O Estado de S. Paulo
Brasilio Sallum Jr.: Que crise é esta? Como sair dela?
Seguramente, há que reduzir o arbítrio das instituições judiciais e que transformar o vigor republicano que delas provém em reformismo democrático
Como responder a isso? As crises políticas são muito difíceis de analisar, mesmo quando encerradas. Que dizer, então, quando ainda estão em curso?
Nas crises se quebram as hierarquias que estruturam a vida política. Os atores – chefes de poder, lideranças, partidos, movimentos sociais, etc. – não conseguem ter uma razoável antevisão de como cada um vai agir e reagir diante dos posicionamentos dos outros. Aumenta muito a incerteza, já presente nos momentos normais da política.
E quanto à crise política atual? Acho que não há dúvida de que ela está pondo em jogo a democracia de 1988. Mas de que maneira, se todos a defendem? Alguma força maléfica a está atacando desde fora? Ou o funcionamento de suas próprias instituições acabou por levar ao evidente desequilíbrio que precisamos superar? Mas como?
O sociólogo Luiz Werneck Vianna, no livro de entrevistas Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual, lança luzes fortes sobre o período difícil que atravessamos. As entrevistas cobrem um período que começa em 2007 e vai até final de 2017. Surpreendentemente, para análises feitas ao longo de dez anos, há no livro notável consistência. Com efeito, há que reconhecer que o livro mantém uma perspectiva analítica e acaba por gerar interpretações agudas do processo que vivemos. Em vez de resumi-las – desmanchando o prazer dos que quiserem conhecê-las por si mesmos – destacarei apenas duas delas, especialmente relevantes para a análise e superação do presente.
Corrupção, moralismo e instituições judiciais. Desde as primeiras entrevistas do livro – de meados de 2008 –, Werneck Vianna chama nossa atenção, a propósito das acusações de corrupção contra Daniel Dantas e Eike Batista, para a forma espetaculosa e a índole messiânica das intervenções da Polícia Federal, do Ministério Público, do Judiciário. Longe está o entrevistado de desqualificar o combate à corrupção. O problema está em converter esse combate em centro dos problemas nacionais, exacerbando o moralismo da classe média. Com isso, as questões centrais da política – a mediocridade de nosso crescimento econômico, a concentração extrema da propriedade, a desigualdade social e a má representação política – ficariam relegadas a segundo plano.
Claro que o julgamento do mensalão e, especialmente, a Operação Lava Jato, revelando o alto grau de corrupção vinculada ao financiamento das campanhas eleitorais, exacerbaram o ativismo judicial, acabando por produzir um desequilíbrio institucional entre os poderes da República, em favor do Ministério Público e do Judiciário. O moralismo tem levado a desqualificar os poderes que devem sua legitimidade ao voto popular e, portanto, estão no cerne da democracia. Este ativismo – e os abusos que ocasiona – não se dá conta de que, apesar dos pesares, é a política que pode superar nossas deficiências, acentuando a dimensão democrática e republicana do regime de 1988.
O problema não está, pois, na Lava Jato. Ela tem função republicana, de denúncia do imbricamento espúrio entre a ordem pública e a esfera privada brasileira. Procuradores e juízes querem romper tal esbórnia, retomando – agora em nome da moralidade – o impulso reformista dos antigos tenentes. Tornaram-se “tenentes de toga”, que veem no Direito uma forma de transformar a vida social, de purificá-la, de construir uma verdadeira República. Não se dão conta de que é a política que, apesar dos pesares, pode reorganizar o Estado, acentuando sua dimensão democrática e republicana.
O ativismo judicial moralista não deve – em nome da ética da convicção – menosprezar as consequências mais amplas de suas decisões, deixando de lado a ética da responsabilidade. Conduzir coercitivamente para interrogatório um ex-presidente da República, tentar denunciar outro, recém-empossado, com base em denúncias pouco investigadas, bloquear com sucesso uma nomeação de ministro sem amparo constitucional e permitir o “vazamento” de denúncias e tantas outras manifestações contra políticos ajudam a desqualificá-los, produzem resistências, mas não estimulam a reforma das instituições políticas. A crítica não atinge o conjunto dos magistrados e dos procuradores nem descrê de sua capacidade de mudar, como atesta a substituição de Rodrigo Janot por Raquel Dodge – saudada como uma lufada de ar fresco.
A democratização, a esquerda e o Estado. Mas quais forças podem transformar a política brasileira? Certamente, as esperanças de Werneck estão na atuação das forças de esquerda. Tais esperanças, porém, têm sido frustradas porque elas abandonaram o caminho e as tarefas de organização e mobilização autônoma das classes subalternas. Este caminho que empolgou os que aderiram ao Partido dos Trabalhadores (PT) nos anos 1980 foi, aos poucos, abandonado em favor da composição com as forças políticas tradicionais, patrimonialistas. Depois, com a ocupação do poder central pelo PT, houve composição não só com as forças tradicionais – sem as quais não se governaria –, mas também se estimulou a absorção dos movimentos sociais e associações autônomas no Estado. Eles tornaram-se penduricalhos, dependentes do poder e dos seus recursos. Enterrou-se no governo Lula a reforma da legislação varguista, que eliminaria o imposto e a unicidade sindical. Foram mantidas as mesmas regras que perpetuam a dependência do Estado. E ainda se deu uma fatia do imposto sindical para as centrais sindicais. Retomou-se, assim, a idolatria do Estado, nascida da experiência fascista e da crença soviética no Estado libertador. A esquerda só retomará seu vigor se escapar ao estatismo e se orientar para a autonomia.
Por fim, como sairemos desta crise? Seguramente, há que reduzir o arbítrio das instituições judiciais e que transformar o vigor republicano que delas provém em reformismo democrático. Estas são algumas das muitas observações com que o sociólogo Werneck Vianna nos ajuda a ver luzes no fim do túnel.
*Brasilio Sallum Jr é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo
Alberto Aggio: Uma esquerda sem conceito
Mais uma vez pode-se registrar a distância sideral que sempre existiu entre o PT e Gramsci
Era o ano de 2001. Uma plêiade de intelectuais de esquerda reuniu-se no histórico edifício da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia, para celebrar os 25 anos do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e “Pensar o Brasil”. Lua Nova n.º 54, publicação da entidade, registrou as exposições e os debates. Naquela época ainda se podia reunir intelectuais para esse tipo de discussão. Ao contrário do que ocorre hoje, o debate intelectual importava para a construção de referências visando a elaborar algum pensamento de fôlego sobre o País e o mundo.
“Articular transformação com conservação” foi o tema que norteou a exposição de Marco Aurélio Garcia. Resgatar aquela exposição não é importante apenas em razão do conteúdo, mas também pela importância que o expositor assumiu nos governos do PT durante os 15 anos seguintes.
Questionando a tese de que nossa formação histórica fosse resultado de uma “transição por cima”, demarcando nossa “pronunciada especificidade”, Garcia afirmava que aquilo que “foi contabilizado de maneira geral como revolução passiva”, além de se voltar para o passado, seria tributário “de uma certa visão linear da história”. É significativo que um dos próceres do PT manifestasse uma visão francamente contrária à noção gramsciana de revolução passiva, desqualificando-a de maneira integral. Surpreende porque o conceito de revolução passiva, em Gramsci, não guarda absolutamente nada daquela visão obtusa da história. Surpreende, também, porque desde 1997 tínhamos à disposição A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil, seminal estudo de Luiz Werneck Vianna sobre o tema e seus rebatimentos no Brasil.
O oximoro da revolução passiva, formulado por Gramsci nos Cadernos do Cárcere, juntamente com uma específica noção de hegemonia, já era reconhecido, por inúmeros estudiosos, como o par essencial de uma nova teoria sobre a política. Impossível expor, com profundidade, o que dá sustentação a essa nova conceituação. Aqui farei apenas uma breve súmula.
