O Estado de S. Paulo
Vera Magalhães: Bolsonaro e Ciro
Retórica e ênfase na autoridade aproximam candidatos mais do que eles gostariam de admitir
Ciro Gomes adora apontar autoritarismo e vazio de ideias em Jair Bolsonaro – que, por sua vez, execra o pedetista por ser de esquerda e próximo ao PT. Mas a noção que ambos têm de autoridade e os caminhos de governabilidade que apontam caso sejam eleitos não são diferentes. Isso sem falar no pavio curto.
Ambos acreditam, e dizem, que são os únicos capazes de tirar o País da gravíssima crise em que se encontra. Ainda que identifiquem culpados e remédios diferentes, o instrumento que apontam para resolver o nó é o mesmo: restauração da autoridade. Negociação com o Congresso? Vai se dar nos termos que Ciro e Bolsonaro quiserem. Afinal, serão eleitos para colocar ordem na casa. Quem ousaria se opor? Partidos? Nenhum dos dois vai negociar nos termos do presidencialismo de coalizão de hoje.
Então como se dará isso? A resposta em entrevistas e sabatinas é sempre vaga, amparada em bravatas e lastreada por essa ideia torta de “quem manda” que Dilma Rousseff também tinha, até ser debulhada por Eduardo Cunha e seu Centrão. Ciro fala em fazer reformas constitucionais por meio de plebiscito ou referendo. Questionado sobre a proposta de revogar a reforma trabalhista, e vaiado por uma parcela da plateia na sabatina da CNI por conta disso, tasca: “É assim que vai ser. Ponto final”.
Bolsonaro diz ter o apoio de 100 deputados catados no varejo e cujas faces ainda são um mistério. Isso não é suficiente para se mudar nem nome de rua, mas o pré-candidato segue pregando sua cantilena moralista e belicosa, escondendo o jogo na economia e deixando para lá a questão do respaldo no Congresso. Que é fulcral. Mais: enquanto em praça pública ambos bravateiam o “eu faço e aconteço”, nos bastidores negociam segundo os velhos preceitos com partidos como PR, no caso de Bolsonaro, e PP e DEM, no de Ciro.
Como Bolsonaro, que deve parte de seu sucesso ao discurso contra a corrupção, vai explicar a presença do partido de Valdemar Costa Neto em seu palanque? Só tirá-lo da foto não vai colar.
E Ciro, que vocifera contra o impeachment e o “golpe”, como explicará, caso sele a aliança que costura, a presença de dois partidos que estiveram na gênese da deposição de Dilma e ascensão de Temer?
A lógica que permite conciliar um discurso duro para fora e negociações ao pé de ouvido nos bastidores é a mesma para ambos. E é da velha política. E a relação com o Supremo, como será? Na mesma semana, Ciro e Bolsonaro usaram a mesma frase para se referir a isso. “Cada um no seu quadrado”, disse o pré-candidato do PDT na quarta. Foi a mesmíssima frase que o postulante do PSL repetiu na sexta-feira, ao tentar explicar sua polêmica proposta de dobrar o tamanho da Corte no curso de um só mandato. Como se não houvesse separação entre os Poderes e coubesse ao Executivo delimitar quadrados que a própria Constituição faz com que sejam comunicantes.
Por fim, se chega à economia. Aqui, as diferenças programáticas e de tom são patentes, é verdade. Diante da evidência de que de fato não manja patavinas do assunto, Bolsonaro afeta uma inédita humildade para dizer que delegará tudo a Paulo Guedes. Como se sua história parlamentar e sua viseira ideológica (que o faz desdenhar da China como parceiro, por exemplo) não mostrassem com clareza que essa carta branca será revogada tão logo ele se sente na cadeira.
Ciro, ao contrário, propaga que tudo sabe sobre economia. E acena com expropriação de áreas de petróleo, controle de câmbio e de juros e indução do crescimento por meio de crédito público. De novo, nos dois casos, a receita não é boa. Seja porque o postulante não sabe o que diz, no caso de Bolsonaro, seja porque o que diz já deu errado num passado bem recente, no de Ciro.
Eliane Cantanhêde: Guerra de foice
Eleição vai ter de afunilar, apesar dos temores e inseguranças de candidatos
Acaba a Copa para nós e começa de fato a eleição, ainda cercada de interrogações, mas com o tempo correndo cada vez mais rápido. Até 15 de agosto, prazo final para o registro de candidaturas, as respostas mais importantes terão que ser dadas, queiram ou não os partidos. É quando ficará claro quem entra, quem sai, quem está com quem.
Cresce a pressão para que o ex-presidente Lula faça uma “Carta à Nação” a ser lida na convenção do PT, no dia 28, para sair de campo espetacularmente, lançar Fernando Haddad e articular a candidatura dele a partir da cela em Curitiba – enquanto ainda estiver na cela em Curitiba.
Essa carta, com a renúncia à candidatura, serviria, ou servirá, como sinal verde para o Supremo dar o passo seguinte: livrar Lula da prisão. Em resumo, Lula abdica de ser candidato em troca de conquistar a liberdade. Uma complexa negociação, com Dias Toffoli afirmando-se não só como o próximo presidente de fato do STF, mas como o mais audacioso entre os onze ministros.
Fora da prisão e da chapa, Lula apresenta um candidato que mantém o PT e as esquerdas unidas, oferece enfim um nome ao Nordeste, que vota em quem seu mestre Lula mandar – e atrai dois tipos essenciais de eleitores: petistas decepcionados com o partido, mas sem alternativa, e também eleitores de outras siglas, igualmente desanimados com os nomes já colocados.
Do lado oposto, na raia da direita, Jair Bolsonaro repete Collor em 1989 e Trump agora nos EUA: a mídia e os analistas não conseguem acreditar que ele está consolidado para o segundo turno, mas ele vai vencendo resistências. Aplaudido na CNI? Sem entender de economia e sem ter administrado coisa nenhuma? Pois é. Collor, o marajá número um, venceu com o marketing de “caçador de marajás”.
Bolsonaro desdenha de alianças e partidos e cobre preventivamente a falta de tempo na TV com as redes sociais, enquanto seus principais concorrentes fazem o oposto: desdenham a internet e mergulham em cafés, almoços, jantares e reuniões em busca de alianças que lhes deem minutos de TV, palanques e condições futuras de governabilidade.
