O Estado de S. Paulo

Adriana Fernandes: Falso dilema

É falso o dilema entre salvar vidas e ter cuidado com as contas públicas. O cofre não está fechado para o resgate dos brasileiros que estão sem poder trabalhar devido ao isolamento recomendado por autoridades de saúde.

Quem tenta colocar carimbo de insensível naqueles que defendem o cuidado com as contas públicas em tempos de pandemia da covid-19 não está vendo ou não quer ver o problema sob uma visão mais ampla. Esse tipo de crítica só serve para lacração barata nas redes sociais. Mais uma opção pela polarização de apenas dois lados: o mau e o bom; adversários e aliados do governo Jair Bolsonaro.

Quem defende o zelo fiscal também deve e está defendendo a expansão das despesas, do endividamento público, para salvar vidas humanas, socorrer os mais vulneráveis, os informais, o emprego dos trabalhadores com carteira assinada e a sobrevivência das empresas.

Deve-se criticar a velocidade das medidas e a briga política do presidente Jair Bolsonaro com governadores e congressistas. No Brasil, essa disputa foi acirrada e chegou a níveis perigosos em tempos de crise. E já custa caro.

A inércia do governo no início da pandemia, a pressão para o afrouxamento do isolamento, os entraves burocráticos num País onde tudo é muito amarrado, a começar pela legislação retardaram o socorro. Tudo isso é verdade.

Mas a despeito de todos esses problemas, o governo federal, governadores e prefeitos estão tomando mais medidas em único mês do que em muitos anos. As regras fiscais foram e estão sendo alteradas para abrir espaço para mais gastos. O que se fez já custa o tamanho de uma reforma da Previdência, que demorou anos para ser aprovada.

O cheque para o socorro está aumentando e vai crescer mais com o resgate do Banco Central via compra de dívidas das empresas. A medida está na Proposta de Emenda à Constituição (PEC), batizada de “orçamento de guerra”, que deverá ser aprovada pelo Senado na próxima semana.

A PEC é um marco, sem dúvida. Foi construída e votada rapidamente na Câmara, com votação para lá de expressiva. Histórica. Muitos que a criticavam, no início, estão aos poucos revendo posição. A emenda constitucional retira as amarras para abrir o cofre. E, sim, busca salvar vidas com mais dinheiro para ações de combate a covid-19.

A PEC é um cheque em branco dado a Bolsonaro para os gastos? É. Mas tem seus mecanismos de controle durante e após a crise.

A ideia da PEC foi negociada e levada adiante pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Com articulação, ele reuniu apoio e colaboradores políticos para aprová-la em tempo recorde, enquanto a equipe econômica se debatia com a burocracia das regras fiscais, com temor de punições futuras pelos órgãos de controle. Ninguém vai conseguir tirar esse mérito dele. Muito menos seus adversários mais raivosos no centro do poder da capital federal.

Mas, passada uma semana da votação da PEC, a mesma Câmara presidida por Maia deu asas para construir uma proposta de socorro emergencial aos Estados e municípios com uma série de concessões aos governadores que vão muito além das necessidades diante da covid-19.

Aproveitaram a crise para tentar resolver problemas antigos e, em alguns casos, muito específicos, como o perdão de dívida passada. Não é hora para isso. Uma nova renegociação com os governos regionais está a caminho, para depois da crise. Mas é preciso fazê-la com coordenação.

A votação do projeto foi adiada para a próxima semana em meio à guerra de números entre equipe econômica, Câmara e economistas que alertaram se tratar de uma “bomba fiscal” para os próximos anos.

Nesse espaço conflagrado, os críticos correm para taxar os defensores da saúde das finanças públicas como os vilões do pedaço.

Isso não quer dizer que os Estados e prefeituras não têm que receber socorro do governo federal. Está demorando. Eles não podem emitir dívida no mercado para se financiar como o Tesouro Nacional.

O cheque em branco da PEC é para isso. Bolsonaro e o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, terão que aumentar as transferências voluntárias para os governadores e prefeitos. Por outro lado, a Câmara tem que desarmar urgentemente a bomba que começou acionar.


Eliane Cantanhêde: Cloroquina sim ou não?

Testes são importantes, mas o fundamental é isolamento, isolamento, isolamento

Enquanto o mundo vai chegando a cem mil mortos (cem mil!), a cloroquina vira o grande assunto nacional, dividindo opiniões de autoridades, médicos, estudiosos, pacientes e qualquer um que esteja acompanhando as notícias sobre a pandemia ao redor do mundo, sobretudo no Brasil: a dona Maria, o seu José, quem faz isolamento, quem não faz. Virou uma febre.

Então, aos fatos: desde que China e Estados Unidos passaram a falar publicamente no uso de cloroquina contra o coronavírus, isso entrou na pauta internacional e animou o Brasil. A primeira reação foi uma corrida às farmácias, esvaziando as prateleiras para quem tem malária, lúpus ou artrite e realmente precisa do medicamento. Até por isso a Anvisa decretou a exigência de receita médica. A compra ficou restrita, mas o debate disparou e cada um passou a ter suas próprias certezas. Um festival de achismos.

A cloroquina passou a ser associada a outros remédios para tentar salvar vidas de pacientes de covid-19 em estado crítico, depois para pessoas internadas e está perto de virar remedinho para gripezinhas e resfriadinhos, qualquer um toma. Não há, porém, trabalho científico e documento de órgão oficial de saúde atestando que ela efetivamente cura no caso de coronavírus. Como disse uma epidemiologista na TV, há muita suposição, nenhuma comprovação científica.

O governo está correto em garantir preventivamente estoques – até porque se trata de um medicamento muito barato – e a bola está, não com políticos, seja o presidente, governadores ou prefeitos, mas sim com os médicos. Cabe a eles determinar quem, quando e em que circunstâncias deve usar a cloroquina. E, se a pessoa sobreviver, é preciso comprovar se foi por causa desse remédio específico, já que são administradas diferentes substâncias.

Antes da comprovação científica, boa parte do Brasil, a começar do governo federal, aposta todas as suas fichas numa saída milagrosa: aplicação de cloroquina a torto e a direito. Todos os pacientes se curam alegremente, o número de mortos fica muito aquém das previsões, a pandemia se vai como por encanto e viveremos todos felizes para sempre. É um bom sonho, mas convém combinar com a realidade.