Revolução passiva é uma categoria analítica voltada para a compreensão de uma época de transformação histórica na qual o “impulso renovador” não advém do desenvolvimento econômico local, e sim de ideias derivadas do desenvolvimento internacional. Por incapacidade de autoconstituição da sociedade nacional, o Estado assume um papel preponderante na condução das mudanças, autonomizando sua classe dirigente. Nestes processos de construção do moderno, a conservação pesa, mas não é uma condenação. É distinto de uma contrarrevolução. Não há reação integral à mudança e o que se sobrepõe nas relações sociais é um conjunto de transformações moleculares. A história muda, mas não por meio de revoluções explosivas.
Como contemporâneo da revolução bolchevique, do fascismo e do americanismo, Gramsci sugere que se poderia entender como revolução passiva processos reformistas de transformação da estrutura econômica rumo a uma economia planificada, superando os momentos mais liberais e individualistas do capitalismo do século 19. Para Gramsci, o mundo caminhava rumo ao que ele chamava de uma “economia de programação”, dirigida quer pela política, quer pelo Estado em sua trama privada (o americanismo). A categoria da revolução passiva possibilitaria, então, a compreensão não apenas das modalidades de trânsito ao moderno, mas também as modalidades de reprodução da dominação sob o moderno.
Essa compreensão da história dá suporte a uma nova teoria da ação a partir da identificação de um grande problema político: saber em que grau, alcance e através de que formas as classes subalternas teriam constrangido o seu protagonismo. Em outros termos: de que forma as classes subalternas poderiam se manter ativas nos contextos de revolução passiva. Com centralidade na democracia política, a luta pela hegemonia seria essencial para a manutenção das classes subalternas em plena ativação, descartando tanto a ideia de assumir a revolução passiva como seu programa quanto o voluntarismo jacobino de uma estratégia de “antirrevolução passiva”.
A revolução passiva, na arguta observação de Luiz Werneck Vianna, expressaria, simultaneamente, positividade “em termos de processo, uma vez que, no seu curso, a democratização social, por meio de avanços moleculares, se faz ampliar”, e negatividade, “porque a ação das elites se exerce de modo a ‘conservar a tese na antítese’”. O problema estaria no agir político capaz de obstar a lógica predominante do “conservar mudando” e, realisticamente, conseguir inverter os vetores, fazendo com que a mudança dirigisse a conservação. Rovesciare, colocar em pé a revolução passiva, ou girar o registro do transformismo, de negativo para positivo, eis o sentido do que se vem chamando de “novo reformismo”, inspirado em Gramsci, no qual democracia e reformas, por meio de consensos, visam a suplantar a oligarquização do Estado, ampliar a participação, sem suprimir a representação política.
Sensível ao nexo transformação/conservação, Marco Aurélio Garcia preferiu a crítica convencional à “linearidade da história”, recusando-se a dialogar com o que havia de melhor no “comunismo democrático” brasileiro, na sugestiva expressão de Maria Alice Rezende de Carvalho. O rechaço à angulação da revolução passiva impediu a adoção de uma estratégia reformista fundamentada teoricamente e aberta à inovação.
Por que o intelectual petista optou, como está no final da sua exposição, por uma escolha burocrática que descrevia de maneira superposta e simplista as questões democrática, social e (pasmem) nacional como o feixe de problemas que se deveria enfrentar para mudar o País? Difícil dizer, mas o que se pode inferir é que foi uma escolha consciente.
Mais uma vez pode-se registrar a distância sideral que sempre existiu entre o PT e Gramsci. O resto da história dessa esquerda avessa a conceitos é conhecido.
Eliane Cantanhêde: Coisa de lunático
No mundo político, só se fala em vices; no mundo real, nem se fala nos presidenciáveis
Os eleitores demonstram profunda indiferença pela eleição e não estão nem aí para os próprios candidatos à Presidência da República, quanto mais para aqueles que disputam as vagas de vice. Mas, no mundo político, só se fala nisso, freneticamente: quem vai ser vice de quem?
As pesquisas em São Paulo – São Paulo! – mostram que muita gente ainda nem sabe que Geraldo Alckmin, ex-governador do Estado por três vezes, é candidato novamente à Presidência. E elas vão se preocupar com o vice? Sem Josué Gomes da Silva, que nove entre dez presidenciáveis disputavam, está aberta a disputa entre PP, PR, DEM, Solidariedade e PRB para indicar o (ou a) vice. Sem esquecer o PSD.
Já o caso do PT de Lula e do PSL de Jair Bolsonaro é ainda pior. Oficialmente, o PT nem candidato a presidente tem, com Lula preso em Curitiba e Fernando Haddad rouco de tanto dar entrevistas, mas só como “coordenador do programa”. As opções para vice dependem do cabeça de chapa e de alianças que, até agora, não vieram.
Já Bolsonaro convive com uma profusão de nomes para a vice, um mais engraçado do que o outro. Os últimos são o do “príncipe” Luiz Philippe de Orleans e Bragança e do astronauta Marcos Pontes. Os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto devem estar se remoendo no céu, ou na cova, diante desse namoro de um capitão reformado do Exército com a monarquia, derrubada a duras penas. E o que dizer de um astronauta na vice? É piada pronta, ou coisa de lunático.
Bolsonaro já pensou em ter na vice o senador Magno Malta, pastor evangélico, e dois generais reformados, Augusto Heleno e Hamilton Mourão, mas a preferida é a professora Janaina Paschoal, uma das autoras do impeachment de Dilma Rousseff – e que chorou quando o próprio pedido deu certo.
Se Bolsonaro tem essa profusão de opções, Ciro Gomes está no lado oposto: rejeitado pela esquerda e pelo Centrão, não consegue fechar alianças e chega à reta final sem nenhum nome forte para a vice. Vai depender das negociações do PDT com o PSB – que está dividido entre apoiar Ciro, agarrar-se a Lula ou liberar geral para cada um fazer o que bem quiser.
E Marina Silva, que era vice de Eduardo Campos e assumiu a cabeça de chapa com a morte dele, só acena com nomes da própria Rede, o que equivale a chover no molhado. Chapas puro-sangue (com candidato a presidente e a vice do mesmo partido) são próprias de siglas fortes, com estrutura, boas bancadas e tempo de TV. Não para pequenos partidos isolados, sem nenhuma dessas condições ou vantagens.
Mas, afinal, por que esse frenesi pela definição da vice, se nem os próprios candidatos a presidente empolgam? Primeiro, por uma questão prática: vice consolida alianças, traz tempo de TV, “agrega valor” regional, ou de gênero, ou financeiro, às campanhas. Segundo, por uma questão mais simbólica, hipotética: a história registra que José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer só viraram presidentes por impedimento dos titulares. Um golpe de sorte? Só tem sorte quem está bem colocado, no lugar certo e na hora certa.
Os próprios eleitores já encamparam a ideia de que impeachments não são bichos de sete cabeças e podem muito bem acontecer. São parte do jogo. Aliás, pesquisa estimulada Record-Real Time detectou que 33% se declaram “muito preocupados” e 17% “razoavelmente preocupados” com a possibilidade de o futuro presidente seguir a trajetória de Collor e Dilma e sofrer impeachment. E lá viria mais um vice.
A advertência do juiz Sérgio Moro no Fórum Estadão de quarta cai como uma luva nesse contexto: o resultado da eleição não pode pôr em risco a Lava Jato. Senão, o pau vai comer e o vice é que vai se dar bem.
Fernando Gabeira: Sísifo e o Centrão
Eleitores podem colocar a pedra lá em cima para vê-la, de novo, rolar montanha abaixo
Algumas coisas que deveriam estar juntas correm em dimensões ainda diferentes no Brasil, realidades paralelas: o aumento do índice de mortalidade infantil, como sintoma de decadência, e a campanha eleitoral no Brasil. O desencontro da vida real com a política se deve também ao momento em que campanha significa muito arranjo entre partidos, composições, definições de tempo de TV, escolha de vices. É como se o jogo ainda estivesse sendo discutido no vestiário, antes que saia para o campo aberto, diante da plateia.
Mas as notícias que vêm pelo túnel já nos dão matéria para pensar. O famoso bloco parlamentar chamado Centrão é uma das referências do quebra-cabeças. Esta semana, o Centrão decidiu apoiar Geraldo Alckmin. E o mercado reagiu positivamente à notícia.
