O Estado de S. Paulo

Paulo Leme: 2020 - O ano em que a Terra parou

Quando sairmos da fase aguda da crise, teremos de rever o papel do governo na economia

Durante a infância, sempre gostei de ler jornais, a revista National Geographic e gibis. Os jornais reportavam o presente, mostrando o assassinato do presidente Kennedy, a Guerra do Vietnã e as barbáries dos regimes militares na América Latina. A National Geographic mostrava o passado, com reportagens fascinantes sobre cosmologia e arqueologia (os horrores de Pompeia e a ambivalência entre a sofisticação artística e as atrocidades religiosas dos maias). Os gibis abriam as portas à imaginação e ao futuro, mostrando um mundo fantástico onde super-heróis combatiam psicopatas e alienígenas que planejavam aniquilar o planeta azul.

A minha geração tem a sorte de viver no mundo do pós-guerra e beneficiar-se das grandes descobertas médicas que protegem a vida: aspirina, antibióticos, raio X e imunizações. Hoje, protegidos pela ciência, seguros e instrumentos financeiros, adquirimos a falsa sensação de segurança contra a inevitabilidade da nossa finitude e a natureza aleatória da vida.

Durante a minha carreira, passei por dois momentos marcantes que pareciam, mas não foram o início do fim do mundo. O primeiro foi quando eu trabalhava em Wall Street e vivenciei os horrores dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Perambulei pelas ruas com fuligem à altura da cintura até encontrar uma balsa para voltar a New Jersey. Ao contornar o sul de Manhattan, vi uma montanha de escombros em chamas, aquilo que um dia foi o World Trade Center. O mundo parou, e Nova York ficou de luto.

O segundo foi durante a crise financeira de 2008, quando em setembro o governo americano decretou a falência do Lehman Brothers, o que gerou um efeito dominó que quase derrubou o sistema financeiro global. Em outubro, os grandes bancos estiveram a horas de quebrar, mas foram salvos por um conjunto de ações inimagináveis pelos bancos centrais e os governos das economias avançadas. Em menos de um ano, as forças que quase extinguiram o sistema financeiro contemporâneo metamorfosearam-se no maior “bull market” da história.

Extraí duas lições dessas experiências. O mundo é aleatório e, por mais que queiramos nos precaver contra todos os sinistros, sempre haverá um cisne negro que embaralhará todas as cartas e mudará o nosso destino. A segunda é que, por pior que seja, o sinistro termina e a vida continua. Como disse Thomas Fuller, “a hora mais escura da noite é justo aquela antes do amanhecer”.

E isso me traz à tragédia humana e econômica causada pelo coronavírus. Nem os mais ousados gibis de ficção científica seriam capazes de desenvolver um roteiro tão dramático: combinar políticos omissos com um patógeno capaz de ceifar vidas e parar a economia mundial. Resultado: “2020, o ano em que a Terra parou”.

Um governo tem três áreas em que sua atuação pode ser superior àquela do setor privado: Saúde, Segurança Pública e a capacidade de redirecionar grandes volumes de recursos em momentos excepcionais. Durante esta crise, a maioria dos governos falhou nessas missões. Nos últimos dez anos, a embreagem do processo político quebrou: as democracias ocidentais estão empoderando populistas despreparados para exercer o poder e que não representam os anseios e os valores da sociedade.

Nos Estados Unidos, há muito tempo que a comunidade científica alertou o presidente Trump sobre o coronavírus: ele tinha à sua disposição a informação necessária para preparar o país para enfrentar a pandemia. No entanto, ele e o establishment político ignoraram a ciência e não protegeram o país, ao não ter nenhuma estratégia de prevenção, testes, equipamentos e materiais hospitalares.

Há momentos em que só o governo é capaz de redirecionar rapidamente fatores de produção e recursos para um setor prioritário, como a Saúde. É a escolha entre produzir manteiga ou canhões. Quando há um colapso de uma parte importante da demanda privada e de parte da oferta (ruptura das cadeias produtivas e serviços), cabe ao governo injetar rapidamente os recursos maciços através da política fiscal, monetária e de crédito. Essa é a única maneira de evitar o colapso da produção e a destruição de negócios, capital e emprego.

O Fed foi extraordinário na velocidade e audácia com que entrou em campo disparando com todas as suas armas (10% do PIB) para evitar o colapso do sistema financeiro. O Congresso demorou muito, mas finalmente aprovou um programa fiscal de 10% do PIB. O que falta agora é que o presidente Trump e o Congresso permitam que médicos, cientistas e o setor privado reconstruam o sistema de saúde americano a tempo de limitar a tragédia.

Quando sairmos da fase aguda da crise, teremos de rever o papel do governo na economia, o funcionamento dos nossos regimes democráticos e reconstruir os mecanismos de cooperação global. Nos Estados Unidos, o governo se apropriou de 20% do PIB. A primeira pergunta é quem vai se beneficiar desses recursos e quem pagará a conta. A segunda pergunta é como encolher de volta o governo ao seu tamanho inicial.

A história do século 20 mostra que o Estado é como um gás: uma vez que se expande, é difícil colocá-lo de volta na garrafa e diminuir a sua influência na economia e restrições à liberdade.

PROFESSOR DE FINANÇAS  NA UNIVERSIDADE DE MIAMI


Roberto Romano: Política e falsificação

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando

Em livro pouco discutido no Brasil, Jean Pierre Faye analisa um documento diplomático, bélico e político da Alemanha em conflito com a França no século 19. Falo do Despacho de Ems, que se liga a Bismarck. Em 13 de julho de 1870, Guilherme I reuniu-se com o embaixador francês. Do encontro resultou um comunicado em forma de telegrama, de imediato remetido ao Chanceler de Ferro. O político tomou o texto, cortou-o em pedaços e fez de certa declaração anódina um insulto à França. Rápido, ele enviou o documento falso para a imprensa europeia. Os dirigentes da Europa tiveram em mãos no dia seguinte uma bomba poderosa contra os tratos pacíficos. O suposto insulto à França nos trechos manipulados levou-a a declarar guerra à Alemanha.

Apenas 20 anos mais tarde Bismarck reconheceu ter falsificado o telegrama. Ele mesmo apresentou o seu truque. Mas já em 1873 um deputado alemão dizia claramente que o autor da mentira era o dirigente do país. Um jornal de Viena, em 1892, contou a maneira como foi deturpado o telegrama e citou as próprias sentenças de Bismarck sobre a proeza: do texto, diz ele, “deixei apenas a cabeça e a cauda. Assim o telegrama parecia algo completamente distinto. Li-o para Moltke e Roon segundo a nova versão. Ambos exclamaram: ‘Esplêndido, causará efeito!’. Almoçamos com o maior apetite”. Faye comenta: que uma falsificação tenha sido tomada pelos adversários como insulto, compreende-se. Mas que o rei prussiano, conhecedor do texto original, tenha acolhido a patranha é algo que mostra o poder das manipulações quando os ânimos assumiram a guerra da propaganda que antecede o morticínio de seres humanos.