De acordo com a OMS e todos os países desenvolvidos – que se preveniram a tempo ou que tentam remediar após milhares de mortes – o ideal seria dividir essas fichas aí, tá ok? Investir sim nas pesquisas com a cloroquina e aplicação de plasma de curados, por exemplo, mas com prioridade para testes, leitos, adequação do sistema de saúde à emergência e para aquelas duas palavrinhas mágicas: isolamento social.

Quanto mais a realidade grita, mais as pessoas desfilam despudoradamente, sem máscaras e distância mínima, fechando olhos e ouvidos para o colapso à vista no sistema de saúde e acreditando que quem morre são os “outros”, não somos nós, nossos pais, avós, parceiros, entes queridos. Pois deveriam aprender com EUA, Itália e Espanha que, depois, não adianta chorar sobre o leite derramado – e sobre os corpos.

Ficar trancada em casa quatro semanas é chato, estranho, mas isso é o mínimo que cada um de nós tem de fazer para reduzir a contaminação de um vírus que vai se espalhando e chegando à pobreza, onde não há nem água e sabão, quanto mais álcool gel. Não dá para contar com cloroquina, é preciso agir contra o contágio.

O efeito da pandemia é terrível na economia mundial e de cada país. O Brasil não escapa disso. Mas, mais importante do que economia, empresas e empregos – que o Estado tenta proteger como pode –, o fundamental é salvar vidas. Esse é o dever, obrigação e compromisso número um dos governos e de todos nós. Isolamento, isolamento, isolamento! Enquanto seu lobo não vem e não há cura comprovada!


Zeina Latif: Faltam informações

A taxa de incidência da doença é muito heterogênea entre Estados brasileiros

A extensão territorial do Brasil e seus muitos contrates regionais criam um quadro heterogêneo de incidência da epidemia do novo coronavírus. Os problemas para a definição de estratégias, no entanto, não param aí. O Ministério da Saúde (MS) tem optado por não decretar o isolamento social em todos os Estados. Por ora, cada um segue suas regras, adaptando as sugestões feitas pelo governo federal.

Não tem sido diferente nos EUA, onde o presidente Trump reluta em decretar o isolamento no país todo. Os 50 Estados da federação declararam situação de emergência, mas cada um adota suas medidas para lidar com a epidemia. Apenas 13 Estados decretaram quarentena total; a maioria a limitou a algumas cidades.

É precipitado afirmar que a descentralização de decisões é equivocada, pois o objetivo não é evitar a disseminação da doença, mas sim, como sabemos, suavizar sua curva de infecção.

O problema é a falta de uma coordenação entre as ações dos entes da federação, sendo inevitável a leitura de que disputas políticas atrapalham. Como resultado, reduz-se a eficácia das medidas sanitárias. Afinal, o vírus não respeita as fronteiras das cidades e dos Estados.

Uma medida recente, a ser implementada a partir do dia 13 de abril, foi definir critérios para regiões com baixa incidência da doença relaxarem o distanciamento social, mas levando em conta sua capacidade de suprir as demandas da área da saúde – como leitos, respiradores, testes laboratoriais e equipes de saúde

Considerando que as curvas de novos infectados segue ascendente – diferentemente do que ocorre em outros países, inclusive da América Latina – , talvez a decisão se mostre precipitada.

A complexidade do Brasil se releva em números. A taxa de incidência da doença é muito heterogênea entre Estados. Aqueles com maior fluxo de viajantes e fronteiras mais permeáveis sofrem mais.

De acordo com o MS, no dia 6 de abril, o Distrito Federal tinha a maior taxa de incidência (15,5 casos para cada 100.000 habitantes), o que faz sentido. Na sequência, Amazonas (12,6) e Ceará (11,0) também sofrem bastante, talvez por serem, reconhecidamente, importantes rotas do trafico de drogas. Ambos exibiram taxas acima de São Paulo (10,5), o quarto colocado.

Alguns dados parecem incoerentes, com Estados mais parecidos exibindo taxas de incidência bastante diferentes. Enquanto na Bahia a taxa estava em 2,9 para cada 100.000 – acima de Minas Gerais (2,5) –, no vizinho Sergipe estava em 1,4. Há também divergências relevantes entre as taxas do Maranhão (1,9), Pará (1,2) e Piauí (0,7), que, por sua vez, destoam imensamente do Ceará, em que pesem as peculiaridades deste Estado.

Seria importante o MS coletar e divulgar dados relativos ao número de exames realizados, como fazem outros países. Nos EUA, por exemplo, a cifra atingiu 1,92 milhões de testes no dia 7 de abril, o que equivale a 5,6 testes para cada 1.000 pessoas.

Essas incoerências nos dados reforçam a avaliação de que há um problema sério de subnotificação de doentes, por conta da insuficiência de testes. Especialistas apontam para a baixa confiabilidade dos dados no Brasil, pois testamos basicamente (e parcialmente) os casos sérios. Há também o problema de falsos negativos nos testes que visam identificar se o indivíduo já adquiriu anticorpos.

Isso significa que a curva de evolução de infectados não é muito confiável. Assim, fica mais arriscado e difícil estabelecer estratégias para o confinamento – sua duração e abrangência.

Da mesma forma compromete-se a avaliação do impacto da pandemia na economia.

Vale lembrar que o relaxamento que foi iniciado na China e as discussões crescentes em países europeus só têm sido possíveis por conta da inflexão da curva de novos casos.

O quadro é de muita incerteza. Sem dados robustos e confiáveis da autoridade de saúde, não conseguiremos responder de forma segura se o próximo passo deverá ser de endurecimento ou de relaxamento do isolamento.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Eugênio Bucci: O ministro, o chefe do ministro e a pandemia de ‘fake news’

Sem fontes confiáveis e um sistema organizado de comunicação não há governança para a crise

Na terça-feira o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, deu mais uma de suas coletivas diárias. Mostrou-se olímpico, seguro de seu papel e de seu cargo. Mandetta tem hoje mais estabilidade do que Jair Bolsonaro. O presidente pode demiti-lo – os generais não deixam.

A impotência presidencial tem um quê de conto de bruxas. O presidente vai fazer a barba de manhã e pergunta ao reflexo de si mesmo: “Espelho, espelho meu, existe algum ministro mais querido do que eu?”. O espelho responde, dá o nome e o endereço, mas Bolsonaro, corroído de ciúme, não tem poder para expulsá-lo da pasta. Está reduzido ao papel de presidente-café-com-leite-muito-embora-bravateiro. Sai enfezado do Palácio da Alvorada e se põe a berrar sobre a crueldade ministricida de sua caneta, uma senhora canetona, que é maior do que a caneta dos outros (ele e sua obsessão com símbolos fálicos).