Uma aliança com o Centrão significa a continuidade do que está aí: ocupação política dos cargos, troca de votos por verbas, enfim, um roteiro que não é necessário relembrar.
O mercado, que aparentemente almejava mudanças, acabou se conformando com a continuidade. Seria isso a manifestação de um senso comum? Não sei bem o que seria um senso comum. Aliás, Leonardo da Vinci tem um belo desenho de crânio em que apontou uma pequena cavidade onde seria o senso comum, o espaço para onde convergem todas as sensações.
Transplantado da fantasia física de Da Vinci para o campo social, o senso comum também poderia estar em outra manifestação: a das pessoas que dão as costas para a política porque rejeitam seus sórdidos métodos. Estas querem mudança, certamente, mas provocam a continuidade. O oposto do que desejam.
A rigor, continuidade dificilmente haverá. Se o mesmo esquema for mantido, as coisas vão piorar. O Congresso já armou uma bomba fiscal que certamente tornará um novo presidente mais vulnerável.
A experiência recente do Congresso foi a de tratar com dois presidentes fracos que precisavam dele para sobreviver no cargo. Dilma caiu, mesmo tentando negociar. Temer teve êxito na negociação para escapar. A correlação de forças entre presidente e Congresso foi alterada por essas experiências recentes. E isso, é claro, vai repercutir no ano que vem. Não importa o presidente vitorioso, de qualquer forma, ele terá de atravessar essa barreira de troca de votos por cargos e verbas.
O mundo real continuará em perigosa decadência. Até gripe se tornou mais letal, num país onde o sarampo reaparece.
Os custos de serviços públicos ineficazes foram sentidos em 2013 e expressos no desejo de ver o dinheiro dos impostos ser mais bem empregado. O impacto da corrupção foi sentido a partir de 2015, com os primeiros lances da Operação Lava Jato. Existe o perigo de que todo este processo de tomada de consciência se sinta frustrado com o desenrolar de uma eleição que pode prolongar a crise.
Impossível prever muitos lances à frente, no entanto torna-se mais claro que, embora o foco se ache na eleição presidencial, é no Congresso que se armam algumas bombas, inclusive a tentativa de acabar com a Lava Jato.
Não vejo saídas brilhantes num cenário em que os partidos, cheios da grana, vão permanecer no poder. Exceto uma atenção maior na eleição para o Congresso e a tentativa de criar uma minoria que defenda a sociedade deste mecanismo vampiresco.
Ainda assim, num tipo de luta como este, a minoria tende a ser isolada e as vitórias se contam em desastres evitados, picaretagens abortadas. O rumo, mesmo, é difícil de mudar.
Nem tudo é sombrio. Graças à Lava Jato, aumentou o risco nos processos de corrupção. Nas composições políticas de agora dificilmente vai entrar dinheiro vivo. É um avanço relativo, porque o rateio dos cargos públicos pode se tornar uma máquina de fazer dinheiro.
Nesse raciocínio, algo que talvez pode ser útil é enfatizar no debate a importância da relação presidente-Congresso e tentar liberá-la, ainda que parcialmente, de seu caráter fisiológico.
Não é uma solução do tipo “seus problemas acabaram”, mas cairia bem no Brasil o sistema francês: eleições parlamentares na semana seguinte à eleição presidencial. O calendário fortalece uma aproximação programática, a tendência dos eleitores é a de garantir maioria para seu presidente eleito.
Isso nem sequer foi pensado numa reforma política, cujo principal objetivo foi o de perpetuar as forças existentes com seus mecanismos de poder. Duas tímidas exceções foram a adoção de uma cláusula de barreira e o fim das coligações proporcionais.
O quadro descrito aqui não é um destino inexorável. Mas o fato de que o Centrão negocia em bloco antes mesmo das eleições e está preparado para exercer uma influência decisiva nos anos que seguem é preocupante. Desde já, aparece como um dos nós a serem desatados.
Como o jogo está sendo discutido no vestiário, não veio ainda a campo aberto e o grande público não se manifestou, ainda existe esta variável da reação popular em aberto.
Mas algumas das regras foram escritas pelos próprios jogadores: até mesmo a latitude dessa variável foi reduzida.
Restam apenas a crise e sua dolorosa pedagogia, sobretudo quando se torna mais aguda. De um modo geral, atinge os mais vulneráveis, e o sistema político, por meio de aumento de impostos e outros sacrifícios sociais, tenta se manter incólume.
Caminhamos para o futuro com um modo de governar chamado governo de coalizão que contém todos os vícios do passado. Como Sísifo, a maioria dos eleitores brasileiros pode colocar a pedra lá em cima para vê-la, de novo, rolar montanha abaixo.
Os filósofos discutem uma saída para essa maldição entre suicídio e revolta. Em termos políticos, certamente haverá muitas nuances, mas algum tipo de revolta é inevitável no horizonte.
A Venezuela está se derretendo e terá inflação de um milhão por cento. Parece ficção, mas já aconteceu na Alemanha em 1923 e na Rodésia no princípio do século.
Dominados por predadores, da esquerda ou da direita, os países se tornam quase inviáveis.
O Estado de S. Paulo: Moro vê resultado da eleição como risco à Lava Jato
Para juiz, País precisa do ‘exemplo de lideranças honestas’ e de políticas que reduzam ‘incentivos’ para a corrupção
Por Eduardo Kattah e Fausto Macedo, do Estado de S. Paulo
O juiz federal Sérgio Moro admitiu que o resultado das eleições deste ano está inserido no que ele chama de “risco de retrocesso” no combate à corrupção, simbolizado na Operação Lava Jato. Moro disse que o País precisa “do exemplo de lideranças honestas” e “de políticas mais gerais para diminuir os incentivos e oportunidades da corrupção”.
O magistrado participou nesta quarta-feira, 25, do Fórum Estadão Mais governança e mais segurança, promovido pelo Estado e realizado em São Paulo. Moro foi um dos debatedores do painel O Combate à Corrupção, do qual participaram o advogado criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira e o promotor de Justiça Marcelo Mendroni, do Ministério Público paulista.
Após a mesa, em entrevista ao Estado, o juiz disse que discussões como esta precisam ser feitas no período eleitoral, pois “a corrupção espalhada, disseminada e profunda” é um dos principais problemas que a sociedade brasileira precisa resolver.
“Minha ideia principal em relação a isso é, primeiro, a Justiça tem que funcionar. Então, pessoas culpadas têm que ser punidas, segundo o devido processo, mas não só isso é suficiente. Precisamos do exemplo de lideranças honestas e, por outro lado, precisamos de reformas de políticas mais gerais para diminuir os incentivos e oportunidades à corrupção.”
O futuro da Lava Jato
Moro observou que ainda existem processos pendentes de julgamento na Lava Jato e a expectativa é de que “cheguem a bom termo”. “A dúvida é o que vai acontecer daqui para a frente. Vamos retomar aquela tradição de impunidade ou isso representou uma quebra significativa? Nessa perspectiva existe sempre um risco de retrocesso em relação a esses avanços. E há um risco, ainda, que nós não avancemos mais. Para avançar mais, precisamos, além de processos efetivos contra a corrupção, de mudanças políticas mais gerais nas leis para diminuir os incentivos e oportunidades para a corrupção. Mas os riscos sempre permanecem. Isso é algo que não vai ser dessa eleição, nem da próxima, sempre vai existir esse risco. Eu espero que não se concretize.”
Questionado, ele preferiu não comentar as declarações do candidato do PDT à Presidência da República, Ciro Gomes, que afirmou que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – preso e condenado na Lava Jato – só terá chance de sair da cadeia se ele, Ciro, for eleito.
O pedetista disse em entrevista a uma emissora de TV do Maranhão, no dia 16, que é preciso “botar juiz para voltar para a caixinha dele, botar o Ministério Público para voltar para a caixinha dele e restaurar a autoridade do poder político”.
Provocado sobre uma suposta intenção de se restaurar a autoridade política – expressão usada por Ciro –, Moro afirmou que não enxerga nenhum problema entre juízes e agentes políticos. “O que acontece nesses casos já julgados é que foi constatado que agentes políticos cometeram crimes e eles têm que pagar pelos seus crimes, como qualquer outro cidadão. Então, não existe nenhuma disputa fora desse nível, entre um juiz criminal e um agente político.”
