter uma acepção mais “cultural” e de grande amplitude, no sentido de se desenrolar uma narrativa política que se oponha ao exclusivismo (e vitimismo) de grupos apegados a políticas identitárias cegas a qualquer outro tema de maior abrangência.

No fundo, considerando o tamanho do desastre no qual nos enfiamos como consequência sobretudo da adesão a ideias profundamente equivocadas, compartilhadas também por “elites”, não posso excluir (é a minha esperança, na verdade) que da presente crise surja um “projeto” diferente e antagônico ao “modelo” do período do lulopetismo, mas não só dele. Para continuar na linha da piada do Fernando Henrique, seria um projeto em busca de elites.


Monica De Bolle: Sempre o câmbio

O câmbio, de fato, mata, e isso não é uma crítica ao regime de metas de inflação, como querem crer alguns

"A inflação aleija, mas o câmbio mata.” Não por acaso, a famosa frase de Mário Henrique Simonsen já foi citada incontáveis vezes, e é sempre lembrada quando há algum episódio de turbulência externa sacolejando os preços dos ativos de países emergentes. Nas últimas semanas vimos o derretimento de várias moedas em relação ao dólar, do peso argentino à lira turca, da rupia indiana ao real, do rublo à rupia da Indonésia.

Nenhum dos países afetados pelas fortes oscilações das taxas de câmbio em relação à moeda norte-americana tem mantido a fleuma. Todos adotaram algum tipo de intervenção, seja por meio de operações nos mercados de câmbio, seja por alterações na política monetária, seja por uma combinação de instrumentos. No Brasil, a decisão do Banco Central de manter a Selic em 6,50% e de intervir nos mercados tem sido chamada por alguns de “dominância cambial” da política monetária. O ponto é válido, mas a verdade é que o câmbio jamais deixou de ser variável das mais importantes na condução da política monetária, como bem dizia Simonsen.

Há vários aspectos que diferenciam países emergentes de países desenvolvidos, mas um dos mais importantes está no papel do câmbio, sobretudo do dólar. Tanto assim que quando turbulências nos atingem falamos em “alta do dólar”, não em desvalorização do real, embora sejam a mesma coisa. Para nós emergentes, o dólar é a moeda em que estão denominadas grande parte de nossas reservas internacionais, é a moeda que muitos países utilizam para constituir a poupança – caso de várias economias dolarizadas da América Latina como a Argentina, o Peru, a Bolívia – é a moeda em que empresas sediadas nesses países passaram a tomar cada vez mais empréstimos depois de crise de 2008, quando as taxas de juros em dólares ficaram ineditamente baixas.

Entre 2008 e o primeiro trimestre de 2016, as dívidas em dólares de empresas de países emergentes triplicou, alcançando cerca de US$ 25 trilhões, ou 110% do PIB dessas economias. É fácil ver como, em situação desse tipo, o câmbio mata: se a empresa tem dívidas em dólares e receitas em moeda local, altas abruptas do dólar – ou desvalorizações súbitas da moeda local – podem trazer prejuízos consideráveis. Inflação também traz danos, mas, se está tudo denominado em moeda local, essas perdas são mais fáceis de administrar do que as perdas cambiais.

Sabe-se há muito que mesmo países emergentes com regimes de metas de inflação não podem tirar o olho do câmbio, não completamente. Se o grau de repasse cambial – o quanto de uma desvalorização provoca altas inflacionárias por canais diversos, inclusive pelos efeitos que tem sobre os preços de produtos importados – for bastante alto, desvalorizações persistentes podem colocar em risco a meta de inflação.

No passado, não foram poucas as ocasiões em que o Banco Central brasileiro respondeu às altas do dólar com intervenções ou altas das taxas de juros. Talvez o episódio mais dramático desde que adotamos o regime de metas de inflação tenha sido na segunda metade de 2002, quando temerosos da frágil situação macroeconômica brasileira e do risco eleitoral então associado ao ex-presidente Lula, investidores estrangeiros orquestraram corrida contra ativos denominados em real, forçando o Banco Central a elevar subitamente as taxas de juros para mais de 26% ao ano. Para conter o tumulto, o governo brasileiro foi forçado, na ocasião, a recorrer ao FMI. Cabe ressaltar: tínhamos metas de inflação e câmbio flutuante, mas tivemos de adotar medidas que para algum observador incauto poderiam parecer a defesa clássica de um regime de câmbio fixo.