Palavras ao vento. Contra Mandetta a caneta do narcisista que desconhece a beleza vale menos do que uma aspirina. O sereno ministro da Saúde sabe disso e, por saber, tripudia. Na terça-feira, em sua coletiva, disparou recados ácidos – ainda que elegantes – contra o chefe que não o chefia. Entre outros venenos, amaldiçoou as fake news (gênero narrativo adorado pelo café-com-leite) e as redes sociais (o ambiente predileto do estadista avesso à máquina estatal).

“As fake news, esse final de semana, fizeram um gráfico igual àqueles gráficos da epidemia”, diagnosticou o ministro. “Fake news foi o que mais subiu, subiu bem mais que o número de casos (de covid-19).”

Mandetta aproveitou para denunciar que circulam perfis falsos como se fossem dele e avisou com total explicitude: “Não sou de mídia social, não gosto; gosto do mundo real. Vou trabalhar essa epidemia no mundo real. O que eu tiver que falar, não acreditem em nada que não seja falado aqui (nas coletivas diárias, diante das câmeras de TV). (...) Eu não posto nada, eu não comento nada, eu não faço nada nesse mundo virtual”.

O que ele está dizendo, em suma, é que adota o estilo oposto ao do chefe que não é chefe. Este, abduzido pelas fantasmagorias imaginárias do seu conto de bruxas, acha que governa pelo Twitter, pelas lives e pelo histrionismo de suas milícias virtuais. Em sua fantasia de filme de terror, alimenta-se da bajulação dos seus fiéis fascistinhas de WhatsApp, que sabotam o isolamento e insultam os chineses com ofensas racistas. Bolsonaro substitui a burocracia governamental pelos urros virtuais dos seguidores e acredita que assim deixa para trás a “velha política”.

O resultado prático de seu delírio é muito simples e palpável: em cada um de seus atos acentua a dissolução dos regramentos da administração pública em favor da dinâmica dos “engajamentos”, das “curtidas” e do irracionalismo das redes. Para ele, os algoritmos opacos dos conglomerados globais que monopolizaram as comunicações na era digital são a mais perfeita tradução da vontade do povo. Sim, é uma sandice, mas é nessa sandice que ele acredita. O triunfo de sua crença acarretará a derrocada do Estado, da República, da política e da democracia. Bolsonaro gosta de fake news porque vê o Estado, o governo, a República, a política e a democracia como um embuste a ser destruído. Ele e as fake news nasceram um para o outro. Nasceram um do outro.

Razoável, o ministro da Saúde rejeita as doideiras do presidente e veste o colete do SUS para apostar no caminho inverso. Com razão, parece entender que as fake news concentram uma ameaça tão ou mais grave do que a pandemia. O poder público fica anulado se não puder contar com informações baseadas na ciência e se essas informações não servirem de base para o debate público e para a orientação das pessoas e da sociedade. Sem fontes confiáveis e um sistema organizado de comunicação, não há governança para a crise.

A indústria das fake news – que hoje no Brasil está a serviço do bolsonarismo – opera para minar a confiança do público nas autoridades, na política, na universidade, na ciência e na imprensa. No longo prazo, essa indústria fabrica fanatismo e clamor por uma tirania de extrema direita no Brasil. No curtíssimo prazo, amplifica o número das mortes que virão com o coronavírus e agrava a recessão econômica que virá depois. Isso mesmo. Em sua narrativa perversa, as fake news do bolsonarismo dizem defender a economia e os empregos, mas, ao patrocinarem a explosão do número de casos e o colapso do sistema de saúde, produzirão a desagregação social, com violência e criminalidade ainda mais generalizadas, e isso tornará mais improvável qualquer recuperação econômica.

Será difícil enfrentar essa indústria, que conta com o apoio esgoelado do presidente-café-com-leite. Ele tem pouco poder (não consegue nem falar grosso com o ministro da Saúde), mas a indústria em que ele joga suas fichas tem uma capacidade gigantesca de produzir estragos. E, por enquanto, não há vacina contra a usina de fraudes desinformativas com que o presidente e suas falanges robóticas vêm infestando a sociedade brasileira.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


José Serra: Democracia na calamidade

Precisamo-nos afastar do autoritarismo e da demagogia com base em fórmulas mágicas..

O Brasil enfrenta os efeitos sociais e econômicos da pandemia de covid-19 em ambiente plenamente democrático, com os Poderes Legislativo e Judiciário assumindo papel central na gestão da crise, além de uma ação firme e tempestiva dos governos estaduais. No âmbito federal, as manifestações heterodoxas da Presidência da República, contrárias ao isolamento social, vêm sendo remediadas pela capacidade de ação do Parlamento e pela temperança do Supremo Tribunal Federal (STF). Nosso regime democrático, que se baseia na divisão dos Poderes da República, salvou muitas vidas quando assumiu elevado grau de protagonismo no combate ao novo coronavírus.

De todo modo, as falhas nos entendimentos entre as instituições do poder federal em torno das ações contra o patógeno é preocupante. Assim que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu que o vírus representa uma pandemia, lideranças da área econômica do Executivo federal apressaram-se a dizer que alguns poucos bilhões seriam suficientes para exterminar os efeitos da doença. O governo chegou até a defender a Proposta de Emenda à Constituição n.º 186, a PEC da Emergência Fiscal. Um equívoco, tendo em vista que a medida impediria contratar médicos, criar auxílios financeiros emergenciais para beneficiar grupos vulneráveis, bem como linhas especiais de crédito para salvar empresas. Tivesse sido aprovada, estaríamos diante de uma verdadeira tragédia sanitária, social e econômica.

Em artigo publicado neste espaço fiz críticas à PEC 186, remando contra a campanha de outros economistas e mostrando que a medida poderia criminalizar componentes importantes da política fiscal ao vedar a criação de despesas obrigatórias e renúncias tributárias. Tivemos sorte de ela não ter sido aprovada antes da proliferação da covid-19 em todo o País.

Creio que o Congresso Nacional vem exercendo suas funções institucionais de forma tempestiva e enérgica. Na fase inicial da crise o Senado assumiu a responsabilidade de anunciar um projeto de decreto legislativo para reconhecer a situação de calamidade, flexibilizando as regras e os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Não havia outro caminho, dadas as incertezas e a necessidade de elevar as despesas do Orçamento em caráter extraordinário e urgente. Essa iniciativa forçou o governo a abandonar a ideia de alterar as metas fiscais prevista em lei, levando-o a enviar mensagem presidencial à Câmara dos Deputados que foi convertida no Decreto Legislativo n.º 6, suspendendo a necessidade de se atingir qualquer meta fiscal no ano corrente.