Prisão após condenação em segunda instância
A respeito da possibilidade de o Supremo Tribunal Federal rever o entendimento que autoriza a prisão após condenação em segunda instância, o juiz disse considerar “improvável”. “Muito difícil prever. Me parece, no entanto, que esse precedente foi tomado pela primeira vez em 2016 e reiterado três vezes, depois, no Supremo. Então, me parece um tanto quanto improvável uma alteração da jurisprudência do Supremo, embora seja algo possível e eu possa estar enganado.”
Apesar dos diversos casos de corrupção na seara política e a extensão da Operação Lava Jato nos últimos anos, Moro manifestou otimismo. “Não se pode pensar que a solução para o Brasil é a fronteira ou o aeroporto. Não existe nenhum problema irremediável. Existem na história países que tiveram problemas sérios de corrupção, alguns até mais profundos que o Brasil, e conseguiram melhorar os seus níveis de governanças. Por exemplo, a Geórgia, a ex-República Soviética, os próprios Estados Unidos eram um país extremamente corrupto no início do século passado.”
Zeina Latif: Corrida maluca
O problema é a ausência de reflexão e a incapacidade do PT de modernizar sua agenda
Sobram truques, oportunismo e trapalhadas nessa corrida eleitoral. Difícil dizer o que é pior: o silêncio de Jair Bolsonaro sobre temas básicos de economia ou a incapacidade do PT de renovar sua agenda econômica.
Bolsonaro exerce seu 7.º mandato de deputado federal desde 1991 e já passou por 9 partidos. Apesar disso, ele se apresenta como “cara nova” e antiestablishment. O marketing parece funcionar, ironicamente, devido à sua exígua atividade parlamentar.
Em um país com tantos desafios, surpreende um parlamentar tão longevo ser principiante. Ele insiste, pois, em delegar ao coordenador de seu programa econômico, Paulo Guedes, as questões centrais de seu plano de governo, sendo que a agenda de cunho liberal de Guedes contrasta com sua atuação no Congresso. Isso alimenta as incertezas de como seria seu governo de fato.
Um estudo da XP, elaborado por Victor Scalet, sobre a atuação do parlamentar aponta que 46% das suas proposições tiveram cunho corporativista, com destaque para a defesa de militares e profissionais de segurança. Outros 10% vão para temas relacionados a porte de armas, que ganharam relevância mais recentemente. A segurança pública, curiosamente, não foi contemplada.
Bolsonaro foi contra as reformas estruturais, a começar pela oposição ao Plano Real. E assim seguiu para a quebra dos monopólios do petróleo e das telecomunicações e as reformas administrativa e da Previdência na gestão Fernando Henrique Cardoso.
Bolsonaro diz ter mudado de opinião. Não há problema nisso. É o que fazem políticos comprometidos ao se defrontarem com seus equívocos. Mas, se ele mudou, o que exatamente pensa? O eleitor está no escuro em relação às suas reais pretensões.
Aprendemos com a experiência malsucedida de Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma Rousseff em 2015, a falta que faz a convicção do presidente. Não basta delegar.
Fernando Haddad, possível candidato e coordenador da campanha do PT, silencia sobre a culpa do governo Dilma pelo desastre econômico. Sem surpresas aqui. O problema é a ausência de reflexão e incapacidade do PT de modernizar sua agenda, diferente de outros segmentos da esquerda que buscam uma renovação.
Os “choques liberais” que Haddad promete não são observados em suas propostas, que são intervencionistas, imediatistas e superficiais. Lembram o governo Dilma, com improvisos, busca de atalhos e pouco apreço a diagnósticos cuidadosos. Distanciam-se bastante do primeiro mandato de Lula, que seguiu uma política econômica responsável e mais moderna.
Haddad tem o mérito de admitir a importância da reforma da Previdência, ao contrário de Marcio Pochmann. Suas propostas econômicas, porém, são incompreensíveis.
A proposta de elevar a tributação de bancos com juros mais altos reflete uma incompreensão das principais causas do spread elevado – inadimplência alta e cara devido à insegurança jurídica, carga tributária, crédito direcionado, dificuldade de acesso a informações e questões regulatórias – e de como funciona a economia. Se a medida for implementada – algo particularmente difícil por conta da complexidade do mercado de crédito –, a oferta de crédito diminuiria e o spread voltaria a subir com o tempo. Tiro no pé. Melhor implementar a agenda proposta pelo Banco Central para redução do spread bancário. Não precisa inventar.
Outra medida equivocada seria a venda de reservas internacionais para financiar investimentos, o que demandaria mudanças nas regras que regem sua utilização. O impacto seria pontual e muito limitado, pois o problema do Brasil não é a falta de recursos, mas sim o pouco apetite para investimentos produtivos em um país caro e onde as regras do jogo são complexas e mudam com frequência.
Ao final da corrida, a esperança é que Bolsonaro tenha realmente mudado de opinião e que evite temas econômicos por reconhecer seu despreparo. E com Haddad, a esperança de que não consiga implementar o que pretende.
*Zeina Latif é economista-chefe da XP Investimentos
José Serra: Ajuste fiscal: quantidade e qualidade
Felizmente, começa a ser levado em conta o enfoque qualitativo dos gastos e da tributação
As propostas de enfrentamento dos problemas fiscais brasileiros têm se centrado nos aspectos quantitativos da questão. Nessa perspectiva, a essência das medidas a serem tomadas enfatiza a redução das despesas, seja dos gastos diretos, seja dos chamados “gastos tributários”, que envolvem isenções e subsídios bancados direta ou indiretamente pelo Tesouro. Sem mencionar também o aumento ou a diminuição de receitas – por exemplo, a redução da PIS/Cofins no diesel ou a elevação do IOF, feitas recentemente.
Esse enfoque é natural e até correto, mas, em geral, são deixadas de lado questões referentes à qualidade dos gastos e da tributação. Felizmente, essa perspectiva começa a ser levada em conta. Não foi por menos que a nova Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que vai balizar a elaboração do Orçamento de 2019, recentemente aprovada pelo Congresso Nacional, traz um avanço importante nessa direção. O próximo presidente da República deverá enviar ao Congresso, até março do próximo ano, um plano de revisão de despesas e receitas para vigorar durante os quatro anos de seu mandato. Tal medida, nada trivial, abrirá caminho para a prática, adotada por diversas economias avançadas, conhecida como Spending Reviews, pela qual programas governamentais são continuamente revisados segundo avaliações de custo e benefício. O objetivo é economizar sem prejuízo da prestação de serviços pelo Estado.
Dada a importância de implantar no País a avaliação sistemática dos programas orçamentários, entendo que sua regulamentação deveria fazer parte de uma legislação mais estável – como leis complementares. Isso porque, pela Constituição, as leis de diretrizes orçamentárias são anuais e ordinárias e, assim, suscetíveis de alterações relativamente fáceis de fazer. Em leis ordinárias, o Poder Executivo consegue sem grande esforço mudar ou anular dispositivos restritivos ou que considere inconvenientes.
Independentemente das ponderações sobre onde hospedar a revisão periódica de gastos, acredito que o texto inserido na LDO, relatado pelo senador Dalirio Beber, está tecnicamente interessante. A revisão poderá alcançar benefícios de natureza financeira, tributária ou creditícia e, para ser efetiva, deverá trazer as correspondentes proposições legislativas acompanhadas das estimativas de impacto.
Especificamente no que tange às receitas, as proposições legislativas têm de dar lugar a medidas que reduzam renúncias fiscais e/ou aumentem a arrecadação, bem como estabelecer prazos para cada benefício tributário concedido, juntamente com um cronograma para reduzir o montante do volume fiscal renunciado a um limite de 2% do PIB. Cabe, aqui, lembrar que o gasto tributário – como também são chamados os benefícios fiscais tributários – representa hoje 4% do PIB, ou 8 vezes o que o governo federal gastou com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no ano passado, isto é, 0,5% do PIB!