O truque bismarckiano possibilitou uma guerra, contribuiu para unificar a Alemanha, piorou o sentimento antigermânico na França, ajudou a semear a 1.ª Guerra Mundial, que fortaleceu os ódios cujo fruto foi o nazismo. Falsificar notícias era prática comum dos políticos europeus, vezo cujo ápice se deu no reinado de Goebbels, inimigo dos jornais que não jurassem pela sua cartilha imunda. Goebbels foi capaz de manipular redações em favor do mando totalitário. As análises de Faye são complexas e ajudam a entender a falsificação das declarações oficiais em regimes que abolem as liberdades, a começar pela de imprensa. Além da edição francesa original, temos uma excelente tradução espanhola (Los Lenguajes Totalitarios, Ed. Taurus). Em nossa língua existe o volume da Editora Perspectiva, sob o título Introdução às linguagens Totalitárias: Teoria e Transformação do Relato.

Em 31 de março de 2020 o presidente Jair Bolsonaro falsificou um texto emitido pelo presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a quarentena no combate ao coronavírus. O responsável pela instituição dizia ser obrigatória a ajuda aos que não têm renda, para que a medida seja bem-sucedida. Lépido, o nosso presidente “cortou a cabeça e a cauda” do texto e anunciou nas redes sociais a “tese”da OMS, que seria exatamente igual à sua, a reclusão vertical. E, claro, repisando a volta do comércio, da indústria, de todas as atividades econômicas e sociais à “normalidade”.

A prática de Bolsonaro não é inédita. E nenhuma originalidade existe na fabricação, por governantes, de fake news que os beneficiem. Desde a Grécia democrática existiram manipuladores de fatos e discursos. Um crítico poderoso de semelhantes boateiros é Platão. A guerra contra os demagogos e sofistas definiu a ética a ser assumida pelos que recusam o servilismo. O universo governamental desde então se divide entre os dirigentes que não reconhecem limites em falas e atos e os dirigidos para os quais o verdadeiro não é luxo, mas gênero de primeira necessidade.

Entre os que manipulam eventos e discursos, alguns chegam à condição de estadistas, para o bem e para o mal. É o caso de Bismarck, gênio político que beneficiou sua gente, por um lado, e a lançou no abismo da morte, por outro. O telegrama de Elms está inscrito entre os pontos relevantes da História moderna. Mas os pequenos artesãos do falso, como Goebbels, só ajudaram a apressar a morte de seu povo, tendo como prefácio a matança que levou ao Holocausto. Não existe falsificação inócua e todas produzem, como expõe Faye, os efeitos deletérios do poder que aspira a abolir limites éticos em seu exercício.

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando. Ele esquece, no entanto, a distância entre a sua falsificação e a de Bismarck. No século 19 não existiam rádio, TV, internet, redes sociais. Ainda era possível reunir jornalistas e veicular um texto adulterado como se fosse verdadeiro. Hoje não é possível fazer o mesmo: para além dos seguidores incondicionais, milhões e milhões de seres divergem do governante. Eles publicam o texto inteiro de todas as declarações. Mentir após falsificar uma fala ou ato é tarefa impossível.

Uma nota final: Bismarck era Bismarck, Bolsonaro é Bolsonaro.

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)


José Roberto Mendonça de Barros: Da parada súbita à recessão global

Não há uma coordenação na resposta do governo federal à crise

Como já colocamos no nosso último artigo, a expansão rápida do coronavírus provocou uma parada súbita nas principais economias do mundo, o que já garante que 2020 será um ano de recessão global, apesar dos grandes esforços das autoridades sanitárias e econômicas para deter a pandemia e suportar a economia.

A percepção da gravidade da situação está chegando aos poucos, o que faz com que as projeções mais recentes sejam sempre piores do que as anteriores.

O desconhecimento do vírus e de como lidar com ele gera uma enorme incerteza. Mas algumas coisas parecem claras. A crise será longa. Nos locais onde a contenção tem sido bem sucedida, decretou-se uma quarentena ampla e testagem em larga escala.

Na política econômica, a incerteza levou a lançar sobre a mesa todas as fichas fiscais e monetárias. É certo que o PIB do primeiro semestre será francamente negativo na maior parte dos países. Quedas de 3% a 10%, em bases anuais, para as principais regiões não devem surpreender.

Desde que não haja uma segunda onda da doença, todos esperam alguma recuperação no segundo semestre, em resposta aos esforços sanitários, à política fiscal expansionista e a uma política monetária agressiva. A dúvida aqui é qual será a velocidade da recuperação, se em formato de um V ou de um U. Muita gente espera o primeiro caso para a China e Estados Unidos e o segundo caso para a Europa.

Acho pouco provável que se confirme a expectativa otimista da recuperação rápida, dados os efeitos fortes sobre a saúde financeira das empresas, levando a muitas falências, e sobre a disposição de compra de um consumidor sofrido e assustado, tendo muitos vivido tragédias familiares recentes. Tudo indica que não seremos mais exatamente os mesmos.

O Brasil está atrasado na resposta ao vírus em várias frentes. Em primeiro lugar, e por incrível que possa parecer, o presidente ainda acredita e age como se o vírus fosse uma pequena gripe (caso único no mundo!), brigando com os Estados e prefeituras que decretaram o isolamento, medida universalmente aceita como necessária. Em consequência disso, não há uma coordenação na resposta do governo federal à crise, o que evidentemente resulta numa baixa eficiência da gestão.

Temos apenas uma coordenação na área de saúde, apesar do Planalto, onde um trabalho profissional está sendo realizado e é digno de apoio. Entretanto, mesmo aí temos de salientar o atraso de um mês na compra e aplicação de testes, bem como no suprimento de equipamentos, inclusive de proteção individual e outros materiais para a saúde, num mundo em que a oferta está curta.

Na frente econômica, após várias semanas, vai tomando forma um conjunto mais articulado de ações, embora em estágios muito diferentes de aprovação e com baixíssima taxa de execução. As medidas podem ser organizadas em seis áreas:

– Manter a logística e o abastecimento;
– Ações do Banco Central para garantir liquidez;
– Elevação dos gastos com saúde;
– Apoio aos mais vulneráveis: pobres e trabalhadores informais;
– Apoio às pequenas empresas, com manutenção de emprego;
– Flexibilização de certas condições contratuais: trabalho e outros.