A Câmara, por sua vez, promoveu uma arrojada articulação política para aprovar a PEC do “Orçamento de Guerra”, que hoje tramita no Senado. A medida poderá garantir ao Executivo segurança jurídica para empreender uma política fiscal expansionista, indubitavelmente necessária para lidar com os efeitos econômicos e socais da pandemia.

As novas regras constitucionais criariam uma espécie de orçamento público extraordinário, baseado na maior flexibilidade da gestão fiscal. A proposta também ampliaria os instrumentos de intervenção do Banco Central (BC) na economia, sem dispensar a devida prestação de contas ao Congresso. Aliás, espero que sejam soterrados todos os projetos de lei que conferem autonomia política ao BC, especialmente se aprovada essa PEC. O acúmulo de atribuições conferidas ao banco implode qualquer argumento favorável à soberania política da nossa autoridade monetária.

Essa atuação salva-vidas do Parlamento está sintonizada com recentes decisões tomadas pelo STF, instituição essencial do nosso regime democrático, que vem atuando com temperança. Sem titubear, a Suprema Corte concedeu na semana passada uma medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.357, em favor da Advocacia-Geral da União, que excepcionalizou a incidência de diversas restrições da LRF e da Lei de Diretrizes Orçamentárias deste ano.

Nessa linha, o STF também suspendeu a campanha publicitária do governo “O Brasil não pode parar”, ao conceder cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 669. Financiada com recursos públicos, a propaganda contrariava orientações da OMS e do próprio Ministério da Saúde - um disparate carregado de ideologia e populismo, sem o menor rigor técnico.

Não se pode deixar de destacar aqui o bom combate dos técnicos do Ministério da Saúde, que têm atuado de maneira responsável em prol da integridade física das pessoas. Nossos heróis - médicos e demais profissionais que lidam diretamente com a covid-19 - serão sempre lembrados e homenageados.

A guerra contra a pandemia do coronavírus constitui um desafio colossal para nosso povo. Nossas ações devem ter o respaldo técnico da comunidade científica e dos organismos internacionais. Para isso precisamos afastar-nos do autoritarismo e da demagogia fundamentada em fórmulas mágicas que supostamente trariam soluções integrais e rápidas, simplificando barbaramente a realidade.

A saúde no Brasil depende da democracia plena durante a calamidade, e não da calamidade instalada na democracia.

*Senador (PSDB-SP)


William Waack: Quando fechar, quando abrir

Bolsonaro não é o único chefe de Estado que não sabe como sair do dilema

A realidade se encarregou de lembrar Jair Bolsonaro de que ele pode trocar de ministro quanto quiser, mas não pode trocar quanto quiser de política de saúde. Os limites aplicados às vontades do presidente – não importam méritos ou motivações – foram antes de mais nada institucionais. Em princípio, não é mau sinal.

Entrou como freio uma estrutura federativa que, no caso do combate ao coronavírus, concede aos operadores do SUS uma grande margem de ação. E os operadores são, em primeira linha, governadores e prefeitos. Além da eterna crise fiscal, eles se ressentem hoje sobretudo de falta de coordenação política, e estão assustadíssimos com a nada remota probabilidade de colapso de partes do sistema de saúde. Clamam por liderança.

É outro problema que veio junto de Bolsonaro e que a crise do coronavírus apenas escancarou. O presidente acha que seu poder vem da caneta, que ele diz não ter pavor nenhum de usar (mas não pode). Na verdade, o poder presidencial no Brasil vem de algo que o atual ocupante do Planalto renunciou a aplicar ou o faz de forma inconsistente, errática e subordinada exclusivamente ao curtíssimo prazo de redes sociais: ditar a agenda política.

Sob o avanço da doença, a postura de Bolsonaro consiste o tempo todo em “salvar” seu governo, que ele enxerga exclusivamente pelo prisma de uma ameaça de crise social urdida por adversários reais ou imaginários mancomunados para destruir a economia e criar o caos. As manobras que faz para neutralizar inimigos (governadores, por exemplo) e afastar obstáculos ao que considera necessário realizar (o ministro da Saúde e o isolamento social, por exemplo) são perfeitamente racionais dentro desse quadro mental que beira a paranoia.

O problema é muito maior e, mesmo em seu jeito tosco (Bolsonaro sobre Bolsonaro), o presidente fala diariamente de um dilema para o qual os principais chefes de governo nas democracias liberais ainda não encontraram saída. Em termos bastante brutais, trata-se de saber até quando precisa durar o fechamento de economias antes que a devastação delas se torne irrecuperável. Na outra ponta, reabrindo as economias, trata-se de saber qual é o limite tolerável do número de mortos, a partir do qual a falência de qualquer carreira política é irrecuperável.

Projeções e análises de curvas estatísticas sobre economia e saúde pública permitem no máximo contornos de cenários nebulosos, sem horizonte de tempo e qualquer “certeza”. Em outras palavras, dirigentes políticos ao redor do mundo democrático liberal estão sendo obrigados a “sentir” o dia a dia de temperaturas políticas e situações de degradação econômica e social que parecem ser, neste momento, muito mais abrangentes e que aparentemente estão reagindo timidamente ao inédito volume de medidas de estímulo e combate à recessão.

Para os que se sentem fascinados por entender qual papel exercem personalidades na História, a atual crise e sua imprevisibilidade oferecem alguns contrastes eloquentes. Donald Trump, por exemplo, ziguezagueia exibindo seu narcisismo (ele se proclamou um “gênio muito estável”). Angela Merkel, na outra ponta, demonstra uma postura próxima ao estoicismo (filha de um teólogo protestante em país comunista). E Jair Bolsonaro?

Chegou ao Palácio do Planalto na crista de uma onda política e social que ele apenas em parte entendeu e controlou, onda que vai ficar parecendo apenas uma marola diante das proporções da crise de saúde e economia que começamos a enfrentar agora. Nela, Bolsonaro não aprendeu a nadar, e está se afogando.