Avaliações de impacto dos programas orçamentários e das políticas creditícia e tributária podem respaldar revisões na legislação vigente – seja para aperfeiçoar determinado programa governamental, seja para encerrar o que não deve receber muita prioridade. Não dá mais para vivermos sob políticas públicas tortamente elaboradas, megalomaníacas ou não, baseadas em pura e temerária intuição.
Na experiência internacional, os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotam distintos modelos de revisão de despesas e receitas. Mas alguns princípios fundamentais são comuns. Existem as revisões que se concentram em ganhos de eficiência em áreas específicas do orçamento e também aquelas de cunho estratégico, voltadas para a readequação da oferta de determinado bem ou serviço. Neste caso se utilizam critérios para identificar gastos ineficazes ou de baixa prioridade.
As avaliações são elaboradas a partir de técnicas específicas para medir os custos e os resultados alcançados com uma política pública. O plano de revisão de despesas e receitas, por sua vez, serve para organizar e encadear medidas de economia orçamentária, seja com melhoria na eficiência das políticas objeto de ajuste ou no seu simples encerramento, nos casos mais extremos. São ações necessariamente complementares.
É preciso reconhecer que a União vem avançando neste processo de avaliação, ainda que lentamente. Em 2016, por exemplo, foi criado o Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) para fortalecer a governança e melhorar a efetividade dos principais programas governamentais. Importa sublinhar, também, estudos recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) voltados para avaliar políticas públicas. Destaco aquele que mensura o impacto da desoneração da folha de pagamentos sobre o emprego, implementada a partir de 2012. Segundo esse estudo, não há evidências de melhorias no nível de emprego decorrentes dessa política. Temos, assim, um exemplo de política a merecer urgente revisão, ou eliminação.
O próximo presidente da República terá o enorme desafio de fazer acontecer um ajuste fiscal para valer nas contas públicas do governo federal, mas não pode paralisar o Estado, pois o País precisa investir mais, especialmente em infraestrutura. Nada seria mais irracional do que os usuais cortes lineares de despesas ou aumentos erráticos de impostos.
O plano de revisão de despesas e receitas previsto na LDO aprovada neste ano para orientar a lei orçamentária de 2019 poderá ser o instrumento para que se comece a promover, para valer, a conexão entre as avaliações e as revisões das políticas públicas em nosso país. Por que não, se tantas outras nações conseguiram promover essa conexão?
O que acham disso os atuais candidatos a presidente?
*Jose Serra é senador (PSDB-SP)
Vera Magalhães: Tutela e intervencionismo
A proposta de governo do PT é um programa intervencionista, mas que é vendido por Fernando Haddad como um 'diálogo com a modernidade da base para o topo'
No roadshow que promoveu na função de dublê de coordenador de programa de governo e candidato a candidato real à Presidência pelo PT, Fernando Haddad usou sua conhecida ironia para dizer que a proposta de governo do partido promoveria um “choque de liberalismo”.
Trata-se, isso sim, de um libelo em favor do intervencionismo estatal, da tutela a instituições públicas e privadas e até a outros Poderes e da reedição da política econômica de Dilma Rousseff que mergulhou o País na recessão.
Haddad diz que falta regulação às concessões de comunicações, mas, quando se põe a detalhar sua proposta, revela a intenção de controle sobre o conteúdo da imprensa, ao falar em espaço para “representatividade étnica”, “liberdade de expressão para camadas vulneráveis” e “compromisso com a diversidade”, todos eles conceitos subjetivos o suficiente para abranger alta carga de ideologização e partidarização.
Da mesma maneira, quando fala em controle “social” do Judiciário e do Ministério Público, resta subjacente a intenção de tutela do Poder e da instituição que nos últimos anos foram escolhidos pelo PT como inimigos, que promoveriam uma suposta perseguição ao partido.
A proposta petista de redução dos spreads bancários aumentando a tributação remete ao ápice da tese dilmista de baixar juros ou preço de tarifas na canetada. “Conceitualmente a proposta está errada porque usa um instrumento (tributo) para atingir um objetivo (reduzir o poder de mercado dos bancos) que não é atendido pelo instrumento. Tributo não é instrumento de elevação de competição”, diz o economista Samuel Pessôa.
O PT chegou ao poder em 2002 com um discurso, aí sim, pró-mercado, expresso na tal carta ao povo brasileiro. Colhido pelo mensalão e o petrolão e apeado do poder depois de 13 anos pelo impeachment de Dilma, o partido retroage às ideias econômicas pré-2002 – que, empregadas no governo dela, deram em desastre.
Na política, mira as instituições com tutela para tentar atribuir a um complô o fato de seus principais líderes estarem presos ou denunciados.
O resultado é um programa intervencionista, mas que é vendido por Haddad como um “diálogo com a modernidade da base para o topo”.
ENTREVISTA
Mauro Benevides Filho, economista do presidenciável Ciro Gomes (PDT)
‘As nossas propostas agora são consenso’
O economista Mauro Benevides Filho, coordenador do programa de governo de Ciro Gomes, responde a objeções do PT a propostas apresentadas pelo candidato pedetista ao Palácio do Planalto.
• O que achou do programa de governo do PT, detalhado por Fernando Haddad? Ele criticou a proposta de reforma da Previdência de Ciro Gomes.
Acho engraçado que, aos poucos, nossas propostas, antes consideradas absurdas, vão virando consenso. Taxar dividendos e lucros agora é consenso. A mesma coisa com heranças. A capitalização como novo regime de Previdência não é consenso ainda, mas vai ser.
• Haddad diz que ela, no curto prazo, aumenta o problema fiscal.
Não é preciso ser doutor em ciência atuarial para saber que o regime de repartição está falido. Acho engraçado que a imprensa se inibe de perguntar que conta é essa que mostra que a transição para o regime de capitalização é cara. Que conta é essa? Ninguém fez. Nós fizemos, e o Ciro vai mostrar no fim do mês, quando vai mostrar a proposta fechada de reforma da Previdência que defendemos.
• Sem alianças e com as declarações polêmicas, Ciro pode perder lugar no segundo turno para o PT?
Não tem isso de falar demais. Ciro será o próximo presidente. Quem tem compromisso com rigor fiscal maior que ele? Quem resgatou a dívida mobiliária de seu Estado antecipadamente quando governou? Ciro é o único que tem dito como vai fazer, com números: quanto vai arrecadar com cada imposto, quanto e de onde vai cortar benefícios.
O Estado de S. Paulo: 'A questão no Brasil não é esquerda ou direita', diz Manuel Castells
Sociólogo espanhol vê embate entre partidos democráticos e uma coalizão neoautoritária
Por Caio Sartori, de O Estado de S.Paulo/Aliás
Cinco anos depois de um junho cujos sentidos permanecem em disputa, a ideia do “não me representa” domina o debate político global. Cada uma com suas particularidades, as democracias vêm testando a capacidade de resistência em meio a uma crise que parece distanciar o cidadão da política institucional. É daí que surgem políticos e movimentos, à esquerda ou à direita, na Venezuela ou na Hungria, que colocam em xeque o modelo democrático como o conhecemos.
Foram décadas de conquistas institucionais antes de chegarmos ao atual estágio de recessão democrática – para usar o termo do cientista político americano Larry Diamond. A literatura sobre o tema, que vem se avolumando, ganha mais uma voz com o lançamento de Ruptura: A Crise da Democracia Liberal (Zahar), do sociólogo espanhol Manuel Castells. Na Espanha do autor, onde desde a redemocratização nos anos 1970 a via institucional vinha se consolidando, o turbilhão político tomou conta nos últimos anos – e culminou com a destituição do primeiro-ministro Mariano Rajoy no início de junho último.
Mas de que falamos quando citamos a democracia liberal? O autor elenca algumas características: respeito aos direitos básicos e políticos dos cidadãos; separação de poderes; eleições livres e periódicas; submissão do Estado aos escolhidos pelo povo; não-influência de “poderes econômicos ou ideológicos” na condução dos assuntos públicos por meio da cooptação do sistema político.
Quando, segundo Castells, esses princípios começam a erodir num cenário de crise econômica, institucional, social e moral, a resignação se transforma em indignação. Tudo o que até então era aceito – afinal, o voto foi dado e a representação, em tese, estava em curso – começa a desmoronar. Pode esse modelo de democracia liberal, em que o voto serve como guardião da representação, se sustentar? Colocá-lo em xeque e se decepcionar com suas limitações significa questionar a democracia em si?
São vários os exemplos mundo afora de países que disseram não ao modelo: a Hungria de Viktor Orban, que, entre outras medidas questionáveis, criminalizou a ajuda aos imigrantes; a Polônia do Partido da Lei e da Justiça, onde 27 juízes da Suprema Corte foram afastados compulsoriamente pelo Executivo no início deste mês. Mas o melhor exemplo, porque simbólico, talvez seja o dos Estados Unidos, considerado o líder do “mundo livre”.
Castells se debruça sobre a eleição de Donald Trump em 2016 para compreender as origens da ira que nos fez chegar a este ponto. A globalização, diz, “incita a buscar refúgio na nação”. Nação esta apresentada por novos atores políticos que se dizem diferentes, criticam a corrupção e apelam para um nacionalismo muitas vezes xenófobo, embalados pelo medo do terrorismo. Contra tudo o que está aí, prometem a ruptura.
É nessa questão, aponta o sociólogo espanhol, que as diferentes respostas à crise da democracia liberal convergem. A vitória de Trump, o Brexit no Reino Unido, a decomposição do sistema político francês. Mas há diferenças – e algumas respostas podem vir a melhorar o modelo democrático.
Espanha. Mais associado à esquerda, Castells destaca positivamente o que ocorreu na Espanha com o surgimento do movimento 15-M, que ocupou as ruas de Madrid de 2011 em diante e demandou uma ‘democracia real’. Foi dali que surgiu a base do Podemos, partido que impulsionou uma nova configuração do campo progressista desde então – atualmente, compõe a base do novo primeiro-ministro, Pedro Sánchez, do tradicional PSOE.
O sociólogo acusa a esquerda clássica espanhola (PSOE) de, ao longo da década passada, perder a capacidade de articulação dos interesses populares para além da institucionalidade – crítica parecida com a de quem acusa o governo Lula de cooptar os movimentos sociais. “A tão ansiada democracia se reduziu à partidocracia”, escreve.
Num cenário em que as diferenças entre o PSOE e a direita ficaram cada vez menos perceptíveis, a crise econômica teve como subterfúgio a ajuda do Banco Central Europeu, cujas contrapartidas costumam exigir o corte de gastos públicos. Foi ali, diz Castells, que a já existente crise de legitimidade política se transformou em crise social, com o aumento do desemprego. Do vazio de credibilidade surgiu o clamor pela democracia real.
Num ano em que o mundo ainda busca os sentidos de um maio vivenciado há 50 primaveras, é possível entender o significado de eventos que tomaram as ruas há menos de dez anos? Castells faz uma leitura parecida com a mais recorrente em torno do maio de 1968: aquele 2011 recheado de utopias teria germinado os debates em torno da dignidade, da igualdade de gênero e, entre outras bandeiras, da “possibilidade de uma vida diferente, para além da burocracia e do mercado.” Causas que transcendem a institucionalidade e preenchem com vida a nostalgia que costuma suceder grandes movimentos.
Castells respondeu a algumas perguntas feitas pelo Aliás sobre Brasil, Espanha e União Europeia:
O senhor crê na possibilidade de candidatos de partidos sem muita capilaridade venceram a eleição presidencial brasileira mesmo com o peso das máquinas partidárias? Muitos apostam em uma queda gradual de Jair Bolsonaro e Marina Silva no decorrer da campanha.
As máquinas regionais são decisivas por sua capilaridade e porque são a base do clientelismo e, portanto, da corrupção. Creio que tem razão quando diz que Bolsonaro irá cair – o poder econômico brasileiro não é aventureiro. No entanto, a política tem sua lógica própria e uma campanha demagógica em plena confusão e com crise econômica pode causar uma hecatombe institucional. O manifesto dos partidos de centro liderado por (Fernando Henrique) Cardoso é uma chamada de atenção ao perigo que representa Bolsonaro, e creio que pode ser um fator decisivo para deter a crise da institucionalidade. Hoje, no Brasil, a grande questão não é esquerda ou direita, e sim partidos democráticos (ainda que corruptos) contra uma coalizão neoautoritária apoiada por grupos de interesses ideológico extremistas internacionais.
Apesar de toda a inovação do Podemos, quem volta ao poder enquanto esquerda na Espanha é o tradicional PSOE. Quão influente é a existência do Podemos para o novo governo de Pedro Sánchez?
Há uma nova política na Espanha que surge do movimento 15-M. Não só o Podemos surge do 15-M, como Pedro Sánchez afirma se inspirar em muitos dos valores desse movimento. A aliança parlamentar entre PSOE e Podemos já é um feito e só mediante essa colaboração pode se desenrolar o novo projeto reformista e democrático espanhol. Tudo depende de que nos anos até as eleições essa aliança possa aprovar políticas sociais progressistas a fim de se consolidar no poder por meio das eleições. Há uma convergência explícita entre Sánchez e Iglesias (líder do Podemos), algo semelhante ao que ocorre em Portugal, o país europeu que melhor funciona política e economicamente no momento. O grande problema segue sendo a Catalunha, difícil de resolver por causa do radicalismo do presidente catalão e a utilização desse radicalismo por parte do nacionalismo espanhol representado pelo partido Ciudadanos, cuja base de apoio se alimenta da oposição a Catalunha. Sánchez está tentando dialogar e conciliar, mas os nacionalismos dificultam.
O sr. crê na possibilidade de Portugal e Espanha, que historicamente não têm muito peso na União Europeia, influenciarem a política de Bruxelas por meio da negação da austeridade? Quão simbólica é a posse de Mário Centeno, o ministro das finanças portuguesas, como presidente do Eurogrupo?
Portugal está demonstrando que uma política sem austeridade, mas com rigor fiscal, é mais adequada para o sul da Europa, e Centeno tem cada vez mais respeito entre seus colegas. Sánchez quer avançar nessa direção, mas agora precisa reformar as instituições, corroídas pela corrupção sistêmica do PP. Até agora, Sánchez conseguiu formar uma aliança estratégica com Merkel e Macron para dar uma resposta humanitária conjunta à gravíssima crise dos refugiados, agravada pelo fascismo italiano. Em menos de um mês de governo, Sánchez mudou o clima político na Espanha, que é a quarta economia da União Europeia, e na Europa. Prepara-se uma confrontação com os regimes neofascistas da Polônia, Hungria, República Checa, Áustria e Itália, os ‘bolsonaros’ europeus. Estamos em uma situação de emergência e Sánchez e António Costa (primeiro-ministro português), junto com Merkel e Macron, são a esperança da sobrevivência dos valores democráticos na Europa.
O Estado de S.Paulo: ‘Eleger presidente autoritário é risco à democracia’, afirma professor de Harvard
Autor do livro ‘Como as democracias morrem’ vê sinais preocupantes na democracia brasileira nas eleições de 2018
Por Beatriz Bulla, de O Estado de S.Paulo
As democracias morrem hoje pelas mãos de presidentes autoritários eleitos pela população, avalia o cientista político de Harvard Steven Levitsky, que vê no Brasil sinais de vulnerabilidade. “Os Estados Unidos falharam em 2016 e espero que o Brasil consiga evitar isso”, afirmou ele em entrevista ao Estado por telefone. Crítico do pré-candidato à Presidência pelo PSL nas eleições 2018, Jair Bolsonaro, ele diz que alterar a composição da uma Suprema Corte está na “página um” de manuais autoritários.
Levistky é autor do livro Como as democracias morrem, que figura nas listas de mais vendidos nos Estados Unidos e terá sua versão traduzida para o português vendida no Brasil a partir de setembro, pela editora Zahar. Em 9 de agosto, ele vem ao País para debater a situação da democracia brasileira em evento no Insper.
Qual o sinal de que uma democracia está morrendo? Vê esses sinais no Brasil?
Há muitas formas de uma democracia morrer e não só um sinal único. A democracia no Brasil é considerada por muitos cientistas políticos como uma das mais sólidas da América Latina, então não acredito que há uma morte iminente. Dito isto, o Brasil tem passado por uma crise extraordinária durante os últimos três, quatro anos, a “tripla crise”. O País vive o que talvez seja o maior escândalo de corrupção da história de qualquer democracia: a Lava Jato, que se espalha no Brasil por todos os partidos políticos. A democracia está ameaçada sempre que todo o establishment político perde a confiança dos cidadãos. Quando os cidadãos estão convencidos de que todos os políticos de todos os partidos são corruptos, eles se tornam mais propensos a votar em um outsider que prometa tirá-los de lá. Pode ser um populista como Donald Trump (Estados Unidos) ou (Jair) Bolsonaro, ou como Hugo Chávez (Venezuela) ou (Rafael) Correa (Equador).
E como chegamos a isso?
O descrédito da elite política, somado à terrível performance econômica e à intensa polarização vista desde 2014 são três sinais preocupantes no Brasil. E o quarto é a emergência no cenário eleitoral de candidatos que não estão comprometidos com uma democracia liberal. Jair Bolsonaro diz abertamente que não está comprometido com regras de democracias liberais. Democracias estão sempre vulneráveis à eleição livre de autoritários. A forma como as democracias morrem hoje não é a mesma pela qual a democracia do Brasil morreu em 1964. Não é mais por meio de um golpe militar. São presidentes e primeiros-ministros eleitos que destroem as democracias usando as instituições democráticas. E a forma de prevenir isso de acontecer é prevenindo a eleição de figuras autoritárias. Os Estados Unidos falharam em 2016 e espero que o Brasil consiga evitar o mesmo erro.
É possível dissociar a imagem dos políticos da imagem das instituições que representam?
Esse é um grande desafio que o Brasil enfrenta. Quando toda a elite política de um País entra em descrédito fica difícil separar o descrédito dos políticos do das instituições. E das instituições do da democracia. Como você remove os políticos sem enfraquecer as instituições ou a democracia? O que precisa acontecer é emergir uma nova elite política. Talvez um partido, talvez mais de um partido, talvez um grupo de políticos, com proposta de mudar as práticas e governar sem corrupção.
Há o risco de lideranças autoritárias se apropriarem do discurso anticorrupção?
No contexto em que a percepção dos níveis de corrupção é alto, todos os políticos irão defender o combate à corrupção. É muito difícil para os eleitores acreditar. A chave é identificar os políticos que realmente vão tornar esse discurso uma política ao assumir o gabinete. A reforma democrática no Brasil irá acontecer se esses dois passos vierem. O primeiro passo é fácil. Chávez, Alberto Fujimori (Peru), Trump... Todos se disseram contra a corrupção. Então, de fato, o discurso demagogo anticorrupção é muito comum entre políticos autoritários.
Há caminho democrático fora da política tradicional?
Não. Ao menos, até agora, não há forma de fazer uma democracia funcionar sem políticos e sem partidos.
Por que maiorias em alguns países elegem o que você define como novos autoritários? A sociedade concorda em fragilizar a democracia ou minimiza o risco de um real autoritarismo?
Precisamos diferenciar uma democracia puramente majoritária de democracias liberais. Em democracias liberais há um conjunto de direitos e liberdades individuais – liberdade de expressão, por exemplo – para proteger as minorias. O que chamamos de democracia não é simplesmente aquilo pelo o quê as pessoas votam. É o que as pessoas votam limitado pelo conjunto de direitos constitucionais. Então, ainda que 99% da população vote por um presidente que prometa acabar com a liberdade de expressão, em uma democracia liberal ele não poderá fazer isso. As pessoas normalmente não votam naqueles candidatos por conta de uma plataforma autoritária. É isso que faz Bolsonaro diferente dos demais casos. Na maioria das vezes – Chávez em Venezuela, Correa no Equador e outros – as pessoas votaram em populistas que, em algum momento quando ascendem ao poder, destroem a democracia em algum nível. Isso é efeito da eleição de um populista. As pessoas estão votando por alguém que promete – dentro de um contexto em que a sociedade está insatisfeita com o status quo – defender o povo contra as elites políticas. Então, em algum sentido, os eleitores são enganados.
No livro, o senhor diz que políticos não podem se tratar como inimigos. Em cenários em que há uma figura autoritária no campo eleitoral, qual deve ser dos opositores? Como devem tratá-lo?
Em geral, quando adversários políticos se tratam como inimigos há uma ameaça à democracia. No caso de autoritários, a lição aprendida é que é absolutamente crucial que partidos políticos democráticos de forças diferentes se reúnam em oposição a eles. No caso do Brasil, argumentaria que partidos devem se unir contra Bolsonaro, especialmente se ele for para o segundo turno.
O impeachment da presidente cassada Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva são episódios que intensificaram a polarização no País. Como você vê esses eventos?
Os brasileiros estão muito polarizados com relação a isso e é muito fácil tomar um lado ou outro. Mas é mais complexo do que isso. Os dois atos foram institucionais, legais, mas os dois são perigosos para a democracia. Aqueles que removeram Dilma e a substituíram criaram um governo completamente diferente do de centro-esquerda. O atual governo que vai em outra direção. Isso não respeita o espírito das eleições de 2014. Ainda que o impeachment tenha sido legal, meu entendimento é de que foi politizado e viola o “espírito das leis”. Sobre Lula, eu não tenho os detalhes legais do caso e é impossível portanto tomar posição sobre ele ter cometido ou não um crime. Isto posto, é preciso ser muito cuidadoso ao se excluir um candidato da corrida presidencial. É algo perigoso a se fazer.
O pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro falou em ampliar o número de cadeiras no STF se eleito. Como você analisa isso?
Alterar a Suprema Corte está na página um de todos os manuais autoritários por aí. É uma das primeiras medidas que autoritários fizeram na Argentina, na Turquia, Hungria, Venezuela, no grupo de Fujimori (Peru). Todos eles. E Bolsonaro está dizendo isso antes de chegar ao poder, é honesto nesse sentido, pois a maioria dos autoritários esconde isso durante a campanha. Mas é extremamente perigoso dar a alguém no mandato do Executivo o poder de remodelar a Corte.
Outro professor de Harvard, Steven Pinker, acredita que os rumores sobre a morte da democracia são exagerados. Como você vê?
Há desafios para as democracias do mundo hoje. A democracia está perdendo poder, influência e prestígio e isso provavelmente é um desafio em muitas partes do mundo. Acho que é uma preocupação real e não sou tão otimista quanto Steven Pinker.
Denis Lerrer Rosenfield: Loucura com método
Se o PT sempre foi uma máquina produtora de versões, a prisão de seu líder máximo apenas confirma este fato
Se o PT sempre foi uma máquina produtora de versões, a prisão de seu líder máximo apenas confirma este fato. Sempre atento à formação da opinião pública, é-lhe capital manter o seu protagonismo político. Sair de cena significaria uma batida em retirada de difícil retorno.
Ocorre que Lula e vários de seus dirigentes foram condenados e alguns estão cumprindo pena em prisões. O comprometimento do partido com o crime tornou-se uma outra marca sua, com o mensalão e o petrolão sendo suas expressões mais visíveis. O partido da ética na política tornou-se o da criminalização da política, numa equação em que salta aos olhos a contradição.
Imagens contraditórias atormentam o partido. Como conviver com elas veio a ser uma questão maior. Várias alternativas se fizeram presentes. Uma delas, a de uma verdadeira autocrítica e uma mudança de rumos propriamente social-democrata, foi das primeiras a ser descartada. Seu lugar foi ocupado por uma denegação de todos os crimes cometidos, acompanhada por um discurso de tipo revolucionário em que abundam as radicalizações, com seus dirigentes abertamente defendendo o Foro de São Paulo em Cuba e a sanguinária ditadura de Maduro na Venezuela.
O discurso do “golpe”, da “perseguição política” e contra a “direita e os conservadores” faz parte da estruturação dessa narrativa. Lula preso tornou-se um ativo de preservação do próprio partido, em sua busca desenfreada por manter uma imagem pública palatável aos seus crentes e simpatizantes.
Neste quadro, a prisão do ex-presidente é um fato propriamente político da maior importância. O aparente quebra-cabeças de seus advogados faz parte do jogo, visando a manter o apenado em cena. Não se trata de uma defesa jurídica, mas propriamente política. Os argumentos, digamos, “jurídicos” são apenas uma aparência que faz parte de uma lógica mais geral. Não se bate em juízes e promotores um dia sim e outro também se há verdadeira intenção de libertar o condenado. A estratégia seria outra.
Alguns chegam a enxergar nessas atitudes aparentemente paradoxais uma espécie de “suicídio” do PT, vitimado que seria por suas contradições. Contudo, se adotarmos uma outra perspectiva, poderíamos ver a lógica do que surge como ilógico. E se o objetivo maior do partido fosse precisamente a sua própria conservação sob a ótica do longo prazo?
Uma abordagem possível consistiria em considerar um posicionamento partidário voltado para o período pós-eleitoral, cujo relógio começaria a contar a partir do dia 1.º de janeiro de 2019. Eis o cenário para o qual o PT está se preparando.
O partido já sabe que Lula não poderá ser candidato em 2018 por razões legais evidentes. A Lei da Ficha Limpa é clara a respeito. Até um estudante de primeiro ano de Direito sabe disso. Não é necessária a contratação de nenhum grande advogado. Contudo, o discurso da “perseguição política” e de cerceamento de seus direitos eleitorais faz parte de um processo mais amplo de deslegitimação das próximas eleições. O partido está amealhando capital político.
As chances de um poste escolhido no último momento são exíguas, apesar de alguns acreditarem ainda sinceramente nessa possibilidade. Em todo caso, tal crença contribui para que o partido continue coeso, algo que é da máxima relevância neste momento. Aparentemente, o PT está preocupado em ganhar esta eleição, quando na verdade visa a se posicionar enquanto oposição ao novo governo, dentro de um cenário institucional degradado – cenário este que lhe é de valia também em função do discurso revolucionário que está adotando. Regressa às suas origens.
Neste cenário, não lhe interessa qualquer aliança que lhe dê substância eleitoral para outubro. Por exemplo, compor com o ex-governador Ciro Gomes não lhe convém, pela simples razão de que este, eleito, seria por demais igual ao PT, vindo a aniquilar o próprio partido. O programa do candidato apresenta semelhanças profundas com o que foi defendido pelos governos Dilma e Lula II. Seria lógico apoiá-lo. Eleitoralmente, faria sentido; partidariamente, não. O fundamental para o partido reside em manter a sua hegemonia.
Para o PT, faz muito mais sentido a eleição de Jair Bolsonaro. Isso porque sempre poderia dizer que o processo eleitoral não tem nenhuma legitimidade, na medida em que Lula não teria podido participar da eleição. Teria sido impedido graças a uma “perseguição política”, a um ato de “arbítrio” perpetrado por juízes e promotores apoiados pela “grande mídia”.
Teria, ainda, do ponto de vista de sua narrativa, no interior de um quadro apresentado como institucionalmente degradado, o “benefício” de colocar-se como de oposição a um governo “militar”. Caso eleito, Bolsonaro não seria considerado como resultado de um processo constitucional, mas como produto de um conjunto de arbitrariedades da toga e dos meios de comunicação que teriam propiciado a volta dos militares ao poder.
O comprometimento do partido com a verdade é nulo. Importa-lhe exclusivamente a sua versão, contanto que essa lhe seja útil na perspectiva da conquista do poder. Não há nada ilógico no que o partido vem fazendo. A aparente desordem nas orientações partidárias segue também um método próprio de ordenação, tendo como eixo a estrutura partidária e a coesão de sua ideologia, por mais falsa e dissociada que seja da realidade.
O PT nunca prezou tampouco a democracia. Esta lhe foi útil, sobretudo no período pós-regime militar, apresentando-se como uma nova alternativa de participação política. Discursos de uma suposta “democracia direta” abundaram naquele período. Entretanto, o que importava para o partido era o uso que poderia fazer das instituições democráticas para apropriar-se do poder. Tratava-se do mero uso instrumental da democracia. Agora, o seu aviltamento veio a ser o seu complemento.
*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR
Vera Magalhães: Uma nova lógica
Força inédita do Centrão é chave para entender as chances do presidente eleito governar
O Centrão já teve várias encarnações e várias conformações, mas sua atual composição e a maneira como negociou o apoio a um candidato a presidente seguem uma nova lógica, que leva em conta, mais do que outros fatores que tradicionalmente pesam nessas escolhas, a nova regra de desempenho dos partidos que passa a vigorar a partir dessas eleições.
Só terá direito ao fundo partidário e ao tempo de propaganda a partir de 2019 o partido que receber 1,5% dos votos válidos nas eleições para a Câmara, distribuídos em ao menos nove Estados, com um mínimo de 1% em cada um deles. Outro critério válido é ter conseguido eleger ao menos 9 deputados federais, distribuídos em 9 unidades da federação.
A exigência vai aumentando gradualmente a cada quatro anos até 2030, quando a cláusula de desempenho passa a ser ter no mínimo 3% dos votos válidos e 9 Estados, com 2% dos votos válidos em cada um, ou eleger 15 deputados federais em 9 Estados.
Não é a primeira vez que se tenta criar uma barreira à existência de partidos nanicos e sua participação no bolo de recursos eleitorais. Mas desta vez as siglas pequenas e médias parecem estar se preparando para de fato cumprir a regra – e não tentar derrubá-la em nova reforma eleitoral ou por meio de recursos ao Judiciário.
Isso ajuda a explicar por que o bloco de partidos que se aglutinou na Câmara em torno da liderança de Rodrigo Maia (DEM) se transpôs também em um blocão para a negociação de apoio nas eleições. Juntos esses partidos imaginam que têm mais cacife para negociar espaços nas chapas estaduais que lhes permita cumprir as novas normas.
Mais: a união, neste caso, projeta a possibilidade de fusão futura das siglas que saírem vitaminadas das urnas com aquelas que, estando sob o mesmo guarda-chuva, não conseguirem cumprir os pré-requisitos para continuar existindo.
Isso ajuda a explicar algo que não se consegue entender levando-se em conta apenas questões ideológicas ou programáticas: por que partidos como DEM, PP, PR, SD e PRB poderiam, a depender da circunstância, estar numa coligação tanto com Geraldo Alckmin (PSDB) quanto com Ciro Gomes (PDT), cujas propostas para o País são na maior parte dos temas antagônicas.
Pesou um mix de fatores: estar fortes para cumprir a cláusula de barreira, garantir um bloco monolítico que assegure a esses partidos o comando do Legislativo a partir de 2019, arranjos estaduais satisfatórios e espaços de poder no futuro governo.
Ainda assim, esse último aspecto é menos relevante. Isso porque, estando unidos, os partidos do Centrão estarão em qualquer governo. Isso torna menos crucial, para eles, Alckmin vencer ou não.
Em coluna recente na Folha de S. Paulo, o economista Marcos Lisboa apontou como uma série de circunstâncias políticas levou a que o Brasil caminhasse para uma espécie de parlamentarismo na prática, em que o antes onipotente presidente perdeu poder, tanto pelo quórum constitucional exigido para aprovar reformas quanto pela regulamentação das medidas provisórias, antes usadas para driblar dificuldades de se obter maiorias.
É bem verdade que, chacoalhado por Lava Jato, impeachment, prisão de Eduardo Cunha, denúncias contra Michel Temer e recessão econômica, o atual Congresso pouco fez valer esse poder. Coube ao Judiciário, nos últimos anos, o protagonismo em questões-chave do País.
Mas os partidos perceberam que, para sobreviver e manter o acesso ao dinheiro que os sustenta precisam retomar peso relativo. Ao fazer Alckmin e Ciro se lançarem a um leilão em que topavam tudo que lhes fosse imposto, o Centrão mostrou força inédita. E ela vai ser importante para entender as chances de qualquer presidente eleito governar ou não a partir de janeiro.