Nosso dilema de então lembra muito a situação da Argentina agora, a Argentina que elevou subitamente os juros para 40% ao ano e recorreu ao FMI com metas de inflação e câmbio flutuante. Por que? Porque as oscilações fortes do câmbio provocam tantos prejuízos em nossas economias expostas ao dólar – em maior ou menor grau – que a resposta não pode ser outra. O câmbio, de fato, mata. Isso não é uma crítica ao regime de metas de inflação, como querem crer alguns. Trata-se apenas de uma realidade conhecida há décadas, mas frequentemente esquecida. A meta de inflação é âncora nominal tal qual o câmbio – uma coisa colapsa na outra ante movimentos extremos do dólar.

Tudo isso dito e considerado, o fato é que o Brasil tem hoje posição bem melhor do que já teve no passado. O espaço de manobra para contornar extremismos cambiais é bem maior. Contudo, a frase de Simonsen jamais deixará de valer – para nós e para outros países emergentes.


Eliane Cantanhêde: Injustas e ilegítimas

O Brasil não é e nunca será ‘uma Venezuela’, como bradam setores nacionais

Sabem quando o Brasil vai virar “uma Venezuela”? Nunca, jamais, em tempo algum, porque a Venezuela não produz nada além de petróleo e o Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo e exporta de aviões, ônibus e automóveis a petróleo, minério de ferro e sapatos.

A Venezuela é castigada há décadas por uma elite mesquinha e antinacionalista, que se lambuzou do petróleo exuberante, estabeleceu-se nos EUA e nunca se preocupou com o desenvolvimento do país e a criação de uma planta industrial – e de empregos.

No Brasil, a elite é elite, com todos os seus defeitos e mesquinharias, mas aprimora-se, estuda fora, investe nas amplas potencialidades do País: clima fantástico, sol o ano inteiro, água doce e salgada, florestas abundantes. O agronegócio é moderno e sofisticado, a Embraer está sendo cobiçada pela Boeing, a Marcopolo exporta carrocerias de ônibus para toda parte.

Enquanto na Venezuela as instituições estão aos frangalhos, no Brasil elas funcionam, seguem regras, são transparentes, até expostas, com os julgamentos mais importantes no Supremo e no Congresso transmitidos ao vivo. A imprensa é livre e atuante. São muitas críticas, até exacerbadas.

Corrupção? Sim, a Venezuela é escandalosamente corrupta, desde as poderosas autoridades até os mais simples agentes públicos. Até para tomar vacina tem-se de pagar propina.

No Brasil, como nós assistimos quase que diariamente, a corrupção é medida aos milhões de dólares, com uma promiscuidade doentia entre público e privado e corruptos tão audaciosos que são (ou foram, não se sabe ainda) capazes de destruir um Estado inteiro, como o Rio de Janeiro, e a principal estatal, a Petrobrás. Mas há uma diferença fundamentam entre Brasil e Venezuela: a Lava Jato!

Com boa vontade e alguma leitura, é possível entender como Hugo Chávez uniu a direita militar e a esquerda nacionalista e seu regime vicejou na Venezuela. O projeto Chávez fazia sentido, contra instituições falidas, corrupção crônica, inépcia, desvio das riquezas para os Estados Unidos.

No Brasil, apesar de todas as crises, da longa ditadura, de dois impeachments e, agora, 14 milhões de desempregados e uma violência urbana fora de controle, não há clima nem tanto motivação para golpes como o de Chávez na Venezuela.

Mas essa não é a principal diferença na política. A principal diferença é que, como no início deste texto, nunca, jamais, em tempo algum, um sujeito como Nicolás Maduro iria tão longe aqui. Tão longe no poder, tão longe na sua sanha destruidora do seu país, afundado numa crise política, econômica, social e humanitária sem precedentes.