As ações nas duas primeiras áreas andaram bem.

A elevação de gastos com saúde é certamente correta, mas, na sua maior parte, ainda não chegou na ponta final.

As ações nas áreas de apoio a pessoas e empresas mais vulneráveis estão muito lerdas, com baixa taxa de entrega. Aqui também não há uma liderança efetiva na discussão das medidas, prevalecendo um caráter algo burocrático.

Como muita gente, sinto falta de uma liderança equivalente àquela empoderada e exercida por Pedro Parente na ocasião do apagão de energia.

Olhando o conjunto, e mesmo considerando-se a efetiva colaboração do Congresso, as políticas federais de suporte à população irão tardar ainda um bocado de tempo.

Em consequência, a população vulnerável depende neste momento muito mais das ações locais, especialmente do grande movimento de solidariedade que a crise detonou, incluindo organizações não governamentais, pessoas e empresas.

De forma dramática estamos vendo o que significa a má distribuição de renda e a imperiosa necessidade de enfrentá-la.

A frase tem sido muito usada, mas é ainda assim verdadeira: nós e o País nunca mais seremos os mesmos.

*Economista e sócio da MB Associados.


Eliane Cantanhêde: Pedra e pedradas

Bolsonaro quer isolamento só acima dos 50 e Mandetta lista 19 condicionantes para saída

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde) não se suportam mais, mas não têm alternativa: Bolsonaro não pode demitir Mandetta e Mandetta não pode se demitir. Estão atrelados um ao outro pelo coronavírus. Unidos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. E se detestando.

Entre os dois, há um muro: o isolamento social, única vacina possível para reduzir a audácia e a letalidade do vírus. Mandetta não pode cruzar esse muro, porque sua ação é “técnica e científica” e porque médicos “não abandonam o paciente”. Seu paciente é o Brasil. E Bolsonaro não pode dar uma canetada e criar o tal “isolamento vertical”, que, de isolamento, não tem nada. Não tem apoio para isso.

Cada lado prepara seu arsenal sob sigilo. Bolsonaro, que já falou duas vezes em editar um decreto e nunca editou, trabalha com um corte etário para relaxar o isolamento. O grupo de (maior) risco é acima dos 60 anos, mas ele estuda dar dez anos de lambuja. Abaixo dos 50, volta ao trabalho! Cola? Até agora não, tanto que a ideia está entre as quatro paredes do gabinete presidencial.

Já Mandetta propõe nos bastidores um desmame gradual do isolamento, listando 19 condicionantes técnicas a serem consideradas uma a uma, dependendo do cenário. A cada recuo da doença, um grau de relaxamento. Entretanto, o começo da implementação pode demorar 30 dias e o próprio ministro perguntou para sua equipe: “Ele vai ter paciência?” Quem será “ele”? Enquanto os dois se digladiam, as instituições assumem um lado e isolam Bolsonaro. Ministros do Supremo fazem fila e parlamentares se revezam para advertir o Planalto e apoiar o isolamento social. Até o vice Hamilton Mourão e o ministro Sérgio Moro (este sempre tão reverente à hierarquia) defendem publicamente a medida que o presidente rechaça.

Isolado institucionalmente e sofrendo restrições no próprio governo, Bolsonaro afasta aliados simbólicos, como os governadores Ronaldo Caiado (Goiás) e Carlos Moisés (Santa Catarina) e o ator Carlos Vereza, que foi cotado para a Secretaria de Cultura. Cada um deles corresponde a quantos decepcionados com os “achismos” do presidente?

A maior perda, aliás, vem das pesquisas. Metade das pessoas acha que Bolsonaro atrapalha mais do que ajuda no combate à pandemia e o que dói mesmo e abala o amor próprio do presidente é o aplauso vibrante da população ao seu “inimigo” Mandetta. Em vez de comemorar o grande trunfo do seu governo, Bolsonaro sofre. Só a psicologia, a psicanálise ou a psiquiatria para explicar.

Se Bolsonaro não pode demitir Mandetta “no meio da guerra”, Mandetta não pode se demitir. Desmontaria o Ministério da Saúde e jogaria o País num caos ainda maior. Uma irresponsabilidade histórica. Assim, o ministro avisou ao presidente que está pronto para ser o “bode expiatório” se tudo der errado e que fica até ser demitido.

Na mesma conversa, Mandetta fez enfática defesa do isolamento e alertou para as consequências do relaxamento: “Estamos preparados para caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas, ao vivo, pela internet?” No dia seguinte, recorreu a Drummond: “No meio do caminho uma pedra, uma pedra no meio do caminho”.

Todos sabem quem é a “pedra” e o ministro passou a ser apedrejado na internet. Os mesmos que divulgam um falso desabastecimento no Ceasa-MG (burramente, porque é contra o próprio governo) inundam as redes desqualificando Mandetta, governadores e parlamentares pró-isolamento. Como isso ajuda Bolsonaro, não se sabe. Mas é ótimo para o coronavírus, a contaminação e as mortes. Mais do que irresponsável, macabro.


Vera Magalhães: O capitão em seu labirinto

Isolado, Bolsonaro parece crer que narrativa pode substituir realidade

A semana que se encerra neste domingo começou com o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, dobrando a aposta no negacionismo e saindo para um rolê pelas cidades-satélites de Brasília. Termina com sua autoridade ainda mais desgastada e sua figura reduzida à do capitão da reserva que sempre foi.

Assim como grande parte dos brasileiros e do resto do mundo, e por mais que esperneie contra ele, Bolsonaro está em isolamento radical. Está confinado num labirinto, cada vez mais solitário e sem contato com a realidade. Que outro chefe de Estado conseguiu a proeza de se indispor, em maior ou menor grau e quase simultaneamente, com o próprio ministro da Saúde, a Organização Mundial da Saúde, os governadores de quase todos os Estados, os presidentes da Câmara e do Senado, a imprensa e o Supremo Tribunal Federal em plena pandemia do novo coronavírus?

Por que a insistência quase obsessiva em trazer para o centro da discussão o fim do distanciamento social, as pesquisas com hidroxicloroquina, jejum e oração quando o foco deveria ser fazer os recursos já aprovados pelo Legislativo chegarem à ponta, aos mais necessitados?

Por que as redes ligadas e guiadas pelos Bolsonaro insistem em conclamar para este domingo manifestações que vão contra um consenso global, de que só o distanciamento social (que por ora no Brasil não é radical, aliás, longe disso) pode nos fazer aproveitar a grande vantagem comparativa que temos em relação ao resto do mundo: o fato de estarmos algumas semanas atrasados na epidemia e podermos aprender com o que tem dado certo e errado nos outros países?