Fernando Reinach: Rascunho de estratégia

Sucesso é obter alto grau de imunidade e simultaneamente minimizar número de mortes

Nas últimas semanas a dura realidade antevista pelos cientistas se concretizou: não vai ser possível impedir o espalhamento do coronavírus pelo planeta. Ele chega em uma onda avassaladora, o número de casos e de mortes aumenta rapidamente e está provocando o colapso do sistema de saúde. A única medida capaz de amenizar esse colapso é o isolamento social. O isolamento espalha o número de casos da Covid-19 ao longo do tempo, diminuindo a sobrecarga no sistema de saúde e o número total de mortes (o tal achatamento da curva). Essa medida foi implementada pelos governantes mais esclarecidos, que estão colhendo os frutos.

Mas a ciência tem mais a oferecer para lidar com a pandemia após a primeira onda. São esses conhecimentos que vão nos permitir escolher a melhor estratégia para sair da crise. O indicador de sucesso é simples de enunciar, mas difícil de executar. Sucesso consiste em obter rapidamente um alto grau de imunidade de rebanho na população e simultaneamente minimizar o número de mortes. O país que conseguir se guiar por esse índice sairá antes da crise com o mínimo de mortes.

Quando um novo vírus ataca uma população, ele só deixa de se espalhar quando não encontra mais pessoas para infectar. Isso ocorre quando uma parte razoável da população se torna imune. Na medida em que o número de pessoas que foram infectadas e curadas se tornarem imunes, ficará mais difícil para o vírus achar novas vítimas. Quando esse número chega a aproximadamente 80% da população, a pandemia simplesmente desaparece.

O isolamento social tem a função de retardar o espalhamento para ganharmos tempo, diminuindo o pico e dando tempo para nos organizarmos. Entretanto, a longo prazo, a pandemia só acaba quando 80% das pessoas estiverem imunes. As vacinas têm o papel de aumentar o número de pessoas resistentes para 80% ou 100% sem que a pessoa seja infectada de fato pelo vírus. Infelizmente ela ainda não existe.

E remédios que curam a doença têm o papel de permitir que todos os infectados não sofram uma forma forte da doença, se tornando resistentes ao vírus sem o risco de morrer. Infelizmente ainda não temos esse remédio. Mas os cientistas concordam que antes de 80% das pessoas se tornarem imunes o vírus não será controlado.

Esse fato não tem sido discutido fora dos meios acadêmicos. A razão é que os governos não querem provocar o pânico na população, afirmando que todos acabaremos infectados. Outra razão é que governantes cientificamente despreparados têm dificuldade para aceitar a realidade, preferindo viver de ilusões. Quando Ângela Merkel afirmou semanas atrás que 70% dos alemães seriam infectados, essa foi a razão de sua afirmação. Ela é a única líder mundial com formação científica. Essa semana nosso ministro da Saúde repetiu a informação.

A questão é como chegar a 80% de pessoas infectadas evitando o maior número de mortes. O que pode nos ajudar a trilhar esse caminho de maneira segura e com menos mortes? Vamos assumir que uma vacina e um remédio certeiro não cheguem a tempo, pois nesse caso o cenário é outro.

A primeira medida é conseguir tratar todos os doentes sérios. Para isso o mais importante é não relaxar o distanciamento social antes do tempo, o que pode levar ao aparecimento de uma segunda onda de casos e uma nova fase de distanciamento. Isso seria trágico.

A segunda providência é medir periodicamente a fração de pessoas que já foram infectadas e estão imune ao vírus. Como existem muitos casos assintomáticos ou com poucos sintomas, não podemos confiar no número de casos identificados na porta dos hospitais ou testados quando os sintomas aparecem. É preciso medir diretamente a fração da população que já está imune.

Isso pode ser feito escolhendo pessoas ao acaso, testando-as e descobrindo quantas já estão imunes ao vírus. É um método parecido com o usado em pesquisas eleitorais (veja meu último artigo para saber os detalhes). Esses dados vão nos permitir saber como estamos caminhando em direção ao objetivo de 80% de pessoas imunes. Esses estudos estão sendo planejados tanto por um grupo no Rio Grande do Sul quanto por um grupo em São Paulo.

A terceira medida importante é acompanhar e divulgar as melhores práticas de tratamento dos casos mais graves. Só agora os médicos brasileiros estão frente a frente com casos graves da doença e é bem sabido que os protocolos de tratamento vão melhorando a cada dia à medida que pequenas mudanças incrementais no tratamento forem sendo adotadas nos hospitais e unidades de terapia intensiva.

São medicamentos que ajudam um pouco, novos procedimentos, e assim por diante. Esse progresso incremental é inexorável e pode reduzir bastante o número de óbitos. Por isso é muito importante que os melhores hospitais do Brasil compartilhem rapidamente suas experiências com toda a rede. Isso vai salvar vidas nos grupos de risco.

Finalmente é importante nos organizarmos para que as pessoas dos grupos de risco sejam as últimas a serem infectadas. Idealmente eles não deveriam chegar aos hospitais antes da primeira onda já ter passado, pois só então os hospitais estarão menos afogados. Além disso, se forem os últimos a sofrer a doença, chegarão aos hospitais quando nossos médicos já terão aprendido a administrar os casos graves, e a letalidade desses casos já terá diminuído. Portanto é preciso isolar com especial cuidado as pessoas desses grupos. Temos de garantir que serão as últimas a serem alcançadas pelo vírus, mas não podemos nos iludir que serão poupadas.

Esse é o rascunho da receita geral e dos indicadores que estão sendo usados para lidar com a pandemia nos países com uma cultura científica sólida. Fazer isso no Brasil é um enorme desafio, pois, como sempre me lembram os leitores, falar é fácil, fazer é que são elas. Os países que melhor executarem essas estratégias serão os vencedores.

 


Paulo Delgado: Emergência e democracia

Berrar instruções para a morte é querer companhia para plano de extinção pessoal

Um mal-assombrado uso do poder nos dilacera: isolamento voluntário de todos ou solução final para a velhice. A esse delírio absurdo e não cristão soma-se a perda de contexto da missão fiscal na economia, deixando a cartilha liberal sem norte para fazer o que precisa.

Uma parada global sincronizada, um governo incapaz de estabilizar suas ações. A confusão alucinatória do presidente, fustigando sem pudor seu ministro da Saúde, estressa mais ainda o cenário e pode levar o Brasil a ser o maior perdedor entre os emergentes. Enquanto o palácio boicota a Nação, o povo ainda encontra temperança, seguro de que nenhum princípio humano ou ético é violado pelo Ministério da Saúde ou pelos governadores.

Itamar, maduro e experiente, custou-lhe tanto a acreditar no Real que o ministro da Fazenda virou o autor do plano, salvando o País da inflação. Jair, o verde, despreza tanto a doença que o ministro da Saúde é que vai salvar o País da infecção. Mandetta, a URV do coronavírus, é mais do que governo. Virou ministro da República.

Lançando sombras sobre o País, parte do governo parece mais agarrada à bolsa do que à vida, convicto de que saúde pública atrapalha a economia. Viúvas do mundo velho, não conseguem realizar o luto pela morte que o vírus impôs ao estilo de vida moderno. Stop. A vida parou, ou foi o presidente? Antifuturista, martirizado pela desinformação, finge governar.

A democracia é forte, mas não é um regime de força. Confunde quem trabalha com expectativa falsa e não consegue agir certo diante de dificuldades. Que governante se mantém à tona sugerindo que o bombeiro salve os móveis e deixe a família se queimar? Acreditar nele é como segurar água na mão. Com atrevimento diz sem pensar o que pensa. Está virando o nome do desastre. Schettino, Schettino, não abandone o navio na hora do naufrágio!

Não é difícil manter a democracia em situações de emergência. Mas que trauma leva o presidente a se identificar tanto com esse vírus a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo? Quem sabe o Centro de Inteligência do Exército de Agulhas Negras o alerte para o que dizem os modelos estratégicos de enfrentamento de populações abandonadas e em pânico. Não é em todas as situações que o homem escolhe sua saída.

Não é fácil conciliar democracia e emergência quando a situação exige mais cérebro e sentimento do que desejo e força. O método de convencimento democrático, pelo isolamento voluntário a pedido da autoridade sanitária, é o melhor para conter a doença. Ajuda, ainda, na preservação do tempo de esperança e solidariedade capaz de soerguer a sociedade depois da desgraça.
Para isso é preciso abandonar qualquer fraude no comportamento. O que houve no mundo foi mais do que uma parada repentina tirando a liquidez dos mercados. Diante da inadimplência geral, e vendo a riqueza sem movimento, a autoridade que não considera o PIB um conceito de fluxo, e não gosta do papel do Estado, sente-se catatônica.

A espiral negativa quando atinge o capital e o trabalho tem de ser amenizada prontamente pelo Estado, recalibrando sua relação com a base fiscal e monetária. O ultraliberal, não podendo ser dogmático, sente-se um insincero titular do poder. Não é burocracia, é a filosofia a razão da demora em estancar a infecção na economia.

É hora da união, de os estadistas de todos os setores afirmarem que é desaconselhável romper o isolamento e obrigatório o Tesouro impulsionar a salvação do País. Por que na emergência a economia se desmancha? Que país é esse que supõe que a vida humana vale menos do que dois meses de produção econômica? Se não há uma base existencial mínima de entendimento, fiquemos com a principal: se somos uma democracia, não precisamos usar a força.

Não é preciso abrir o embrulho para ver o que contém. O universo paralelo do presidente se desfez com a pandemia. Eleito pelo modelo mental virtual, por onde não passa nenhuma privação, ele se virava com retórica, sem ligar para autoridade. Agora o cálculo estratégico que opera, ao jogar com o vírus imaginando não quebrar a cara, parte da ideia de que o Brasil sofre, mas não morre. O ponto de equilíbrio surgirá quando as instituições democráticas o convencerem de que não há necessidade de o País todo sofrer, talvez ele, mantida sua prerrogativa de falar pelos cotovelos.

Há atletas a quem a camisa pesa. Outros, cansativos, acionam uma necessidade de atenção maior do que a que podemos dar. Imaginem estado de calamidade, tendo de suportar coexistência e hierarquia com um governo que se esfrangalha ali onde a fantasia se choca com a realidade.

O mundo intrapsíquico de quem vê a política como jogo trapaça-charlatão-sabichão não prevê desmoralização. Mas se diante do nada até a incompetência costuma ser aceita, quando há necessidade de comando e controle profissional não adianta falar mais alto. Concepções vagas de como governar no temporal podem não corroer os ossos da raiva. Mas berrar instruções para a morte é querer companhia para um plano de extinção pessoal.

 


Vera Magalhães: A hora da escalada

Semanas de pico da pandemia não permitirão mais os erros cometidos até aqui

Vai começar a subida da montanha, metáfora que vem sendo usada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para designar a fase, que há muito se sabe que chegaria, de escalada rumo ao pico de contaminação pela covid-19 no Brasil.

Até aqui, alguns fatores ajudaram e outros atrapalharam sobremaneira a preparação do País para essa escalada inexorável, pela qual todas as demais nações do globo passaram ou estão passando.

As nossas vantagens comparativas vêm sobretudo do timing. A contaminação começou na China e se espalhou pela Europa e pelos Estados Unidos antes de chegar aqui de maneira sustentada, o que nos deu tempo para aprender com acertos e erros de outros povos e outros governos.

Foi positivo, por exemplo, para que os governos estaduais e mesmo o governo federal decretassem situações de emergência, calamidade ou quarentena, a depender da designação, e com isso pudessem restringir a atividade econômica e a circulação de pessoas e preparar a retaguarda do sistema de saúde, que já está sendo pressionado e deve enfrentar uma situação próxima ao colapso, quando não de colapso efetivo, nos próximos dias.

Mas não soubemos aproveitar plenamente o que os especialistas chamam de “vantagem temporal” que o vírus nos deu. E isso graças a imperdoáveis erros e omissões políticos, que podem cobrar um preço enorme em termos de vidas perdidas e situação social e econômica agravada.

Nenhum desses erros tem a ver com a decisão de distanciamento social, como quer fazer crer a narrativa bolsonarista que campeia irresponsavelmente em gabinetes de Brasília e nas redes sociais, atormentando uma sociedade já assustada e que precisa de diretrizes inequívocas das autoridades para se guiar numa tempestade inédita.

Eles decorreram justamente do oposto: o boicote inexplicável do presidente da República e de seu entorno a tudo que envolve o protocolo de combate à pandemia, do distanciamento em si à liderança do ministro da Saúde. Birra.

Enquanto desautorizava Mandetta, divulgava medicamento e fazia traquinagem furando o distanciamento, Bolsonaro deixou de tomar providências urgentes e relevantes que ajudariam a preparar as mochilas de escalada dos brasileiros.

A começar pelas providências da área econômica. Essas, sim, deveriam ter sido alvo da obstinação teimosa do presidente. Por que não exigiu e cobrou a execução de um cronograma enxuto para o pagamento da ajuda emergencial de R$ 600 (que pode chegar a R$ 1.200) aos mais vulneráveis, que só começará a ser paga, se tudo der certo, amanhã?