Maduro acaba de ser eleito com 67,7% dos votos, mas só dos votos confirmados, porque a abstenção foi superior a 50%. E as eleições são questionadas gravemente não só dentro, mas também fora da Venezuela. Ácidas críticas chovem dos EUA, da Europa, das Américas, num crescendo em que só se excluem países como Rússia, China e o peculiar Irã.

Além de assinar uma nota duríssima do Grupo de Lima, que reúne países desde a Argentina até o Canadá, passando pela América Central, o Brasil foi além. Numa nota que foge ao padrão da diplomacia, via Itamaraty, o governo lamentou que a reeleição de Maduro, por mais seis anos (uma eternidade!), “carece de legitimidade e credibilidade”.

Acusou o país de não ter atendido aos insistentes chamados da comunidade internacional por eleições “livres, justas, transparentes e democráticas”. Logo, acusou-as de serem justamente o oposto. Não falou sozinho. E vai ficando claro que agora é guerra contra o regime Maduro e a favor do povo venezuelano, vilipendiado, faminto e sem futuro.


Mario Vargas Llosa: A Caixa de Pandora

A decisão de mudar a embaixada para Jerusalém criou confusão e uma matança estúpida

Enquanto Ivanka Trump, usando um vaporoso vestido que deu o que falar aos presentes, descerrava a placa inaugurando a vistosa Embaixada dos EUA em Jerusalém, o Exército israelense matava a tiros 60 palestinos e feria 1.700 que, lançando pedras, tentavam se aproximar do alambrado que separa a Faixa de Gaza do território de Israel. Os dois acontecimentos não coincidiram por acaso, o último foi consequência do primeiro.

A decisão do presidente Donald Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel, medida que já anunciara durante sua campanha eleitoral, põe um fim a 70 anos de neutralidade dos EUA. O país e seus aliados no Ocidente até agora sustentavam que o estatuto de Jerusalém, como capital reivindicada por palestinos e israelenses, deveria ser decidido com base em um acordo entre ambas as partes que contemplasse a criação de dois Estados coexistindo na região.

Embora a tese de dois Estados seja verbalizada, às vezes, por dirigentes dos dois países, ninguém acredita que a fórmula ainda seja viável, dada a política expansionista israelense cujos assentamentos na Cisjordânia continuam devorando territórios e a cada dia que passa isolando povoados e cidades que formariam o Estado Palestino. Se existir, um Estado Palestino, na verdade, será pouco menos do que uma caricatura dos bantustões da África do Sul à época do apartheid.

Trump afirmou que sua decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel era “realista” e ela não se tornaria um obstáculo ao acordo, mas o facilitaria. É possível que ele não só afirmou isso, mas, diante da sua formidável ignorância dos assuntos internacionais sobre os quais opina diariamente de maneira tão irresponsável, acredite no que disse. Mas duvido que mais alguém acredite nisso, além dele e do punhado de fanáticos que aplaudiu muito quando Ivanka descerrou a placa e Bibi Netanyahu, com lágrimas nos olhos, exclamou: “Que dia glorioso!”.

Na verdade, Trump abriu a Caixa de Pandora com essa medida e, além da confusão e do transtorno causado entre seus aliados, foi responsável, em grande parte, pela cruel e estúpida matança que veio se acrescentar ao suplício em que há muito tempo vivem os desventurados habitantes de Gaza.

A criação de dois Estados convivendo em paz é a fórmula mais sensata para acabar com essa guerra disfarçada que perdura há 70 anos no Oriente Médio. Infelizmente, nos tempos de Yasser Arafat, os palestinos rechaçaram um projeto de paz em que Israel fez concessões notáveis, como a devolução de boa parte dos territórios ocupados e a aceitação de que Jerusalém fosse compartilhada como capital de Israel e da Palestina.

Desde então, o enorme movimento da sociedade israelense que desejava a paz foi se extinguindo e, ao mesmo tempo, foi crescendo o número daqueles que, como Ariel Sharon, achava que a negociação era impossível e a única solução viria somente de Israel e imposta aos palestinos pela força. E há muita gente no mundo, como Trump, que acredita nisso e está disposta a apoiar essa política insensata que jamais resolverá o problema e continuará cobrindo o Oriente Médio de tensão, sangue e cadáveres.