São perguntas sinceras, não retóricas. Porque por mais que converse com políticos, economistas, analistas políticos e auxiliares de Bolsonaro não consigo ver cálculo – ou “método”, para usar a expressão consagrada pelo grande Carlos Andreazza – nas escolhas de um governo cada vez mais abilolado, na aposta de Bolsonaro num caos que já acaba com sua imagem e, no longo prazo, pode aniquilá-lo.

Diferentemente das vezes em que teve êxito em se apresentar como baluarte anticorrupção sem nunca ter dado nenhuma contribuição ao combate à corrupção, ou em furar a fila do antipetismo depois de uma vida dedicada apenas às causas miúdas e corporativas, e em posar de austero enquanto praticava rachadinha, punha os filhos na política e com eles construía um patrimônio invejável, empregava funcionários-fantasmas, usava auxílio-moradia tendo imóvel próprio e condecorava milicianos, no caso de uma pandemia em que pessoas morrem às dezenas dia após dia narrativa não serve para absolutamente nada.

É por isso que por mais que o presidente deambule em ziguezague em seu labirinto, guiado por filhos igualmente desnorteados e assistido por ministros cada vez mais omissos e coniventes, ele não chega à saída. Porque só uma capitulação diante dos fatos e a rendição à racionalidade podem evitar que, mais cedo ou mais tarde, o capitão seja visto por todos, até pelos que ainda hoje insistem em passar pano para seus abusos e suas sandices, como inviável para conduzir o País numa crise absoluta e definidora do futuro de toda a humanidade.

Bolsonaro precisa:

– Fazer com que o Ministério da Economia vença a catatonia de ter visto sua agenda mudar radicalmente e distribua de uma vez a Renda Básica Emergencial;

– Parar de sabotar Luiz Mandetta e deixá-lo comandar a ação integrada com governadores e prefeitos,

– E deixar de falar do que não entende, de isolamento social a medicamentos.

Se conseguir esse programa mínimo, que não requer brilhantismo nem grande coragem de estadista, dará a melhor contribuição de que é capaz para que atravessemos esse pesadelo e saiamos do labirinto em que estamos enfiados com aquele que deveria nos conduzir.


Bolívar Lamounier: Pandemia e pandemônio

Regime totalitário da China e desacertos de Trump e Bolsonaro agravaram a situação

Sobre a pandemia que o mundo está vivenciando dúvidas não faltam, mas podemos tranquilamente afirmar que a dimensão que ela alcançou se deve a uma combinação de fatores epidemiológicos e políticos.

Embora pouco protocolar, fez bem o embaixador chinês em Brasília em repreender um parlamentar que se referira ao coronavírus como o “vírus chinês”. De fato, a expressão do referido parlamentar foi infeliz e poderia alimentar a absurda teoria de que a China propositalmente criara e facilitara a propagação do vírus. É, porém, inegável que a China não alertou o mundo no devido tempo. Em meados de novembro do ano passado, a situação na cidade de Wuhan (situada na província de Hubei) já era crítica e o governo central chinês não se empenhou em prestar esclarecimentos ao mundo, de forma solene e oficial, como conviria a um país com as responsabilidades internacionais da China. Com certeza informou à Organização Mundial da Saúde (OMS), em data que desconheço.

Há quem pense que os chineses demoraram a prestar informações à comunidade internacional porque, nas primeiras semanas, nada sabiam, portanto, nada tinham para informar. Começaram a procurar uma vacina, mas tardaram a entender que o vírus sofrera uma mutação, era, portanto, algo novo, e então passaram a interagir com cientistas e médicos de outros países, facilitando o acesso deles aos dados que possuíam.

Os analistas que se apoiam nessa linha de raciocínio geralmente destacam que Beijing pediu cautela a seus especialistas a fim de evitar um alarme perigoso, que poderia até mesmo provocar uma convulsão social. Suponhamos que essa teoria tenha fundamento e que as informações indispensáveis seriam proporcionadas a outros países para que se preparassem no devido tempo. O fato, no entanto, é que o poder central chinês em nenhum momento se pronunciou sobre a matéria de forma ponderada, mas solene e oficial. Organizando medidas preventivas em tempo hábil, milhares de vidas poderiam ter sido poupadas e a aberrante atitude de alguns chefes de Estado que insistiram em minimizar o risco da epidemia durante cerca de três meses poderia ter sido contestada.

O fato, portanto, é que o todo-poderoso Xi Jinping reduziu o problema às esferas provincial e municipal, mesmo após saber que a disseminação do vírus seria extremamente ampla e após a OMS apontar seu caráter pandêmico. Na prática, o trágico aviso foi dado pela Itália, e em seguida pela Espanha, que não se prepararam adequadamente para o gigantesco impacto que receberam.

O caso mais difícil de compreender, um emaranhado que bem merece ser designado como um pandemônio político, é o dos Estados Unidos.

É sabido que o presidente Donald Trump foi alertado com bastante antecedência pelos serviços de espionagem, em particular pela Central Intelligence Agency (CIA), mas recusou-se a tomar providências preventivas, seja por interesse eleitoral ou por acreditar, em seu tosco entendimento, que a pandemia, na realidade, não passava de uma “gripezinha”, ou pela combinação dessas duas razões.

Fato é que o despreparo dos Estados Unidos para efetuar testes era espantoso. Em fevereiro, autoridades médicas federais falavam em testar 1 milhão e meio de pessoas, mas a revista The Atlantic entrou em contato com os secretários de Saúde dos 50 Estados e do District of Columbia (Washington, DC) e mostrou que a capacidade real do país para efetuar tais testes não passava de 2 mil por dia.

Nem testes, nem isolamento social. Se a propagação do vírus se dá por contatos entre pessoas, é óbvio que a medida mais importante, a ser tomada de imediato, é reduzir drasticamente tais contatos. Isso, como já se notou, Trump não faria. Foi só em meados de março que ele relutantemente aceitou a necessidade de quarentenas.

Comparado aos EUA, o Brasil (leia-se: o ministro Mandetta e as entidades e os profissionais de saúde) estão relativamente bem na foto. É, porém, meridianamente claro que não podemos subestimar os desníveis sociais, as diferenças de qualidade dos serviços médicos entre Estados e regiões, a compreensível preocupação dos que temem um efeito arrasador na economia, nem, e mais importante, as contínuas e desastradas intervenções do presidente Bolsonaro, adepto da mesma tosca teoria da “gripezinha” e, ao que tudo faz crer, incapaz de compreender os requisitos básicos do cargo para o qual foi eleito. Se dependesse só dele, decerto não teríamos implantado e não estaríamos mantendo razoavelmente bem a disciplina do isolamento social.