No foco está o tucano Geraldo Alckmin, que, pelo currículo ou pelo partido (que vence ou disputa o segundo turno desde 1994), é, ou seria, o maior beneficiário de uma união ao centro. Mas o aliado e até afilhado João Doria lhe fez o imenso favor de criar, antes do início da eleição, a sensação de que ele “não tem chance”. A cada pesquisa, a cada nome alternativo, aumenta o medo dos aliados naturais do PSDB, a começar do DEM. Os partidos querem que Alckmin cresça nas pesquisas para se definir. Alckmin quer que eles se definam para poder crescer nas pesquisas.
O futuro de Ciro Gomes está atrelado ao PT, desde que ele cismou de se colocar como opção de esquerda, mas fez um movimento esquizofrênico: disputava o PT, enquanto soltava cobras e lagartos contra o partido e contra Lula. Agora, disputa o DEM, que pode ser tudo, menos de esquerda. “O que nós temos em comum com o Ciro? Nada!”, resume José Carlos Aleluia (DEM-BA).
Marina Silva é o voto confortável, de quem valoriza ética, biografia, simbologia, mas isso nunca será suficiente para levar uma candidatura ao segundo turno, muito menos para empurrá-la rampa acima. Mais uma vez, Marina parece candidata a válvula de escape para aqueles que não encontrarem uma opção entre os que são “para valer”.
É assim que a eleição mais pulverizada desde 1989 vai caminhando, trôpega, surpreendente e, de certa forma, amedrontadora. Mas, com o fim da Copa e a chegada, já, já, de agosto, tudo vai começar a afunilar. E a exigir que você, eleitor, eleitora, pare de resmungar e passe a fazer o mais difícil: analisar e decidir.
Bolívar Lamounier: Os três hemisférios do cérebro brasileiro
Inegavelmente, um deles tem um modelo de crescimento e diretrizes de política econômica
A elite pensante brasileira mantém-se firme na convicção de que consegue compreender os problemas do País com base na dicotomia esquerda-direita. Qualquer que seja o assunto em pauta, lá vai ela de volta ao século 19 e de lá retorna com os chavões habituais. Não percebe que comete pelo menos dois graves equívocos.
Primeiro, não percebe que fala apenas de si e para si. Tudo se passa como se fosse formada por duas tribos se insultando mutuamente. A esquerda xinga a direita de direita e a direita xinga a esquerda de esquerda. Sabem por que afirmo isso? Muito simples. Não passa de 20% a parcela da sociedade que tem pelo menos um vago entendimento desses termos. Um pouco mais, um pouco menos. E não em razão do precário nível de instrução em nosso país, assim é por toda parte.
O segundo equívoco é a crença de que todos os desacordos existentes na sociedade podem ser encaixados numa única dimensão. Ora, a dicotomia esquerda-direita sintetiza, mal e parcamente, o conjunto de questões referente à política econômica e às desigualdades de renda e riqueza. Para representá-la graficamente basta-nos traçar uma linha (horizontal, suponhamos), numa ponta teremos a esquerda e na outra, a direita. Ao longo de tal linha temos graus de esquerdismo e direitismo na dimensão econômico-social. Mas onde entram, por exemplo, as dezenas de agudas desavenças que se manifestam no plano dos valores: questões de religião, combate à corrupção, concordâncias e discordâncias referentes à legalização do aborto, política de gênero, etc.? Ora, não entram em nenhum ponto da linha horizontal, uma vez que pertencem a outra dimensão.
Para levá-las também em conta, precisamos de uma representação ortogonal, quer dizer, uma linha vertical, cortando a horizontal. Assim teríamos, vamos dizer, em cima os cidadãos que apoiam a legalização do aborto e em baixo os que dela discordam. E assim, em vez de duas “tribos” ou “campos”, passamos a ter pelo menos quatro. Esse raciocínio meio enrolado poderia ser dispensado se nos puséssemos de acordo quanto a uma obviedade verdadeiramente solar: em qualquer sociedade, as linhas de conflito são muito mais numerosas do que julga a vã filosofia. Formam um emaranhado diante do qual a dicotomia esquerda-direita é quase impotente. Imprestável.
Para não complicar em excesso a discussão, vou me manter na dimensão econômico-social e propor, ainda com muita parcimônia, que precisamos de pelo menos três pontos para representar a cabeça dos brasileiros. Nosso cérebro se divide em pelo menos três hemisférios ideológicos. Admitindo-se que apenas 20% são capazes de compreender esse tipo de peroração, digamos que metade deles (10%) se mantém aferrada à velha ideologia nacional-desenvolvimentista (que, a rigor, se deveria chamar nacional-estatista, pois faz tempo que ela se tornou incapaz de promover desenvolvimento...); 5% corresponderiam à esquerda hardcore, ou seja, ao PT e aos partidos comunistas e outros pequenos corpos celestes que gravitam em torno dele. Os restantes 5% correspondem aos liberais (frisando que falo de liberais em economia, a parcela liberal em política é muito maior).
Os grupos de esquerda geralmente se declaram “socialistas”, mas o sentido desse termo não é claro. Nos tempos da União Soviética - do chamado “socialismo realmente existente” - significava que uma casta burocrática controlava toda a economia por meio de um sistema de planificação central; no sistema de partido único, o Partido Comunista zelava para que ninguém contestasse o regime e uma onipresente polícia secreta cuidava dos eventuais recalcitrantes.
No Brasil, se formos julgar pelo governo de Dilma Rousseff, o dinamismo da economia teria de ser assegurado pela exportação de commodities, premissa razoável enquanto a China mantinha taxas de crescimento estratosféricas; internamente, o BNDES turbinava “campeões” empresariais do tipo Eike e Joesley Batista; e a cornucópia governamental jorrava subsídios para a indústria automobilística e crédito para o escoamento dos veículos produzidos. Uma consequência disso, como agora sabemos, foi as estradas ficarem entulhadas de caminhões... Sim, Lula expandiu o Bolsa Família até o limite do possível, objetivo alcançado com... 0,5% do PIB, um programa pífio se analisado em termos de mobilidade social ascendente. O pouco que sobrou a recessão comeu.
O nacional-estatismo, uma vez vencida a fase “fácil” do crescimento, redundou na estagnação em que nos encontramos, aprisionados na chamada “armadilha da renda média”, com uma renda anual por habitante estacionada em torno de US$ 11 mil, metade da de Portugal. E quanto à política social? Eis aí um ponto que não cabe nos limites deste artigo. O que podemos afirmar com segurança é que a miríade de grupos corporativos fica com a parte do Leão e o País, evidentemente, não consegue produzir superávits que aguentem sequer uma modesta política social-democrata.