Qual a razão para o presidente não ter impedido que qualquer auxiliar seu, a começar pelo filho e chegando ao ministro da Educação, que nada tem a ver com o peixe, criasse encrenca com a China no momento em que o Brasil vai precisar do país para retomar suas exportações e para importar insumos de emergência para o combate à própria pandemia?

Essas, sim, são tarefas eminentes ao uso da autoridade presidencial, essa que Bolsonaro adora afetar, ameaçando infantilmente usar a caneta para depois recuar, o que acaba apenas por desmoralizá-lo mais perante auxiliares, eleitores e o resto do mundo.

O presidente tirou uma “folga” ontem, depois de pintar o sete na segunda-feira e deixar o País com o fôlego preso diante da possibilidade de demitir o titular da Saúde em plena crise. O recuo não pode ser considerado definitivo, e a trégua de um dia estranhamente tranquilo pode ser aquela calmaria que antecede o caos.

Mas foi um bom teste. Se o presidente mantiver o foco em não atrapalhar a escalada, pode ser que cheguemos ao doloroso cume e comecemos a descer de volta menos machucados que nossos vizinhos desenvolvidos.


Monica De Bolle: Renda básica

A renda básica nos apresenta oportunidade de alcançarmos maior justiça social e liberdade

"O dinheiro que se tem é o instrumento da liberdade; o dinheiro que se tenta obter é o instrumento da escravidão."
Jean-Jacques Rousseau, Confissões

Por liberdade, na frase de Rousseau, entenda-se cidadania, inclusão e libertação econômica. Por “dinheiro que se tem” entenda-se a renda básica, ou mínima: ideia debatida há décadas cujo momento parece finalmente ter chegado. Há muito o que se dizer sobre a epidemia e sobre a crise econômica. Grande parte do que se diz é trágico, amedrontador e profundamente triste. A renda básica se descola desse rol de sentimentos negativos. A renda básica é a luz que pode nos guiar.

O que é a renda básica? Trata-se de uma transferência incondicional de renda do governo para a população ou para uma parcela da população. Transferências incondicionais são aquelas que não estão atreladas a nenhum requisito, ao contrário do programa Bolsa Família. Quando a renda básica é oferecida a uma parcela da população, em vez de para todas as pessoas, são estabelecidos critérios para delimitar a elegibilidade.

A ideia da renda básica existe desde o fim século 18. Ela ganhou proeminência em épocas distintas, notavelmente no fim dos anos 60, quando o ex-professor do ministro Paulo Guedes e vencedor do Prêmio Nobel em Economia, Milton Friedman, escreveu sobre a criação de um imposto de renda negativo. O imposto de renda negativo levaria governos a pagarem, na forma de transferências de renda, um fluxo mensal mínimo de recursos para os mais pobres. Embora o conceito não seja exatamente o da renda básica para todos, ele tem íntima relação com a noção de uma renda básica para a parcela mais vulnerável da população.

Os mais vulneráveis têm sido os mais atingidos pela epidemia e pela crise econômica, como diversos estudos e análises têm revelado. Por essa razão, a renda básica voltou ao centro do debate econômico. Alguns países, como a Espanha, pensam em adotá-la de forma permanente. Outros, como o Brasil, fizeram-no – por ora – em caráter emergencial.

Como já é de amplo conhecimento, a lei que institui a renda básica emergencial (RBE) foi sancionada há poucos dias garantindo o pagamento de R$ 600 mensais para 59,2 milhões de pessoas já registradas no Cadastro Único e outras mais que atendam aos critérios para receber o benefício – há, no momento, um esforço de cadastramento dessas pessoas. É importante ressaltar que as pessoas que não estão no Cadastro Único são, em grande medida, indivíduos que não apenas passaram a sentir as consequências mais graves da crise recentemente, como também aquelas que já eram muito pobres e não dispunham de acesso aos programas de governo por motivos diversos. Portanto, a RBE surgiu no Brasil não apenas como uma medida econômica de emergência, mas como uma ação humanitária. Há muito ainda por fazer, mas essa foi uma grande conquista para a sociedade em tempos sombrios.

Como prosseguir? A RBE é o começo de um caminho já definido pelas características da epidemia. Para dar assistência e dignidade às pessoas mais pobres e vulneráveis será preciso que a RBE se torne um benefício permanente para pelo menos as 77 milhões de pessoas hoje no Cadastro Único. Mantendo o valor atual do benefício, esse programa de renda básica permanente custaria aos cofres públicos pouco mais de 7 pontos porcentuais do PIB. Não é barato, mas não é um valor que quebre o País, sobretudo se considerarmos que, depois da fase aguda da crise, esse benefício ajudaria a sustentar o consumo e as receitas do governo.

Evidentemente, isso não é dizer que a renda básica permanente seja um programa que se autofinancie. Será preciso destinar recursos a ele. Em um primeiro momento, penso nos diversos fundos de que dispõe a União e que hoje não são utilizados para finalidade alguma – poder-se-ia unificar parte deles para pagar a renda básica. No futuro, a renda básica seria financiada por uma reforma tributária que revertesse a pirâmide de impostos brasileira, onerando progressivamente a renda e o patrimônio e desonerando consumo e produção.

Em tempos de escuridão, doença e tragédia, a renda básica nos apresenta oportunidade de alcançarmos maior justiça social e liberdade. É passada a hora de resgatarmos esses valores.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Eliane Cantanhêde: Caneta sem tinta

Demitir Mandetta é provocar STF, Congresso, governadores, sociedade e... generais

Na reunião decisiva de dez dias atrás em que alertou o enciumado presidente Jair Bolsonaro de que não pediria demissão, o ministro Luiz Henrique Mandetta também assumiu o compromisso de não capitalizar política e eleitoralmente o eventual sucesso da estratégia do Ministério da Saúde ao fim da pandemia. Isso, porém, não depende só de Mandetta, depende das circunstâncias.

Médico ortopedista, nascido em Mato Grosso do Sul, 55 anos, Mandetta foi secretário de Saúde no seu Estado, cumpriu dois mandatos de deputado federal e não disputou a eleição de 2018. Mas, apesar do currículo político magro e da discrição no primeiro ano no Ministério da Saúde de Bolsonaro, ele conquistou imensa visibilidade, disparou em popularidade e passou a mexer com os brios de Bolsonaro ao ser olhado como candidato. A quê? Neste momento, a qualquer coisa.

No início dos anos 1990, o professor e sociólogo Fernando Henrique Cardoso não se reelegeria para o Senado e discutia se valia a pena disputar uma vaga na Câmara quando o presidente Fernando Collor caiu, o vice Itamar Franco assumiu e ele, no Ministério da Fazenda, foi o grande avalista do Plano Real. Conclusão: em 1994, elegeu-se presidente da República já no primeiro turno.

O Plano Real foi para FHC o que a pandemia pode se tornar para Mandetta: a grande alavanca da sua carreira política. O Real, por ter sido o maior plano de estabilização da economia da história. A covid-19, por ser o maior desafio de vida ou morte das pessoas e das lideranças de todo o mundo. O ex-presidente Lula levou tão a sério o isolamento que nem se sabe onde está, nem que nome ele trabalha para 2022. Governadores equilibram-se entre a desgraça e o sucesso. Ciro Gomes só sabe gritar. Luciano Huck só aparece em propaganda de TV. E, em política, não há vácuos.

Bolsonaro está esfarelando seu capital eleitoral e sua credibilidade mundial e nacional com sua incrível teimosia e, quanto mais ele cai, mais Mandetta sobe. Até ao instituir entrevistas diárias de ministros para tirar os holofotes do titular da Saúde, Bolsonaro conseguiu o efeito oposto: as entrevistas se transformaram justamente em manifestação de união em torno de Mandetta.

Ressentido desde que o ministro trabalhou republicanamente com o governador João Doria contra a pandemia, Bolsonaro agora desdenha de quem se julga “estrela” e saca sua caneta para tentar mostrar quem manda. Sua obsessão em demitir Mandetta, porém, pode custar muito mais caro do que ele imagina. “O governo acaba”, diz importante personagem do poder.

O Supremo em peso, os presidentes e líderes do Congresso, a grande maioria dos governadores, os maiores partidos e a opinião pública se voltariam contra o presidente, que correria o risco de ser desautorizado em todos os flancos – e os generais do poder sabem disso. O STF pode derrubar a demissão de um ministro? Resposta de um jurista da ativa: “Em tese, ele não pode até que possa”. Ou seja, seria inédito, não impossível.

E, além do STF, Estados e municípios podem se rebelar contra o poder central (contra o fim do isolamento social, principalmente) e convém não esquecer que o deputado Rodrigo Maia não tem a caneta, mas tem a pauta da Câmara: cabe a ele decidir, por exemplo, se põe ou não em votação um processo de impeachment.

Se demitir Mandetta e desarticular a Saúde em meio a uma pandemia que matou mais de 75 mil pessoas no mundo até ontem, Bolsonaro estará traçando seu próprio destino e o de Mandetta. No vazio de homens e ideias que o Brasil vive, nada como uma pandemia para destruir governantes e alavancar novos líderes. Uma constatação que enlouquece Bolsonaro e prejudica Mandetta, mas é impossível tapar o sol com a peneira. O rei está nu.


Carlos Pereira: De quem será a conta da pandemia?

O presidente pode se beneficiar ao empurrar para governadores o custo econômico da pandemia

É certo que, em situações de normalidade, o chefe do Executivo não é capaz de transferir responsabilidade pelo desempenho de políticas macro ou universais para outros. Por exemplo, se a inflação e/ou desemprego aumentam, o presidente será inexoravelmente responsabilizado. Por outro lado, se os indicadores da atividade econômica melhoram, é também o chefe do Executivo federal quem será capaz de extrair os maiores benefícios políticos decorrentes dessa boa performance.

Essa responsabilização do presidente decorre da distribuição geográfica da sua representação política. Como recebe votos em todo o território nacional, é dele a responsabilidade de políticas nacionais. Os legisladores e governadores, por sua vez, por serem eleitos por uma base geográfica delimitada, respondem às preferências das redes locais e estaduais de interesse, respectivamente.

Será que esse perfil de responsabilização seria também observado quando o País é acometido de choques exógenos de grande magnitude, como a atual pandemia do Covid-19?

A pandemia criou um novo tipo de polarização política no Brasil. Governadores e legisladores, de um lado, têm apresentado preocupação com os riscos de estrangulamento do sistema de saúde causado pela pandemia, que pode levar a um grande número de vítimas fatais. Como resposta, os governadores têm implementado medidas muito duras, como o fechamento de escolas, cinemas, praias, teatros, e comércio em geral.

De outro lado, Bolsonaro tem minimizado os riscos de contágio bem como os impactos epidemiológicos da doença. Sua maior preocupação tem se concentrado nas consequências negativas que medidas de isolamento social acarretam para a economia.

O presidente tem tentado transferir para outros atores políticos a responsabilidade pela potencial diminuição ou mesmo recessão da atividade econômica. A estratégia do presidente será bem-sucedida?

Para responder a essa e a outras perguntas, eu e minha colega da FGV EBAPE, Amanda Medeiros, fizemos, com apoio do Estadão, uma pesquisa experimental via WhatsApp. Uma das perguntas quis justamente saber quem seria o principal responsável pelo controle e consequências da pandemia do Covid-19. Os resultados preliminares, obtidos com uma amostra de 1148 respondentes, indicam que 79,5% responsabilizam o presidente e apenas 19,5% os governadores.

A maioria dos respondentes acredita que o presidente não está fazendo um bom trabalho (68%). Entre os que avaliam positivamente o presidente, 72% se identificam como de direita e 9% como de esquerda, o que evidencia uma grande polarização. Por outro lado, essa polarização não ocorre na avaliação do desempenho positivo dos governadores (75% dos respondentes), dos quais apenas 20% e 19% se identificam como de esquerda e direita, respectivamente.

Os respondentes também foram aleatoriamente submetidos a dois choques informacionais: 1) consequências negativas para a saúde, com crescimento exponencial do número de mortes; e 2) para a economia, com retração de 3 pontos percentuais do PIB. Surpreendentemente, receber as manipulações aumenta a chance de as pessoas avaliarem mal o trabalho do governador e de avaliarem bem a atuação de Bolsonaro.

Portanto, o comportamento do presidente de minimizar as consequências da pandemia e enfatizar o impacto para economia, tido por alguns como irracional, pode vir a se revelar uma estratégia bem-sucedida.

Análises mais aprofundadas da pesquisa serão publicadas em breve.

*É professor titular da FGV/EBAPE, no Rio de Janeiro