Há quem afirme, principalmente no tocante à Europa, que a ineficácia das medidas adotadas se deveu em grande parte a informações erradas recebidas da China até meados de janeiro, incluída a de que o vírus não seria transmissível entre humanos. Seja como for, parece-me fora de dúvida que fatores políticos agravaram enormemente a gravidade da pandemia: o regime totalitário de Beijing e desacertos infantis cometidos pelos presidentes dos EUA e do Brasil.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Brasileira de Ciências e Paulista de Letras


Eliane Cantanhêde: A guerra continua

Com ministros e generais divididos, Bolsonaro ainda só pensa nisso: o fim do isolamento

Está redondamente enganado quem acha que, depois de todas as evidências, do novo pronunciamento e do telefonema para Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro enfim se rendeu à importância vital do isolamento social. Não, ele recuou só na forma e na TV, mas continua firmemente a favor de liberar o comércio e o trabalho das pessoas. E não tem apenas apoio do filho Carlos e do “gabinete do ódio” do Planalto, mas de influentes generais à sua volta.

Estudo da PUC-RJ e da Fiocruz jogou lenha na fogueira e reforçou no Planalto a implicância contra o isolamento, ao apontar uma evolução mais controlada do coronavírus no Brasil diante de EUA, China, Itália e Espanha. O estudo tem parâmetros científicos, óbvio, mas com base nos casos e mortes confirmados, quando as autoridades de saúde alertam que, entre os números oficiais e a realidade, há um fosso gigantesco.

Os relatos de parentes de vítimas abaixo dos 60 anos são contundentes: elas vão aos hospitais, radiografias e tomografias que não confirmam nada, tomam um remedinho para febre e voltam para casa. Sem o teste! Quando enfim são internadas, é tarde demais, os pulmões já estão parando, elas são entubadas e morrem em horas. Antes do resultado dos exames.

Sem contar as sabe-se lá quantas pessoas que tossem, têm febre e dor de cabeça, mas não conseguem fazer o teste nem mesmo em hospitais particulares, quanto mais nos sobrecarregados hospitais públicos. Logo, os números de infectados e mortos são muitíssimo maiores do que os oficiais.

Porém, a simples divulgação da “evolução controlada” do vírus alvoroçou gabinetes do Planalto, deixando evidente que o “recuo” do presidente entre o desastroso primeiro pronunciamento e o segundo, uma semana depois, foi só de boca para fora. Bolsonaro continua remoendo dia e noite a intenção de limitar o isolamento aos acima de 60 anos e/ou com doenças preexistentes. Logo, a guerra continua. Não apenas contra o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, mas contra o mundo todo e... boa parte dos próprios ministros. Dessa vez, nem a reviravolta de Trump dá jeito.

Ao elogiar o Ministério da Saúde e a imprensa até aqui, o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, pede “mais razão e menos emoção a partir de agora”. Considera que há exageros e cita a prisão de um rapaz que estava sozinho numa praia do Rio e a redução significativa dos ônibus em circulação em alguns Estados, o que, segundo ele, foi um tiro no pé: gerou mais aglomerações em pontos, ônibus e metrôs.

E, na quarta, Bolsonaro divulgava o vídeo de uma apoiadora implorando aos berros, na saída do Alvorada, para ele acabar com o isolamento, reabrir o comércio e “deixar as pessoas trabalharem”. Ignorando até mesmo uma distância mínima entre pessoas, ela distribuiu insultos à imprensa e desdenhou dos R$ 600 da emergência (ou R$ 1.200, caso seja chefe de família): “Não quero nada do governo!”.

Ou seja: ela só quer que as pessoas corram o risco anunciado de morrer, matar ou ambos, mas teve apoio do presidente: “Você fala por milhões”, reagiu Bolsonaro, que mais tarde engatilhou novamente a metralhadora verbal contra governadores, que têm “medinho” de ir às ruas.

E assim, “la nave va”, com o governo jorrando medidas, todo mundo perguntando pela “operacionalização” e os ministros divididos, com os mais sensatos defendendo Mandetta e os protocolos internacionais de saúde, enquanto Bolsonaro aposta em duas coisas: Deus é brasileiro, logo a pandemia vai ser mais camarada aqui, e a cloroquina vai valer já, já contra o coronavírus e salvar a lavoura. Tomara que seja assim, mas o que a realidade está apontando é bem diferente: o tsunami só está começando e o remédio ainda vai demorar.


Fernando Gabeira: O vírus da guerra cultural

Se debatemos medidas sanitárias, alguém logo dirá: por que não combater o Bolsonaro?

De certa forma, uma epidemia como esta do coronavírus já estava prevista por estudiosos. O que não estava ainda no nosso radar era o impacto da ignorância humana em aceitá-la para realizar o combate frontal contra ela.

À pequena capa gordurosa do vírus foram acrescidos os fluidos da ideologia, tornando-o ainda mais perigoso e letal. Agora que aconteceu, constatamos que essa reação não era de todo imprevisível. Um movimento moderno de descrédito da ciência, do conhecimento, da imprensa facilmente desaguaria nesta oposição a uma ululante realidade sanitária.

A eleição de Donald Trump e a de Jair Bolsonaro são um marco destes tempos modernos. Ambos viram o surgimento do coronavírus como ameaça a seus governos e passaram aos seguidores a impressão de que todo o debate sobre o tema era manobra de oposição. A emergência do corona transformou-se, então, para eles numa guerra cultural contra os inimigos de sempre.

Ao transfigurar uma realidade sanitária num confronto político, usaram com naturalidade sua arma comum, fake news, para vencer a batalha. Nos Estados Unidos, por exemplo, a extrema direita travou uma luta direta contra a principal autoridade sanitária, Anthony S. Fauci, cobrindo-o de ofensas gratuitas.

Preocupado com sua reeleição, Trump tentou corrigir o rumo. Bolsonaro resistiu mais, de forma desagregadora. Seguidores usaram a mesma tática de fake news para desacreditar as mortes e classificar os mensageiros da realidade como uma torcida pelo vírus.

Os mais intelectualizados entre eles chegaram a afirmar que nos EUA morre mais gente engasgada por ano do que os primeiros milhares de mortos pelo coronavírus. Não se detiveram a analisar por que os norte-americanos não constroem, às pressas, hospitais de campanha para socorrer engasgados, muito menos por que não reduzem o ritmo da economia para evitar o contágio entre engasgados.

Bolsonaro liderou uma espécie de uma farsesca revolta da vacina. Em 1904 a população, que vivia em terríveis condições sanitárias, rebelou-se contra um governo que queria modernizar e higienizar a cidade e um cientista, Osvaldo Cruz, que queria vaciná-la. Agora um presidente se rebelou contra a orientação científica e grã-finos em carros importados desfilam pelas ruas afirmando que o povo precisa voltar a trabalhar.

Esse espetáculo patético drenou um pouco da nossa energia no combate ao coronavírus. Se nos detivermos no urgente debate das medidas sanitárias, há sempre alguém para dizer: por que não combater o Bolsonaro?

Sou dos que pensam que o combate ao vírus é uma prioridade planetária e que os adversários desse combate serão triturados pela História.

No mundo real, precisamos aprender com os países que já passaram por uma fase intensa da epidemia. Em todo lugar ficou evidente a necessidade de equipamentos de proteção individual para médicos e profissionais de saúde. É um ponto decisivo. Cerca de 20% dos nossos médicos estão numa faixa de idade que os põe no grupo de risco. Podem ser úteis na telemedicina, mas não vão ser escalados na linha de frente.

Os vídeos que mostram os profissionais da Coreia do Sul se vestindo para o trabalho revelam como o equipamento é necessariamente redundante para proteger contra o vírus. Os Estados Unidos já começam a ter problemas nesse campo. Eles vão surgir no Brasil, uma vez que o equipamento é disputado no mundo inteiro.

Uma das saídas é canalizar parte da solidariedade social para fortalecer os profissionais de saúde. Se não for possível complementar a deficiência de equipamentos, ao menos garantir uma infraestrutura de repouso. Muitos temem voltar para a casa e pôr a família em risco.

Nos primeiros artigos sobre o tema enfatizei a importância dos 220 milhões de smartphones. O governo vai usar os telefones para monitorar a população. Isso aumenta nossas chances. Existe uma possibilidade, que começa a ser usada também nos EUA, por meio de uma empresa que vende termômetros conectados à internet. Conseguem medir a temperatura de 160 mil pessoas, mas o potencial é muito maior.

Discutimos no início da pandemia sobre o alcance desses métodos. Pensadores como Yuval Harari temem uma avanço na quebra da privacidade, com o controle entrando pela nossa pele. Mas pelo que vi do método que o Brasil usará, a participação será voluntária. Da mesma forma, o controle de temperatura pode ser voluntário.

No fundo, o combate ao coronavírus, além da solidariedade humana, depende basicamente de conhecimento. Todo esse esforço de consultar o povo é indispensável. Seria mais facilmente vitorioso se complementado por testes em massa. Testes para detectar o vírus, testes para detectar anticorpos e potencial imunidade, testes para avaliar o potencial de evolução da doença em cada organismo.

Temos falado muito de ignorância, sobretudo a partir da atuação de Jair Bolsonaro. A frase de Barack Obama é repetida muitas vezes: a ignorância na política ou na vida não é uma virtude. Mais do que nunca, vencer não apenas a ignorância humana, mas também a ignorância específica sobre esse novo coronavírus, é a luta principal desse combate planetário.


Celso Ming: O que não será como antes

Certos comportamentos econômicos devem mudar ainda mais depois de ultrapassadas as agruras da hora

Depois que tudo tiver passado, nada será como antes. Será?

Na TV, nas redes sociais e nas outras mídias, veem-se os apelos para mudança, radical e definitiva, dos padrões de consumo e de conduta, em direção ao mais simples, à revalorização do natural, da amizade, da ternura e da compaixão.

Tantas e tantas vezes no passado o mundo atravessou grandes turbulências, até mais dolorosas do que as de agora. A cada período de guerra prolongada, a cada devastação produzida pela peste ou pelo cholera morbus, a cada grande catástrofe, o propósito geral também foi esse, o de que, uma vez enterrados os mortos e cicatrizadas as feridas, as mudanças seriam inevitáveis e para sempre.

Alguma coisa pode de fato ter mudado nessas ocasiões, mas, passada a abominação da desolação, tudo o que era antes tendeu a se repetir, como se sabe desde os tempos do Êxodo e da caminhada pelo deserto, quando os hebreus repentinamente se esqueceram do valor da liberdade, voltaram a adorar o bezerro de ouro e sentiram saudades das cebolas do Egito.

Mas o esquecimento dos propósitos de superação e a volta ao barro de onde viemos não é tudo. Muita coisa vem mudando, um tanto lentamente, mas vem mudando, até para melhor. No tempo da peste, por exemplo, que exterminou metade da população da Europa, nem mesmo os estudiosos sabiam o que era aquilo. Há apenas 116 anos, o Rio esteve entregue à Revolta da Vacina, porque ninguém aceitava o tratamento proposto por Oswaldo Cruz para erradicar a febre amarela.

E, hoje, a população corre atrás de vacinas contra a gripe comum. Há cem anos, atacadas pela gripe espanhola, 50 milhões de pessoas morreram no mundo, mais do que na 1.ª Grande Guerra, sem ter como se defender do flagelo. Agora, em questão de semanas, os biólogos sequenciaram o genoma do novo coronavírus.

Independentemente desses progressos, certos comportamentos econômicos que já vinham mudando antes da pandemia devem acentuar a mudança depois de ultrapassadas as agruras da hora. Um deles tem a ver com o uso do dinheiro. Notas de papel-moeda e moedas de metal propriamente dito parecem com seus dias contados, não apenas porque são veículos de transmissão de vírus, bactérias e imundícies variadas, não passíveis de ser desinfetadas, mas porque a substituição das moedas físicas por moedas digitais já vem ocorrendo.

O país mais adiantado nesse movimento é a China, que já avançou na adoção de blockchain, nos pagamentos e nas transferências de recursos por aplicativos que dispensam até mesmo a exigência de contas bancárias. Não está longe o dia em que até mesmo esmolas se darão por meio de operações com aplicativos.

As compras online são outra área em transformação. O isolamento a que se viu obrigado o consumidor mostrou ao comércio varejista no Brasil e no mundo que as empresas despreparadas para as vendas online ficaram para trás e agora terão de recuperar o tempo perdido. Não se trata apenas de continuar fisgando o consumidor nas horas de reclusão inevitável, como agora, mas de reduzir substancialmente os custos com estocagem e com logística, como estão fazendo as empresas que já têm boa quilometragem rodada no sistema, como Magazine Luiza, Lojas Americanas e Ponto Frio.

E há a não novidade do home office, ou seja, do trabalho preferencialmente em casa. Um bom serviço de internet e acesso aos arquivos e aos sistemas da empresa são quase tudo o que é necessário para dispensar rotineiras viagens de ida e volta aos escritórios e ou às sedes das empresas, com a vantagem adicional para o empregado de não ter de trabalhar sob o crivo direto do chefe. Mas, convenhamos, esse modelo não serve para tudo, não serve para ser adotado no chão de fábrica, nas linhas de montagem, nos canteiros de obras e na maioria dos serviços pessoais. Apenas parcialmente, pode funcionar no ensino e no treinamento de pessoal.

Essas e eventualmente outras mudanças que agora se acentuam talvez não definam o mundo novo em formação. Mas dão uma ideia do que poderão vir a ser certas relações de trabalho.

Infelizmente, ainda não dá para contar com as tão necessárias mudanças na área ambiental. Imagens de satélite mostraram como melhoraram as condições atmosféricas nesses tempos de reclusão e de carros recolhidos às garagens. Mas essa ainda não parece demonstração capaz de mudar sistemas e de apressar a adoção de políticas destinadas a reverter o aquecimento global. O lucro fácil continua tendo a última palavra.

Apesar do avanço da ciência e do aumento da previsibilidade, uma coisa não muda. Não muda o medo, essa emoção primária que está dentro de cada um de nós.


Zeina Latif: Cuidado com as curvas

Ceder a tudo e a todos agora implicará mais uma década perdida

Aprendemos com os profissionais da saúde que é necessário suavizar a curva de pessoas infectadas pelo novo coronavírus, por meio do isolamento social, pois o sistema de saúde não daria conta de tantos doentes. Também aprendemos que é necessário evitar uma segunda onda decorrente de uma suspensão precipitada do confinamento, dada a baixa imunização atual.

O desafio é encurtar o período de distanciamento social de forma segura, com definição de estratégia e uma boa gestão da saúde.

O choque é transitório, mas cabe a nós determinar sua duração.

O sucesso na área da saúde definirá o impacto econômico da epidemia e a própria eficácia das medidas de socorro. Assim, a mesma atenção dada aos anúncios de medidas econômicas deveria ocorrer para as medidas sanitárias e de saúde. Pouco sabemos, no entanto.

Além de cuidar da curva de infectados, precisamos cuidar da curva da economia.

A inação geraria grande sofrimento social, mas o excessivo voluntarismo dificultaria a retomada do crescimento adiante, por conta dos efeitos colaterais sobre a solvência do setor público e a eficiência econômica. Sim, todos os esforços precisam ser feitos para salvar a economia, mas dentro das nossas possibilidades.

Não há milagre na economia; há trabalho bem feito. É necessário aqui também haver estratégia, definição de prioridades e boa gestão, pois os recursos são escassos.

A prioridade número 1 – para além de investir em saúde – é garantir a subsistência das pessoas vulneráveis com renda comprometida na crise.

Além da ampliação do bolsa família, há medidas do governo para transferir renda a informais e afins. A tarefa agora é sua célere implementação. Não basta o anúncio.

A segunda prioridade é minimizar o desemprego dos trabalhadores mais pobres e vulneráveis à demissão – geralmente exercem atividades presenciais e trabalham em empresas com menor capacidade de atravessar a crise.

O desenho da política pública desse ponto em diante fica mais complexo, o que requer critérios para garantir o bom uso dos recursos públicos.

Entendo serem dois os critérios principais.

Primeiro, o socorro a empresas deve levar em conta sua fragilidade financeira decorrente da crise e a probabilidade de sobrevivência adiante – ou seja, ajudar quem precisa e merece. Uma empresa mal gerida não deveria ser beneficiada. Pode parecer crueldade, mas não é. É prejudicial ao bem comum gastar recursos da sociedade para socorrer artificialmente empresas que não irão sobreviver e honrar suas dívidas. Melhor seria cuidar dos que perderão seu emprego.

É acertada a medida do governo de criar uma linha de crédito barata para pequenas e médias empresas pagarem os salários mais baixos da folha, com participação dos bancos comerciais, pois estes têm mais condições de selecionar as empresas.

Para as microempresas, outros canais precisarão ser criados, pois não temos experiência de sucesso no microcrédito. Armínio Fraga, José Alexandre Scheinkman e Vinicius Carrasco propõem utilizar as empresas das chamadas “maquininhas”. Importante acelerar nos estudos de viabilidade dessa proposta.

Enfim, trata-se de aliar a utilização de recursos públicos à racionalidade econômica.

Para as grandes empresas, convém procurar maior participação do setor privado, evitando uso não prioritário dos recursos públicos. Um exemplo para reflexão são as companhias aéreas. Haverá encolhimento do setor adiante, inclusive pelo uso de alternativas às reuniões presenciais. Isso precisa ser levado em conta na decisão de socorro. Não seria o caso de o governo oferecer garantias apenas?

O segundo critério é não salvar o patrimônio de pessoas e empresas. É preciso aceitar que ficamos mais pobres. Cabe ao Banco Central conter o aperto do crédito, mas não compensar perdas de investidores no mercado financeiro.

No calor da urgência, o governo fica mais vulnerável à pressão de grupos de interesse, o que precisa ser evitado. Ceder a tudo e a todos agora implicará mais uma década perdida.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Vera Magalhães: 31 de março/1º de abril

País tem pior dia da pandemia entre apologia ao arbítrio e o império da mentira

Este texto é escrito no aniversário do golpe militar de 1964, e será lido no Dia da Mentira. Essa mudança no calendário ocorre no momento em que vivemos o agravamento da pandemia do novo coronavírus submetidos, de um lado, à apologia do arbítrio e, de outro, ao império da mentira como política de Estado.

Eis por que o País passou o dia prendendo o fôlego já curto, imaginando se o pronunciamento de rádio e TV de Jair Bolsonaro seria para espalhar fake news sobre a pandemia e mandar as pessoas saírem às ruas ou para louvar a ditadura. Ou ambas as coisas.

Mas o que se viu e ouviu foi um presidente assustado recuar de todas as bravatas recentes e fazer apenas menção à ajuda das Forças Armadas no combate à pandemia, sem revisionismo histórico.

Bolsonaro pela primeira vez colocou a defesa da vida à frente da dos empregos. Procurou mostrar empatia sincera enquanto lia um teleprompter com expressão e olhos contraídos.

O suspense que antecedeu o pronunciamento era extensivo a ministros, que não sabiam qual seria o tom da fala. Não por acaso. O presidente começou o aniversário do golpe na toada do confronto e da mentira: reuniu sua claque de blogueiros e youtubers fanáticos para interromper e hostilizar os jornalistas na frente do Palácio da Alvorada. Desta vez, no entanto, a imprensa virou as costas e foi embora. Deixou o presidente nu: solitário e cercado de acólitos, o que tem sido a marca de seu governo em 2020.