Restam os liberais. O problema com esse grupo é seu medo de pronunciar a palavra maldita: liberais. Os economistas não se assustam com ela, mas os políticos, sim, quase sem exceção. Um modelo de crescimento e diretrizes de política econômica o grupo inegavelmente tem. Começa por uma política fiscal rigorosa, que mantenha a inflação sob controle e assegure uma taxa de juros decente. Redução do papel empresarial do Estado ao mínimo possível. Privatização, criação de um ambiente de confiança para o desenvolvimento do mercado e estímulo ao surgimento de uma classe média empresarial. Concentração dos recursos do Estado no desenvolvimento tecnológico e nas áreas sociais: educação, saúde, saneamento. E abertura da economia ao exterior, estimulando a competição e a competitividade.
* Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘Liberais e antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo’
Eliane Cantanhêde: Haddad em campo
Tudo caminha para Lula se materializar no ex-prefeito de São Paulo e chacoalhar a eleição
A grande novidade da eleição presidencial, tão pulverizada e incerta, está para surgir: a entrada em cena do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que une o útil, a força do ex-presidente Lula, ao agradável, a sua própria imagem, que extrapola o PT.
Condenado, preso, longe de holofotes e microfones, Lula mantém seus inacreditáveis 30% das pesquisas, numa eleição com tantos nomes e nenhuma certeza. Logo, Lula é quem tem o maior capital e o maior potencial de transferência de votos.
Livre, passando ao largo de denúncias de corrupção, Haddad é aquele bom moço sem a pecha, as marcas e as cicatrizes do PT e amplia o leque de eleitores do partido. Petista só vota em petista, mas tem muita gente que não morre de amores pelo PT, mas poderia votar de bom grado no professor Haddad.
Lula e Haddad, portanto, se complementam. Um tem voto, mas alta rejeição. O outro não tem voto, mas não tem rejeição. Um garante a largada, o outro tem de fazer o resto, ganhar fôlego, abrir horizontes. Ou atrair as elites, assim como José Alencar, em 2002, atraiu o capital.
De bobo, Lula não tem nada, muito pelo contrário. E ele acha plenamente possível que em algum momento seja solto, mas dificilmente trabalha com a hipótese de ser candidato até o fim. Sabe que sua candidatura tem mil e uma utilidades, mas é uma ficção.
Aliás, será mesmo que Lula gostaria de voltar à Presidência? Ele saiu do Planalto com 80% de popularidade, governou com a herança bendita de Fernando Henrique e numa época de prosperidade na América do Sul raramente vista. Voltar para quê? Para enfrentar a crise, a dívida, os 13 milhões de desempregados e os Estados falidos?
É muito mais cômodo – e prudente – que Lula use a “candidatura” para manter força política, exposição na mídia e carregar um candidato nas costas. Alguém que não precise ter o que ele já tem, mas agregue o que ele não tem. Quem poderia ser, além de Fernando Haddad?
Lê-se que Haddad acaba de se lembrar que é bacharel em Direito, foi buscar a carteira da OAB e vai integrar a equipe de defesa de Lula – já tão congestionada, causando atropelos e batidas. Para disputar com Cristiano Zanin, que está desde o começo? E com Sepúlveda Pertence, que é um ás?
Logo, o advogado Haddad tem um único objetivo: obter passe livre para entrar e sair da prisão de Curitiba, com acesso direto a Lula. E não me venham dizer que vão falar de flores. O (muito) mais provável é que falem de... eleição.
Até aqui, Jair Bolsonaro está isolado na liderança, petulante ao ponto de prever vitória em primeiro turno, e o segundo pelotão está embolado com Marina, Ciro, Alckmin e, tentando correr atrás, Alvaro Dias. O resto é o resto. Mas a entrada de Haddad para valer tem potencial para dar uma boa chacoalhada nisso.
O primeiro efeito tende a ser nas pretensões de Ciro, que só chegou até onde chegou no vácuo do PT, troca desaforos com a própria sombra e cria constrangimento para empresários na casa deles, a CNI. A um sinal de Lula, boa parte dos votos do Nordeste migram para Haddad. E, sem Nordeste, não há Ciro.
Consolidadas a direita, com Bolsonaro, e a esquerda, com Lula materializado em Haddad, que o centro trate de jogar a sério, deixando vaidades de lado. O treino está acabando e a pergunta é: quem quer levar a culpa por um segundo turno entre Bolsonaro e PT?
Tem candidato que não tem voto para se eleger, mas tem para impedir as chances do centro. Aliás, é isso que Fernando Henrique e o próprio Alckmin tentam dizer para Alvaro Dias, que divide os votos de centro no Sul. Assim como não seria surpresa a candidatura de Haddad a presidente, não seria a de Dias ao governo do Paraná.
P.S.: O jogo de hoje, o de futebol, vai ser de matar do coração. Dá-lhe, Brasil!
Everardo Maciel: Incentivos fiscais, mais uma vez
A competição fiscal lícita é tão antiga quanto a história dos impostos
Se tributo constitui uma indispensável intervenção do Estado, que contrapõe o interesse público à liberdade individual, evitá-lo ou reduzi-lo pode ser um valioso instrumento à disposição dos entes tributantes (países, Estados e municípios) para fomentar o desenvolvimento.
É nessa perspectiva que devem ser entendidos incentivos fiscais motivados pelos interesses de um país, no contexto da competição internacional, ou pela pretensão, no âmbito de uma jurisdição nacional, de corrigir desigualdades regionais de renda.
A fixação de regras, por meio de tratados internacionais ou de legislações nacionais, delimita a possibilidade de utilização de tributos na atração de investimentos ou para evitar que se relocalizem. Configura-se, nessas circunstâncias, a competição fiscal lícita, que é tão antiga quanto a história dos impostos.
A prática da competição fiscal lícita pode, sem dúvida, não corresponder ao melhor padrão de eficiência econômica.
No caso dos incentivos fiscais regionais, o que prevalece, todavia, é a unidade nacional, cuja relevância é igual ou superior à da eficiência econômica.
No Brasil, a correção das abissais desigualdades regionais converteu-se, a propósito, em um dos objetivos fundamentais da República (artigo 3.º, III, da Constituição) e constitui critério, também constitucional, para a partilha de rendas e a alocação de recursos orçamentários.
Alguns dos que se opõem à concessão de incentivos fiscais, com aquela finalidade, alegam que seria preferível recorrer-se ao gasto público. É uma ideia generosa, porém ingênua.
As experiências de enfrentamento das desigualdades regionais, centradas apenas em gastos públicos diretos, se revelaram poucos eficazes, tanto no exterior (por exemplo, os programas da Tennessee Valley Authority, nos EUA, ou da Cassa per il Mezzogiorno, no sul da Itália) quanto no Brasil (Sudene, Sudam). No máximo, constituem ações suplementares. Infelizmente, inexiste, nas regiões mais desenvolvidas do País, um comprometimento real com a redução das disparidades regionais de renda, vista quase como um objetivo excêntrico.
É nesse contexto que prospera a resistência à concessão de incentivos fiscais do ICMS, em oposição ao que se encontra expressamente previsto no texto constitucional (artigo 155, parágrafo 2.º, XII, g).
A resistência também se revela mediante defesa de um vetusto e perigoso clichê: o princípio do destino, consistindo na opção pela alíquota zero nas operações interestaduais do ICMS.
É óbvio que, nessa hipótese, não existiriam incentivos, porque são fundados estritamente em reconhecimento, no destino, de créditos não integralmente recolhidos na origem, tal como ocorre em relação ao Imposto de Renda entre países (cláusula de tax sparing). Trata-se, tão somente, de uma forma dissimulada de se opor à concessão de incentivos do ICMS.
Se a competição fiscal lícita é inerente à história dos impostos, a ilícita (guerra fiscal) tem natureza francamente predatória.
A Lei Complementar n.º 160/2017, apesar de suas imperfeições, ofereceu um roteiro para resolução da guerra fiscal do ICMS. O processo tem se revelado lento, mas é consistente.
Malgrado o instrumento próprio ser a lei ordinária, aquela lei complementar acolheu normas de caráter interpretativo (artigos 9.º e 10.º), que proclamaram o óbvio: não há incidência de tributos federais sobre incentivos fiscais do ICMS.
Se incidência houvesse, a União estaria se apropriando de renúncia fiscal dos Estados, o que corresponderia a uma abstrusa partilha de renda sem previsão constitucional.
É desarrazoado, por conseguinte, falar-se em renúncia fiscal da União, seja porque o conceito é inaplicável, pois se trata de mera interpretação legal, não havendo sequer incidência, seja porque se ela existisse anularia, ao menos em parte, o propósito do incentivo estadual, gerando despropositado conflito federativo.
Esse entendimento, aliás, vem sendo sancionado em vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça. Mais uma vez, inauguramos uma falsa controvérsia.
* Everardo Maciel é consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)
William Waack: Demanda eleitoral
Tendência no Brasil é de que candidatos ‘rompedores’ se sobressaiam aos ‘reformistas’
Qual candidato no Brasil atende melhor ao que especialistas estão chamando de “demanda” por parte dos eleitores? As consultorias internacionais e nacionais que se esforçam em explicar a política brasileira para investidores (portanto, com viés de avaliação de risco e oportunidades) estão solidificando um consenso: o de que as eleições aqui são parte de uma grande tendência internacional de “rompimento” com o que estava estabelecido. E que as “demandas” colocadas por eleitores no Brasil não são assim tão diferentes daquelas registradas na França, Espanha, Itália, Estados Unidos e, por último, México.
Ditadas por “raiva” e “indignação” de parcelas da população que se sentem menosprezadas por elites, abandonadas por partidos, negligenciadas pelos serviços públicos de baixa qualidade e assustadas com violência e desemprego, além de horrorizadas com a corrupção, essas “demandas” seriam similares em sua essência e razoavelmente comparáveis quanto ao objetivo: derrubar o que está aí na política, cada vez mais desprezada. Se assim é, falta explicar como se chega a resultados tão diferentes, em termos de “rompimento” ou “coesão” dos diversos sistemas políticos.
O México trouxe um interessante exemplo no último domingo de “rompimento” do que existia – a recém-reconquistada predominância de um partido que fora hegemônico, o PRI – por um movimento político que não existia há dois anos, que se diz de esquerda, e que alcançou em prazo recorde o controle inédito das casas do congresso, grande número de governos estaduais e a presidência. Em outras palavras, a refundação de uma espécie de PRI com outro nome (Morena). A capacidade do novo presidente mexicano de sobreviver às receitas que apregoa, e que levaram ao desastre econômico onde quer que foram aplicadas, é um outro capítulo e fica para depois.
Tal como está o quadro eleitoral brasileiro, e ao se tomar ao pé da letra as pesquisas qualitativas, o eleitorado “demanda” candidatos que apregoem o rompimento mas a “indignação”, “raiva” e “desprezo” pela política se manifestam aqui em tal magnitude a ponto de tornar difícil apostar hoje (isso ainda pode mudar, admito) numa saída a la mexicana, entendida como consolidação de uma só forte tendência política. Por enquanto admite-se que as eleições produzirão no Brasil um presidente que responde à “demanda” do rompimento mas que será obrigado a lidar com um congresso com o mesmo perfil do atual, senão pior.
Há uma interessante divisão entre analistas políticos frente a duas decisivas perguntas: as regras do jogo, que favorecem a “velha” política (entendida como acesso a tempo de TV, fundos partidários e eleitorais, capilaridade nas relações com prefeituras, concessão de emendas parlamentares), pesam mais ou pesam menos do que o encurtamento da campanha e a menor importância relativa da TV aberta frente a redes sociais? A narrativa predominante no eleitorado de que a corrupção é o principal problema atua de forma decisiva a limitar as formas consagradas (“velhas”) de se fazer política e campanha eleitoral?
Das respostas depende a previsão se o segundo turno terá “reformistas” (identificados como velhos) em disputa contra candidatos do “rompimento” ou se “rompedores” se enfrentarão entre si. Neste começo de julho, um grupo crescente de analistas (entre os quais me incluo) tende a afirmar que as chances de “reformistas” são consideradas exíguas, a elas não se atribui grande capacidade de recuperação no curto período de campanha, e menos ainda a habilidade de satisfazer a “demanda” por combate à corrupção e insegurança pública.
A perspectiva é sombria para um país que precisa lidar urgentemente com questões, especialmente a fiscal, que não estão esperando a sociedade definir-se ou aguardam lideranças costurarem qualquer tipo de acordo. Espero estar errado.
Vera Magalhães: A esquerda e a corrupção
Um dos grandes fatores a unir a esquerda, capitaneada pelo PT, à classe média urbana e permitir a ascensão de líderes como Lula, José Genoino, Aloizio Mercadante e José Dirceu era o discurso impiedoso de combate à corrupção.
À sombra desses caciques, assessores parlamentares do PT, como foi um dia o jovem José Antonio Dias Toffoli – que começou sua carreira no petismo na CUT, passou pela Assembleia Legislativa de São Paulo, pela Câmara e chegou ao Planalto com a eleição de Lula –, eram fontes disputadas pela imprensa pelo que levantavam de irregularidades em governos aos quais o partido fazia oposição.
Treze anos de governo de dois presidentes do PT, um impeachment, mensalão e petrolão depois, o que se vê é a esquerda brasileira chegar às urnas tendo abdicado sem titubear à discussão sobre combate à impunidade, reforço nas leis de combate à corrupção – muitas aprovadas no governo Lula – e compromisso com a transparência na gestão pública.
Atados irremediavelmente à “narrativa” de que Lula e o partido são vítimas de perseguição da Justiça, da Polícia Federal, do Ministério Público, do Congresso e sabe-se lá de quantas outras instituições, os petistas renunciaram, até, a louvar decisões que atingem adversários, como Eduardo Azeredo, ex-grão-tucano condenado e preso como Lula, ou Eduardo Cunha, algoz de Dilma Rousseff e sem nenhuma perspectiva de soltura.
Fazê-lo significaria reconhecer que há uma nova perspectiva, que nasce da PF, do MPF e das instâncias iniciais do Judiciário, de utilizar os mecanismos disponíveis nas leis e nos códigos para garantir que crimes do colarinho-branco (de quaisquer partidos) sejam efetivamente pagos e seus praticantes, punidos.
A esperança dos partidos que antes empunhavam a bandeira da ética nos palanques e nos programas do horário eleitoral é que seu líder máximo conte com uma ajuda na undécima hora de ministros de uma Corte cindida, como é hoje o STF, para poder concorrer à Presidência da República. Mas Lula foi condenado em duas instâncias, e o STF não pode rever a condenação, apenas mexer eventualmente na pena ou no regime de cumprimento. Os petistas não se importam.
Outras condenações podem vir em vários processos a que Lula responde. Perseguição, repetem. Mas a Lei da Ficha Limpa fala em condenação por colegiado – o que Lula já tem – e não em condenação final. Golpe, só para tirar Lula do pleito.
Divorciada da própria história, a esquerda abre mão de dialogar com o conjunto da sociedade, que elegeu a corrupção como assunto central em 2018. Trata-se de uma decisão que cobrará um preço maior que a pena deste ou daquele companheiro.
SEM ANIMAÇÃO
Partidos vão a Alckmin em clima de ceticismo
Como num daqueles noivados arranjados pelas famílias em tempos passados, o blocão DEM-PP-PRB-SD e Geraldo Alckmin vão se empertigar nesta quarta-feira para um encontro para o qual ninguém se empolga. Líderes desses partidos dizem que a conversa é a “última chance” de se chegar a uma aliança, mas repetem reparos ao “noivo”, amparados nos índices estacionários de Alckmin nas pesquisas e nas perspectivas nada auspiciosas que viram em levantamentos qualitativos que encomendaram.
Pelo lado do tucano, nem os aliados mais convictos esperam que Alckmin acene com perspectivas concretas já. Todos acreditam que a decisão final virá lá na frente, pela lógica histórica que tem feito do PSDB o estuário desses partidos interessados em estar em qualquer governo. Pode ser uma aposta conservadora demais: diante de uma eleição imprevisível, os partidos ameaçam romper com as convenções do casamento de conveniência para flertar com candidatos menos ortodoxos.
Monica De Bolle: México vs. Brasil
Amlo, goste-se ou não, recebeu mandato pleno; já o Brasil tem circo de candidatos que não articulam propostas
Por mais que o embate futebolístico ainda esteja fresco na memória, por mais que a alegria de ter passado para as quartas de final ainda contagie, por mais que se castigue o técnico do México pela infeliz entrevista pós-jogo, por mais que se queira tomar um lado no debate internacional sobre a personalidade de Neymar, este artigo não é sobre o 2 a 0 do Brasil. O jogo entre os dois países se deu justamente no dia seguinte das eleições mexicanas, pleito maior do que o de outubro no Brasil. Em jogo estava a presidência da república, a composição do Congresso, os governadores das várias regiões, além de outros cargos públicos locais. Como já é de conhecimento geral, o grande vitorioso foi o controvertido Andrés Manuel López Obrador, o Amlo, e seu partido, o Morena.
Amlo não é novidade na cena política mexicana. Concorreu à presidência em 2006 pelo Partido da Revolução Democrática (PRD) e por muito pouco não venceu. Tentou novamente em 2012, depois de sair do PRD e formar coalizão para apoiar sua candidatura. Parte dos partidos que integraram a coalizão de Amlo em 2012 formaram o Morena, que se registraria formalmente como partido político apenas em 2014. Além de concorrer à presidência, Amlo foi prefeito da Cidade do México, e deixou o cargo com cerca de 80% de aprovação.
Portanto, Amlo não é exatamente um outsider na política, embora sua plataforma de campanha tenha sido a da renovação. Não custa lembrar que há anos o México é governado basicamente por dois partidos hegemônicos: o PRI do atual presidente, e o PAN do presidente anterior. A entrada de Morena na presidência, quebrando a hegemonia partidária, não deixa de ser renovação.
Mais surpreendente, entretanto, foi a vitória do partido de Amlo no Congresso. Desde 1996, não gozava um presidente mexicano de maiorias nas câmaras legislativas. No Senado, o Morena e seus partidos aliados conquistaram 69 de 128 assentos, ou 54%. Na Câmara de Deputados, foram 310 assentos, ou 62% da casa. Somadas às vitórias em algumas eleições locais, Amlo acaba de receber mandato pleno para conduzir reformas e atender aos anseios da população mexicana.
O momento é complicado, e muitas de suas propostas – a luta contra a corrupção e a violência, a redução da pobreza – enfrentarão obstáculos, podendo trazer desalento mais à frente. Contudo, a grande lição mexicana para o Brasil que brevemente terá suas eleições é que o desgaste institucional e a desilusão do povo com seus representantes pode trazer mudanças profundas desde que exista a liderança política necessária no momento certo. Amlo, goste-se ou não do que representa, conseguiu reunir o que era preciso para receber mandato completo, com todos os riscos que isso traz.
E o Brasil? O Brasil tem circo de candidatos que não consegue articular propostas e menos ainda mover corações. Quando falam, pouco dizem ou dizem coisas que agradam alguns, porém amedrontam outros. A polarização se acentua a cada dia que passa, e diante disso, todos temem falar dos problemas do País. Os que defendem a reforma da Previdência têm medo de detalhar suas propostas pois sabem que o risco de cair nas pesquisas de opinião é alto – preferem as platitudes e as referências genéricas. Os que sabem o real tamanho do problema fiscal brasileiro evitam delinear como ajustarão as contas públicas por conta dos mesmos temores. Corremos o sério risco de eleger alguém sem nada saber o que pretende fazer com a política econômica.
Mas é ainda pior. O Brasil não corre o menor risco de eleger Congresso coeso como acaba de fazer o México. A fragmentação prevalecerá, tornando tudo ainda mais complicado para o novo ou nova governante. Ou seja, caminha o Brasil para eleger alguém cujas propostas econômicas desconhece por completo – a não ser por suas linhas gerais – e cujas chances de sucesso no Congresso são mínimas.
Nada disso é novidade. Contudo, cabe olhar para cima. Como conseguiu o México fazer a transformação que, ainda que arriscada, tem maiores chances de dar certo do que qualquer cenário que possa se materializar no Brasil? Por que lá a fadiga do eleitor entregou um caminho? Creio que a resposta seja a liderança que sobra em Amlo e no técnico da seleção canarinho.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Eliane Cantanhêde: A volta de quem não foi
O que, afinal, Dilma Rousseff tem a defender na campanha ao Senado pelo PT em Minas?
O anúncio da candidatura de Dilma Rousseff ao Senado por Minas Gerais é duplamente, digamos, curioso. Ela, como Lula, é tecnicamente inelegível. E como vai defender o seu legado na Presidência da República durante a campanha?
Quem esqueceu de como Dilma manteve a possibilidade de disputar eleições, apesar do impeachment? No último segundo do segundo tempo, os então presidentes do Senado, Renan Calheiros, e do Supremo, Ricardo Lewandowski, fizeram um acordão e inventaram a novidade.
Pela letra fria das leis e da Constituição, presidente da República que sofre impeachment se torna automaticamente inelegível durante oito anos, como ocorreu com Fernando Collor de Mello, e ninguém jamais questionou. Ele cumpriu pacientemente sua quarentena, antes voltar à política com mandato de senador.
Collor era Collor, o inimigo número um da Nação, que na reta final não tinha mais aliados, só adversários. Já Dilma tinha por trás o padrinho Lula e o PT, um dos maiores partidos do País, então com 13 anos de Presidência. Por causa de Lula e do partido, Renan e Lewandowski deram um jeitinho e Dilma manteve o direito de se candidatar.
Dilma nasceu em Minas, mas fez carreira política no Rio Grande do Sul e praticamente estabeleceu residência no Rio de Janeiro. Como vai fazer campanha em Minas, um dos três Estados mais importantes e mais politizados? Vai defender o seu próprio legado, desastroso? Ou o do governador Fernando Pimentel, seu amigão, que enfrenta problemas na Justiça e encerra o mandato com uma baita crise econômica, até atraso de salários de funcionários?
Apesar da tese de “golpe”, Dilma caiu por inapetência política, inaptidão administrativa e erros crassos na economia. Afundou o Brasil em dois dolorosos anos de recessão econômica; inflação acima da meta; juros estratosféricos; fundos de pensão depenados; agências desarticuladas; estatais sem prumo; setor elétrico de pernas para o ar; pré-sal condenado a ficar para sempre nas profundezas do oceano.
Foi assim que o País mergulhou no desemprego. Hoje, são 13 milhões de desempregados e precisa-se reconhecer que Michel Temer não conseguiu controlá-lo, mas a culpada número um foi Dilma, sua autossuficiência, suas noções antiquadas de economia, sua incapacidade de entender a importância dos pilares macroeconômicos. “Coisa da direita...”, diria ela.
A eleição em Minas, portanto, parece ir de mal a pior. Dilma disputando o Senado como revanche pelo impeachment e seu contendor no segundo turno de 2014, Aécio Neves, do PSDB, pior ainda: sem ter para onde correr. Presidência de novo? Governo de novo? Senado de novo? Nem perto. Se der sorte, pode até encontrar uma vaga de deputado federal, mas sem ilusões: mandato não é mais garantia de foro privilegiado. Nem de impunidade.
Já confuso desde 2016, o politizado eleitor mineiro acabou levando à prefeitura de Belo Horizonte o verdadeiro outsider daquela eleição, Alexandre Kalil, do inexpressivo PHS. E esse é o maior risco da eleição presidencial no Estado este ano.
Para o governo, o PT aposta na reeleição de Pimentel e o PSDB foi buscar o ex-governador Antonio Anastasia, que encerrou a primeira gestão bem avaliado e passa ao largo das infindáveis descobertas da Lava Jato. Por fora, corre o ex-prefeito de BH Marcio Lacerda (PSB), que aguarda articulações de seu partido com o PDT de Ciro Gomes.
O pior em Minas é a eleição para a Presidência. Com o Norte e o Nordeste petistas e o Sul e o Centro-Oeste antipetistas, Minas é um Estado-chave para definir o sucessor de Temer. Se mantiver o “espírito do contra” que levou Kalil para a prefeitura, vocês sabem quem vai se dar bem, não é? Ou já está se dando...
Vera Magalhães: TV ou internet?
A primeira vai disputar com o digital importância na construção e destruição de candidaturas
Uma das maiores incógnitas numa eleição que tem tudo para representar uma mudança de paradigma em vários aspectos da política brasileira é o papel que a TV e a internet terão na construção e desconstrução de candidaturas. Por enquanto, o líder (entre os habilitados a concorrer) nas pesquisas construiu esta condição se valendo principalmente das redes sociais.
Jair Bolsonaro não angariou eleitores graças a uma paulatina influência na política nacional a partir de sua atuação na Câmara. Pelo contrário: como deputado apareceu mais pelas polêmicas que suscitou que por ser uma liderança parlamentar. Quando decidiu se aventurar nesta seara pagou mico ao ter só quatro votos na disputa pela presidência da Casa.
A votação na casa dos 20% se deve ao impressionante – e orgânico – engajamento que ele construiu nos meios digitais. Tão forte que fez com que, até aqui, prescindisse de estrutura partidária, capilaridade de apoios dos meios políticos tradicionais, simpatia da mídia e dos agentes econômicos e alianças partidárias. Na base do “eu sozinho” e com um esquema simples na forma, mas sofisticado na maneira como mira direitinho o público com quem ele quer falar, o presidenciável do PSL resiste a ataques dos adversários e a tentativas de desconstrução de sua imagem.
Esta tem sido a história da etapa preliminar da campanha. A partir de agosto entra na equação um elemento que até 2014 foi essencial para garantir a vitória de todos os presidentes da República desde a redemocratização: a propaganda eleitoral na TV.
É a partir do início da epopeia televisiva que os candidatos se tornam efetivamente conhecidos de um eleitorado que, antes disso, não está assim tão mobilizado. O marketing eleitoral tem colecionado casos de construção e de destruição de imagem a partir da TV.
Nos dois casos o exemplo mais recente é Dilma Rousseff. Em 2010 ela foi repaginada e vendida por João Santana como a mãe do PAC, a “mulher do cara”, aquela ungida por Lula para continuar seu trabalho. Em 2014, diante de um produto que já começava a dar defeito e da inviabilidade óbvia de continuar a mesma narrativa, Santana optou pela estratégia feroz de demolição de Marina Silva e levou sua candidata a uma vitória quase no olho mecânico.
E em 2018, com os dispositivos digitais muito mais presentes na vida das pessoas e na discussão política, será que a TV vai jogar o mesmo papel? É o que estão tentando projetar marqueteiros, candidatos, especialistas em pesquisas, acadêmicos, jornalistas e até especialistas em neurociência acionados pelos partidos.
Mesmo quem arrisca uma resposta sabe que ela pode ser falha. O mais próximo de um consenso é que um candidato como Bolsonaro, que já demonstrou ter um voto cristalizado e ser resiliente a ataques, não desidratará facilmente como ocorreu em eleições recentes com nomes como Celso Russomanno em São Paulo, por exemplo.
As primeiras tentativas de desconstruí-lo já começaram e nascem também no mesmo meio que o forjou, o digital. Pesquisas qualitativas mostram que seu ponto mais frágil é justamente o usado pela campanha de Geraldo Alckmin: a rejeição que tem no eleitorado feminino. Mais que impedir que ele cresça entre as mulheres, estrategistas partem da ideia de que, hoje, a mulher influencia também na casa, nos votos dos filhos e demais parentes.
Profissionais de marketing acreditam que, mesmo com a campanha mainstream na TV já iniciada, a internet continuará tendo um peso enorme. Principalmente nessa guerra abaixo da linha da cintura. A melhor resposta à incógnita desse texto, portanto, parece ser que os papéis da TV e da internet serão complementares, muito longe da centralidade que a primeira desempenhou em eleições passadas.
Eliane Cantanhêde: Lula no mata-mata
Decisão do STF impacta Lava Jato, eleição, autoestima brasileira e até rumo da história
Com a chegada do recesso do Judiciário, bateu o desespero no ex-presidente Lula e nos seus advogados, que saíram em desabalada carreira para entupir o Supremo de recursos, tentando atropelar o plenário e até o sorteio eletrônico (!) para escolher não só a turma, mas o próprio relator desses recursos. Esse serve, esse não serve... Uma audácia incrível, no vale tudo para Lula trocar a prisão em Curitiba pela campanha à Presidência.
Nessa corrida, com chute, cotovelada e empurrão, os advogados Sepúlveda Pertence e Cristiano Zanin disputam homem a homem quem apresenta seus recursos primeiro e, no fundo, quem cai mais nas graças do cliente famoso. Sepúlveda tem mais credenciais, como ex-presidente e grande referência no Supremo. Zanin, bastante esforçado, foi escolhido por ser genro de um dos maiores benfeitores de Lula, Roberto Teixeira.
Assim, Pertence, mais experiente, mais pé no chão, trabalha com a prisão domiciliar de Lula como lance na negociação com o Supremo. Mas o próprio Lula, a cúpula do PT e Zanin aderiram ao tudo ou nada, têm uma posição menos jurídica e mais política e não admitem um milímetro a menos do que a anulação da condenação do juiz Sérgio Moro e do TRF-4, com a conversão do réu em vítima. Por isso, a defesa acabou apresentando dois recursos conflitantes.
O primeiro foi para anular a condenação e todos os seus efeitos: a prisão e a inelegibilidade. O segundo, num evidente recuo, para anular apenas a prisão e deixar a questão da inelegibilidade para lá. Por que? Porque o PT pretende registrar a candidatura Lula até 15 de agosto e a partir daí guerrear contra a impugnação na Justiça Eleitoral, mas, se o STF confirmar a inelegibilidade antes, nada feito, a guerra já estará perdida. O STF tem sempre a última palavra.
Enquanto rola solto o confronto de egos e estratégias entre os advogados de Lula, mais o Supremo vai se organizando em três grupos. O dos que gritam pelo fim da prisão em segunda instância e, até lá, soltam todo mundo e abrem caminho para soltar Lula também. O dos que não soltam ninguém, não admitem votar pela quarta vez a prisão em segunda instância e não parecem dispostos a salvar Lula. E um terceiro que serve de pêndulo.
Assim, foram eleitos os “amigos” de Lula, os “inimigos” e as “incógnitas”. Entre os amigos, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello. Entre os inimigos, Cármen Lúcia – que vai chegando ao fim de sua presidência sem por em pauta a revisão da prisão após a segunda instância – e Edson Fachin, o “petista roxo” que bate de frente o tempo todo com os lulistas (desde sempre ou de ocasião) na Segunda Turma. Entre as incógnitas, Celso de Melo e Rosa Weber, que guardam seus votos para... a hora do voto.
E, assim, chegamos a julho com Cármen Lúcia no olho do furacão. Ela distribuiu a pauta de agosto sem os recursos de Lula, mas assume poderes monocráticos durante o recesso e pode decidir a qualquer momento levar esses recursos ao plenário na primeira quinzena de agosto. Uma responsabilidade monumental, porque impacta a Lava Jato, a autoestima do brasileiro, a percepção internacional sobre o combate à corrupção no Brasil, a eleição presidencial e, sem exagero, o rumo da história.
O Brasil está parado, com a respiração suspensa, não só pela disputa do hexa na Rússia, mas também pela indefinição de uma eleição que praticamente congelou. O líder nas pesquisas é uma ficção, o segundo é um perigo, os demais não vão nem para a frente nem para trás. Passada a Copa e decidido finalmente o destino de Lula (e, com ele, o da Lava Jato e da Ficha Limpa...), os advogados vão parar de correr e a eleição vai enfim andar. Na verdade, enfim começar.
Luiz Werneck Vianna: Os intelectuais e a aranha
O plano das ideias e das concepções do mundo definha e apresenta um cenário desalentador
A natureza balsâmica do processo eleitoral é um fato que se impõe à observação de quem se dedica à análise da cena moderna brasileira, momento em que “os de cima” calculam as condições que levem à preservação de suas posições de domínio e “os de baixo”, as oportunidades para terem acesso a mais direitos sociais e políticos. Dado que na nossa sociedade o voto se tornou universal e a democracia política encontrou âncora segura na Carta de 88, elementar que o sucesso eleitoral, diante das profundas desigualdades sociais e das diferenças regionais que nos caracterizam, dependa de uma feliz combinação entre as partes que compõem o tecido social. Pelo voto nenhuma delas ganhará tudo.
Se assim é, a negociação reveste-se de elemento-chave na disputa eleitoral em curso e sob esse registro tende a dissipar o clima de cólera e de intolerância com o outro até então dominante. Mais uma vez fica evidente que, entre nós, a forma superior de luta se trava no processo eleitoral - já confirmada no regime militar -, e não pelo recurso à luta armada, conforme lenda urbana ainda circulante em pequenos círculos da esquerda, usando uma expressão do repertório de sarcasmos do ministro Gilmar Mendes.
Dessa forma, embora persista a ação de renitentes que nos prometem uma catástrofe iminente, sem nenhum triunfalismo já se pode proclamar em alto e bom som que a crise que ameaçou a nossa democracia se encontra superada, em mais um momento de consagração da nossa Constituição. Com isso não se quer dizer que se tenha pela frente um horizonte aprazível - absolutamente não -, mas que os conflitos e as disputas que nos são próprios vêm encontrando, mesmo que apenas por ensaio e erro, as vias institucionais dos partidos, sindicatos e da vida associativa em geral, num processo com origem na sociedade civil, não no Estado, como resultou, por exemplo, na criação dos sindicatos na era Vargas e do PTB na agonia do regime autoritário de 1937.
Aos trancos e barrancos, a sociedade brasileira avança meio às cegas em direção ao moderno. Pode-se sustentar até que esse movimento que vem deixando para trás o peso da nossa tradição de décadas de modernização conservadora, nos termos da obra clássica de Barrington Moore, vem operando mais no terreno da societas rerum do que no da ação intencional dos homens.
Com efeito, as mutações demográficas, econômicas e sociais vindas dos impulsos modernizantes vindos do vértice político - tanto os de origem em conjunturas democráticas, como nos tempos do governo JK, quanto os conduzidos por regimes autoritários, como no Estado Novo, de 1937, e no recente regime militar - têm importado numa segura conversão do caos social com que nossa sociedade iniciou sua história para se tornar uma sociedade de composição demográfica racional ao capitalismo, categoria importante no arsenal teórico de um grande autor.
Tal mutação está na raiz da profunda crise política com que se abriram as jornadas de junho de 2013, movimento massivo da juventude “contra tudo o que está aí”, sinal forte de risco que os acontecimentos futuros vieram a confirmar, com o impeachment e a chamada Operação Lava Jato, significando, ao fundo, o estado de exaustão das práticas e concepções com que há décadas vínhamos sendo governados.
Fixada a observação no movimento das estruturas da societas rerum o cenário é, pois, o de mudança que se faz indicar no terreno dos fatos, como ilustra o conjunto de importantes reformas já introduzidas na vida econômica, a maioria delas de caráter irreversível. Contudo, se o olhar se desloca para o plano das ideias e das concepções do mundo, o curso da mudança, embora tenha havido nas últimas décadas uma altamente significativa expansão do estrato dos intelectuais nas universidades e nas atividades artísticas, definha e apresenta um cenário desalentador de mesmice e de pouca criatividade.
Na economia, numa das sociedades mais desiguais do planeta, tivemos de esperar a notável obra de Thomas Piketty, de edição recente, para que a produção dos especialistas se voltasse para esse tema estratégico. Nas ciências sociais, desprendemo-nos da excelsa tradição que vinha de um Gilberto Freyre, de Florestan Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso, de Raymundo Faoro, Roberto DaMatta, entre tantos nomes que se dedicaram a interpretar o País, para instalar em seu lugar os estudos identitários, que, embora importantes, certamente não têm a relevância do que foi o mainstream da reflexão disciplinar, tão necessário nesta hora em que se faz imperativa a busca de novos rumos.
O dilema perturbador de sempre no estudo das sociedades é o que importa mais para a observação, se a aranha ou a teia que ela tece, tal como na célebre metáfora com que Max Weber retrucou a um colega sobre suas diferenças com a teoria social de Karl Marx. A controvérsia sobre o tema provavelmente persistirá até o fim dos tempos, e esses mesmos gigantes do pensamento sempre oscilaram em suas respostas, ora favorecendo o papel do ator, ora dos fatos com que ele se enreda.
A grande transformação que a partir da Revolução de 1930 revolveu os fundamentos da sociedade brasileira, conduzindo-a do estágio agrário em que se encontrava para o urbano-industrial, foi antecedida por um intenso movimento de ideias nas elites intelectuais da época, de que são exemplares a obra de Euclides da Cunha, o tenentismo na juventude militar, a criação do Centro João Vital por intelectuais católicos, a Semana de Arte Moderna, em 1922, e a chegada, nesse mesmo ano, dos trabalhadores à cena política com a fundação do Partido Comunista.
O momento propício que experimentamos agora pode frustrar-se se os intelectuais - a aranha da metáfora de Weber - cederem ao ceticismo que ora grassa entre eles, abandonando de vez o exercício dos papéis de vanguarda com que marcaram a nossa trajetória como nação.
*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio.