O Estado de S. Paulo

José Serra: Retomar os trilhos do desenvolvimento

Um novo arcabouço regulatório amigável ao investimento privado em ferrovias é preciso

“Correndo vai pela terra/ vai pela serra/ vai pelo mar”
Ferreira Gullar

A nossa cultura está impregnada do simbolismo das estradas de ferro. Para ficar apenas na música, Villa-Lobos legou-nos o belíssimo Trenzinho do Caipira – a toccata da Bachiana n.º 2 –, que ganhou letra de Ferreira Gullar. Milton Nascimento e Lô Borges compuseram inesquecíveis canções com a temática.

Essa fascinação, porém, contrasta com a pouca importância histórica dada pelo Brasil ao transporte ferroviário. Somos um país continental que escoa sua produção preferencialmente pelas rodovias. Trata-se de uma distorção que há muito nos traz custos conhecidos. E riscos até há pouco insuspeitados.

Essa grave deficiência é o resultado de erros e omissões que se prolongaram por várias gerações. Temos a sétima economia do mundo, mas estamos na 88.ª posição no ranking global ferroviário, segundo o Fórum Econômico Mundial.

De fato, o Brasil relegou o transporte ferroviário a um papel secundário. Circunstâncias recentes novamente chamaram a atenção dos brasileiros para esse erro histórico. Está mais claro do que nunca que é preciso expandir e modernizar o nosso parque ferroviário. Para tanto temos de elaborar previamente alternativas viáveis – do ponto de vista técnico e econômico – que promovam ganhos de eficiência na rede já existente e sua expansão.

Construir e modernizar ferrovias demanda investimentos vultosos. Dada a situação de recorrente penúria fiscal, isso significa que o grosso dos recursos para esse programa deve necessariamente vir do setor privado.

É necessário compreender por que o atual modelo de concessões adotado no Brasil segura a aceleração de investimentos privados em alguns setores. No caso dos trens, esse modelo foi importante nos anos 1990, pois eliminou uma grande fonte de déficits fiscais – os enormes prejuízos da antiga Rede Ferroviária Federal –, reduziu acidentes e aumentou a produtividade do transporte de cargas.

Tal modelo prevê longos períodos de concessão à iniciativa privada, findos os quais todo o patrimônio envolvido na concessão deve ser revertido ao Estado. O problema é que a partir de certo momento o investidor não tem incentivo para continuar investindo, visto que o prazo de retorno desses aportes seria maior que o período restante da concessão. O resultado prático desse marco jurídico foi o abandono de cerca um terço da rede, mais de 8 mil km de ferrovias.

Instrumentos de regulação já aplicados em outros setores de infraestrutura deveriam ser aditados para o modal ferroviário. Hoje 70% da carga brasileira escoa por portos privados outorgados por autorização, modalidade pela qual o investidor, com a anuência do poder público, constrói e opera as instalações por sua conta e risco. O regime de competição da telefonia móvel – também mediante autorização – superou as expectativas mais otimistas. Em contraste, 100% das ferrovias em operação são outorgadas por concessão, modalidade que exige investimento estatal antes da transferência ao particular e desincentiva o investimento à medida que se aproxima o fim do contrato.

É necessário mudar o esquema de regulação aplicado ao setor ferroviário de cargas. Quem quiser investir e construir ferrovias poderá fazê-lo por sua conta e risco, mediante autorização, sem necessidade de dinheiro público.

Entre 2006 e 2016 o mercado ferroviário de cargas brasileiro investiu cerca de R$ 45 bilhões, três vezes mais que a União. Obviamente, tais investimentos foram feitos porque os atuais concessionários previram retorno financeiro à altura. Quantos outros não construiriam as próprias linhas se não precisassem restituí-las ao Estado?

Os Estados Unidos adotaram com muito sucesso a alternativa da ferrovia sem necessidade de reversão de ativos e têm hoje mais de 200 mil km de trilhos, que competem com outros modos de transporte. Desde 1980, quando foi aprovado o Staggers Rail Act, que reduziu a intervenção estatal no setor, o preço do frete ferroviário americano caiu cerca de 50%, enquanto o volume de cargas e a produtividade cresceram 100% e 150%.

Somente em 2015 o setor ferroviário de cargas nos EUA – integralmente privado – investiu US$ 27 bilhões. Em 2014 foi responsável por US$ 274 bilhões em atividade econômica, US$ 33 bilhões em pagamento de tributos e 1,5 milhão de empregos diretos e indiretos. Esse desempenho foi alcançado na competição com uma malha rodoviária de 4,2 milhões de quilômetros pavimentados. Este é o ponto central: a regulação do transporte por trem não deve ser tão estrita, na medida em que a competição rodoviária – e de outros modais – impõe limites aos preços dos fretes ferroviários.

Outro aspecto dessa nova equação, aqui proposta, é o da valorização imobiliária. Devem-se introduzir mecanismos de cooperação entre os proprietários de imóveis vizinhos aos futuros empreendimentos ferroviários a fim de permitir a justa apropriação dos benefícios gerados pelos novos ramais aos investidores. Isso reduz o custo dos investimentos sobre os fretes e ajuda no florescimento de uma urbanização mais racional.

O mesmo vale para o transporte de passageiros. As cidades sustentáveis do futuro deverão ser densas e sua mobilidade será baseada em transporte de alta capacidade – metrô e trem. A legislação deve permitir maior integração entre o poder público municipal e as administrações ferroviárias, com o objetivo de mitigar conflitos e maximizar o investimento, como ocorreu em Londres, Nova York, Miami e Tóquio, que têm tido grande sucesso no investimento privado em suas redes metroferroviárias.

O Estado exerce papel fundamental na economia, mas não pode atuar em todas as posições. Deve garantir os direitos dos usuários e coibir práticas anticoncorrenciais. Criar um novo arcabouço regulatório amigável para o investimento privado em ferrovias nos ajudará a retomar os trilhos do desenvolvimento econômico.

*José Serra é senador (PSDB-SP)


dólar

Monica De Bolle: O risco de cada um

Não há dúvida de que, com a aproximação das eleições e a indefinição do quadro, mais surtos de turbulência virão

O alvoroço da semana passada nos mercados brasileiros causado pela disparada súbita do dólar, por especulações de que a cotação da moeda americana pudesse chegar a R$ 5, e pela pressão para que o Banco Central respondesse elevando os juros, como fizeram recentemente Argentina, Turquia e Índia expôs, os diferentes tipos de vulnerabilidade que afetam os países emergentes. Desde que a debandada de investidores desses mercados teve início no fim de abril, os temores relativos a diferentes países se acentuaram. Contudo, o risco de cada um pede avaliação mais criteriosa.

A Argentina, após sofrer intensa corrida contra sua moeda em maio, acaba de receber significativo apoio do FMI. No fim da semana passada, foi anunciado um “Stand-by Arrangement” (SBA) – a linha tradicional de empréstimos do Fundo – de US$ 50 bilhões a serem desembolsados ao longo dos próximos 36 meses após as usuais avaliações trimestrais. O montante do programa da Argentina equivale a 1.100% de sua cota no FMI, o que o caracteriza como “excepcional” de acordo com as diretrizes do organismo internacional – geralmente, o acesso aos recursos do FMI no âmbito de um SBA não deve exceder 435% da cota ao longo da vigência do programa.

Apenas para lembrar os leitores, a Argentina recorreu ao FMI no início de maio, após intensa especulação contra o peso. A turbulência teve origem na saída de investidores de países emergentes, porém ganhou intensidade no caso argentino pelas vulnerabilidades do país: déficit externo de 5,5% do PIB, reservas abaixo dos níveis considerados adequados pelo FMI, necessidade de dólares para cobrir pagamentos da dívida externa. Embora a situação argentina permaneça volátil, o tamanho do pacote do FMI negociado rapidamente revela o apoio da comunidade internacional às medidas e reformas econômicas do governo Macri, que tem penado para consertar anos de desvarios sob a tutela de Cristina Kirchner.

A Turquia, outro país severamente atingido pela onda de aversão ao risco dos mercados, tem situação semelhante à da Argentina, com graves riscos no balanço de pagamentos e no montante de reservas internacionais de que dispõe. Na verdade, a posição da Turquia assemelha-se à da Argentina, com déficit externo elevado, necessidade de divisas, e reservas abaixo dos níveis recomendados pelo FMI. Ao contrário do país sul-americano, entretanto, a Turquia não recorreu ao FMI – ao menos, não ainda. O Banco Central de lá elevou os juros e tem atuado nos mercados de câmbio para conter o deslize da lira.

O terceiro país que se viu forçado a elevar os juros para conter a forte desvalorização de sua moeda foi a Índia. O país tem vasto colchão de reservas internacionais – um excedente de cerca de US$ 200 bilhões usando-se a métrica do FMI – e um déficit externo de mais ou menos 2% do PIB. Contudo, as empresas indianas estão mais expostas do que as empresas de outros países emergentes a determinados riscos externos, conforme documentou recentemente um estudo do Fed, o banco central dos EUA. Portanto, a tentativa de frear a desvalorização da rupia por meio da alta de juros teve como um de seus objetivos evitar que empresas com dívidas em dólares sofressem uma elevação abrupta de seu passivo caso estivessem sem cobertura cambial.

Ao contrário desses três países, o Brasil não tem déficit externo elevado, não tem necessidades de divisas estrangeiras para fazer frente às suas obrigações externas, não tem dívidas corporativas em dólares tão elevadas como as da Índia, e dispõe de amplas reservas internacionais, conforme discuti em artigo da semana passada. Portanto, a turbulência brasileira teve origem não apenas na mudança de humor dos mercados internacionais em relação aos ativos de países emergentes, mas também nas ramificações políticas da crise dos caminhoneiros, e na tardia avaliação dos riscos políticos que o País enfrentará nos próximos meses.

A resposta célere do Banco Central no fim da semana passada, sublinhando a ausência de riscos no balanço de pagamentos, o comprometimento com o regime de câmbio flutuante, e a descrição transparente das medidas para acalmar os mercados de câmbio foi certeira. Não há dúvida de que, com a aproximação das eleições e a indefinição do quadro, mais surtos de turbulência hão de vir. No entanto, por ora, temos margem de atuação maior do que outros países, apesar do imenso rolo fiscal que o próximo governo terá de enfrentar. Cada qual com o risco que merece.

* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Vera Magalhães: PSB mais perto de Ciro

O PSB está mais propenso a selar uma aliança com o PDT de Ciro Gomes que a ficar “solteiro" nas eleições nacionais, como agora defende a ala do partido mais próxima ao PT.

A costura feita por Ciro foi eficaz para incutir uma dose de autoestima no PSB, que ficara perdido diante do recuo de Joaquim Barbosa, aquele que foi sem nunca ter sido o presidenciável do partido.

Ciro convenceu parte da cúpula socialista de que o partido terá espaço de destaque caso ele se eleja. Assim “empoderados”, caciques pessebistas já dizem que sua sigla dará estatura política a Ciro, por ter mais governos de Estado que o PDT, por exemplo.

O PT, que começou falando grosso e exigindo um cheque em branco de aliança com o candidato que vai substituir Lula na cédula para retirar a candidatura de Marília Arraes em Pernambuco, já admite fazer um desconto caso o PSB apenas fique neutro na eleição nacional.

São essas hoje as únicas opções à mesa, e a decisão não deverá ficar só para a undécima hora. O PSB deve reunir a Executiva para bater o martelo ainda neste mês.

Os pessebistas sabem que, no momento em que Ciro, Geraldo Alckmin e o PT travam uma corrida de bastidores para consolidar alianças e reduzir a pulverização, os primeiros apoios contam mais e garantem aos aderentes boas condições de negociação. Inclusive a vaga de vice, pela qual os socialistas não escondem o interesse e que pode mesmo ir para Márcio Lacerda.

As declarações tanto de Ciro quanto de seu irmão, Cid, sobre a prioridade dada ao antigo partido de ambos faz parte desse “namoro" que pode mesmo acabar em casamento.

ATÉ A COPA?
Desistências podem vir antes do Mundial

O fôlego de algumas candidaturas de si mesmas parece estar se esvaindo. Guilherme Afif, que insiste em dizer que é pré-candidato embora seu partido, o PSD, não o reconheça como tal, deve ser chamado à realidade. O PRB de Flávio Rocha faz conversas abertas com o PSDB e o Podemos. Rodrigo Maia já não esconde que cansou de interpretar o pré-candidato e que quer ir cuidar de sua reeleição ao mandato e à presidência da Câmara. O MDB já não esconde o desejo de desistir de Henrique Meirelles. E o PCdoB só espera o nome do PT para decidir se vai com ele ou com Ciro Gomes. Os desfechos podem vir antes mesmo da Copa.

ISOLANDO TEMER
Potenciais apoiadores de Alckmin não querem MDB

Um dos empecilhos para que Geraldo Alckmin obtenha logo os apoios de que precisa é a súbita tentativa de aproximação do time de Michel Temer. Diante da constatação de que um candidato “puro-sangue” do governo tem pouquíssimas chances, soldados como Carlos Marun e Moreira Franco já tentam descolar uma cabine no navio de Alckmin. Isso pode afugentar outros passageiros em potencial, como DEM, PP e PRB, que veem no contágio com Temer uma peste capaz de inviabilizar de vez um presidenciável pelo qual já não têm muito entusiasmo.