A OMS também teve de parar tudo que está fazendo para desmentir a versão, depois remendada por Bolsonaro no pronunciamento, de que tinha reconhecido a necessidade de as pessoas trabalharem para “ganhar o pão”.

O recuo repentino de Bolsonaro mostra que ele está ciente de que vem minguando em todas as pesquisas realizadas, inclusive as medições de sua influência nas redes sociais.

Estudo diário feito pela consultora de imagem Olga Curado com base nas redes mostra que há “dois governos” na percepção da população: um “prudente”, simbolizado pelo ministro Luiz Mandetta (Saúde), e outro visto como “irresponsável" e “autoritário”, representado por Bolsonaro.

A incapacidade de lidar com essa diluição da própria imagem e a tendência a ouvir um grupo liderado pelos filhos para tomar decisões vinham ditando a aposta no confronto. “Não há estratégia. Ele age instintivamente, orientado por pessoas rasas, que pensam em consonância com ele. É tática de orelha de livro”, disse Olga Curado, que assessorou presidentes da República e candidatos à Presidência nos últimos 20 anos, à coluna.

O pronunciamento de ontem foi uma tentativa de inflexão nos vários “dias da mentira” e de se aproximar do governo de Mandetta e Paulo Guedes e se afastar dos conselhos dos três filhos, sobretudo de Carlos, o czar da comunicação, e Eduardo, o tradutor que não sabe inglês e cunhou o apelido definitivo do clã: “Família Buraco”.

Bolsonaro reconheceu que não há remédio de eficácia comprovada contra a covid-19, disse que o vírus é uma “realidade” (e não “gripezinha”) e lamentou a perda de vidas, sem o “paciência, acontece” que despejou em entrevista na última sexta.

O barulho ensurdecedor das panelas nas janelas do Brasil durante a fala, no entanto, mostra que a confiança numa mudança sincera de propósito vai depender de ações nos próximos dias.

A missão do governo é fazer a renda de R$ 600 aos mais necessitados, já aprovada no Congresso, chegar às pessoas, algo para que ainda não há data nem formato. É coordenar esforços com governadores e prefeitos e conduzir o País numa única direção para atravessar uma crise que não é possível determinar que duração terá, mas que não pode ser enfrentada com o autoritarismo dos idos de março nem narrativa de Primeiro de Abril.


Pedro Fernando Nery: O fim de 88

Se a Constituição de 88 ampliou a proteção à saúde, não fez o mesmo com a renda

“Instituir uma renda mínima para todas as famílias brasileiras.” O leitor pode se surpreender, mas uma renda universal era uma das propostas do plano de governo oficial do candidato Jair Bolsonaro. Com adeptos em diversas ideologias, o debate sobre renda universal ganhou força nos últimos dias, na esteira da aprovação do auxílio emergencial de R$ 600 pelo Congresso – destinado a trabalhadores informais prejudicados pela crise.

Ela é conhecida à direita pela proposta de “imposto de renda negativo” do ícone liberal Milton Friedman, que advogava que famílias abaixo de um nível de renda não deveriam pagar imposto, mas receber transferências até alcançar o nível determinado. E é conhecida da esquerda pela Renda Básica de Cidadania, proposta histórica de Eduardo Suplicy aprovada no Congresso em 2004 – o “direito de todos os brasileiros receberem anualmente um benefício monetário”. Jamais foi implementada.

Nos Estados Unidos, chamou a atenção quando Hillary Clinton, fazendo a autópsia da sua candidatura presidencial, alegou que quase anunciou a renda universal como sua plataforma eleitoral contra Trump. Teria desistido por não conseguir desenhar a implementação. Nas primárias democratas deste ano, o tema não animou os candidatos mais progressistas, mais focados em políticas de mercado de trabalho.

A renda universal ainda não foi adotada em país algum, pelo seu custo proibitivo. Como alternativa, muitos prescrevem algo mais viável e focalizado: a renda garantida. Trata-se de um benefício só para quem vive abaixo de um limite de renda, em valor suficiente para que esse mesmo limite seja superado.”

Esse é o caso do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso: R$ 600 para quem vive com menos de meio salário mínimo. Rigorosamente, ele não seria então uma “renda universal” ou uma “renda básica”, porque não é destinado a todos. É mais próximo do imposto negativo do que do benefício de Suplicy. É como um Super Bolsa Família, embora a nova roupagem ajude a superar o estigma que essa transferência de renda aos muito pobres têm.

Propostas de fato universais foram discutidas pelo Congresso recentemente, para grupos específicos da população: o benefício universal infantil, aprovado pelo Senado, é voltado às crianças. Já na Câmara, o deputado Pedro Paulo, no âmbito da reforma da Previdência, apresentou proposta da “renda básica universal” para o idoso e pessoas com deficiência.

O debate expõe uma fragilidade da Constituição de 1988. Se ela conseguiu ampliar a proteção à saúde, que deixou de ser direito somente dos trabalhadores com emprego formal e carteira assinada, não fez o mesmo com a proteção à renda. Os benefícios aos formais custam na ordem de R$ 800 bilhões por ano, e a crise da covid-19 evidencia como larga parcela da população vive vulnerável e sem contar com esses recursos.

O modelo constitucional deixa tanta gente às margens que se estima que mais da metade da população brasileira pode ser beneficiada direta ou indiretamente pelo auxílio emergencial aprovado ontem – voltado a informais e desempregados sem seguro-desemprego.

Mesmo no melhor momento do mercado de trabalho no fim de 2014, o emprego formal era escasso para jovens, nordestinos, mulheres, negros e brasileiros com ensino médio incompleto. Mesmo então, esses grupos ficavam às margens da proteção da Carta Cidadã e da festejada legislação trabalhista. A carteira de trabalho é um homem branco paulista.

Para além da realidade desnudada pela pandemia, esse arcabouço também é desafiado pela tendência estrutural trazida pela transformação tecnológica. A CLT e a proteção trabalhista e previdenciária são baseadas ainda em um modelo industrial, de vínculos estáveis e homogêneos, com jornadas fixas e voltado para um único provedor no domicílio – o homem pai de família. O novo modelo, mais heterogêneo, exigiria um arcabouço mais amigável à formalização e proteção dos grupos mais vulneráveis: talvez com uma reforma do instituto do microempreendedor individual (MEI).

O MEI foi criado no governo Lula e expandido no governo Dilma e pode acabar fazendo mais pela inclusão no mercado de trabalho e proteção à renda do que a própria reforma trabalhista. Afinal, a erradicação da pobreza e da marginalização é talvez o principal fim da Constituição de 88. O auxílio emergencial da pandemia durará três meses: ao seu término, a sociedade ainda terá um encontro marcado com essa questão.

*Doutor em economia