O Estado de S. Paulo

Fernando Henrique Cardoso: Sejamos radicais

Devemo-nos unir para evitar que o povo tenha de escolher entre o ruim e o menos pior

O Brasil exige: sejamos radicais. Mas dentro da lei: que a Justiça puna os corruptos, sem que o linchamento midiático destrua reputações antes das provas serem avaliadas. Não sejamos indiferentes ao grito de “ordem!”. Ele não vem só da “direita” política, nem é coisa da classe média assustada: vem do povo e de todo mundo. Queremos punição dos corruptos e ordem para todos, entretanto, dentro da lei e da democracia.

O País foi longe demais ao não coibir o que está fora da lei, o contrabando, o narcotráfico, a violência urbana e rural, a corrupção público-privada. Devemos refrear isso mantendo a democracia e as liberdades antes que algum demagogo, fardado ou disfarçado de civil, venha a fazê-lo com ímpetos autoritários.

Só com soldados armados se enfrentam os bandidos, eles também com fuzis na mão. Se não há mais espaço para a pregação e a condescendência, tampouco queremos, entretanto, que a arbitrariedade policial prevaleça.

O Brasil tem pressa: chega de governos incompetentes. Não se trata só da falta de dinheiro, mas da má gestão aliada às vantagens corporativas e partidárias. Não há crescimento da economia nem empregabilidade sem investimento público e privado. Precisamos reintegrar nossa economia aos fluxos de criatividade e às cadeias produtivas mundiais. Assim como precisamos melhorar a infraestrutura para escoar a produção.

Não haverá adesão aos valores básicos que mantêm a coesão social sem crescimento contínuo da economia e sem respeito ao meio ambiente. Crescer de modo sustentável a 4% ao ano por 20 anos assegura melhor distribuição de renda e oferece mais emprego do que picos ocasionais de 6% ou 7% de crescimento em um ou dois anos, seguidos de mergulhos de 1 a 3 pontos negativos a cada três anos.

Nada disso se conseguirá sem que a educação seja o centro das atenções governamentais e populares.

Sem reformas, a da Previdência acima de todas, pelos danos que a legislação previdenciária atual causa ao Orçamento público, e sem uma “reforma moral” nas nossas práticas políticas, eleitorais e partidárias, nosso destino nacional estará comprometido por décadas.

Um Congresso com 26 partidos torna o País ingovernável. Um governo que tem quase 30 ministérios, cujos titulares são desconhecidos até pelos cidadãos mais bem informados, é incapaz de se haver com os desafios do futuro. Há que reconhecer que o sistema político que montamos em 1988 se exauriu.

A Constituição preserva, e isso deve ser mantido, tanto a intangibilidade e os limites sociais da propriedade privada como os direitos humanos fundamentais. Mas ela não abriga atos de violência nem de desordem continuada.

Entende-se a motivação dos sem-teto, como também a dos sem-terra. Mas fora da lei o que era propósito de reconstrução se transforma em instrumento de deterioração. Há que dar um basta a tanta desordem. Façamo-lo com a Constituição nas mãos, antes que outros o façam, em nome da ordem, mas sem lei.

É este o radicalismo de que precisamos: decência na vida pública, crescimento da economia, salários mais condizentes com o custo de vida, seriedade no trato das finanças públicas, reformas em nome da igualdade social e regional e um serviço público que atenda às demandas básicas das pessoas: moradia, transporte, saúde, educação e segurança. Que os governos se unam à iniciativa privada se for necessário e lhe cedam o passo quando for mais racional para assegurar o atendimento às necessidades do povo.

Um programa simples como esse requer autoridade moral dos que vierem a nos comandar. Só com ela haverá força para dar rumo seguro ao País. Só assim levaremos adiante as reformas, incluída a da Constituição, sem que os poderosos se tornem suspeitos de estar a serviço das oligarquias políticas, econômicas e corporativas.

É para isso que precisamos formar um Polo Popular e Progressista. Por popular entenda-se que respeite a dinâmica dos mercados, pois vivemos num sistema capitalista, mas que saiba que ela não é suficiente para atender às necessidades de toda a população. Por progressista entenda-se que esse bloco seja consciente das transformações produtivas e políticas do mundo, tenha coragem de viver nele tal como ele é e preserve a crença no Brasil como nação.

Ou participamos ativamente das mudanças do mundo contemporâneo ou seremos irrelevantes. Pior, perderemos o que de melhor podemos tirar dele: sua capacidade de renovar-se tecnológica e politicamente.

Na campanha eleitoral que se aproxima os temas centrais estão se delineando: o desprezo aos partidos e à classe política, que advém da descoberta de que as bases do poder apodreceram pela corrupção, só poderá ser ultrapassado se o povo perceber que há alternativas à desmoralização de tudo e de todos.

O grito dos desesperados por emprego e renda não se resolve só com assistencialismo. Este é necessário para a sobrevivência das pessoas. Mas a dignidade delas requer medidas que restabeleçam a confiança na economia, no investimento e no emprego, dando-lhes um horizonte de futuro.

O medo da violência reinante e a perda de oportunidades econômicas tornam o eleitorado suscetível às pregações de “mais ordem”. Empunhemos essa consigna, mas sem substituir a lei pelo arbítrio. Ordem na lei e com bases morais sólidas.

Não é pedir demais que alguns candidatos em disputa no próximo dia 3 de outubro subscrevam essas diretrizes. Qual deles passará ao segundo turno depende do empenho de seus respectivos partidários e da decisão do eleitorado. Unamo-nos desde já, entretanto, em torno desses princípios com a firme disposição de chegar ao segundo turno. Se dois de nossos candidatos lá chegarem, tanto melhor: será o povo que dirá qual deles há de conduzir-nos nos próximos anos. Não devemos arriscar, porém. Se for o caso, devemo-nos unir ainda no primeiro turno para evitar que o povo tenha de escolher entre o ruim e o menos pior.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e foi presidente da República.


Murillo de Aragão: Uma questão de narrativa

Os eleitores querem candidatos que demonstrem que as mudanças começam já

Uma das palavras mais irritantes no momento é “narrativa”. Tudo é uma questão de narrativa. Falta aos candidatos uma narrativa... Ou: o candidato X tem uma narrativa... Enfim, por mais lugar-comum que seja falar em narrativas hoje, o fato é que elas são importantes no contexto eleitoral.

A eleição é uma operação a futuro e a descoberto. Não tem “hedge”. A opção feita é para ganhar ou perder. Não há alternativa. Assim, para alguém fazer uma opção tão arriscada deve ter partido de alguns pressupostos. Basicamente, existem três fatores que motivam um eleitor a escolher um candidato.

O primeiro é meramente fisiológico. Vota-se em troca de algo palpável e visível que possa ser, idealmente, executado de imediato. O voto fisiológico pode ser rasteiro, em troca de uma dentadura ou de tijolos, ou, ainda, embalado em interesses corporativistas. Vota-se na expectativa de que o eleito possa assegurar ou obter benefícios – imediatos ou futuros – para o eleitor.

A segunda opção é ideológica. Vota-se por afinidade de princípios ideológicos. Esse é um eleitor escasso no Brasil. Até pelo fato de os partidos políticos, que são os veículos das ideologias, serem instituições desmoralizadas. Poucos partidos são verdadeiramente ideológicos. E quase todos são de esquerda.

A terceira opção reside no encantamento que o candidato possa causar no eleitor com sua reflexão sobre a conjuntura. O eleitor, a partir de uma visão desideologizada da realidade, opta pelo candidato que melhor representar seus anseios e expectativas. A Alemanha não era nazista, mas escolheu Hitler. O Brasil não era petista, mas escolheu Lula. Não foram opções ideológicas.

Salvo o eleitor fisiológico, cuja motivação independe de uma narrativa que justifique sua opção, os demais eleitores são suscetíveis à aceitação de uma narrativa. Necessitam “comprar” uma história que os leve a firmar aquela opção futura. Seja por uma crença ideológica, seja por convencimento.

Durante décadas as promessas de campanha eram ingredientes relevantes nas narrativas dos candidatos. Porém o simples ato de prometer perdeu vigor e credibilidade. Nos dias de hoje, pela desmoralização da política e pela desconfiança nas instituições, para se comprar um discurso há de se compor uma alegoria que tenha começo, meio e fim. Enfim, uma narrativa completa.

A narrativa, objetivamente, tem alguns elementos: um fato, um tempo, um lugar, personagens, causa, modo e consequência. Um candidato (personagem) narra fatos (problemas) que ocorrem em determinado tempo, que tem causas e modos e que geram consequências. A ele cabe apresentar as soluções que atendem à expectativa do desenrolar dos problemas.

A boa narrativa de um candidato não está apenas no seu discurso. Envolve também sua postura, a embalagem e a difusão da sua mensagem, além da coerência entre o mensageiro e a mensagem. Mas, acima de tudo, a compatibilidade da mensagem com a conjuntura.

A conjuntura do Brasil tem alguns temas preponderantes, a saber: corrupção, segurança pública e desemprego. Tecnicamente, os candidatos que necessitam de uma narrativa para encantar o eleitor deveriam tomar posição em torno desses três temas e construir a sua mensagem.

Mas não é tão fácil assim. Pois existem aspectos que transcendem a mera intenção de abordar determinado tema. Muitas vezes o tema é bom e o mensageiro também, mas o interesse é baixo. Foi o caso de Cristovam Buarque em 2006, com sua bandeira da educação na campanha eleitoral. Não havia interesse relevante no tema a ponto de fazer o eleitor querer votar nele.

Hoje, em tempos de final de pré-campanha, há apenas duas narrativas predominantes. Uma é conduzida por Jair Bolsonaro (PSL), que mistura renovação, lei, ordem e segurança pública; e a outra conduzida pelo ex-presidente Lula (PT), que é a do perseguido por ter sido o “pai dos pobres”. Os demais pré-candidatos buscam um ganho para as suas campanhas eleitorais, o que ainda não conseguiram.

Existe claramente uma vocação pela renovação. Mas a renovação por si só não se sustenta. Caracteriza-se mais como uma antinarrativa. Por isso o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) e Lula sofrem rejeição muito elevada, por serem representantes do mundo tradicional da política que está sendo desconstruída pelas investigações da Operação Lava Jato.

Os demais candidatos possuem franjas de votos, porém não encaixam uma narrativa que seja realmente popular. O centro reformista tampouco tem, até agora, narrativa que atenda às expectativas de um eleitorado desiludido com a política. Basta ver que, na pesquisa espontânea, boa parte dos eleitores entrevistados não têm candidatos e/ou dizem que votarão em branco.

A narrativa da estabilidade econômica, que poderia ser bem utilizada pelo ex-ministro Henrique Meirelles (MDB), foi soterrada pela artilharia midiática contra o presidente Michel Temer (MDB), atacado não apenas por eventuais pecados, mas por ter sido o coveiro do sonho esquerdista de governo. Para piorar, a sensação térmica da economia não é boa a ponto de criar uma narrativa de sucesso a favor de Meirelles.

O PSDB de Alckmin até agora não construiu uma narrativa para ele ser um candidato competitivo. O eleitorado, enfurecido com a política e diariamente envenenado por uma mídia espetaculosa, quer candidaturas que tragam esperança de tempos melhores. Os eleitores não querem apenas promessas de tempos melhores. Querem candidatos que, em sua postura e sua narrativa, demonstrem que as mudanças começam já e agora. É um processo muito louco e que mexe com o psicossocial da coletividade. Quem dominar a chave desse processo deverá ganhar as eleições.

*Murillo de Aragão é advogado e consultor, mestre em ciência política e doutor em sociologia (Universidade de Brasília), é professor da Columbia University


Fernando Gabeira: Uma janela para o mundo

Só existe um perdedor com o silêncio dos candidatos sobre política externa: a sociedade

Escrevo de São Petersburgo. Afinal, qual é o papel do Brasil no mundo? É o de tipo de assunto do qual muitos correm. Já temos problemas demais no âmbito doméstico, por que não deixar isso com os especialistas, concentrando na violência urbana, na corrupção ou mesmo nas peripécias da campanha eleitoral?

Para quem está fora, mesmo por um curto período, o tema não é tão marginal assim. Impossível ignorar o drama dos refugiados. Só se fala nisso, crise nos Estados Unidos por causa da decisão de Trump, arestas entre Franca e Itália, crianças separadas da família, ciganos na mira da expulsão na Itália. É o tipo de problema sem solução em curto prazo, com viés de agravamento.

Se consideramos nossa fronteira setentrional, lá também essa questão se vem complicando ao longo dos três últimos três anos. Apesar de a Colômbia ser ainda o destino preferido, por causa do idioma comum, os refugiados da Venezuela entram em massa por Roraima. Essa presença já produziu alguns atritos entre o governo local e Brasília.
Forçou a elaboração de um plano e jogou as Forças Armadas em parte de sua execução.

Nos Estados Unidos, mais precisamente na fronteira mexicana, vivemos um problema inverso, no momento em que Trump decide adotar normas mais rígidas para conter o processo migratório. Na verdade, talvez seja essa a contradição mais importante no mundo contemporâneo: a fluidez dos capitais e mercadorias ante as barreiras crescentes ao movimento da força de trabalho.

Todo país deve ter sua política sobre o tema. Mas é preciso admitir que soluções mais amplas dependem de muitos atores internacionais. Minha hipótese para uma política de longo prazo é de que países como Brasil e Canadá, por suas dimensões, poderiam representar um alívio para o tenso clima associado ao tema dos refugiados.

São países com condições diferentes. O Brasil vive uma crise econômica, tem quase 14 milhões de desempregados, na verdade, mal consegue cuidar dos seus, quanto mais receber gente de fora. No entanto, embora os países do norte já tenham esgotado sua capacidade de administrar o problema, não esgotaram seus recursos financeiros. Uma grande troca, escalonada no tempo, poderia liberar volumosos recursos para o Brasil receber refugiados.

Imagino que isso possa causar reações, até essa hipótese ser descartada por absurda, descabida, fora da realidade. Mas, no caso presente dos refugiados venezuelanos, o Brasil já está sobrecarregado e deveria pedir ajuda internacional. A partir dessa experiência, talvez fosse possível formular um plano estratégico de maior alcance, que atraísse grande volume de capitais e um novo impulso para o desenvolvimento.

Outro ponto que me levou a pensar no papel do Brasil foi ver imagens da população haitiana celebrando a vitória da seleção brasileira na Copa. Nos vídeos, a pequena multidão desfilava as cores verde e amarela, hasteou uma bandeira do Brasil e cantou o hino do Haiti.

Naturalmente, essa proximidade foi estimulada pela presença brasileira nas tropas de paz da ONU. Mas deixa bem claro que o futebol, não só nessa região do mundo, é um componente válido do chamado soft power que o Brasil, potencialmente, pode projetar no mundo.

Encontrei em Moscou um maestro que vivia na Sibéria, ouviu Manhã de Carnaval e, depois, algumas composições de Tom Jobim. Tornou-se um grande admirador da música brasileira e já gravou numerosos trabalhos inspirados nela para o público russo. Apesar da confusão e mesmo da desgraça que às vezes nos atinge no Brasil, não deixa de ser animador ser recebido com um sorriso de simpatia quando revelamos nosso país de origem.

Mesmo que minhas ideias sejam descartadas, a tese básica é de que precisamos voltar a discutir nosso papel no mundo: achar um pequeno espaço da campanha eleitoral para tratar do tema. Numa campanha americana é bem maior, porque o tamanho corresponde aos interesses e à presença deles no mundo. Numa dimensão mais modesta, seria interessante que os candidatos avaliassem os principais problemas internacionais, alinhassem nossas vantagens e desvantagens e formulassem um roteiro para o papel do Brasil no mundo.

Não há condições para tratar o País na campanha como uma ilha de prosperidade ou mesmo de decadência. Estamos ligados ao mundo e como a campanha começa logo depois da Copa, vale a pena introduzir essa dimensão no debate.

Na verdade, ela existe, sim, de forma fragmentária. Bolsonaro apoiou a saída dos Estados Unidos da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Ficaremos com a visão de Trump ou com a do conjunto de países que insistem no diálogo e na conciliação, mas dentro da ONU?

Ciro Gomes afirmou no programa Roda Viva que a oposição na Venezuela é fascista. Será isso mesmo? Como a vemos? Como vemos o governo Maduro, tão distante da democracia? Esses temas não definem quem ganha ou perde a eleição. Mas alguns votinhos, como o meu, pedem definições bem claras.

Pelo que vejo daqui, da Rússia, os debates entre candidatos serão mais raros no primeiro turno. A saída talvez seja consultar os programas, se é que já estão completos. Assim, ao lado de saúde, educação, segurança, talvez possamos incluir política externa.

A ausência de clareza sobre o tema não indica que os candidatos a deixarão de lado. Ao contrário, tendem a fazê-la de forma autocrática. Como acho que foi realizada, ao longo do tempo, a política do PT, focada nos países vizinhos com tendência bolivariana, gastando milhões com a ideia de projetar seu líder na América Latina e na África. E levando algum das empreiteiras.

São tópicos que fazem sentido na política da esquerda, no entanto, não foram discutidos amplamente. Os investimentos eram semiclandestinos e só vieram à tona com a eclosão da Lava Jato. Só há um perdedor com o silêncio sobre o tema: a sociedade.


Eliane Cantanhêde: Volta ao pré-Lava Jato

STF ‘está voltando a ser STF’? Ou a era da impunidade é que está voltando?

Estava demorando, mas o ministro Marco Aurélio Mello conseguiu alcançar os três colegas da Segunda Turma, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, que tomaram a dianteira no confronto à Lava Jato e à opinião pública. Ontem, Marco Aurélio deu clara contribuição à sensação de que há uma corrida pela impunidade: por liminar, mandou soltar o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha no caso de desvios na Arena das Dunas (RN).

Por sorte – ou por azar, dependendo da ótica –, Cunha coleciona processos e teve a prisão decretada por outras acusações, inclusive uma condenação em segunda instância por desvios da Petrobrás na compra de um campo petrolífero no Benin, na África. Assim, o todo ex-poderoso presidente da Câmara continua atrás das grades.

Marco Aurélio, porém, conseguiu dar seu recado: ele é da Primeira Turma do STF, mas com coração e mente na Segunda, ao lado de Gilmar, Lewandowski e Toffoli. Afora o fato de que Gilmar vivia às turras com Lewandowski e Marco Aurélio no julgamento do mensalão do PT, os quatro agora parecem firmemente determinados a dar um chega prá lá na Lava Jato, numa posição de confronto ostensivo.

“O Supremo está voltando a ser Supremo”, comemorou Gilmar, após a Segunda Turma despejar decisões polêmicas na terça-feira: soltou José Dirceu até o STJ anunciar se reduz ou não a pena de mais de 30 anos; anulou provas colhidas contra o ex-ministro Paulo Bernardo (PT) no apartamento funcional onde vive com sua mulher, a senadora Gleisi Hoffmann; suspendeu a ação contra o deputado estadual Fernando Capez (PSDB), envolvido na “Máfia da Merenda” em São Paulo.

Ilhado e perplexo, o relator da Lava Jato, Edson Fachin, contestou as decisões machadianamente, mas perdeu em todas. Transformar uma reclamação num habeas corpus que nem sequer fora apresentado pela defesa de Dirceu? Pela “plausibilidade” de redução da pena?

No caso de Paulo Bernardo, acusado de desvios no crédito consignado de funcionários públicos, o trio Toffoli, Gilmar e Lewandowski alegou que ele mora com Gleisi, que tem foro privilegiado no Supremo, e a busca e apreensão não poderia ter sido autorizada por um juiz de primeira instância. Dúvida de Fachin: o foro vale para uma pessoa, a senadora, ou para um imóvel?

A grande suspeita é de que todos esses movimentos têm um objetivo audacioso e comum: livrar Lula da prisão e, ato contínuo, dar um jeito para permitir sua candidatura à Presidência, apesar da condenação em segunda instância e da prisão. Aliás, apesar de tudo. Até por isso, Fachin decidiu driblar a Segunda Turma e enviar o pedido de Lula para o plenário, onde o equilíbrio é outro, pelo menos por ora.

Em setembro, Cármen Lúcia vai para a Segunda Turma, salvar Fachin do isolamento, e Toffoli assume a presidência – e a pauta. Podem escrever: ele vai pôr em votação a revisão da prisão em segunda instância, como o quarteto cobra a todo instante.

Ao dizer que “o Supremo está voltando a ser Supremo”, Gilmar deixa no ar um temor: o de que não só o STF, mas o próprio País esteja voltando à velha normalidade pré-Lava Jato, em que tudo era uma festa para corruptos e Cunha, Cabral, Geddel, Joesley... jamais seriam presos.

Naqueles tempos em que presidentes definiam pessoalmente regras e porcentagens para o assalto à Petrobrás, a operacionalização da corrupção era no Ministério da Fazenda, sindicalistas eram destacados para depenar os fundos de pensão e vai por aí afora. A Lava Jato tem defeitos e excessos, mas nada, nada, nada pode ser pior do que estava acontecendo no Brasil.

PS: Hoje é o último dia de votações no STF antes do recesso. Olho vivo! Tudo pode acontecer.


O Estado de S. Paulo: Rede participa de ato por ‘centro democrático’

Movimento suprapartidário busca nome do centro como alternativa à polarização direita-esquerda; Marina e Alckmin são vistos como opções

Por Pedro Venceslau e Marcelo Osakabe, de O Estado de S. Paulo.

Representantes da Rede, partido da ex-ministra e presidenciável Marina Silva, participaram ontem em São Paulo pela primeira vez de um ato político do movimento polo democrático e reformista, que tenta unir os partidos do centro em torno de uma candidatura única já no primeiro turno da eleição presidencial.

Lançado no início do mês, o movimento suprapartidário tem entre seus principais líderes o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O grupo lançou um manifesto e tenta viabilizar uma candidatura comprometida com reformas estruturais e que se apresente como alternativa a uma eventual polarização entre Jair Bolsonaro (PSL-RJ) e um candidato de esquerda.

Além de Geraldo Alckmin, pré-candidato do PSDB ao Planalto, Marina é vista como opção do movimento. O coordenador do programa de governo da Rede, João Paulo Capobianco, disse que a candidatura de Marina é um “processo é irreversível”. “Não viemos aqui fazer arranjos eleitorais.”

Ao lado de líderes do PPS, PSD, PSDB, PV, Rede e Podemos, Fernando Henrique disse que é preciso “fulanizar” o debate, mas evitou defender o nome de Alckmin. “Em política a ideia só vale quando se fulaniza. Na academia vários podem ser donos de uma ideia, mas na política a ideia precisa ser transubstanciada em líderes”, afirmou.

Na saída do evento, FHC foi questionado sobre qual seria o nome mais competitivo para representar o grupo na eleição. “É preciso ver não só a pessoa, mas as condições políticas que essa pessoa tem. Não adianta querer ou não, tem que acontecer. Eu tenho um candidato. Todo mundo sabe”, respondeu.

Ainda segundo FHC, as pesquisas não serão determinantes, mas apenas “um indicativo” na busca por um palanque único. Na pesquisa Ibope/CNI divulgada ontem, Alckmin apareceu com 6% no cenário sem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Marina com 13% e Bolsonaro, 17%.

“Todos têm que admitir que podem não ter a capacidade de unir mas precisam crer que são capazes”, disse ele, sobre a possibilidade de alguém abrir mão. Na mesma linha, o presidente do PPS, Roberto Freire, disse que a “inércia tem que ser quebrada”. “Existem candidatos do PSDB, Rede e Podemos, mas nenhum deles pode ser empecilho para a unidade”, afirmou.

Representando o PV, o ex-deputado Eduardo Jorge, que disputou o Palácio do Planalto em 2014, fez o discurso mais enfático. “As pesquisas não mudam desde novembro e tenho convicção de que não vão mudar. A situação é dramática.”

“É preciso ver não só a pessoa, mas as condições políticas que essa pessoa tem. Não adianta querer ou não, tem que acontecer.” Fernando Henrique Cardoso EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA


José Serra: As leis da inércia

Neste ano de escolhas eleitorais, é hora de sair da paralisia e de curar o doente

“É fácil fazer leis,
mas difícil governar”
Tolstoi, em Guerra e Paz

Uma curiosa contradição marca nossas dificuldades fiscais: à medida que crescem o déficit e a dívida pública, aumenta o estoque de normas que, idealmente, deveriam facilitar o controle tanto do déficit quanto da dívida. Somos pródigos na edição de regras de controle fiscal. Mas elas são inconsistentes.

Aproveitando o clima de Copa do Mundo, lembro que no ranking da OCDE nossas normais fiscais foram consideradas das mais incoerentes. Um certame no qual seria preferível termos sido eliminados.

Na Constituição, temos: 1) a regra de ouro, que interdita o financiamento de gastos correntes (principalmente salários, custeio e juros) por meio de endividamento; 2) o teto de gastos, que impede o aumento dos gastos públicos federais acima da inflação; e, finalmente, 3) o artigo 195, § 5.º, que veda a criação ou expansão de benefícios da seguridade social sem que se apontem as fontes de custeio.

Em termos de leis complementares, muitas delas derivadas de comandos gerais da Constituição, temos os principais dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): 1) impedimento à criação de despesas continuadas sem previsão de receita ou corte de despesa; 2) a vedação à constituição de renúncia de receita sem compensação; e 3) a limitação dos gastos de pessoal com porcentual da receita. Temos ainda as regras constantes de leis ordinárias ou resoluções do Senado: 1) limite de déficit primário (receitas menos despesas sem considerar a rolagem da dívida e os juros); 2) limites das dívidas de Estados e municípios como proporção da receita; e, finalmente, 3) limites anuais de contratação de operações de crédito interno e externo, bem como eventuais garantias da União dadas nessas operações.

A extensa lista criaria um escudo de responsabilidade fiscal à prova de bala de canhão. Mas não é isso que se verifica. Por que esses dispositivos terminam sendo inócuos? Por que continuam a aumentar os déficits e as dívidas?

A primeira causa, e talvez a mais importante, é a existência de regras – implícitas ou explícitas – de expansão de gastos constantes da própria Constituição, uma contradição evidente. Entre as explícitas, as mais importantes são as vinculações de gastos à receita, como no caso das despesas com educação e saúde nos Estados e municípios.

Mas há também as vinculações implícitas. Boa parte da despesa corrente corresponde ao pagamento de salários. O custo da expansão de serviços públicos não se limita ao período orçamentário em que ela tenha sido autorizada, mas se prolonga no tempo pelo menos até o fim do período de aposentadoria dos servidores contratados. É interessante observar que os freios legais, na melhor das hipóteses, limitariam essa expansão apenas nos três exercícios subsequentes. Ainda assim, as limitações tomam como custo os valores de contratação. As progressões funcionais e salariais, entretanto, não respeitam tais limites, pois têm dinâmica própria. A regra de controle trienal presente na LRF, portanto, tornou-se ineficaz.

A segunda razão é que as regras fiscais são dribladas por interpretações “criativas” ou são regulamentadas de maneira incompatível com sua finalidade essencial.

Nada é mais ilustrativo do quesito criatividade do que a exclusão do custo da folha de pagamento dos gastos com aposentados e das chamadas “despesas de exercícios anteriores”, para fins de observação do limite de despesas de pessoal determinado na LRF. É estranho que o custo previdenciário seja desconsiderado, quando se sabe que as despesas com aposentados chegam, em alguns casos, a ser superiores às despesas com ativos. E isso só tende a se agravar. Igualmente, os pagamentos de “atrasados” são retirados do cálculo. Não por acaso, vários Estados incapazes de pagar em dia continuam enquadrados nos limites da LRF.

Quanto à regulamentação incompatível com a finalidade da regra, o exemplo cardinal são as regras infraconstitucionais que disciplinam a regra de ouro. O objetivo essencial dessa norma é impedir que gastos correntes sejam financiados por dívida. Novas operações de crédito deveriam limitar-se ao volume do investimento público. Mas no Brasil, tal como regulamentada, a regra de ouro abre espaço para que a despesa corrente seja financiada por endividamento novo e, pior, abre espaço para distorções adicionais. E, incrível, quanto maior a inflação, mais fácil de cumprir a regra. A correção monetária da dívida permite expansão dos gastos correntes em cenários inflacionários. A regulamentação castiga gestores econômicos que, como os atuais, reduzam a inflação!

Além disso, desvalorizações cambiais ajudam no cumprimento da regra. Com as reservas em torno de US$ 400 bilhões, cada centavo de desvalorização do real transfere para o governo uma “receita” de R$ 4 bilhões. Uma desvalorização de R$ 0,50 equivale a uma receita para o Tesouro de R$ 200 bilhões. Dá e sobra para fazer tábula rasa da regra de ouro.

Assim, nosso copioso arcabouço de normais fiscais, dada a sua incoerência, acaba produzindo um efeito de acomodação, contrário ao pretendido. Um exemplo é o da mais recente norma introduzida: o teto de gastos. Para aprová-lo foi feito um esforço político sem precedentes. Durante seis meses foi o grande tema de negociação no Congresso. Enquanto isso, a reforma da Previdência, que poderia de fato contribuir para o reequilíbrio fiscal, atacando diretamente o crescimento da despesa, ficava na fila. Depois, por uma circunstância infeliz, a reforma acabou se tornando inviável neste final de mandato.

Neste ano de escolhas eleitorais, é hora de sair da paralisia. Temos de atacar a rigidez dos gastos, que crescem inercialmente. É preciso atacar diretamente as despesas que não caibam no Orçamento. Não percamos mais tempo com termômetros. É hora de curar o doente.

*José Serra é Senador (PSDB-SP)


William Waack: O barro é esse

Judiciário e Ministério Público não são recicláveis, nem existem para substituir a política

A situação do STF é irremediável. Em parte, por culpa própria: não faz o que deve – como decidir, finalmente, sobre o pagamento de auxílio-moradia para juízes e procuradores, que são hoje “a” corporação mandando no Brasil. Ou julgar, finalmente, se é mandatório encarcerar depois de condenação em segunda instância. Em parte, a situação é irremediável por ser o STF um espelho fiel do emaranhado impasse da crise política, cuja maior expressão de gravidade é a impossibilidade de se vislumbrar uma saída.

O STF virou o grande templo da insegurança jurídica por ter se transformado há bastante tempo numa esfera de embate político, que permite até vislumbrar “facções” em torno de um eixo de contencioso. O eixo é a ordem jurídica dentro da qual se dá a Lava Jato, entendida aqui como um fenômeno de enorme abrangência e apenas em segundo plano como uma questão de respeito ou não a normas legais (drama traduzido no bordão que se tornou tão popular: “juiz bom prende, juiz mau solta”).

Como instituição, conseguiu manobrar-se na pior posição possível: a de que a Justiça tarda e falha, que poderosos ali encontram confortável acolhida, e que corruptos são beneficiados por liminares e o volta-atrás em entendimentos (como a prisão após a segunda instância) que pareciam já consagrados. Não estou dizendo que os fatos do ponto de vista técnico necessariamente suportam essa percepção, mas ela se consagrou.

Estou sendo condescendente e retirando na avaliação da atuação do STF as lealdades políticas dos ministros, as preferências pessoais, as vaidades, a falta de preparo técnico e a ausência de escrúpulos por parte de alguns. Se o prezado leitor acha que é isto que explica as decisões ou não decisões do STF, adianto que mesmo crápulas contumazes são parte voluntária ou involuntariamente de um jogo político, no qual vou me concentrar.

A narrativa que impera hoje na sociedade brasileira é a de que a corrupção é o problema central, e que tudo o mais se resolve a partir do combate aos corruptos. Cujo completo domínio da esfera do sistema político-partidário – ao mesmo tempo resultado e causa da atuação dos políticos – justifica a sua destruição. E encarregada dessa destruição, com feroz apoio popular, é “a” corporação.

Incapaz de definir o jogo, ou de deslocá-lo para um outro eixo de debate, a instância política foi substituída, para efeito de grandes decisões, pela política no STF (que cuida hoje até de tabela de frete). Composto por donos e donas de cargo vitalício que, mesmo se fossem 11 santos iluminados, por definição jamais conseguiriam dar as respostas que sociedades organizadas em sistemas democráticos precisam que venham do sistema que, no Brasil, imensa maioria combinou odiar: o sistema político.

Ocorre que “o barro é esse”, expressão atribuída a Teotônio Vilela, nome de Alagoas que virou referência no processo político de redemocratização na saída do regime militar – época na qual o Brasil, num espelho distante dos tempos atuais, também queria se rearrumar. O material para fazer/refazer/renascer o País é composto pelos políticos e seus eleitores que estão aí, ou que querem entrar na política, pelo Congresso que existe, e que pode ser renovado/reciclado, e pelos partidos e movimentos políticos que podem ser fundados ou refeitos.

Essa é a diferença fundamental entre o jogo da política e a política na qual está envolvida “a” corporação que manda hoje no Brasil. Apesar do descrédito com que se encara a política no Brasil, ela é por definição reciclável. O Judiciário e o Ministério Público não são, nem existem para substituir a política, que não se verifica em termos ideais em parte alguma do planeta.

Podemos não gostar, mas o barro é esse.


Vera Magalhães: 'Tinindo nos cascos'

A visível hostilidade com que Lewandowski e companhia trataram Fachin mostra que a trinca da Segundona estava disposta a estender o puxadinho para Dirceu ao ex-presidente Lula

No dia 28 de agosto de 2007, flagrei um desabafo telefônico do ministro Ricardo Lewandowski, do STF, com seu irmão, Marcelo. Jantando num restaurante em Brasília, ele dizia ao interlocutor, pelo celular, que o Supremo havia recebido a denúncia do mensalão, naquele dia, porque votara “com a faca no pescoço” graças à pressão da imprensa. Antes de jornais revelarem o teor de conversas dos ministros combinando votos pelo sistema interno de mensagens da corte, a tendência, dizia Lewandowski, era “amaciar para o Dirceu”. Ele mesmo, disse ao irmão, estava “tinindo nos cascos” para não abrir a ação penal contra o ex-ministro petista.

Passados 11 anos, e duas condenações de Dirceu depois, o que se viu foi um Lewandowski de novo “tinindo nos cascos” na Segunda Turma da Corte, acompanhado de Dias Toffoli e de Gilmar Mendes – que, à época do mensalão, não formava com a dupla na maioria dos votos.

O que o trio fez não tem nada a ver com garantismo constitucional. Foi uma baciada de puxadinhos do qual o exótico habeas corpus de ofício – ou seja, sem pedido da defesa – para Dirceu à revelia de um pedido de vista foi a cereja do bolo.

A visível hostilidade com que Lewandowski e companhia trataram Fachin, que na véspera remetera para apreciação do Ministério Público Federal, e de lá ao plenário, recurso de Lula, mostra que a trinca da Segundona estava disposta a estender o puxadinho ao ex-presidente. Isso a despeito da fragilidade jurídica de pedir a soltura do petista depois de o provimento do recurso extraordinário ter sido negado pelo TRF-4.

De que garantismo se pode falar diante de uma clara tentativa de driblar a vontade do plenário, manifestada por 6 a 5 quando da análise do HC de Lula em abril, e a jurisprudência da Corte a favor da execução provisória da pena a partir da condenação em segunda instância, fixada desde 2016 e reiterada sucessivas vezes?

Também se trata de manobra a decisão de Fachin, isolado na Turma, mandar ao plenário o caso de Lula – o que Lewandowski chamou de “usurpação de poderes” do colegiado.

O que o Supremo tem de fazer urgentemente, sob pena de continuar a encenar esse espetáculo triste de desmoralização diária, é unificar os entendimentos e os procedimentos. O saldão de recesso da Segundona mostra que é urgente que os ministros deem um passo atrás no ativismo, de todos os lados.

DISCURSO X PRÁTICA
Bolsonaro abre flancos para os adversários

Jair Bolsonaro vem resistindo às investidas dos adversários e mostrando resiliência nos índices de intenção de votos. Dois movimentos recentes do deputado do PSL, no entanto, abrem flancos pelos quais ele pode ser alvejado. Um deles foi dizer em discurso gravado que irá a “todos os debates televisivos”. Basta não ir a um para Bolsonaro ser desmentido da bravata pelos rivais. O outro foi o pedido de casamento ao PR. Recentemente, em entrevista à rádio Jovem Pan, Bolsonaro disse que faria uma aliança com o PR do senador Magno Malta, não com o do mensaleiro Valdemar Costa Neto. Falácia. O PR é uma repartição com um dono: Valdemar. Qualquer acordo que faça de Malta vice de Bolsonaro passará pelo carimbo do cacique. Isso põe em xeque o discurso de Bolsonaro de que não transige com a corrupção. Mostra um candidato disposto a negociar com siglas envolvidas em escândalos, em nome de tempo de TV e estrutura de campanha. Mais velha política impossível.


Monica De Bolle: Rebelde sem causa

Defensores de Trump fazem vista grossa aos estragos que as ações comerciais do rebelde sem causa podem causar

Dizem que a alma masculina está bem sintetizada na motocicleta – o perigo, a velocidade, a solidão, a mecânica, o barulho rouco, a habilidade física. No cinema, as motocicletas, as Harley-Davidsons em especial, foram protagonistas da masculinidade em várias ocasiões. Peter Fonda em Easy Rider, Bruce Willis em Pulp Fiction, John Travolta em Wild Hogs, Sylvester Stallone em Rocky 3, só para citar alguns. É difícil visualizar Donald Trump sentado numa Harley, jaqueta de couro, óculos Ray-ban, cigarro no canto da boca, cabelos... bem, a tentativa de imaginar o rebelde sem causa, provocador de guerras comerciais interplanetárias, morre no penteado.

A empresa que produz as motocicletas mais emblemáticas do imaginário macho alfa americano, o Marlboro Man por excelência, acaba de anunciar que levará suas fábricas para a Europa e para outras partes do mundo em razão das retaliações provenientes das tarifas de Donald Trump. Para quem não acompanhou ou não se lembra, não faz muito tempo que o presidente americano recebeu executivos da Harley-Davidson na Casa Branca para exaltar o fato de a empresa concentrar parte relevante de sua produção nos EUA, criando empregos e ajudando a tornar a América novamente grandiosa. Motocicletas foram expostas nos jardins da Casa Branca em fevereiro de 2017, enquanto Trump tuitava sobre o excelente encontro com os dirigentes da empresa.

Cerca de ano e meio mais tarde, a empresa anunciava o fechamento de uma fábrica em Kansas City e a abertura de outra na Tailândia. Agora, foi a vez de os executivos avisarem que diante das sobretaxas da União Europeia sobre as motocicletas importadas dos EUA as plantas terão novo lar em solo europeu. Afinal, é do outro lado do oceano que está o principal mercado para as bikes.

A decisão da Harley-Davidson leva consigo empregos, investimento, e pedaços do setor industrial. Embora tenha sido a primeira empresa a mostrar claramente para Trump e seus assessores que políticas nacionalistas e protecionistas trazem consequências indigestas e efeitos danosos para a economia, dificilmente será a única. As ações retaliatórias da União Europeia e da China fatalmente haverão de levar à reestruturação da indústria exportadora dos EUA e à saída de outras empresas americanas de seu país de origem para evitar as tarifas proibitivas. E esse é apenas o começo.

Há poucas semanas, Trump determinou que o Departamento de Comércio iniciasse investigação sobre as práticas de comércio da indústria automobilística sob o argumento da segurança nacional, tal qual fez recentemente para o aço e o alumínio. O relatório deve ser divulgado pouco antes das eleições legislativas de novembro, provavelmente em setembro e outubro. Caso o presidente americano decida seguir o roteiro das sobretaxas do aço e do alumínio, é provável que anuncie a imposição de tarifas sobre automóveis importados logo que saírem os resultados da investigação.

É difícil exagerar as repercussões dessas tarifas, sobretudo para as negociações do Nafta, o tratado de livre-comércio entre México, EUA e Canadá. A indústria automobilística é elo fundamental das cadeias de produção da América do Norte. A aplicação de tarifas de 20% ou 25% sobre carros e caminhões importados, produzidos nos três países e cujas partes e componentes tendem a cruzar as diferentes fronteiras várias vezes antes que se tenha o produto final, certamente elevará os preços ao consumidor. Contudo, esse não é o pior efeito.

Estudo recente divulgado pelo Peterson Institute for International Economics, onde trabalho, mostra que, com a imposição de tarifas unilaterais, a produção de veículos poderá sofrer queda de 1,5%, colocando em risco cerca de 195 mil empregos. No caso do setor que produz partes e componentes, cerca de 2% da força de trabalho pode ficar obsoleta. Na quase certa eventualidade de retaliação por parte de outros países, a produção poderá cair mais de 4%, gerando perda de 620 mil empregos.

Os defensores de Trump aqui nos EUA e aí no Brasil costumam apontar ingenuamente para os bons indicadores econômicos parcialmente herdados do governo anterior. Fazem vista grossa ou simplesmente não compreendem que as ações comerciais do rebelde sem causa com topete esvoaçante trarão estragos nada desprezíveis. Não tardará para que se lembrem de Bruce Willis sentado na Harley dizendo aquela frase: “Zed’s dead, baby”.

* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Eliane Cantanhêde: A realidade e o marketing

Lula enfrenta Palocci e Valério, PSDB foge da festa e Bolsonaro só se diverte

As sucessivas derrotas para obter ao menos prisão domiciliar são apenas uma parte das agruras do ex-presidente Lula. E a menor delas. Com a decisão do Supremo de liberar a Polícia Federal para acordos de delação premiada – uma prerrogativa até então do Ministério Público –, dois outros fantasmas rondam a cela de Curitiba: Antonio Palocci e Marcos Valério. Eles sabem das coisas. E estão abrindo a boca.

Palocci é Palocci, o homem forte do início do governo Lula, o homem forte do início do governo Dilma Rousseff, a ponte entre o PT e o mundo financeiro e apontado por Marcelo Odebrecht como gerenciador pessoal das contas secretas de Lula na empreiteira. Imagine-se o que o ex-ministro pode contar para amenizar sua pena...

Quanto a Marcos Valério: ele acaba de emergir das profundezas do mensalão do PT como um fantasma ferido, traumatizado, inconformado por não passar de um operador, mas ter sido condenado à mais dura de todas as penas na estreia do PT no inferno dos escândalos de corrupção. Uma pena que, segundo o próprio Valério, corresponde a prisão perpétua.

Em entrevista à revista eletrônica Crusoé, Valério repetiu a mesma tática de Palocci num depoimento ao juiz Sérgio Moro: não passou informações objetivas, mas mandou recados graves a quem interessar possa. Um desses recados, o mais contundente, é de que ele está “amargamente arrependido” de não ter contado tudo o que sabia sobre o envolvimento de Lula, então presidente, no mensalão.

Tanto Palocci quanto Valério focam em Lula por um ótimo motivo – do ponto de vista deles, claro. Como a situação de ambos na justiça é gravíssima, têm de jogar um anzol de bom tamanho, e com isca apetitosa, para fisgar o peixe mais graúdo da Lava Jato e de seus desdobramentos conexos para terem alguma chance de ganhar as graças da PF e reduzir suas penas.

O prêmio é (ou deveria ser) equivalente à importância da delação. Se apenas choverem no molhado, contando o que Moro, o MP e a própria PF já sabem, mirando em bagrinhos e sardinhas, nada feito. A delação não encanta, o prêmio murcha.

É espantoso que Lula, condenado em segunda instância e preso, seja convocado como comentarista da Copa do Mundo e ganhe um espaço privilegiado como palanque de uma candidatura à Presidência que não passa de miragem. É um meio descarado de campanha eleitoral, pois não?

Lula, porém, já está pagando sua pena, continua sob pressão do sítio de Atibaia, do Instituto Lula, dos caças da FAB, da operação Zelotes e agora enfrenta as ameaças de Palocci e Valério. Logo, o PT anda em maus lençóis, com um candidato que nem pode ser candidato nem permite alternativas.

Mas o que dizer do PSDB, contraponto direto ao PT durante décadas? Triste? Constrangedora? Lamentável? Difícil escolher um adjetivo para definir a decisão do partido de comemorar hoje seus 30 anos não apenas sem festa, mas às escondidas. Ano eleitoral é hora de se expor, de aparecer, de disputar espaço e mídia. Mas os tucanos abdicaram do auditório Nereu Ramos, na Câmara, onde a sigla foi lançada em meio à Constituinte de 1988 e com a promessa de “ser diferente”. E vão se trancar num hotel de Brasília.

A conclusão imediata é de que o PSDB está acuado, tem medo de a festa se transformar em pesadelo e de as perguntas ficarem em cima das agruras de Aécio Neves na Justiça, da prisão de Eduardo Azeredo, das denúncias contra o ex-secretário de Alckmin em São Paulo.

Enquanto PT e PSDB sofrem, Bolsonaro se diverte. Seu vídeo no barbeiro, com as ideias rasas de sempre, sacode as redes sociais. Irrita os letrados, mas é um inegável sucesso de marketing político moderno.


O Estado de S. Paulo: ‘Aécio não vai definir sozinho sua candidatura’, diz Anastasia

Postulante tucano ao governo de Minas afirma que senador vai ouvir PSDB antes de decidir sobre disputa ao Senado

Por Pedro Venceslau e Jonathas Cotrim, de O Estado de S. Paulo

BELO HORIZONTE - Pré-candidato ao governo de Minas Gerais, o senador Antonio Anastasia (PSDB) disse ao Estado que o senador Aécio Neves, seu padrinho político, vai ouvir o partido antes de decidir se vai disputar o Senado nas eleições 2018. Candidato à Presidência da República em 2014, Aécio se afastou dos antigos aliados depois que veio a público áudio em que ele pede R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista, dono da JBS. Ele ainda não definiu seu futuro político.

A prisão do ex-governador Eduardo Azeredo coloca o PSDB na vala comum da corrupção?
Ele sempre teve um conceito de um homem correto, mas tem de cumprir a pena. Não podemos adular as pessoas condenadas.

É uma mancha que pode constranger o partido na eleição em Minas Gerais?
Não acho mancha, nem que constrange o partido. Azeredo é considerado uma pessoa que foi vítima de uma circunstância. E o candidato (ao governo de Minas) sou eu.

Ele deve ser expulso do PSDB?
Não sinto o sentimento de necessidade dessa medida.

O senador Aécio Neves ainda não decidiu se disputa ou não o Senado. Essa é mesmo uma decisão pessoal dele ou do partido?
Eu recebi uma carta branca para a montagem das questões relativas ao partido. Temos que aguardar um pouco. Ele vai tomar essa decisão, e não deve demorar muito, sobre ser candidato ou não. E, se for, para qual cargo. Os prazos estão afunilando.

O sr. quer que ele seja mesmo candidato?
Nesse momento, ele próprio pondera sobre as dificuldades que teria em uma candidatura majoritária, do sim e do não. Mas temos que respeitar a decisão que ele tomar. Até o ex-governador Geraldo Alckmin, que preside o partido e tem a prerrogativa de vetar candidatos, deixou claro que não gostaria que Aécio disputasse o Senado. Ele (Aécio) vai ouvir os companheiros na hora de tomar a decisão. Não tomará uma decisão isolada. Ele está dedicado à sua defesa e em mostrar o que foi alegado, que foi vítima de uma armadilha.

Aécio se elegeria? 
As pesquisas o colocam com uma votação positiva, mas em uma eleição a gente nunca sabe. Nem sei quem são os candidatos ao Senado. Há notícia de que Dilma (a presidente cassada Dilma Rousseff) seria candidata, mas isso não se confirma.

Dilma mudou seu título eleitoral para Minas Gerais e é pré-candidata ao Senado. O PT também cogita lançá-la ao governo. O que significaria para o sr., que foi relator do impeachment, entrar em campanha contra ela?
Lembro muito na eleição para governador de Minas de 2014, o nosso candidato, o Pimenta da Veiga, foi muito acusado pelo PT com o argumento de que estaria ausente de Minas Gerais há oito ou dez anos. Ela (Dilma) está ausente há 40 anos. Não sei como o povo vai encarar isso. Não sei se é uma candidatura forte ou fraca. Não vejo muita alteração no quadro eleitoral por causa disso, a não ser para o próprio PT, que, em razão disso, perderia o apoio do MDB.

O sr. estava muito convicto de que não seria candidato ao governo. Foi um sacrifício pessoal entrar na disputa?
Não é nenhum segredo que não era meu intuito me candidatar nesse ano ao governo. Mas tivemos circunstâncias de natureza política e social que formaram uma grande corrente clamando por minha responsabilidade de participar do pleito. Também é importante para o Geraldo Alckmin (pré-candidato do partido à Presidência) ter um palanque em Minas.

O PSDB perdeu em Minas Gerais em 2014, tendo Aécio como candidato. Por que com Alckmin, que é paulista, seria diferente?
Cada eleição é diferente da outra. Fernando Henrique (Cardoso) é paulista e ganhou duas eleições presidenciais seguidas em Minas Gerais. Acredito firmemente em uma vitória dele em Minas Gerais.

Há um movimento com a participação do PSDB que tenta unificar o centro em uma só candidatura. Para isso, não é necessário que se admita que Alckmin pode não ser o candidato?
É uma tese. A essa altura, não há ninguém que vai aparecer do nada com 10% ou 12% (das intenções de voto). Entre os atuais candidatos no centro, dois nomes de destacam: Alckmin e Alvaro Dias (presidenciável do Podemos). Só que o Alvaro Dias é de um partido muito pequeno e sem estrutura. Alckmin é mais viável eleitoralmente.

Dias seria o vice ideal?
Vejo com muita simpatia. Não sei se ele tem disposição para essa conversa.

Por que Alckmin não decola nas pesquisas?
Vivemos um clima de radicalismo que chega às raias do ódio. Há uma pulverização de candidatos. E falta uma definição em São Paulo, que é o Estado dele. Lá tem duas candidaturas que o apoiam, o que cria dificuldade. Há ainda uma completa apatia. O próximo presidente precisa ter a personalidade da serenidade e tranquilidade. Vejo o Geraldo nessa pessoa.

Como explica a força do ex-presidente Lula em Minas?
Ele tem muita força devido ao Bolsa Família e benefícios sociais que criou no seu tempo. Criou-se um imaginário de que só o Lula poderia ter dado isso.

É mais importante criar pontes com o PT pensando nos votos úteis num eventual segundo turno das eleições ou disputar o antipetismo com Jair Bolsonaro, presidenciável do PSL?
Bolsonaro vai diminuir. Não acredito que vai ao segundo turno. Quando os debates avançarem, um candidato mais calmo tende a ter mais vantagem. Acredito em um segundo turno entre um candidato de centro e outro de esquerda, que tem muito voto.


Vera Magalhães: PT preso a Lula

Partido que venceu últimas quatro eleições não consegue apresentar uma ideia para o País

Pouco antes de ser preso, numa das cenas da narrativa épica em que tentou transformar o que, na verdade, era uma derrota sem precedentes, Lula cunhou a frase segundo a qual não era mais uma pessoa, mas uma ideia. Passados mais de dois meses de sua prisão, não houve comoção nacional, minguou a vigília, as tentativas de levar a sua soltura fracassam uma a uma e o PT, seu partido, segue preso à pessoa de Lula, sem uma única ideia a apresentar ao País.

Os debates presidenciais já começaram, a despeito do calendário eleitoral oficial ter sido propositalmente empurrado para a frente. Pré-candidatos reais e figurativos se revezam em encontros com associações, entrevistas e sabatinas de imprensa e ocupam as redes sociais com estratégias políticas e esboços de propostas.

Instados por jornais, portais, rádio e emissoras, expõem aos eleitores ainda muito céticos suas propostas para temas cruciais para o Brasil, como reforma da Previdência, reforma tributária, educação, segurança pública e ajuste fiscal.

O PT, por vontade própria, insiste em se ausentar deste debate. O partido que venceu as quatro últimas eleições presidenciais no País não consegue formular um programa com o qual se apresentar de novo ao eleitor depois do impeachment de Dilma Rousseff e da prisão de seu maior líder.

Insiste ad infinitum na tese segundo a qual foi vítima de um golpe envolvendo o Supremo Tribunal Federal, as duas Casas do Congresso, quase todos os partidos, a imprensa, as demais instâncias do Judiciário, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e quantas mais instituições houver. Haja perseguição!

Os principais parlamentares petistas se abstêm de exercer seus mandatos, debater os projetos em pauta e os grandes temas nacionais. Se revezam na tribuna, nas visitas à carceragem de Curitiba e nas redes sociais com a mesma cantilena de #LulaLivre, sem perceber que esse discurso está restrito cada vez mais aos já convertidos e não terá o condão de dar ao partido um plano de futuro.

Diretamente do cárcere, Lula insiste em se fazer onipresente, não hesitando em atar o destino do partido que fundou ao seu próprio. Segura o quanto pode uma escolha que, dia após dia, se mostra irrefutável. O PT terá de escolher outro candidato, pois a candidatura de Lula será barrada pela Lei da Ficha Limpa, que ele próprio sancionou quando era presidente.

Escolher entre Fernando Haddad e Jaques Wagner implica definir por estratégias, estilos e discursos diferentes. As alianças possíveis a partir da nomeação de um ou de outro são distintas, pela característica de cada um.

Alheio a isso, o partido segue como um assistente da defesa do ex-presidente, atando seu destino aos sucessivos e malsucedidos recursos para tentar tirá-lo da prisão.

A absolvição de Gleisi Hoffmann na semana que passou deu ao partido um alento de que a mesma Segunda Turma relaxaria a prisão de Lula. Mas ele durou só até sexta, quando duas notícias acabaram com a euforia petista: no mesmo dia, o TRF-4 negou a admissão de recurso extraordinário da defesa ao STF (o que fez o ministro Edson Fachin retirar um pedido da defesa da pauta de terça) e homologou a delação de Antonio Palocci.

Essas decisões mostram que, a despeito da tentativa petista de negar o que amplas e fartas investigações já comprovaram – a existência do petrolão em toda a sua gravidade, com o concurso de Lula e de outras estrelas petistas, em consórcio com o MDB e demais partidos aliados –, a Justiça seguirá seu caminho.

Resta ao partido optar entre acertar contas com esse passado recentíssimo – que legou ao País recessão e um escândalo de corrupção sem precedentes – e tentar engendrar algum futuro ou seguir preso a Lula. A opção, até aqui, parece ser a segunda