VEM, PETISTA
Tucanos sonham com definição nome do PT

Já no PSDB a torcida é para que o PT defina logo o nome do substituto de Lula. A análise dos tucanos é que esse candidato, quando oficialmente indicado, vai desidratar os índices de Ciro Gomes e Marina Silva nas pesquisas, igualando as condições entre eles e Geraldo Alckmin e aliviando um pouco a pressão para que o tucano cresça.


O Estado de S. Paulo: Primeira Turma entende que restrição do foro também se aplica a ministros de Estado

Entendimento foi firmado pelos ministros em julgamento que decidiu enviar para a primeira instância da Justiça inquérito contra o ministro da Agricultura e senador licenciado Blairo Maggi

Por Amanda Pupo e Rafael Moraes Moura, de O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA – A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão nesta terça-feira (12), entendeu que a restrição do foro por prerrogativa também vale para ministros de Estado, julgados pela Suprema Corte. O entendimento foi firmado ao decidirem enviar para a primeira instância da Justiça inquérito contra o ministro da Agricultura e senador licenciado Blairo Maggi, a partir de uma questão de ordem apresentada pelo ministro Luiz Fux.

Blairo e Sérgio Ricardo de Almeida, que é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso, foram denunciados por supostos crimes cometidos enquanto os dois ocupavam, respectivamente, os cargos governador e deputado estadual. “O elemento persuasivo não decorre das partes, mas dos elementos crimes cometidos no cargo em razão do cargo. Não cabe cogitar manter (o inquérito no STF) uma vez que hoje o senador e ministro de estado não praticou crimes em razão dos cargos”, afirmou Fux, aplicando o entendimento definido pelo plenário no início de maio, quando restringiram o foro para parlamentares federais.

No caso analisado hoje, a restrição também se estendeu ao caso de conselheiros de tribunal de contas de Estados, que são julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

“A razão de decidir do julgamento (da questão de ordem que restringiu o foro para parlamentares federais) se aplica indistintamente em relação a qualquer hipótese de prerrogativa de função”, também disse Fux, enviando a denúncia para a Justiça Estadual do Mato Grosso, acompanhado por Rosa, Barroso e Marco Aurélio.

Como o caso foi decidido na Primeira Turma, e não no plenário, e com a particularidade de Maggi ser senador licenciado, é possível que o plenário da Corte ainda tenha que se manifestar sobre os outros casos de ministros de Estado investigados no STF.

Conselheiro. No julgamento, ficou vencido o ministro Alexandre de Moraes, que entendeu que ainda não há previsão de restrição do foro para o caso de conselheiros de tribunal de contas de estado. Ao falar sobre a questão, Barroso avaliou que o STF iria se pronunciar caso a caso, oportunidade que surgiu durante a sessão da Primeira Turma.

“Nós nos pronunciamos apenas sobre parlamentares, e ficou subentendido que analisaríamos as outras hipóteses na medida em que surgissem os outros casos, como aconteceu agora com o conselheiro de tribunal de contas de estado”, afirmou Barroso.

Os ministros acabaram acompanhando o entendimento da Procuradoria-geral da República (PGR), que durante a sessão se manifestou para que o inquérito fosse encaminhado para a primeira instância da justiça.

COM A PALAVRA, FÁBIO MEDINA, QUE DEFENDE BLAIRO

“O ministro Blairo já havia decidido há muito tempo largar a vida política. E defende o fim da prerrogativa de foro. Logo, entende que nenhuma autoridade neste país deve gozar desse privilégio. Nem mesmo os juízes. Aceita com total tranquilidade a decisão do STF e as questões técnicas estão a cargo de seus advogados”.

 

https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/primeira-turma-entende-que-restricao-do-foro-tambem-se-aplica-a-ministros-de-estado/


Gaudêncio Torquato: Esculhambação geral

Começo com uma historinha que sempre lembro para explicar estas nossas tropicais plagas. Há, no mundo, quatro modalidades de sociedade: a primeira é a inglesa, aberta, onde tudo é permitido salvo o que for proibido; a segunda é a alemã, rígida, onde tudo é proibido salvo o que for permitido; a terceira é a totalitária, ultra-fechada, de índole ditatorial, onde tudo é proibido mesmo o que for permitido; e, por último, a brasileira, onde tudo é permitido mesmo o que for proibido.

Querem um exemplo? A última greve dos caminhoneiros, que bloqueou o livre trânsito de pessoas e automóveis e deu prejuízo que alguns estipulam em R$ 60 bilhões até o momento, com consequências sérias sobre a vida das pessoas – educação, saúde, alimentação, serviços etc. O fato é que o país retrocedeu passos em seu avanço civilizatório. Pois bem, multas foram estipuladas, como se viu na decisão do ministro do STF, Alexandre de Moraes, de determinar que 96 empresas transportadoras pagassem em 15 dias R$ 141 milhões pelo descumprimento da liminar que determinava o desbloqueio imediato de rodovias.

Depois, o TST determinou que os petroleiros, em greve logo depois, arcassem com multa de R$ 2 milhões por dia.

E o que estamos vendo? A Câmara dos Deputados avalia anistiar as penalidades impostas, na esteira de um projeto de lei que regulamenta o transporte rodoviário de cargas no país e cujo relator é o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP).

Se isso vier de fato a ocorrer, o Brasil mostra sua cara sem retoques: a desmoralização das Cortes judiciárias, a desfaçatez, a hipocrisia dos nossos representantes e, mais, a prova inconteste de que, por aqui, tudo é possível: transgredir a lei e não ser punido, descumprir o ordenamento jurídico do país e, em troca, receber aplausos por conduta ilegal, imoral, restritiva aos valores de nossa democracia. Cai bem sobre nossa fisionomia institucional aquela frase atribuída a De Gaulle – o Brasil não é um país sério. (A frase, na verdade, é de autoria do embaixador brasileiro na França entre 1956 e 1964, genro do presidente Artur Bernardes, Carlos Alves de Souza Filho, a propósito da “guerra da lagosta”, assunto que envolveu uma pergunta que lhe fez o correspondente do JB em Paris, Luis Edgar de Andrade. O diplomata cochichou aquele dito.)

O fato é que por estas nossas bandas, não é só a corrupção que suja a veste de políticos, governantes e empresários. A lama se espalha em uma enxurrada que agrega um amontoado de futricas, politicagem, grupismo, fisiologismo, desmandos, rasgos da lei maior, a Constituição, malhas intestinas, projetos de lei com foco no corporativismo, domínio de castas, desleixo, incúria, desmandos de todos os tipos.