Esse processo tornou possível um governo como o presidido por Netanyahu, o mais reacionário e prepotente jamais visto em Israel e com certeza o menos democrático, pois, convencido da sua superioridade militar absoluta em toda a região, ele persegue sem trégua seus adversários, roubando a cada dia um pouco mais de seus territórios e, acusando-os de terroristas e de colocar em perigo a existência da pequena Israel, os fuzila, os fere e assassina ao menor pretexto.

Gostaria de citar aqui um artigo de Michelle Goldberg publicado no New York Times, no dia 15, sobre o que ocorreu no Oriente Médio, que leva o título Um grotesco espetáculo em Jerusalém. Ela descreve com detalhes a fantástica concentração de extremistas israelenses e fanáticos evangélicos americanos que festejaram a abertura da nova embaixada, e a bofetada na população palestina que foi essa nova afronta infligida pela Casa Branca. A autora não omite a intransigência do Hamas, nem o terrorismo palestino, mas lembra a condição indescritível em que os habitantes de Gaza estão condenados a viver. Vi com meus olhos e sei o nível de degradação a que essa população sobrevive a duras penas, sem trabalho, sem comida, sem remédios, com hospitais e escolas em ruínas, edifícios derrubados, sem água, sem esperança, submetida a bombardeios cegos cada vez que há um atentado. A jornalista explica que o sionismo se tornou alvo de críticas da opinião pública mundial com a guinada para a extrema direita dos governos israelenses e uma parte importante dos judeus nos EUA já não apoia a política atual de Netanyahu e dos pequenos partidos religiosos que lhe propiciam a maioria parlamentar.

Creio que isso ocorre também no restante do mundo, com milhões de homens e mulheres que, como eu, se identificaram com um povo que ergueu cidades modernas e fazendas-modelo onde só havia deserto, criou uma sociedade democrática e livre e da qual um segmento muito grande quer realmente a paz negociada com os palestinos. Esta Israel já não existe. Hoje, é uma potência militar e de certo modo colonial, que acredita somente na força, sobretudo, graças ao apoio do país mais poderoso do mundo, representado pelo presidente Trump.

Todo esse poder não serve para muita coisa quando uma sociedade se perpetua esperando atacar ou ser atacada, se armando cada dia mais, pois sabe que é odiada por seus vizinhos e até por seus próprios cidadãos, quando exige que seus jovens passem três anos no Exército para garantir a sobrevivência do país e continuar vencendo guerras. E, além disso, castiga ferozmente e sem trégua, à menor agitação ou protesto, aqueles que não têm outra culpa senão a de estar ali, há séculos, quando começaram a chegar os judeus expulsos da Europa depois das atrozes matanças cometidas pelos nazistas. Não é civilizado nem desejável viver entre guerras e extermínios, por mais forte e poderoso que seja um Estado.

Os verdadeiros amigos de Israel não devem apoiar a política suicida de Netanyahu e companhia. É uma política que está tornando essa nação, que era amada e respeitada, um país cruel e impiedoso com um povo que maltrata e tiraniza, ao mesmo tempo em que afirma ser uma vítima da incompreensão e do terror.

Tenho muitos amigos israelenses, sobretudo escritores, e defendi muitas vezes o direito de existência de Israel dentro de fronteiras seguras, e principalmente que se encontre uma maneira pacífica de coexistir com o povo palestino. Sinto-me honrado de ter recebido o Prêmio Jerusalém e me alegra saber que nenhum de meus amigos israelenses participou daquele “grotesco espetáculo” protagonizado pela elegante Ivanka, descerrando aquela placa. Estou certo de que sentiram tanta indignação e tristeza quanto eu pela matança nos alambrados de Gaza.

Eles representam um Estado de Israel que parece ter desaparecido. Esperemos que ele retorne. Em nome deles e da justiça, é preciso proclamar em alto e bom som que não são os palestinos que constituem o maior perigo para o futuro de Israel, mas sim Netanyahu e seus sequazes e o sangue que derramam. / Tradução de Terezinha Martino

*Mario Vargas Llosa é prêmio Nobel de literatura.