Se amanhã novas greves surgirem, os grevistas saberão, de antemão, que haverá um político “de espírito cívico” a lhe estender a mão. Não serão punidos. Ganharão loas. Fico imaginando a reação de um alto ministro de nossas Cortes ao ver jogada no lixo do desprezo sua decisão de punir quem não anda nos traçados da lei. Se os malfeitos do nosso cotidiano se multiplicam é porque os “bem-feitores” da representação política mexem com o pauzinho que têm às mãos, a “fazeção de leis”. E que ninguém se assuste com as máfias criminosas que dão ordens de dentro das prisões. A propósito, o faturamento do PCC pode chegar, este ano, a R$ 800 milhões. Grana que dá para eleger uma grande bancada.

*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação


Eliane Cantanhêde: Quem ri por último...

Com o impeachment, Dilma está numa boa e a vida de Temer virou um inferno

Se arrependimento matasse, talvez Michel Temer já estivesse mortinho da Silva depois de deixar sua eterna zona de conforto, articular meticulosamente o impeachment de Dilma Rousseff e assumir a Presidência em meio à maior crise política e econômica da história. Temer virou o principal alvo do País, Dilma vive (quase) em paz.

Ela caiu ao perder as condições de governabilidade, diante da certeza de que o Brasil não suportaria mais dois anos de Dilma Rousseff. O que não se sabia é que, ao assumir, Temer viraria o maior vilão nacional. Deputado federal desde 1987, presidente da Câmara três vezes, presidente nacional do PMDB e vice-presidente da República por seis anos, ele sempre tinha passado incólume por investigações e denúncias.

Durante essas décadas, conviveu tranquilamente com o fantasma de suspeitas e maledicências sobre suas relações com o Porto de Santos. Um fantasma que nunca se materializara, até que... Bastou subir a rampa do Planalto e tudo mudou, a vida de Temer virou um inferno de denúncias, acusações, investigações. Sua biografia, que parecia condizente com um professor de Direito Constitucional, esfarelou. Até sua saúde sai abalada.

Não bastasse a gravação sorrateira de Joesley Batista e duas denúncias de Rodrigo Janot, Temer viu Romero Jucá despencar do Planejamento e Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima e Henrique Alves irem em fila para a prisão, com quase todos os seus assessores políticos. O que dizer de Rocha Loures e sua mala?

Agora, Temer vê a filha exposta nas tevês por depoimentos constrangedores sobre uma reforma na sua casa e vê os fiéis amigos José Yunes e coronel João Baptista Lima nas situações mais aflitivas, tentando explicar decretos, Porto de Santos, empresa Rodrimar, temas com os quais o brasileiro comum já está familiarizado.

Temer acabou sofrendo o que considera uma imensa humilhação à sua pessoa e que todo o resto considera uma imensa humilhação à instituição Presidência da República. Onde já se viu um presidente com sigilo bancário e fiscal quebrado a pedido da Polícia Federal e por autorização do Supremo?

Além da J&F e do Porto de Santos, há ainda a história dos R$ 10 milhões da Odebrecht para o então PMDB, acertados no Jaburu em 2014. Apesar de as doações privadas para campanhas serem ainda legais, por pouco lá se vai também o sigilo telefônico do presidente da República.

Nos dois casos, o do Porto de Santos e o do PMDB, a PF pediu a quebra de sigilo de Temer, mas a PGR deu parecer contrário. No primeiro, Luís Roberto Barroso ficou com a PF. No segundo, Edson Fachin seguiu a PGR. Temer passou raspando, mas seus Eliseu Padilha e Moreira Franco não tiveram a mesma sorte. O mundo de Temer continuou a desmoronar quando os inegáveis ganhos na economia começaram a fazer água. A reforma da Previdência não vingou. O País parou de crescer. O desemprego parou de cair. E veio a greve dos caminhoneiros. Recuar da tabela de fretes horas depois da publicação é só uma pitada de vexame.

Pode-se dizer que a vida de Temer anda um inferno. E seu troféu é o pior índice de popularidade de um presidente, com chance zero de reversão. Enquanto isso, Dilma transita entre Rio, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Europa e EUA e insiste em ser candidata em Minas, atravessando o samba da aliança PT-MDB no Estado. Pensando bem, quem mais se deu mal com o impeachment? Temer, o novo inimigo número um do País, ou Dilma, que passeia por aí trombeteando a tese do “golpe” e ainda se dá ao desplante de dizer que “estão destruindo a Petrobrás”?

Aliás, será que os quase vinte candidatos têm mesmo certeza de que querem assumir a Presidência da República?

Até já: Saio duas semanas de férias. Ufa!


Bolívar Lamounier: Hora de cair na real

Permaneceremos um país pobre, desigual e com nível de conflito social impensável

O solavanco provocado pelo locaute/greve dos caminhoneiros força-nos a fazer algo que há anos temos tentado evitar: cair na real.

A “real”, o que é, exatamente? Dito com a simplicidade e a circunspecção que a hora exige, é o reconhecimento de que o Brasil está perdendo o bonde da História. Na toada em que temos levado a vida, é óbvio que não iremos a lugar nenhum. Permaneceremos por muito tempo como um país pobre, extremamente desigual e com o conflito social atingindo níveis impensáveis.

Não me canso de repetir que, a continuarem as medíocres taxas de crescimento do PIB que mal e parcamente temos atingido, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa renda média por habitante, que hoje se situa em torno de US$ 11 mil anuais. E não se requer um grande esforço de imaginação para perceber que quando atingirmos essa meta (meta?!) nossa situação social será ainda muito pior que a dos países europeus que se encontram atualmente um pouco acima ou um pouco abaixo desse nível. Nossa distribuição de renda será ainda muito pior que a deles. Nosso sistema educacional, idem. Nosso índice de criminalidade violenta (número de homicídios por 100 mil habitantes), muitíssimo pior. Nossas condições de saneamento, sabe Deus. Rezemos para que pelo menos as metrópoles mais bem aquinhoadas, como São Paulo, estejam livres do pernilongo e do mosquito Aedes aegypti. E dos escorpiões, cujo número parece ter aumentando 700% nos meios urbanos do País.

Esse é o pano de fundo sine qua non em termos do qual precisamos nos entender. Para delinear preliminarmente o entendimento de que necessitamos, se queremos mesmo nos livrar desse futuro sombrio, penso que três pontos precisam ser considerados: a agenda de reformas estruturais, as eleições de outubro e certas mudanças para pior que vêm ocorrendo em nosso sistema político.

Primeiro, implementar uma agenda de reformas estruturais muito mais abrangentes que as atualmente em debate. Isso soa para lá de utópico, bem o sei. Como falar em reformas abrangentes se o Congresso não se dispôs a aprovar nem uma modesta reforma da Previdência? Mas as reformas virão, cedo ou tarde, pela força das coisas, a menos que tenhamos realmente, como nação, uma irresistível propensão ao suicídio. Com um Estado agigantado e ineficiente, corroído até a medula pelo patrimonialismo e pela corrupção, é evidente que a economia continuará travada, e almas frágeis tremerão ante o nível dos conflitos sociais a que antes me referi.

Com todo o respeito aos senhores e senhoras pré-candidatos, temos de admitir que o elenco está bastante abaixo do enredo. Pelo lado da sensatez e da experiência, a exceção é o governador Geraldo Alckmin, mas por ora nada podemos adiantar a respeito da força de que disporia para lidar com o Congresso. Ciro Gomes (que foi governador do Ceará) e Jair Bolsonaro, cuja experiência se limita à Câmara dos Deputados, ostentam traços notavelmente retrógrados tanto na esfera pessoal – uma inequívoca tendência autoritária – como na do pensamento econômico e social, e com certeza enfrentarão (enfrentariam) dificuldades ainda maiores no relacionamento com o Congresso.

Álvaro Dias também tem uma experiência significativa, mas não dispõe de base partidária; e Marina Silva, a meu juízo, poderia neste momento prestar uma contribuição mais útil ao País no Senado do que em sua improvável postulação presidencial. Do Congresso, o que esperar senão mais do mesmo, com baixa renovação numérica e provavelmente nenhuma no tocante aos perfis políticos?

Claro está que o panorama eleitoral não é animador, mas o quadro piora bastante se levarmos em conta certas transformações para pior que se acham em curso na sociedade brasileira. Refiro-me ao embate entre dois “subsistemas”, o partidário e o das organizações corporativas. Os partidos políticos, historicamente débeis e atingidos em cheio pelas investigações de corrupção, conservam alguma capacidade de atrapalhar, mas nenhuma de contribuir positivamente para a governabilidade. No polo contrário, o corporativismo generalizado da sociedade brasileira nunca foi tão evidente – e tão forte. Não percebemos a tempo a mutação no sistema político brasileiro, cujas unidades reais são organizações voltadas exclusivamente para seus interesses mais estreitos e imediatos, defendendo-os acirradamente umas contra as outras e todas contra o governo. Salta aos olhos que o universo corporativo se enraizou e aumentou visivelmente seu poder relativamente aos partidos e às instituições políticas de modo geral. Sem esquecer que um “espírito” corporativo permeia de ponta a ponta as próprias instituições, sendo que, neste aspecto, o Judiciário aparece como um exemplo teratológico.

Para ressaltar a importância da hipótese que venho de expor a respeito do corporativismo, é imprescindível pôr em relevo dois aspectos da greve dos caminhoneiros. Primeiro, não me parece exagerado afirmar que o Brasil ficou praticamente sem governo durante nove dias. Perseguindo seus objetivos particulares, cujo mérito não tenho como discutir no espaço disponível, fato é que o movimento manteve o governo e praticamente toda a sociedade na condição de refém. Governo refém não é governo, é apenas uma aparência de governo.

Como foi isso possível? Este é meu segundo ponto: 20 ou 30 anos atrás, antes de deflagrar uma greve, mesmo os sindicatos mais poderosos tinham de passar dias e dias preparando-a, fazendo panfletagem na porta das fábricas, etc. Hoje, um movimento de grande porte pode ser organizado numa tarde. Estamos na era do celular e do WhatsApp. Com esse recurso e serviços de inteligência um tanto lerdos, o que parecia impossível passa a acontecer até com certa facilidade.

*Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências e autor do livro ‘Liberais e antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)


Eliane Cantanhêde: Cavando a derrota

Quantos mais candidatos, mais todos eles perdem, principalmente Alckmin

Quanto mais as forças políticas de centro falam em “união”, mais ocorre justamente o oposto: os candidatos já colocados desdenham a possibilidade e novos nomes continuam entrando numa corrida presidencial já tão inflacionada. Em vez de diminuir, como se esperava, o número de candidatos só faz aumentar.

Isso reforça uma constatação: os partidos não acreditam nas chances do ex-governador Geraldo Alckmin, que seria o nome com mais força e melhores condições para aglutinar as tais forças e os tais votos de centro. Afinal, Alckmin é do PSDB, partido que ou ganhou ou disputou o segundo turno em todas as eleições desde 1994, e foi quatro vezes governador do principal Estado da Federação. E bem-sucedido, faça-se justiça.

Logo, Alckmin tem a força, a estrutura os recursos, a capilaridade, o tempo de TV e a capacidade de fazer alianças do PSDB e acrescenta a isso as suas próprias qualificações, inclusive as pessoais. Mas não sai do lugar e tem até de suportar recado malcriado do líder das pesquisas, Jair Bolsonaro: “Quando atingir dois dígitos, ele liga pra mim”.

Com Bolsonaro consolidado pela direita e Ciro Gomes (PDT) crescendo à esquerda, o congelamento da opção Alckmin aumenta o desespero da turma que trabalha, ou reza, por uma “união do centro”. Na mesma semana em que é lançado o Manifesto por um polo democrático e reformista continuaram entrando novos nomes considerados de centro ou centro-direita. Em vez de somar, dividem-se.

O manifesto foi assinado por Fernando Henrique Cardoso e nada mais é do que um esforço para uma candidatura comum. Envolve PSDB, PPS, MDB, DEM, PV, PSD e PTB, joga iscas à esquerda e à direita e considera seis beneficiários de uma “união”: além de Alckmin, Rodrigo Maia, Meirelles, Marina Silva, Flávio Rocha e Alvaro Dias. Mas até Rodrigo Maia joga água fria na articulação, que considera “conversa meio de bêbado”, por falta de ressonância na sociedade.

E assim, vão entrando na disputa Nelson Jobim, do MDB, Guilherme Afif Domingos, do PSD, e Josué Gomes da Silva, do PR. Jobim observa ao longe e só entra na boa, com mínimas garantias e alguma segurança. Afif se licenciou da presidência do Sebrae nacional e Josué saiu ontem da Fiesp, ambos colocando-se à disposição para disputar em outubro. Nos três casos, a mesma constatação e a mesma ambição.

Eles acham que as chances de Alckmin são reduzidas, que grande parte do eleitorado torce o nariz para Bolsonaro e para Ciro e que há uma longa avenida de oportunidades para novos nomes – os deles próprios.

Jobim passou com nota 10 pelo Executivo, Judiciário e Legislativo, mantendo boa interlocução com militares. Afif já disputou a Presidência em 1989 e tem a força das pequenas e médias empresas. Josué é um dos mais bem sucedidos empresários brasileiros e tem a aura de filho de José Alencar, vice de Lula.

O timing deles é o final de julho, início de agosto, com as convenções partidárias. Jobim teria de se viabilizar o suficiente para disputar com Henrique Meirelles no MDB, Afif vai enfrentar a aliança praticamente já definida do PSD com o PSDB e Josué está aí para o que der e vier, variando entre uma candidatura a vice e a cabeça de chapa do PR, partido ainda indefinido sobre o que fazer em outubro.