Eliane Cantanhêde: Fundo do poço

Alguém precisa dizer a PT e PSDB que um não é mais o pior inimigo do outro

Como a política brasileira chegou a esse fundo de poço? Uma das origens está em 1994, quando o PT e o PSDB ficaram muito próximos e, depois, não apenas se separaram como passaram a se odiar. E a se destruir, abrindo espaço para legendas oportunistas, conchavos escandalosos no Congresso, toda sorte de desmandos e corrupção. O resultado é o esfacelamento do PT, o imenso desgaste do PSDB, uma indefinição preocupante para outubro e um exército de “coxinhas” e “mortadelas” se atacando irracionalmente pela internet, incapazes de entender que estão entregando o campeonato de bandeja para os reais inimigos.

O grande líder e candidato do PT está preso, o mais poderoso ex-presidente do partido acaba de voltar para a prisão com uma nova condenação, de 30 anos, a atual presidente é alvo da PF e tem horizontes nebulosos no Supremo. Sem candidato e sem comando, fica difícil fechar alianças e traçar estratégias. E o tempo está correndo.

No PSDB, o único candidato de “centro” com alguma viabilidade não sai do lugar, os ex-candidatos enfrentam processos graves na Justiça e na próxima terça-feira um de seus ex-presidentes pode estar a caminho da prisão. E o partido se contorce no eterno dilema de ser ou não ser qualquer coisa. Uma ala pragmática defende alianças. Seu maior líder lança manifesto por alianças restritas.

A cada petista enroscado na Lava Jato, o PT reage com o mesmo refrão: “Mas o PSDB....” A cada tucano enrolado, o PSDB reclama: “Não somos iguais ao PT...”. O PT só pensa no PSDB, o PSDB só pensa no PT. Enquanto isso, o inimigo comum Jair Bolsonaro é o segundo nas pesquisas, o ex-PDS Ciro Gomes se lança como esquerda e cisca à direita e a ex-PT Marina Silva atrai os perplexos.

Em 1993 e 1994, o PSDB admitia abrir mão da cabeça de chapa para Lula, então considerado imbatível. Mas o PT, que é o PT, não retribuiu na mesma moeda quando Fernando Henrique patrocinou o Plano Real e o jogo se inverteu. O PT, que aceitava de bom grado a aliança a seu favor, nem sequer considerou ser a favor dos velhos parceiros de combate à ditadura.

Isso empurrou o governo Fernando Henrique para os braços do então PFL, hoje DEM, para o PMDB, hoje MDB, e para o desgastante e perigoso jogo do toma-lá-dá-cá no Congresso. Sem 308 votos na Câmara e 54 no Senado, nenhum presidente aprova reforma e avanço nenhum. E, quando veio o PT, Lula mergulhou alegremente nessa farra e ultrapassou todos os limites. Como pano de fundo, a luta feroz entre petistas e tucanos e o vale tudo nas campanhas, com o confronto direto entre eles em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, 2014.

O resultado é que PT e PSDB estrebucham no fundo do poço da política brasileira, enquanto o inimigo comum esfrega as mãos. O Centrão se prepara para, ou pular no barco vitorioso, ou até lançar candidatura própria, mas com um objetivo: fazer do próximo governo um novo refém no Congresso. Nada passa sem DEM, PP, PRB e Solidariedade, que ainda negociam com PR, PSC e Avante. E eles só crescem...

Em algum momento, alguém precisa dizer ao PT e ao PSDB que um não é mais o principal inimigo do outro, até porque nunca, jamais, em tempo algum, os dois estiveram tão fracos e tão sem horizontes com neste 2018 cercado de incertezas. E de temores.

Temer
Do secretário de Comunicação do Planalto, Márcio de Freitas, sobre a coluna de sexta, 18 de maio, Murro em ponta de faca: “O governo Temer nunca parou de trabalhar. (...) Trouxe para o País o menor índice de taxa Selic e de juros básicos e a menor inflação desde o Plano Real. (...) O líder da agência Moody´s para a América Latina, Mauro Leos, declarou: “(...)Temer fez em apenas dois anos o que muitos presidentes não fizeram em quatro ou oito”.