Tudo pode acontecer, mas é improvável que um deles dispare até outubro, acabe no segundo turno e vire um sucesso espetacular na eleição. Assim, eles seguem o mesmo destino de Alvaro Dias (Podemos): dificilmente ganham, mas certamente enfraquecem Geraldo Alckmin. Por quê? Por que todos tiram votos potenciais do tucano, pulverizam ainda mais o centro e deixam Bolsonaro e Ciro correndo por fora, livres, leves e soltos.


Washington Novaes: Que pensam os eleitores?

O que desejam para suas cidades, para o País? Sem eles, para onde vamos?

A poucos meses da próxima eleição, quase não se têm indicações do que pensam os eleitores, do que desejam para suas cidades, para o País, que futuro esperam para seus filhos. As poucas aspirações em pesquisas sugerem o “fim da violência”, renda menos desigual, por aí. E os candidatos, o que eles dizem, de modo geral? E os jornalistas, de que tratam?

A memória dá um salto de mais de meio século para trás, quando o autor destas linhas começava sua vida no jornalismo como redator (hoje seria copidesque) na então Folha da Manhã, antecessora da Folha de S.Paulo. Um dia, o então secretário do jornal, Mário de Araújo Lôbo – competente, extremamente ético –, pediu que reescrevesse a matéria de um repórter sobre um homem de menos de 40 anos que, desempregado havia muito tempo, sem conseguir sustentar a família, matara a mulher e os filhos pequenos e, com a última bala do revólver, se suicidara. Lôbo escreveu no novo texto as indicações para a oficina do jornal: “uma coluna, página 14”. Indagado por que publicava uma notícia como aquela sem nenhum destaque, perdida numa página interna, ele perguntou: “Você faria o quê?”.

A resposta foi imediata: “Daria na primeira página, com muito destaque”. E ele: “Há alguns anos fiz o que você está sugerindo, publiquei uma notícia semelhante na primeira página, com destaque. Nos dias que se seguiram apareceram várias notícias de chefes de família desempregados e desesperados que mataram a família e se suicidaram. Não tenho como saber se algum deles encontrou no jornal o seu caminho; mas não tenho coragem de publicar outras notícias como essa na primeira página, chamar a atenção para o desfecho terrível. Então, faço isso, publico em página interna, sem nenhum destaque. Se alguém tiver outra solução que me indique”.

Encerrado o expediente daquela noite, conversamos longamente sobre o assunto. Lôbo enfatizava que jornalistas muito raramente discutiam a questão de sua responsabilidade pessoal nas notícias que apuravam e publicavam; notícias que poderiam apontar caminhos pessoais e sociais para os leitores – responsabilidade que não era apenas dos editores ou do jornal, era também de quem apurava o fato e o reproduzia na medida de suas crenças pessoais, responsabilidades e possibilidades no órgão onde trabalhava.

Hoje, o que fazem ou deveriam fazer os jornalistas no universo caótico, violento, que nos cerca, no mundo, no País, na nossa cidade? Têm autonomia para reproduzir tudo? Perguntam-se a si mesmos quais seriam as consequências? Discutem com seus chefes? Sentem a consciência pesando em certas circunstâncias – que pensamos do fato de termos no País mais de 12 milhões de desempregados? De termos mais de 11 milhões de jovens “nem-nem”, que não estudam nem trabalham, que futuro os aguarda? Da iníqua distribuição de renda no País; já com uma taxa de homicídios em torno de 30 por 100 mil pessoas – altamente concentrada numa minoria exígua? A que atribuem a progressão da violência no País? Como veem o crescimento desenfreado das cidades, atendendo quase apenas aos interesses de loteadores e construtores? Se puderem manifestar-se, que dirão das nossas horripilantes taxas de homicídios (mais de 60 mil mortes por ano) – a que as atribuirão? E a fome diária de 23 milhões de pessoas, estampada na comunicação? Alguém está preocupado em dar-lhe solução? E para os 6,9 milhões de pessoas sem casa nenhuma, própria ou alugada? Para os 12,6 milhões de desempregados e em busca de trabalho? Para mais de cinco mortes em acidentes de trabalho a cada dia? Enquanto isso, o desperdício de comida aqui e em toda parte chega a 1,3 bilhão de toneladas diárias.

Há quem pense que o poder público possa resolver boa parte, pelo menos, dessas dramas. Mas como fará antes para saldar a dívida pública nacional (da União, dos Estados e municípios), que está em mais de R$ 5 trilhões pela primeira vez, ou 75,9% do produto interno bruto (Estado, 31/5). Passaremos todos a trabalhar em dobro? Ou vai-se promover uma redistribuição da renda? Como, se hoje as projeções indicam que o produto interno bruto do País – para o qual se projetava no começo do ano um crescimento acima de 4% – crescerá somente, segundo os mais otimistas, 2% ou pouco mais (Estado, 17/5).

Tudo isso a sociedade precisaria estar discutindo com os candidatos às próximas eleições. Não basta dizer que se é contra a corrupção Nem informar apenas que “é preciso reformar a Previdência”. Que se vai fazer diante da espantosa diferença entre os índices mais altos para a aposentadoria no setor público e muito mais baixos para o setor privado? Que razões justificam isso? Mas é preciso, ao discutir com os candidatos, estar preparado para contrapor razões. Nesse e em outros temas. Um dos mais urgentes é a nossa dependência quase total do sistema rodoviário para passageiros e cargas. Num Estado como Goiás, por exemplo, a queda no transporte de cargas por ferrovias continua muito forte, menos 40% em cinco anos – quando um maquinista pode transportar carga equivalente à levada por 200 caminhoneiros.

O modelo embutido em quase toda a nossa comunicação subentende que a imensa maioria dos nossos meios de informação ou divulgação difunde as notícias que atendem apenas aos seus critérios, sem cogitar do que pensa o seu público e cada um de seus integrantes. Esse modelo de mão única, evidentemente, implica muitas consequências negativas, a começar por não contribuir para formar uma opinião pública que se fortalece e uma consciência social desejável, que faça avançar o desenvolvimento social.

Nosso crescimento social dependerá muito do avanço nas duas direções: uma consciência maior do público que é informado e que, nessa medida, apoie uma comunicação que contribua para o avanço real do País e de todos o cidadãos.

*Washington Novaes é jornalista


Everardo Maciel: Tributação dos combustíveis, a marcha da insensatez

Exploro, neste artigo, uma das razões alegadas para a “greve” dos caminhoneiros: a tributação dos combustíveis.

A questão remonta à Constituição de 1988. Antes dela, combustíveis e lubrificantes, energia elétrica, minerais e serviços de transporte e comunicações eram tributados exclusivamente pela União.

Para ampliar a abrangência do então vigente ICM, os constituintes decidiram incluir aquelas bases no campo de incidência do imposto, que passou a denominar-se ICMS.

O fundamento da mudança seria a redução da cumulatividade do sistema tributário, conquanto o conceito seja inaplicável a tributos que não integram um mesmo ciclo impositivo.

Ainda na Constituição de 1988, proclamou-se ampla liberdade na fixação de alíquotas do ICM, em contraste com a alíquota uniforme do ICM, conforme estabelecia a Constituição. Curiosamente, a uniformidade de alíquota converteu-se em objeto de atuais propostas reformistas.

Como é relativamente mais fácil cobrar tributo de energia elétrica, combustíveis e telecomunicações, os Estados optaram por fixar alíquotas completamente desproporcionais nessas bases, chegando a ultrapassar 30%, o que constitui um insólito recorde mundial.

Dados de 2017, mostram que a arrecadação nacional do ICMS, relativa àquelas bases, representa 48% do total (petróleo e combustíveis, 23%).

Esses percentuais traduzem uma enorme e perigosa dependência, que inibe, no curto prazo, qualquer possibilidade de revisão da política tributária do ICMS.

No âmbito federal, os combustíveis restaram tributados pelo PIS/Cofins.

Desde 1978, os preços tabelados de combustíveis incluíam uma parcela denominada FUP (Frete de Uniformização de Preços), que objetivava equalizar os preços dos produtos, tendo em vista a diversidade de distâncias entre refinarias e postos de abastecimento.

Na década de 1990, houve uma grande desregulamentação do mercado, principalmente por força da eliminação do monopólio da Petrobras nas atividades de comercialização e importação de combustíveis, daí decorrendo melhoria de competitividade, a despeito de aumento da sonegação e da adulteração de produtos.

Nesse contexto, foi extinta a FUP, sendo criada, entretanto, uma conta financiada por item integrante dos preços, denominado Parcela de Preço Específica (PPE), que bancava a diferença entre os preços de petróleo importado, em regime de monopólio pela Petrobras, e o produzido no País.

A eliminação, em 2002, do monopólio da Petrobras na importação, implicava extinção da PPE, com perda de arrecadação, e desequilíbrio de tratamento tributário entre o combustível importado e o produzido domesticamente, pois este seria tributado pelo PIS/Cofins e aquele não.

A solução encontrada consistiu em estabelecer previsão constitucional (Emenda 33/2001) para instituição de uma contribuição de intervenção econômica (CIDE) no setor.

As alíquotas da CIDE poderiam ser diferenciadas por produto, o que permitiria conferir tratamento menos gravoso ao etanol, e alteráveis por decreto, do que resultaria imediato ajustamento ao instável mercado internacional de petróleo.

O produto da arrecadação seria destinado, inclusive, à concessão de subsídios a preços e ao transporte de combustíveis, de caráter compensatório às flutuações nos preços de combustíveis ao consumidor final.

O sucesso da CIDE no combate à sonegação e estímulo ao etanol não teve correspondência na destinação dos recursos.

Procedeu-se, igualmente, à alteração constitucional no ICMS incidente sobre combustíveis, prevendo alíquota uniforme e com a mesma flexibilidade da CIDE. Essas regras, entretanto, jamais vieram a ser implementadas.

A Emenda Constitucional 42/2003, ao alterar o art. 150, fulminou a flexibilidade da CIDE. Já a Emenda 44/2004, estabeleceu a partilha da CIDE com os Estados e Municípios, comprometendo sua finalidade regulatória.

Portanto, os problemas na tributação dos combustíveis não têm explicação genérica, mas muito específica. Decorrem de opções erradas feitas na marcha da insensatez.

 


William Waack: Linha do tempo

Já sabemos muito sobre o que vem por aí. É de tirar o sono

Mesmo com tamanha imprevisibilidade sobre as eleições de outubro já sabemos algo sobre o que vem por aí, e não é pouco. Vamos do mais próximo ao mais distante na linha do tempo.

Uma candidatura única do centro é dúvida ainda para o clássico, mas a aproximação do deadline de julho apressa conversas sem que ainda se tenham nomes claros fora o do ex-governador Geraldo Alckmin, com dificuldades mesmo dentro do partido que preside. Perduram os vaticínios de que a candidatura de Jair Bolsonaro vai se derreter sozinha, mas a candidatura perdura. Falta pouco para o PT cometer um inédito suicídio político, se insistir em que só Lula é o candidato do partido, mas a beira do abismo costuma infundir medo nas pessoas.

Adoro e joguei futebol, mas nunca vi tanto desinteresse por uma Copa como o que registro agora, o que sugere que essa eleição seja inédita por mais um fator (além da curta duração, regras restritas de financiamento, curto tempo de televisão, forte presença de plataformas digitais, máquina do governo encurralada, grau de indignação popular, destruição do sistema político e falta de lideranças genuínas – tudo isso me parece sem comparação com outros pleitos).

Já sabemos também que as dificuldades das candidaturas de “novos” indicam uma predominância do “velho” sistema político eleitoral num choque de proporções enormes com o que parece ser o sentimento popular de rejeição “ao que está aí”, começando pelos figurões das classes políticas. Em outras palavras, já podemos antecipar uma renovação menor do que se deseja nas Casas do Congresso, e eleitos bastante distantes do eleitor.

Prosseguindo na linha do tempo, já parece garantido a esta altura que o próximo presidente, ou a próxima presidente, formará um governo de minoria num sistema político no qual o chefe do Executivo é paradoxalmente muito poderoso – e não governa sem o Congresso. Esse homem (mulher) com uma caneta que aponta diretamente mais de 30 mil cargos terá de costurar uma maioria precária diante de uma crise fiscal que já paralisou a máquina (incapaz de se custear) e reduziu a quase nada a capacidade de investimentos, tudo agravado pela voracidade de grupos corporativos e a necessidade de adotar medidas impopulares.

É difícil imaginar que uma parcela imensa da sociedade que nem sequer capta exatamente o significado de “dinheiro público” (boa parte das pessoas acha que o dinheiro é do governo) seja acometida de súbita consciência do que é cidadania (direitos e deveres). É igualmente difícil imaginar que a corrupção, enxergada hoje pela maioria dos brasileiros como o principal problema do País (bastaria limpar os corruptos que tudo “funcionaria”, um perigoso engano), deixe sua posição de destaque nas prioridades do eleitor. Talvez seja substituída pela questão da segurança pública – o medo continuará sendo uma característica importante a influenciar o comportamento das pessoas.

Por último na linha do tempo que traço daqui até os primeiros 100 dias do novo governo, já podemos antecipar a continuidade do regime de insegurança jurídica que parte do próprio STF. O exemplo mais recente é a postura de um dos ministros, que se julga apto a reverter anos de discussão sobre um item isolado da reforma trabalhista, a abolição do esdrúxulo imposto sindical, por ter outra opinião a respeito do que as duas Casas do Legislativo. Como o imponderável é sempre característica do terreno da política, especialmente numa crise, aposto às cegas que a politização da Justiça nos trará mais sobressaltos, além do vigoroso prosseguimento da Lava Jato.

Ficarei grato, dormirei melhor e feliz, se os fatos me desmentirem.


Foto: Beto Barata\PR

Eugênio Bucci: O banimento dos fatos

O centro é um palanque desmontado num depósito que ninguém sabe onde fica
“A liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os fatos não estiver garantida e se não forem os próprios fatos o objeto do debate.”
Hannah Arendt, Verdade e Política, 1967

De um lado, resmungam que esse negócio de “checagem de fatos” é coisa de imprensa burguesa. O argumento costuma vir com uma nota de superioridade intelectual: o sujeito que o pronuncia guarda para si um certo ar de bruxo materialista, como se divisasse nos labirintos da cidade a sombra da ideologia tensionando os fios que movem os dedos dos escribas alienados da “grande mídia”. Está convencido de que os eventos a que se dá o nome de “fatos” não passam de estratagemas a serviço da ideologia, a entidade que move a “mão invisível” de que falou Adam Smith, sem que Adam Smith sequer desconfiasse.

O argumento é presunçoso e preguiçoso, mas cola. Convence o gargarejo de que os fatos são a última ilusão funérea dos últimos positivistas da imprensa: o que vale são os princípios, a verdade histórica, a virada radical que virá com sua fatalidade apoteótica. Ler jornal é rendição. Revolucionário é proclamar que a manipulação das notícias favorece os banqueiros.

De outro lado, vociferam que essa balela de “fatos” é expediente de comunista. Só os idiotas não percebem, pontifica o moralista num figurino de peça de Nelson Rodrigues. O seu discurso vem cheio de bordões enxovalhados que, todavia, não perdem o empertigo: a imprensa está a mando do comunismo internacional; é todo mundo comunista; é todo mundo mentiroso; é todo mundo ladrão; o governo é uma corja de ladravazes, na Câmara dos Deputados não se salva ninguém; até no Supremo Tribunal Federal andam tungando o erário. Há uma infinidade de vídeos nesse diapasão zunindo pelas redes sociais. Os oradores espumam, tentam morder a câmera. Propõem que joguemos fora o Congresso, Brasília, os políticos e, junto com eles, a política. “O lixo ao lixo.”

Os moralistas de Nelson Rodrigues são o perfeito contrário dos bruxos materialistas. Num ponto, porém, uns são iguaizinhos aos outros: abominam os fatos e, mais ainda, abominam falar sobre os fatos. Os rodrigueiros têm a mania de atacar os fatos relatados pela Comissão Nacional da Verdade. Gritam que é campanha de comunista para desmoralizar as Forças Armadas no momento em que o Brasil mais precisa delas. Os materialistas em transe preferem sentenciar que todas, todas, todas as evidências factuais que atestam corrupção nas fileiras ditas “populares” são uma campanha fascista para desmoralizar as lideranças ditas “progressistas” no momento em que o Brasil mais precisa delas.

Não pense o improvável leitor (que teve a extrema generosidade de me seguir até aqui, muito obrigado) que estou falando de tipos folclóricos e irrelevantes. Olhe os nomes que lideram as pesquisas eleitorais (pesquisas que, por sinal, são um dos poucos fatos que nos restam). Confira os discursos que dão suporte a um e a outro e leia com atenção os mais doutrinários e inflamados. Não, não estamos falando de pouca gente, não são meros tipos folclóricos. Estamos falando de milhões e milhões de eleitores. Parece que as maiorias se amontoam nos extremos.

Um lado e outro e romperam definitivamente com o registro dos fatos. Apresentam cenários retirados de um país que não existe, um faz de conta do absurdo. Mesmo assim, ou exatamente por isso, arrebatam multidões. Nenhum dos polos fala do País real, dos problemas reais, das vicissitudes, das aflições e dos dramas reais. Estamos em meio a uma farsa continental e alucinatória, distribuída em pilhas trepidantes num extremo e no outro, ou mesmo em cima de você (com licença). A barulheira trágica não tem direção nem retorno.

Aí, quando não há mais nada a fazer, a gente olha para o centro. Que desolação. O centro é um jantar num restaurante de classe média alta em que um orador careca foi convidado a dar palestra. Está escuro lá fora. Quase ninguém foi. Não tinha gasolina, sabe como é. Os garçons olham o vazio. Os garçons moram longe. Fora os garçons, quase todos os pouquíssimos que vieram já foram embora. Espere aí. Ficaram uns três ou quatro. O orador conversa com eles e ouve elogios em que não acredita.

Mudemos de cenário. Eis o centro em outro ambiente: um bate-boca em bons modos, em que um triste senhor pergunta se os circunstantes querem outro candidato, pois, ao que consta, ele mesmo sói ser candidato a candidato. Saia-justa, eles dizem, mas não há mulher por lá. O centro é uma cidade fantasma. É uma cracolândia sem craqueiros. O centro é um palanque desmontado num depósito que ninguém sabe onde fica.

E no centro, é lógico, também não se fala em fatos. Aqui, porém, a gramática é outra. Ao centro, onde tudo parece o oposto do que é, sem ser, o jeito preferencial de sabotar os fatos é recorrer insistentemente aos fatos, com um detalhe disruptivo que muda tudo: a palavra “fatos” não se refere aos atos humanos ou às pessoas de carne e osso vivendo sua vida real e se relacionando; o termo “fatos” designa métricas econômicas indecifráveis, indicadores de gestão cujas fórmulas ninguém consegue explicar, planilhas contábeis dispostas em colunas infindáveis em cujos desvãos se escondem emulações longínquas de famigerados crimes de responsabilidade.

Ao centro, os fatos são brumas espectrais, só acessíveis à econometria mais inextrincável, ao juridiquês mais empolado e aos modelos matemáticos em que apenas os números são reais (e, claro, irracionais). Ao centro, os fatos não estão ao alcance de olhos humanos, dos ouvidos humanos, do tato humano. Ao centro, os fatos não vão nunca, só mandam mensagens criptografadas. Vistos do centro, os fatos são como o garçom: moram longe.

Vai daí que, de uma ponta a outra, passando pelo desertificado centro, estamos soterrados de opiniões sem base factual. Os fatos foram para o exílio. Em seu lugar, deixaram a farsa. No Brasil, veja você, não se fala coisa com coisa.

*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP