O Estado de S. Paulo

Sergio Fausto: Qualidades de liderança que o momento exige

Felizmente, o Brasil é bem maior e melhor do que o presidente. Não há mal que sempre dure

Tempos de crise servem de campo de teste para as lideranças.

Em todo o mundo, os governantes estão diante de um enorme e complexo desafio. Comandam uma batalha em duas frentes, sanitária e socioeconômica, em terreno pouco conhecido. Jamais a humanidade viveu uma pandemia num mundo tão interconectado e exposto a rumores e teorias da conspiração, tampouco uma crise econômica deflagrada por uma emergência sanitária que imponha tamanha restrição à produção e ao consumo. Como se fosse pouco, o inimigo é invisível e, por ora, apenas pode ser contido, não derrotado. A guerra será longa, com muitas fases e batalhas.

O desafio consiste em tomar decisões que atendam da melhor maneira possível ao duplo objetivo, nesta ordem, de reduzir as mortes e a contração econômica produzidas pela disseminação do novo coronavírus. Trata-se não apenas de tomar decisões e reavaliá-las, à luz dos dados sobre o desenrolar nas duas frentes da batalha, mas também de obter a adesão de empresas, famílias e pessoas para que as decisões tomadas possam surtir o efeito pretendido. Para isso é fundamental que a sociedade esteja convencida da correção das ações governamentais, ainda que, em última instância, o Estado possa valer-se de medidas coercitivas para implantá-las.

Como há vários e conflituosos interesses convivendo em sociedade, a liderança política, em especial nos países democráticos, precisa produzir convergência (ela não surgirá espontaneamente, ao contrário) em torno de uma estratégia de combate que mobilize recursos para proteger os setores sociais mais vulneráveis e os elos mais débeis das cadeias de produção e distribuição de bens e serviços básicos. Deve apelar a valores que unifiquem momentaneamente a sociedade e reforcem mecanismos de cooperação e solidariedade social. Sendo o inimigo um patógeno, cabe à liderança política basear suas decisões no melhor conhecimento das ciências médicas sobre a doença e suas formas de contágio. Mas como a pandemia tem efeitos e implicações socioeconômicas amplos, é preciso mobilizar várias áreas do conhecimento. À liderança política incumbe tanto promover o esforço interdisciplinar para dar base sólida ao processo decisório quanto traduzir em linguagem acessível ao cidadão comum as razões das decisões tomadas. Para não falar no dever mínimo de não propagar fake news.

A emergência sanitária e socioeconômica exige uma combinação de qualidades que não se encontra com frequência. Requer que políticos se elevem à condição de estadistas, quase da noite para o dia. Tem melhores condições de se erguer à altura do momento quem reúne um conjunto de qualidades: capacidade de acompanhar raciocínios científicos e compreensão de problemas complexos (para os quais há sempre uma resposta simples que está errada); inteligência estratégica para determinar ações congruentes no tempo e no espaço; ampla habilidade de articulação política e interlocução social, para aumentar a eficácia das políticas públicas e corrigi-las ou ajustá-las sem alvoroço e intranquilidade quando necessário; e, por último, mas não menos importante, empatia pelas diversas formas de sofrimento físico e psíquico por que estão passando as pessoas, em especial as mais vulneráveis.

Agora e no futuro previsível, a estatura das lideranças políticas será medida pela demonstração concreta que tenham dado (ou não) dessas qualidades em decisões tomadas no calor da hora diante de dilemas críticos e inter-relacionados. Por exemplo: quando e sob que condições transitar de uma a outra abordagem da emergência sanitária (seja para radicalizar, seja para amenizar as medidas restritivas a atividades econômicas e à circulação de pessoas)? Até onde expandir o gasto e a dívida pública para suprir a renda perdida por famílias e empresas?

Além da eficácia das decisões tomadas, as lideranças políticas serão avaliadas pelos valores que despertarem na sociedade. Seria ingênuo descartar a possibilidade de o nacionalismo xenófobo ou o individualismo exacerbado saírem fortalecidos da crise atual. Mas existe uma boa chance de que ao final prevaleça a revalorização da cooperação internacional e da solidariedade social para enfrentar os grandes desafios coletivos da nossa época (a pobreza, a desigualdade social, as mudanças climáticas e as pandemias).

Não escrevi este artigo para apontar o que antes já era óbvio ululante e agora se tornou dramaticamente claro: o Brasil está muito mal servido na Presidência da República. Seria patético, não fosse trágico, que um homem tão desprovido das qualidades para liderar o Brasil, em particular neste momento, esteja hoje ocupando o máximo cargo político do País.

Felizmente o Brasil, com suas outras lideranças, suas instituições, suas organizações da sociedade, sua gente, é bem maior e melhor do que Bolsonaro. Não há mal que sempre dure. Agora se trata de conter o imenso dano que ele pode causar. Em 2022, de evitar que a história se repita como tragédia.

*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


Vera Magalhães: Os líderes estão nus

Pandemia do coronavírus expõe de forma inédita políticos e gestores públicos

Um dos (poucos) efeitos saneadores dessa crise sem precedentes nem horizonte para terminar desencadeada pela pandemia do novo coronavírus foi desnudar políticos de sua capa de narrativa e bobajol ideológico e expô-los nus diante do mundo com sua incompetência, sua falta de empatia e de liderança inata e a incapacidade de lidar com dados, ciência, diálogo com os divergentes e fenômenos que desafiam as expectativas e ameaçam o futuro.

No outro lado do espectro, ela também tratou de reafirmar lideranças que podiam carecer de certo elã midiático ou parecer gastas pelo tempo de exercício do poder, mas que na hora do vamos ver mostraram que experiência e seriedade fazem a diferença e se destacaram. Também revelou jovens lideranças até então desconhecidas, que voavam abaixo do radar da polarização política estridente porque governavam nações menores, mas agora florescem oferecendo a seus povos o arroz com feijão do bom senso.

No primeiro grupo se destacam os bons companheiros Donald & Jair. Trump começou a lidar com a crise com o histrionismo e a fanfarronice que caracterizam sua presidência e, graças a uma era de bonança econômica, não pareciam ser para os americanos razões para não reelegê-lo, até os Estados Unidos pararem assolados pelo vírus.

Acontece que a falta de seriedade do presidente no início da escalada da pandemia em solo norte-americano hoje é aceita até por assessores seus como determinante para que a situação tenha fugido de controle.

“Se tivéssemos iniciado antes (o isolamento), poderíamos ter salvado mais vidas”, disse em entrevista à CNN Anthony Fauci, o chefe do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos.

Como auxiliares técnicos que falam verdades baseadas em evidências costumam ser como pedras nos sapatos de governantes acostumados a lacrar nas redes sociais, desancar a imprensa, viver de fake news e bravatear com o poder de sua caneta, Fauci passou a ser alvo de hashtags pedindo-lhe a cabeça, incentivadas pelo próprio presidente.

Alguém já viu a franquia B desse filme a que os EUA assistem agora? Pois é, como toda produção com orçamento reduzido e atores de menos talento, a versão brasuca do presidente que dá de ombros para a pandemia tem como cenário cidades-satélites miseráveis de Brasília, como trama a apologia a remédios sem eficácia comprovada e como bravata uma ajuda aos mais pobres que nunca chega, num sinal inequívoco de que a preocupação em salvar empregos é apenas uma desculpa da boca para fora.

Aqui como lá, o líder que não lidera tem entre os vários inimigos o responsável pela Saúde. Mas Bolsonaro tem mais capacidade para demiti-lo, se quiser de fato. Não o faz porque lhe falta a coragem para assumir a fatura que lhe será cobrada se tudo descarrilar. Vai, então, de forma infantil minando o poder do auxiliar, que resolve mostrar que sabe brincar do jogo de quem pisca sem mexer a pestana.

Megalomaníaco em sua impotência, Trump resolveu, depois de semanas em que parecia conformado, ameaçar a Organização Mundial da Saúde, com base em teorias da conspiração que são populares por aqui também, nas hostes dos baba-ovos do presidente. Ao fazê-lo, ameaça agravar a situação global do combate à pandemia. Deve achar que, como em tempos em que presidentes dos EUA arrumavam guerras externas para recuperar popularidade, esgrimir com a OMS vai lhe trazer de volta a popularidade perdida.

Assim como seu primo pobre de terra brasilis, talvez Trump perceba tarde demais que uma pandemia, com a crueza com que ceifa vidas, confina pessoas e aniquila sonhos, também desnuda fraudes erigidas com base em ideologia barata e narrativa de Twitter. Convém a quem tem caneta parar de brincar enquanto tem gente morrendo.


Monica de Bolle: A PEC 10/2020 e o BC

Faltam-nos os corrimões em que economistas costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas

*Em coautoria com o senador Randolfe Rodrigues

Na tarde dessa quarta-feira, 15 de abril, o Senado Federal votará a PEC 10, conhecida como “PEC do orçamento de guerra”, porém mais adequadamente denominada de “PEC da pandemia”. Embora o uso da metáfora da guerra possa render boas análises, não estamos numa guerra propriamente, e sim atravessando um momento inédito em que a vulnerabilidade dos sistemas de saúde e das redes de proteção social estão em ampla evidência mundo afora, e no Brasil em particular. A epidemia e a paralisia econômica têm dimensões humanitárias que precisam ser adequadamente tratadas pelos governos.

Entre os temas mais polêmicos da PEC está a autorização dada ao Banco Central “para comprar e vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundários local e internacional, e direitos creditórios e títulos privados de crédito em mercados secundários, no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos. Essa autorização tem vigência e efeito restrito ao período de calamidade pública nacional”.

A medida é indispensável, pois poderá prover a liquidez necessária aos títulos negociados nos mercados secundários, além de permitir a negociação de títulos do Tesouro, ampliando sua aceitação num momento decisivo, de crise aguda, e assim afastando os riscos de uma crise financeira. Embora esse tipo de atuação por parte do BC seja novidade no Brasil, muitos outros bancos centrais pelo mundo (como Fed, Banco Central Europeu, Banco da Inglaterra, Banco do Japão) já praticam essa modalidade de operação.

Contudo, o texto da PEC aprovado na Câmara deixou frouxos muitos dos critérios para que o BC possa realizar a compra de títulos do Tesouro, de direitos creditórios e títulos privados. Por essa razão, a proposta recebeu dezenas de emendas no Senado Federal.

A emenda apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues, da Rede Sustentabilidade, previa parâmetros técnicos para os títulos a serem adquiridos, garantias ao BC, como o direito de aquisição de ações das instituições financeiras beneficiadas, e a proibição de estas empresas distribuírem bônus e dividendos até que os títulos tenham sido resgatados no BC, dentre outros critérios e contrapartidas.

O relator da PEC, senador Antonio Anastasia, optou por um texto enxuto. No seu substitutivo, estabeleceu critérios de qualidade para os títulos a serem negociados pelo BC atrelados às notas de classificação de risco atribuídas a diferentes classes de ativos financeiros pelas agências internacionais de rating. Além disso, o relatório do senador exigiu a publicação do preço de referência do ativo, a demarcação específica de quais títulos poderão ser adquiridos, e ampliou os critérios de transparência a serem obedecidos pelo BC.

Entretanto, foram suprimidas as propostas que estabeleciam obrigações para as instituições financeiras que tenham obtido ganhos com essas operações de crédito no mercado secundário. O relator alegou a impossibilidade de reconhecer quem os obteve, pois “a empresa não financeira emissora do título não é a beneficiária da aquisição no mercado secundário, que tem caráter fluido”.

Nada impede que tal critério seja adotado em relação a ativos que estejam nas carteiras das instituições financeiras, uma vez que não se trata de impedir a distribuição de bônus e dividendos das empresas emissoras originais do título: estas, de fato, já se perderam na fluidez dos mercados secundários. A ideia seria impedir que o atual detentor do título, que poderá vir a lucrar com a ação do BC, distribua esses ganhos antes de resgatar os ativos com o BC.

Tais contrapartidas já estão previstas na Resolução 4.797 emitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) há poucos dias. Contudo, resoluções do CMN podem ser revogadas antes de o BC ter sido ressarcido e carecem do peso da garantia por uma emenda constitucional que estabeleça claramente as contrapartidas.

Enfrentamos uma crise sem precedentes e, diante desse quadro, faltam-nos os corrimões em que economistas costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas. No entanto, há práticas internacionais exemplares por estabelecerem boas referências, sobretudo no que diz respeito aos instrumentos extraordinários dos bancos centrais. Países acostumados a adotar essas práticas exigem contrapartidas claras das instituições beneficiadas. Não há nenhum motivo para que no Brasil o tema seja tratado de forma distinta.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Pedro Fernando Nery: O direito sem trabalho

O difícil equilíbrio entre buscar o melhor para os trabalhadores formais sem ampliar o desemprego é missão que persistirá ao fim da pandemia

O ministro Lewandowski revisitou ontem sua decisão da semana passada contrária à medida provisória do governo que pretendia salvar 8,5 milhões de empregos. O País chega assim à 6.ª regra sobre redução de salários desde o início da pandemia – ou desde 22 de março. No início, não podia (1). O governo editou então uma MP incompleta que provocou reações (2), e revogou a nova regra no mesmo dia (3). Depois editou a MP certa (4), mas o ministro do STF deu liminar restringindo (5). Ontem, voltou atrás (6). Na quinta-feira, o Supremo se reúne para decidir (7?). A controvérsia da redução da jornada e salários é mais uma a opor juristas e economistas, que enxergam no direito do trabalho o direito sem trabalho.

A MP em questão se aproxima do chamado lay-off, adotado em outros países na pandemia e prescrito pela própria Organização Internacional do Trabalho (OIT). A fim de preservar os empregos em um momento em que as receitas despencam, os empregadores poderiam propor a redução da jornada dos funcionários, ou mesmo suspender os contratos, com redução proporcional do salário. O governo, com o seguro-desemprego, reporia a renda dos trabalhadores, parcial ou totalmente (no caso dos menores salários).

O problema é que a Constituição consagra a irredutibilidade do salário: só pode reduzir salário com redução da jornada se for por negociação sindical, não individual. Aí começou a discussão. A regra se aplica em uma pandemia imprevista pelo constituinte, que impede a própria realização de assembleias? Ou cria-se se uma exceção, já que o vírus exige urgência e a mesma Constituição prescreve a “busca do pleno emprego”? Ainda, se o governo repõe a renda perdida, vale a proibição, que visava a proteger o trabalhador? Ou tanto faz se o governo paga ou não? E se o governo só repõe parte?

Lewandowski, sorteado relator, decidiu sozinho, aplicando um confuso meio-termo. Poderia sim haver a redução da jornada e dos salários por acordo individual, mas a negociação coletiva via sindicato deveria depois confirmar. Havendo silêncio, fica valendo. Criou-se então quatro cenários. A empresa e o trabalhador fazem o acordo: o sindicato pode topar, não topar, topar nos termos de nova negociação. Ou pode ainda topar exigindo uma “contribuição” da empresa.

A decisão foi mal recebida: a insegurança jurídica, e o medo de exigência de contribuições extorsivas a depender do sindicato, levaria parte dos empregadores a simplesmente demitir. A Constituição proíbe a redução dos salários e jornada, mas não a redução a zero. O tal direito sem trabalho.

Além do trabalhador sacrificado pelo patrão, perderia o restante da sociedade, que contaria com uma recuperação do PIB mais lenta no pós-pandemia, com empregos destruídos e negócios desorganizados. O ministro se defendeu, e disse que queria proteger as minorias. Talvez imaginasse casos em que empresas em boas condições usariam o acordo para reduzir salários, em prejuízo de trabalhadores que na verdade não estariam correndo risco algum de demissão. Ontem, negou recurso do governo, mas mudou a decisão mesmo assim, dizendo que os acordos individuais valerão. O sindicato pode buscar um acordo melhor, mas não tem poder de vetar o acordo individual.

O difícil equilíbrio entre buscar o melhor para os trabalhadores formais sem ampliar o desemprego é missão que persistirá ao fim da pandemia. O dilema foi apresentado de forma polêmica em 2018 por Bolsonaro (“Trabalhadores querem menos direito e mais emprego”; “mais direito e menos emprego, ou menos direito e mais emprego”). Seu êmulo, Lula, fez colocações semelhantes no passado (“Tem companheiro que fala que não pode ter um contrato especial porque vai precarizar o jovem e torná-lo um trabalhador diferente. Mas trabalhador diferente ele já é sem trabalhar”).

A comunidade do direito do trabalho repudia essa lógica, e corre para dizer que níveis baixos de desemprego foram obtidos no passado com a mesma legislação e jurisprudência. O emprego com carteira, porém, nunca foi abundante para a mulher, o jovem, o negro, o nordestino, o trabalhador de baixa escolaridade. Por exemplo, no melhor período do mercado de trabalho em 2014, menos de 20% da força de trabalho tinha carteira assinada no Maranhão ou no Piauí!

Para além da pandemia, parte importante da reforma trabalhista de 2017 ainda seria julgada pelo STF no mês que vem. Outras inovações podem vir. Continuará na agenda do tribunal decidir por um direito do trabalho ou o direito sem trabalho.

*Doutor em economia


Rubens Barbosa: O Brasil depois da covid-19

Sociedade civil deveria começar a discutir estratégias internas e externas de médio prazo

Como é natural, a quase totalidade das análises e dos comentários na imprensa falada, escrita, nas TVs e na mídia social se concentra hoje nos grandes desafios internos para superar a crise provocada pelo coronavírus. Depois de a pandemia passar, o Brasil e o mundo serão outros.

Do ângulo interno, os desafios econômico-financeiros, sociais, de logística, de modernização do Estado, do fim dos privilégios, da violência e da corrupção vão ter de ser enfrentados como nunca antes. O Brasil deverá ser reconstruído. O orçamento de guerra determinou despesas indispensáveis para atender aos trabalhadores formais e informais e as empresas afetadas pela quase paralisia da economia doméstica e global. Como tratar o déficit publico e fiscal? Como sair da recessão? Como gerar crescimento e reduzir as desigualdades e o desemprego? Como ficará o equilíbrio federativo? A sociedade brasileira vai ter de enfrentar um período de decisões profundas sobre as prioridades nacionais, as contas públicas, o funcionamento do Estado, a reativação da economia, a reindustrialização, enfim, essas e outras vulnerabilidades que, diante da crise, ficaram evidentes.

As incertezas são crescentes. Segundo os ministros de comércio exterior do G-20, a economia global em 2020 poderá reduzir-se em 5% ou 6% e o comércio externo, entre 5% e 30%. Como evoluirão a economia e o comércio internacional? Como as duas maiores potências globais, EUA e China, serão afetadas? Como evoluirá a governança global - ONU, OMC, BM, FMI e OMS, entre outros organismos? Como evoluirão a globalização e a dependência dos países e das empresas da capacidade industrial da China nas cadeias produtivas globais? A interdependência vai prevalecer ou as tendências e políticas nacionalistas e isolacionistas dominarão? Como ficará a disputa entre China e EUA pela hegemonia global no século 21? Como reagirão os países emergentes, potências médias, entre as quais se inclui o Brasil? Como os países enfrentarão a desigualdade entre as nações e dentro de seus territórios, cada vez mais uma ameaça à estabilidade política e econômica? Qual será, no mundo, o lugar desse Brasil que emergirá? Como as grandes transformações econômicas, comerciais e políticas afetarão os interesses nacionais? Como o Brasil se posicionará no contexto hemisférico e regional? Como o Brasil deveria reagir se a confrontação EUA-China continuar a se ampliar? Como o Brasil poderá contribuir para o fortalecimento da governança global? Como ficarão as políticas em relação ao meio ambiente e à mudança de clima em face da nova importância nas negociações comerciais, como Mercosul-União Europeia?

Levando em conta o peso da economia nacional, em especial no setor do agronegócio, e a necessidade de melhorar a competitividade do setor industrial e de serviços, com a tendência de descentralização da produção industrial da China, é provável que surjam oportunidades de investimento. Para isso - para competir com países em melhor posição, como Vietnã e outros asiáticos - os problemas internos políticos, econômicos e sociais deveriam ser rapidamente enfrentados para fortalecer a capacidade produtiva nacional. O Brasil vai depender de uma sólida base nacional para competir e para isso deverão ser adotadas medidas efetivas para reindustrialização e aumento da competitividade.

Controlada e superada a crise pandêmica, será importante ter uma visão estratégica de médio e longo prazos das perspectivas relativas à economia e à projeção externa do País. Todos os países vão estar afetados por crises em cascata. Como o Brasil poderá aproveitar as oportunidades e reduzir os riscos de modo a ter uma voz fortalecida no cenário internacional?

Não será fácil chegar a um consenso, pela polarização ideológica, pela divisão da sociedade brasileira e pela ausência de lideranças expressivas que possam inspirar essas discussões. O mundo não vai esperar pelo Brasil. A paralisia dos principais atores políticos e a falta de visão estratégica e de futuro levarão à marginalização e, mais uma vez, o País poderá perder uma oportunidade histórica para se afirmar como potência média a ser ouvida na defesa de seus interesses.

Em vista disso, a sociedade civil - empresários, trabalhadores, academia, junto com o Congresso, o Judiciário e o Executivo - deveria começar a discutir uma estratégia de médio prazo nas áreas interna e externa.

Pensando no Brasil em primeiro lugar e deixando de lado ideologias, os Ministérios da Economia, Agricultura, Itamaraty, SAE, Meio Ambiente e Infraestrutura, em especial, além da Escola Superior de Guerra, e os (poucos) think tanks existentes deveriam somar esforços e iniciar uma discussão com propostas e ações visando ao emprego e ao crescimento para serem postas em vigência em caráter emergencial no pós-pandemia. Um conselho gestor da reconstrução poderia ser criado para coordenar as “medidas de guerra”, que deverão ser tomadas - é bom lembrar - no período que antecede as eleições presidenciais de 2022.

O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e devemos agir como tal, tendo como objetivo, pelo menos, manter o País nessa categoria.

Desde já, mãos à obra!

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


Almir Pazzianotto Pinto: Um certo capitão Bolsonaro

Que fazer, prosseguir com atividades não essenciais ou preservar vidas?

Longe estou de pretender traçar paralelo entre o capitão Jair Bolsonaro com o galante capitão Rodrigo Cambará, nascido da imaginação de Érico Veríssimo na trilogia O Tempo e o Vento. Tratarei do presidente da República que derrotou Fernando Haddad em duelo incruento e democrático, após terçarem armas e vencerem no primeiro turno políticos experientes como Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias, Marina Silva e outros de menor projeção que me dispenso de nomear.

A História mostra como são difíceis e imprevisíveis as disputas eleitorais. Recordo-me da surpreendente derrota do brigadeiro Eduardo Gomes para o general Eurico Dutra, em 1945, e do retorno de Getúlio Vargas, em 1950. A vitória de Fernando Collor, em 1989, foi inesperada. O mesmo aconteceu na primeira eleição de Lula. Não nos esqueçamos das condições políticas reinantes em janeiro de 1985, quando, em pleno regime militar, Tancredo Neves impôs dura derrota a Paulo Maluf no colégio eleitoral.

Em maio de 2018 Jair Bolsonaro era tido, no jargão turfístico, como azarão, destinado a ficar em quarto ou quinto lugar. Despontava como favorito Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, candidato pelo Partido da Social Democracia Brasileira. A seguir viria Ciro Gomes. Mais atrás, Marina Silva e Álvaro Dias. Correndo por fora, o empresário João Amoêdo, do Partido Novo.

Não repisarei o que já se disse sobre o triunfo de Jair Bolsonaro. Aconteceu e basta. Foi eleito para exercer mandato de quatro anos, conforme prescreve a Constituição. Poderá candidatar-se à reeleição. Ao tomar posse prestou compromisso “de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.

Promessa idêntica fizeram os presidentes anteriores. A fórmula encerra o óbvio. Sabemos, entretanto, que jamais foi respeitada. O juramento de defesa da Constituição tem sido pro forma. Não evita que a Lei Fundamental seja alvo de emendas retalhadoras. A de 1988 exibe mais de cem cicatrizes e, em nome de reformas, aguarda por muitas outras. A todo momento se ouve falar em nova Assembleia Constituinte ou em emenda parlamentarista.

Quanto ao bem geral do povo brasileiro, abstenho-me de comentar. Somos pobres e subdesenvolvidos. Se alguém alimentasse dúvida, a pandemia do coronavírus bastaria para eliminá-la. Com falta de recursos materiais e humanos, a assistência à população se sustenta graças à dedicação do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, dos auxiliares imediatos e mediatos, dos secretários da Saúde e médicos dos Estados, de grandes e pequenos municípios, da solidariedade de empresários e trabalhadores.

Quando votamos em Jair Bolsonaro – e me incluo entre os eleitores –, sabíamos o que estávamos fazendo. Conhecíamos os riscos de conduzir à chefia do Poder Executivo alguém que não se encontrava habilitado por completo para o cargo. Como paraquedista treinado para o combate corpo a corpo, afeito ao uso de armas brancas e de fogo, S. Exa. se revela incapacitado para conservar alianças que exijam tolerância e serenidade. Não sabe dialogar, ignora a arte oriental do silêncio e não tem a humildade beneditina para ouvir antes de argumentar.

O perfil paradoxal do presidente Bolsonaro mais se evidencia quando declara guerra ao ministro Mandetta pela exemplar correção no exercício do cargo. Devotado aos princípios da hierarquia e da disciplina, inerentes à organização das Forças Armadas, S. Exa. não compreende serem eles incompatíveis com a vida civil. Compete ao presidente da República, segundo a Constituição, a prerrogativa de nomear e exonerar ministros de Estado. Nunca, porém, de forma abusiva, como simples demonstração de autoridade. Afinal, a ele também se aplicam as exigências do artigo 37, cabendo-lhe observar, no interesse da República, os princípios de impessoalidade, moralidade e eficiência.

À falta de vacina, os países que melhores resultados colhem no combate à pandemia são os que adotam severa política de isolamento, ressalvados os serviços indispensáveis à satisfação das necessidades permanentes da sociedade. É impossível combinar a proteção à saúde, para garantir a sobrevivência do maior número possível de pessoas, com a plena continuidade do transporte, da comunicação, do turismo, da diversão, dos esportes, da grande e pequena indústria, do comércio atacadista, varejista e ambulante. Países que subestimaram o isolamento pagam alto preço em número de infectados e mortos.

Estamos cientes de que a pandemia trará prejuízos inevitáveis. Para o Brasil significa mais uma década perdida. Não há como evitá-lo. Empresas estão sendo fechadas e numerosos trabalhadores têm o contrato de trabalho suspenso ou são demitidos. O que fazer em tais circunstâncias? Privilegiar o prosseguimento de atividades não essenciais ou preservar vidas? A palavra é do leitor que se mantém enclausurado.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


O Estado de S. Paulo: PGR contraria Supremo e diz que Bolsonaro pode sim decidir sobre isolamento

Em parecer, procurador-geral da República contraria entendimento de ministro do STF e afirma que não é possível avaliar se limitar a circulação tem eficácia contra a covid-19

Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro tem o direito de decidir sobre o “momento oportuno” para maior ou menor distanciamento social no enfrentamento do novo coronavírus. A opinião é do procurador-geral da República, Augusto Aras. Em parecer ao qual o Estado teve acesso, Aras afirma que, como o mundo passa por uma “crise sem precedentes”, repleta de “incertezas”, não é possível avaliar hoje, com precisão, se a estratégia de limitar a circulação de pessoas tem eficácia para impedir o avanço da covid-19.

Alegando preocupação com os efeitos da quarentena sobre o PIB e o emprego, Bolsonaro tem travado um cabo de guerra com governadores de todo o País, desde março. Na semana passada, em reunião com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ele chegou a dizer que a economia vai para o “beleléu”, neste ano, por causa da pandemia.

“As incertezas que cercam o enfrentamento, por todos os países, da epidemia de covid-19 não permitem um juízo seguro quanto ao acerto ou desacerto de maior ou menor medida de isolamento social, certo que dependem de diversos cenários não só faticamente instáveis, mas geograficamente distintos, tendo em conta a dimensão continental do Brasil”, escreveu Aras.

Para o procurador-geral da República, cabe ao Executivo definir qual o grau mais adequado de isolamento social, levando em conta tanto o sistema de saúde quanto a economia.

No domingo, 12, Bolsonaro afirmou no Twitter que, para toda ação desproporcional, a “reação também é forte”. “Além do vírus, agora também temos o desemprego, fruto do ‘fecha tudo’ e ‘fica em casa’, ou ainda o ‘te prendo’”, escreveu o presidente, numa referência ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Apontado como potencial presidenciável em 2022, Doria ameaça aplicar medidas mais duras – como multas e até prisão –, caso a população não respeite o isolamento social.

O parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) deve ser encaminhado hoje ao Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte vem dando sinais, porém, de que não vai dar aval a medidas que contrariem recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que defende limitar a circulação de pessoas para impedir a propagação do vírus. No mês passado, o ministro Luís Roberto Barroso proibiu que o governo federal veicule qualquer campanha na linha “O Brasil não pode parar” que sugira que a população retorne ao trabalho.

A posição de Aras, no entanto, colide frontalmente com o entendimento de Barroso. Para o ministro do Supremo, o distanciamento social não é uma decisão política do presidente da República, mas, sim, uma “questão técnica”, que se impõe para garantir o bem-estar da população – uma opinião que também vem sendo defendida pela maioria dos governadores.

Enquanto Barroso “fecha a porta” para qualquer medida do Palácio do Planalto que possa colocar em risco o isolamento, Aras deixa a possibilidade aberta para o presidente, sob a alegação de que o cenário é instável e cabe a Bolsonaro avaliar as medidas realmente necessárias, considerando orientações técnicas e científicas de sua equipe.

“As decisões dos órgãos de governo sobre um maior ou menor isolamento social como ferramenta de enfrentamento da epidemia de covid-19 levam em consideração os avanços científicos, cujos esforços têm trazido a cada dia dados novos a serem considerados, e dependem de cenários fáticos que estão em constante mutação”, destacou o procurador.

Rejeição. Indicado para o cargo por Bolsonaro, o procurador-geral da República se manifestou em ações movidas pelo Rede Sustentabilidade e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (CNTM), que acionaram o Supremo contra a campanha “O Brasil não pode parar”. Aras defendeu a rejeição das ações por algumas razões, apontando que não ficou comprovada a existência da peça publicitária, que já saiu do ar.

O procurador também alega que o assunto já é tratado em ações que tramitam na Justiça Federal de São PauloRio e Distrito Federal, havendo, portanto, outros meios jurídicos para resolver a controvérsia.


Marco Aurélio Nogueira: João Batista de Andrade explora vingança em novo livro

Trama se passa na periferia e demonstra que uma literatura engajada só se completa se tiver valor artístico

A relação entre cinema e literatura integra a história da cultura moderna. Já foi cantada e decantada, seja na consideração das contribuições recíprocas entre as duas grandes artes, seja naquilo que cineastas incorporam, em suas trajetórias, da ficção literária.

Há, também, a direção oposta, a do cineasta que transfere sua experiência fílmica para a literatura. A pulsão de filmar e a pulsão de escrever se entrelaçam, fazendo com que palavras se transformem em imagens e cenários pungentes, que envolvem, mobilizam e emocionam.

João Batista de Andrade tem uma biografia artística concentrada no cinema. É um dos importantes cineastas brasileiros, autor de filmes que marcaram época, como Doramundo (1977), o premiadíssimo O Homem que Virou Suco (1981), A Próxima Vítima (1983), O País dos Tenentes (1987), O Cego que Gritava Luz (1996). Seus filmes contam histórias de violência, centradas na experiência das classes trabalhadoras. Valem-se bastante do documentário e do telejornalismo, apurados no trabalho que desenvolveu na Hora da Notícia da TV Cultura e no Globo Repórter. Em Vlado: 30 Anos Depois (2005), Batista mostrou todo seu talento documentarista. A busca de intervenção e a crítica política compuseram-se com a preocupação de fazer cinema para construir valores na sociedade e disseminar uma visão crítica da realidade brasileira.

JBA é um intelectual público, engajado, atento ao seu tempo. Tem atuação marcante na área de política cultural. Foi secretário estadual de Cultura de São Paulo na gestão Geraldo Alckmin. Entre 2012 e 2016 presidiu a Fundação Memorial da América Latina. Em 2014 recebeu o Troféu Juca Pato como Intelectual do Ano, prêmio da União Brasileira de Escritores.

Mineiro de Ituiutaba (1939), Batista também é escritor. Perfeccionista com as palavras, delas se vale para contar histórias e abrir janelas para a realidade, com suas tensões e contradições. Acaba de lançar seu sexto romance, O manuscrito do jovem Gabriel, um relato sobre os delírios e os estalos de lucidez de personagens que falam da vida como ela é, sem suavidade e sem perspectivas, confusos, com dramas que se esparramam em um clima de solidão, crime e violência. O escritor faz deles seus interlocutores, para assim extravasar suas próprias inquietações. Prolonga na literatura o “programa estético” que amadureceu nas décadas de dedicação ao cinema.

Há uma forte pegada psicológica no Manuscrito do Jovem Gabriel. Os personagens são revirados por dentro. Atormentados, falam de frustrações, maquinações soturnas, existência sofrida, em um ambiente no qual a vida explode, despedaçada, cortada pela sordidez, pela agressividade, pela falta de perspectivas. Gabriel idolatra um “justiceiro” da periferia de São Paulo – o falecido Cabo Davino, já presente em Um Olé em Deus (1997), romance anterior de JBA –, assassino de seu pai. Preso a uma cadeira de rodas, Gabriel respira tragédia e ressentimento. Quer vingança, mas não quer sujar as mãos. Encontra no solitário César um agente para extravasar seu ódio do mundo, seu desejo de violência e exercício do poder, manipula-o, inebriando-o com relatos que o arrastam para um tipo particular de loucura. Ao narrar a história de sua amizade com Gabriel, César reflete sobre a vida. Delira, elucubra. Mastiga o passado, que ressurge como fantasma, ora na figura do “justiceiro”, ora na apresentação dos sonhos não realizados. O relacionamento entre os dois, mediado pela sombra de Davino, fornece o fio da narrativa, dando ao escritor os elementos para traçar uma rica imagem da periferia brasileira e fazer sua crítica.

Batista esclarece que o romance nasceu como uma “imposição” de sua subjetividade, “como se a vida pedisse a mim que falasse por ela própria”, com seus personagens “às voltas com suas individualidades, sua intimidade, num momento em que os laços sociais tanto incomodam e parecem perdidos”, para os quais “não existe mais o diálogo” e a política fracassou.

O escritor não alivia. Sua escrita é visceral, desnuda um cotidiano contaminado, sem nenhum polo positivo ou saída. Os personagens lidam com um mundo “que se nega e se torna inimigo de si próprio”, um buraco fundo, incompreensível e assustador, no qual prevalece “o prazer de agredir, de ofender, de contradizer, de confundir”. Vivem, como Gabriel, em busca de um “pai poderoso, capaz de proteger”. Não há “mocinhos” no enredo, somente pessoas desorientadas e vítimas. O leitor se depara com um quadro amargo da sociedade (pós-moderna) em que estamos, cada qual com seus interesses, seus planos, fantasias e ilusões, mas todos igualmente oprimidos por dinâmicas que não controlam, por redes impositivas, informações, tecnologia onipresente e quase nenhuma ideia sobre o futuro.

João Batista de Andrade é um intelectual posicionado, que transita entre a produção artística e a militância política. Mas sua criação literária está distante de um “realismo” funcional, panfletário, maniqueísta. O Manuscrito do Jovem Gabriel é uma demonstração vigorosa de que uma literatura engajada só se completa se tiver valor artístico em si mesma.

* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp


Affonso Celso Pastore: Precisamos de ousadia e responsabilidade

Na ausência de vacina e de remédio eficaz, só o distanciamento social consegue reduzir o contágio e o número de mortes provocadas pela Covid-19. Tal estratégia leva a forte queda da produção, como ocorre em uma guerra convencional, com a diferença de que neste caso o inimigo destrói fábricas e cidades, e as mortes chegam a muitos milhões. Há uma destruição de capital físico, cuja reconstrução exige um “Plano Marshall”, e uma destruição de capital humano, que somente será reposto a longo prazo com os investimentos na educação dos nascidos após o final da guerra.

Embora haja queda temporária da produção e da demanda, o distanciamento social evita a destruição dos capitais físico e humano, preservando o PIB potencial. Os governos elevam significativamente os gastos em saúde e em transferências aos menos favorecidos, e a forte expansão de crédito em escala sem precedentes deve impedir (ou reduzir) a quebra de empresas. Parte do crédito é dirigido ao pagamento dos salários, incentivando as empresas a manter os empregos e a renda dos funcionários. Se fosse uma recessão convencional disparada pela queda de demanda, esta teria que ser imediatamente estimulada. Porém, quando ocorre uma queda simultânea de demanda e oferta, com esta última temporariamente incapacitada de reagir, não há como o multiplicador keynesiano possa funcionar, o que somente ocorrerá quando o freio à oferta for aliviado.

Com as fábricas paradas e as lojas de portas fechadas, não é possível que a oferta responda aos estímulos da demanda. O colapso da receitas das empresas implode os lucros e adia os investimentos, contraindo a demanda, e ainda que o financiamento lhes permita manter o emprego, há uma queda de renda das famílias, contraindo o consumo. Para que a economia se recupere é preciso que a oferta responda à demanda, o que não acontece enquanto persistir o choque de oferta.

Esta não é uma recessão descrita em livros de texto, que se resolve com remédios convencionais. Para evitar a destruição do capital físico e humano a política monetária deve inicialmente ser direcionada a manter as empresas vivas através de crédito abundante, e não há por que impor limites. Ao final, as empresas estarão aptas a produzir, mas isto depende de nossa coragem e responsabilidade de fazer o que é necessário. A reação das empresas será mais rápida e intensa se os funcionários forem mantidos, preservando o investimento feito no seu treinamento. Mas é fundamental que não nos acovardemos. Aos tesouros dos países cabe realizar gastos em saúde que forem necessários – elevando a oferta de leitos de UTI, remédios e equipamentos –, e não economizar nas transferências de renda aos desassistidos, preservando o capital humano. A escala na qual isto já vem ocorrendo nos EUA e na Europa é uma medida do que é necessário.

A previsão é que a paralisação econômica durante o distanciamento social será seguida de uma recuperação, mas infelizmente a recessão na qual já estamos será profunda e duradoura, em escala mundial pior do que a de 2008/09. Há muitos cenários possíveis, todos cercados de muita incerteza, mas serei otimista se projetar que ao final de 2020 o PIB brasileiro tenha se contraído em apenas 5%. Estaremos mais habilitados a crescer em 2021 se formos mais ousados e responsáveis agora, mas sabemos, também, que se sairmos rapidamente do ‘lockdown’, como quer o nosso presidente, correremos o risco de uma nova aceleração do contágio, como em Cingapura e no Japão, o que aprofundaria ainda mais a recessão.

Começamos a enfrentar esta crise com uma situação fiscal frágil, e ao final deste ano teremos uma relação dívida/PIB próxima de 90%. Não é hora de tomar isto como um limite ao que é necessário. Gastemos agora o que for preciso, resistindo à pressão dos oportunistas, que são muitos, com o compromisso de sermos sérios no futuro. A equipe econômica tem a obrigação de reagir proporcionalmente à gravidade do problema sem se acovardar, escondendo-se das críticas de que gastamos demais. Se o fizemos, terá sido para evitar o pior.

A Bolsonaro resta curvar-se aos ensinamentos da ciência e abandonar a arrogância com a qual vem negando a necessidade do isolamento social. Ainda que ele seja contido em seus objetivos, influenciará os mais pobres e menos informados a violarem a quarentena, gerando o risco de uma aceleração da infecção, com consequências econômicas e sociais desastrosas.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados


Pedro S. Malan: Espinhosa travessia

O desafio histórico para verdadeiros líderes é gerir a crise enquanto constroem o futuro

A crise em que se veem o Brasil e o mundo é a um só tempo sanitária, econômica e social. Para enfrentá-la precisamos, mais que nunca, de serena combinação de humildade e confiança da parte de suas lideranças. Humildade para reconhecer o alto grau de incerteza e riscos presentes, confiança em que teremos capacidade para nos erguermos à altura dos desafios. É preciso também reduzir conflitos - com o Congresso, governadores, comunidade científica, mídia profissional, parcela expressiva da opinião pública e até mesmo com os fatos.

Marcus André Mello recorre a Maquiavel na abertura de seu belo artigo na Folha desta semana: “Os príncipes devem transferir decisões importunas para outrem, deixando as agradáveis para si”. O autor mostra quão complexos podem ser os mecanismos de “reivindicação de crédito e de transferências de culpas por decisões impopulares”. E conclui: “Na atual pandemia, são três as lições a tirar para Trump, Johnson e Bolsonaro: ter começado mal importará pouco; transferir responsabilidades não funcionará. (...) E mais importante, a crise revelará sua real capacidade de liderança, não há como escapar”.

A velocidade de contágio do vírus atesta de forma dramática as interações necessárias do mundo da política nacional, regional e internacional. Em artigo recente, Henry Kissinger afirma que nenhum país poderá superar de forma isolada um problema que é global, e cujas consequências econômicas e políticas estarão conosco por gerações. Para o experiente analista, impõe-se aos EUA um grande esforço em três áreas: contribuir para aumentar a resiliência global a doenças infecciosas; fazer mais do que foi feito em 2008/09, porque a situação agora é muito mais complexa; e lembrar as razões que levaram os EUA a cooperar com outros países nos arranjos internacionais que marcaram o mundo do pós-guerra. O desafio histórico para verdadeiros líderes é administrar a crise enquanto constroem o futuro.

Com efeito, lideranças nacionais serão inevitavelmente avaliadas não só pela opinião pública doméstica, como também pela percepção dos outros países. Importa como nos vemos, mas importa também como somos vistos por outros. Afinal, 2020 será marcado por uma brutal recessão na economia mundial e no comércio internacional, muito mais intensa que a de 2008/09. A magnitude dos efeitos sobre oferta, cadeia de suprimentos, demanda e, portanto, sobre emprego e renda não permitirá uma recuperação rápida em 2021. Pesa, ademais, o receio de uma segunda onda da covid-19 ainda em 2020.

“Abril é o mais cruel dos meses” escreveu o poeta T. S. Eliot (A terra desolada, 1922). Está sendo em 2020. Mas não terá sido menos cruel março, quando a epidemia virou pandemia e atingiu, em mais de 140 países, o primeiro milhão de casos registrados (certamente uma subestimativa), que terão alcançado 2 milhões nos primeiros 12 dias de abril. Aguarda-se maio com trepidação.

Graças ao trabalho extraordinário da mídia profissional - que deu e dá espaço inestimável a epidemiologistas, médicos e profissionais da área -, parte expressiva da opinião pública compreendeu que a capacidade do sistema nacional de saúde não comportaria um fluxo excessivo de demandas por cuidados hospitalares, em particular leitos com respiradores em UTIs. Daí a necessidade de políticas de isolamento social, para que o pico da epidemia fosse menos intenso e diferido no tempo. A política do Ministério da Saúde foi explicada com clareza e transparência pelo ministro Mandetta e sua equipe. A política de assistência emergencial aos mais vulneráveis, aos informais, às pequenas e médias empresas, e à preservação do emprego, era e é absolutamente necessária e pôde apoiar-se na aprovação pelo Congresso da declaração de calamidade pública.

O vírus e a necessidade de respostas simultâneas que ele impõe vêm desvendando de forma dramática a extensão de nossas desigualdades e fragilidades sociais - nas áreas de saúde pública, saneamento, educação. São temas que vieram para ficar, com intensidade renovada, e estarão presentes em qualquer debate futuro, muito após o momento em que houver sido superada a atual pandemia.

O Brasil sairá diferente, e espero que melhor, ainda que gradualmente, se algumas importantes lições desta sofrida experiência puderem ser aprendidas. Se alcançarmos grau de capital cívico mais elevado, renovação relevante de lideranças políticas, maior confiança e credibilidade dos governantes junto à maioria da população.

Decorrido quase um terço de século da Constituição de 1988, o sonho de criação de um Estado de bem-estar social está a passar por seu mais sério teste. O Brasil descobre quão difícil é implementar o generoso (e de todo desejável) objetivo de construir um Estado garantidor do alento de aposentadoria para todos e de serviços de saúde e educação universais. Isso envolve custos elevados para a sociedade, e exige clara definição de prioridades numa visão de médio e longo prazos, que alcança o País em que gostaríamos que nossos filhos e netos pudessem viver.

As lições do vírus paradoxalmente ajudam nesse importante diálogo do País consigo mesmo; diálogo sobre um futuro que com frequência permitimos seja adiado.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Vera Magalhães: A revolta da cloroquina

Assim como a reação à vacina em 1904, a apologia a um remédio é irracional e perigosa

Cada epidemia que assola a humanidade tem seus surtos de irracionalidade, ignorância e aproveitamento político associados. Não é diferente com a covid-19, e o fenômeno não é uma exclusividade do Brasil, embora por aqui estejamos nos esforçando para passar à frente no campeonato desses efeitos incidentais.

Em 1904, o Rio de Janeiro viveu a Revolta da Vacina. O presidente Rodrigues Alves nomeou o médico sanitarista Oswaldo Cruz para tentar conter os surtos concomitantes de varíola, febre amarela e peste bubônica, que assolavam uma população crescente que vivia em condições sanitárias precárias. A obrigatoriedade de vacinação para a varíola, aprovada pelo Congresso, foi o estopim para uma revolta popular instrumentalizada por grupos políticos em novembro daquele ano.

Mais de um século depois, diante da pandemia do novo coronavírus, outra reação irracional e perigosa, insuflada por políticos e seus apoiadores, confunde a população e desarticula a estratégia nacional para o combate à propagação do vírus.

Trata-se da pregação do uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Na última semana, o debate, que já era intenso nas hostes bolsonaristas, ganhou emissoras de TV aberta, fez com que o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, fosse forçado a se pronunciar e colocou na berlinda até médicos conceituados, instados por comunicadores a dizer se haviam ou não usado os medicamentos em seus próprios tratamentos.

O uso dos dois fármacos no tratamento da covid-19 é controvertido: resultados positivos na evolução de alguns pacientes são relatados pelo mundo, bem como complicações que não só não resultam na propalada cura como pode fazer com que os pacientes evoluam para óbito.

Seu uso mais efetivo, até aqui, foi observado em laboratório, em dosagens e condições que não podem ser replicadas em pacientes. Seu efeito tem sido mais efetivo quando em associação com outras drogas, como antirretrovirais e corticoides. Esse coquetel só pode ser prescrito por médicos, de acordo com o histórico e as condições de cada doente.

Mas não é isso que se vê nas insanas redes sociais e na movimentação deliberada de Jair Bolsonaro. O que se tem é uma propaganda irresponsável dos poderes da cloroquina e da hidroxicloroquina, sem comprovação científica que a ampare. Chegou-se ao ridículo de parlamentares sempre dispostos a pagar mico para bajular Bolsonaro subirem hashtags como #RemediodoBolsonaro e #JairNobeldaPaz.

A “revolta” da cloroquina e da hidroxicloroquina embute riscos graves. O primeiro e mais evidente é contrapor seu efeito “milagroso” à necessidade de isolamento social, como se o uso liberasse as pessoas a relaxarem a quarentena. O efeito da semana da histeria cloroquínica foi justamente esse: em todo o País os índices de isolamento regridem perigosamente.

Sem testes em quantidades mínimas, o incentivo de Bolsonaro para que as pessoas voltem às ruas tem potencial genocida. Seu novo tour por Brasília, um dos lugares do Brasil que primeiro adotaram regras duras de distanciamento social, é um desserviço presidencial à saúde pública. Displicente, limpou o nariz no antebraço antes de dar a mão a simpatizantes, entre os quais idosos. Uma cena capaz de chocar um mundo quarentenado e envergonhar o Brasil.

Caso prospere a narrativa de que basta pressionar médicos para que receitem medicamentos de eficácia ainda não comprovada e todos podem sair por aí livremente, vamos viver uma tragédia. Neste caso, o presidente não será candidato ao Nobel da Paz (risos), mas sim ao título de chefe de Estado que pior lidou com o mais grave problema enfrentado pela humanidade neste século.


Luciano Huck: ‘Precisamos entender que essa e uma crise política e não apenas de saúde', diz Yuval Harari

Uma conversa: Luciano Huck & Yuval Harari

Para Yuval Harari, pandemia criou “experimentos sociais incríveis”, mas “lógica da guerra” é risco para democracias

 Texto: Luciano Huck / Foto: Rafael Haddad

Em novembro, quando a covid-19 ainda não dava sinais de existir, eu e Yuval Noah Harari caminhávamos pelas ruas estreitas da comunidade de Tavares Bastos, no Morro da Nova Cintra, no Rio de Janeiro. Ao saber que Harari vinha ao Brasil para dar palestras bem pagas a empresários da Faria Lima e falar no Congresso, fiz uma provocação: queria que ele conhecesse o Brasil “de verdade”, aquele que vive a desigualdade sobre a qual ele discorre em seus fantásticos best-sellers.

Além da vista deslumbrante da Baía de Guanabara, Tavares Bastos é uma das poucas favelas do Rio fora do domínio do tráfico e das milícias. O motivo é sua localização: ao lado da comunidade foi instalada, em 2000, a sede do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar).

Queria que Harari visse o lugar onde moram alguns dos protagonistas silenciosos de seus livros. O motorista de ônibus que deve perder o emprego com a automatização dos coletivos. A operadora de telemarketing que se tornará dispensável em razão da inteligência artificial. A professora da escola pública que forma as novas gerações, a enfermeira do SUS que prolonga vidas e tantos outros.

Harari – um dos filósofos mais influentes da atualidade, autor de Sapiens, Homo Deus e 21 Lições sobre o Século 21 – topou subir o morro. E foi uma experiência incrível para todos. Nossa relação pessoal nasceu por acaso. Anos antes, havíamos dividido uma mesa de café da manhã, em um evento na Itália. Eu com Angélica; ele com Itzik, seu marido e fiel escudeiro. Cinco meses depois do nosso passeio em Tavares Bastos, o mundo é outro. Uma pandemia está mudando a humanidade e temas que Harari tanto estuda – como evoluímos, nossa relação com tecnologia e ciência, o papel da empatia – nunca estiveram tão presentes.

Para entender melhor essas questões, conversei com Harari na última terça-feira. Eu, isolado em minha casa no Joá, no Rio, e ele, em seu apartamento, em Tel-Aviv.

Luciano Huck: Vi que, nos últimos dias, você participou de debates e deu entrevistas para meios de comunicação do mundo todo. Isso sem sair de casa e usando a tecnologia – assunto que você trata há bastante tempo. Como você vê essa contradição aparente: estar em casa e, talvez, mais do que nunca falar com o mundo todo?

Yuval Harari: Todos os processos de que falamos nos últimos anos sobre tecnologia e vigilância, o impacto do online e o poder das mídias sociais, agora estão passando por transformações enormes e ainda mais rápidas. Por exemplo, na minha universidade em Jerusalém, falamos há mais de 10 anos sobre fazer alguns cursos online. Houve tantas discussões que acabamos não abrindo nenhum curso digital. Mas, com a pandemia, em uma semana a universidade inteira foi transferida para o universo online.

Luciano Huck: Você publicou best-sellers refletindo sobre o passado e o futuro, mas seu último livro aborda os desafios atuais da humanidade. No século 21, já estávamos vendo transformações drásticas em um período muito curto de tempo – meses ou semanas. A atual crise alterou de alguma forma tua visão?

Yuval Harari: As pessoas precisam estar atentas ao fato de que temos muitas opções nessa crise. Em outras palavras: o futuro não está predeterminado. Não há um roteiro único de como lidar com a epidemia e a crise econômica. Nós – cidadãos e governos – teremos de tomar algumas decisões muito importantes nos próximos meses, que vão mudar o mundo completamente. Governos estão fazendo experimentos sociais incríveis, envolvendo trabalho online ou fornecendo renda básica universal. E isso vai mudar o mundo. Precisamos entender que essa é uma crise política e não apenas de saúde. As grandes decisões são, na verdade, políticas. Entender isso depois que a pandemia passar será como chegar após o fim da festa – a única coisa que restará será lavar a louça suja. Agora, governos estão distribuindo dezenas, centenas de bilhões de dólares e decidindo como remodelar o mercado de trabalho, o sistema educacional.

Luciano Huck: E há uma grande armadilha nessa questão política, pois governos tomarão decisões transcendentais, enquanto, em muitos países, estamos em meio a um blecaute de liderança. Temos, como sociedade civil, um desafio enorme para evitar que esses líderes – que, digamos, não têm mentes brilhantes – tomem decisões trágicas para todos nós.

Yuval Harari: Exatamente. A mídia e os cidadãos devem, é claro, seguir o que está acontecendo com a epidemia, e não devemos ficar só nas estatísticas de doença e morte. É preciso também estar atento ao que o governo está fazendo. Há bilhões de dólares em jogo: quem está recebendo o dinheiro e quem é deixado de lado? Outra questão são os novos regimes de vigilância de cidadãos adotados por alguns países. Coisas que em um país democrático, alguns meses atrás, pareceriam impossíveis, agora estão sendo feitas. Em alguns lugares, como a Hungria, certos líderes tentam usar a situação para se transformarem em ditadores. Sob o pretexto de combater a epidemia, eles tomam poderes de emergência e basicamente desmantelam o sistema democrático de freios e contrapesos.

Luciano Huck: Estamos vivendo em uma ordem política de guerra, mas com o vírus – em vez de exércitos – como inimigo? Como você enxerga isso?

Yuval Harari: Devemos ter cuidado ao comparar nossa situação com uma guerra. Líderes ao redor do mundo estão fazendo isso, mas é perigoso, pois dá às pessoas a ideia de que há um inimigo – não apenas o vírus, mas um inimigo humano – a ser combatido. E isso faz com que se espere respostas em termos de segurança pública – como o que está acontecendo em Israel, onde o exército e a inteligência estão assumindo o controle da crise. Não é uma guerra. É um tipo muito diferente de crise, e você precisa pensar de uma maneira diferente. O principal não é matar inimigos. O principal é cuidar das pessoas. Em uma guerra, os heróis são os soldados que avançam com suas submetralhadoras. Na crise atual, os protagonistas são os profissionais de saúde que enfrentam duras jornadas nos hospitais. Isso exige uma maneira diferente de pensar sobre o que está acontecendo.

Luciano Huck: Olhando a partir do contexto brasileiro, essa tua mensagem tem um aspecto bem interessante. A meu ver corretamente, o Congresso nacional está propondo uma emenda constitucional destinando recursos à luta contra o coronavírus, isolando estes gastos do orçamento anual do governo, mas ela foi batizada de “Orçamento de Guerra”.

Yuval Harari: É um orçamento de saúde para cuidar das pessoas. Essa é a principal questão.

Luciano Huck: Estivemos juntos na favela de Tavares Bastos, no Rio de Janeiro. Você vivenciou a enorme desigualdade social – que, aliás, existe em todos os estados brasileiros, sem exceção. Precisamos de soluções definitivas para nossas favelas. Não podemos atravessar mais uma geração sem que esta questão comece a ser encaminhada definitivamente. Como você vê os efeitos dessa pandemia sobre a pobreza e a desigualdade, sobre lugares como Tavares Bastos?

Yuval Harari: Muitas das diretrizes de distanciamento social e isolamento são impraticáveis em um lugar como uma favela, onde uma pessoa divide um espaço muito pequeno com muitas outras, compartilhando um banheiro, por exemplo. E, claro, você precisa sair para comprar comida e coisas assim. E provavelmente serão essas pessoas as mais atingidas pela crise econômica. E, mesmo em uma escala maior, quando você olha para o mundo inteiro, a desigualdade entre diferentes países agora está se tornando muito mais forte. Por enquanto, o foco da crise foi o mundo desenvolvido, primeiro no leste da Ásia, depois na Europa e, agora, na América do Norte. O medo é que o pior venha quando a epidemia se espalhar pela América do Sul, África e Oriente Médio. Lá, os sistemas de saúde estão em uma situação ainda pior. Os EUA podem gastar US$ 2 trilhões em um pacote de resgate para a economia. O Brasil não tem US$ 2 trilhões. Portanto, a grande questão é o que acontecerá no Brasil, no Egito, em Bangladesh. A menos que tenhamos um plano de ação global, isso poderá causar o colapso de alguns países, o que desestabilizará o mundo inteiro.

Luciano Huck: O Brasil está diante de uma situação muito complicada: boa parte da população, incluindo os mais de 13,6 milhões que vivem em favelas, corre o risco de voltar à pobreza ou aprofundar nela em semanas. Há relatos do tipo: “Eu estava trabalhando em uma loja no shopping, minha mulher é manicure e as crianças estavam na escola. Em duas semanas, a loja faliu, não há mais clientes para minha mulher e as crianças estão em casa sem aulas. Tenho ainda de pagar pelo almoço delas, despesa que não havia antes, e voltarei à pobreza extrema em duas semanas.” A ciência nos prova a importância de ficar em casa neste momento. Mas as pessoas estão passando fome em muitos locais, o que torna muito mais difícil lidar com a pandemia e o isolamento social. O governo brasileiro enfrenta problemas de dados, logística, sensibilidade social e coordenação para fazer o dinheiro chegar rapidamente a quem mais precisa. Portanto, por um lado, temos um problema de saúde realmente sério e, por outro, uma crescente pressão social. A sociedade civil está se movimentando para que comida chegue na mesa dos mais afetados e a filantropia deu um salto – já doamos, em poucas semanas, mais do que no ano inteiro de 2019. Mas a situação é muito trágica, inclusive porque muitas dessas vítimas ainda não conseguem entender a gravidade dela. Então, eu te pergunto: o que pode melhorar a vida das pessoas de classe baixa, classe média ou em áreas rurais?

Yuval Harari: Não posso prever o futuro porque ele ainda não foi escrito, mas isso dependerá das decisões que tomamos hoje no Brasil, em Israel e em todo o mundo. A grande questão é se enfrentamos esta crise como uma sociedade global, por meio da solidariedade e cooperação entre países, ou se lidamos com ela por meio do isolacionismo nacionalista e da concorrência. Por exemplo, como devemos enfrentar a escassez de recursos médicos – kit de testes, respiradores, máscaras, luvas? Todos os países dependem de outros para obter esses recursos, precisamos de uma cooperação global, para tornar a produção mais eficiente e para distribuir de maneira justa qualquer equipamento médico existente. Evitando o monopólio desses recursos pelos países mais ricos. Essa é uma decisão que precisamos tomar – o futuro não é predeterminado. Se lidarmos com isso de maneira cooperativa, a crise será menos grave e, depois da crise, teremos um legado de solidariedade humana. Se, por outro lado, for cada país por si e cada um lutando entre si, culpando um ao outro, então não apenas a crise será muito mais grave, mas teremos uma atmosfera envenenada depois por muitos anos. Espero que as escolhas sejam feitas com sabedoria. O Brasil e outros países da América do Sul e Oriente Médio não serão capazes de lidar com essa dupla crise na saúde e na economia, a menos que recebam ajuda dos países mais ricos. Nos últimos anos, as relações entre países se deterioraram. E agora estamos pagando o preço por isso. Espero que não seja tarde demais para reverter o curso. Da mesma forma, se você pensar simplesmente na situação econômica, agora é a hora de organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, aliados aos países mais ricos, criarem uma rede de segurança global, para garantir que nenhum país caia em completo caos econômico.

Luciano Huck: Não estávamos preparados para o isolamento. Sei que você usa meditação para encontrar equilíbrio e conduzir seu processo criativo (anualmente Yuval fica 3 meses em meditação e isolado). Como você está lidando pessoalmente com a quarentena? Muitas pessoas estão ansiosas ou com muito medo - inclusive porque seu espaço e direitos de ir e vir estão tão mais restritos.

Yuval Harari: Precisamos enfatizar a saúde mental. Não é apenas a saúde física, não é apenas a economia. É também uma crise de saúde mental e temos de dar apoio às pessoas nesse sentido. Você sabe, eu sou um dos sortudos. Tenho uma casa relativamente grande. Não estou sob nenhuma ameaça financeira. Na verdade, estou trabalhando mais do que nunca. Sim, eu me preocupo com a situação política. Tenho parentes que podem ficar doentes. Minha avó tem 98 anos e, se ela pegar o vírus, provavelmente morrerá, pois ela também tem doenças crônicas. Mas, pessoalmente, estou em uma boa situação. Sei que milhões de outras pessoas, em Israel e no Brasil, estão trancadas num pequeno apartamento com uma grande família. Talvez com o negócio deles em colapso, ou talvez tenham perdido o emprego. É uma situação extremamente difícil. E, pensando novamente sobre como isso não é uma guerra, mas uma crise de saúde, é preciso oferecer também atendimento de saúde mental. Este é o momento em que precisamos de meditação, precisamos de psicologia, precisamos de serviços sociais, de uma rede de segurança mental que ajude a lidar com a crise. E também esperança para quando a crise acabar.

Luciano Huck:
 A pandemia nos atingiu enquanto alguns líderes mundiais flertam com o autoritarismo, negacionismo, terraplanismo, xenofobia, repressão e tornam o debate político um “nós contra eles”.  Essa pandemia também nos mostrou como o mundo está interconectado - uma onda em um lugar pode causar um tsunami em outro. Então você acha que essa crise pode nos ajudar de alguma forma a melhorar nossos relacionamentos humanos e de alguma forma a melhorar o espaço da política?

Yuval Harari: Alguns políticos estão usando a crise para pregar o ódio contra estrangeiros, o ódio às minorias, dizendo que devemos nos preocupar apenas com nós mesmos, fechando fronteiras e abandonando a democracia. Mas não precisa ser assim. Não é verdade que as ditaduras lidam com essas crises melhor do que as democracias. Geralmente é o oposto. O problema das ditaduras é que, quando uma pessoa toma todas as decisões, o processo é mais rápido. Mas se a pessoa tomar a decisão errada, quase nunca admitirá um erro. Ele apenas continuará com o mesmo erro, culpará os outros – traidores e inimigos – e exigirá ainda mais poder. A democracia é mais eficiente porque há uma pluralidade de vozes e ideias. Se algo não funciona, tentamos outra coisa. Para fazer as pessoas seguirem as orientações, um povo motivado e educado é muito mais forte do que um povo ignorante e policiado. Se, por exemplo, você quer fazer as pessoas lavarem as mãos, uma maneira de fazer isso é colocar um policial ou uma câmera em cada banheiro e forçar as pessoas a lavarem as mãos. Outro método é apenas educar as pessoas sobre vírus e bactérias, como eles causam doenças, e como você pode se proteger apenas lavando as mãos. E, se as pessoas sabem disso, você não precisa de um policial. Pode-se apenas confiar nas pessoas – um método muito mais eficiente. Além disso, no nível internacional, o isolacionismo não é a solução para lidar com a epidemia. A coisa mais importante para lutar contra a epidemia é a informação, que geralmente vem do diálogo e das experiências de outros países. A grande vantagem dos seres humanos sobre o vírus é que podemos cooperar de formas que o vírus não consegue. Um vírus na China não pode dar conselhos a outro no Brasil sobre como infectar pessoas, mas médicos chineses podem ajudar muito colegas brasileiros. O governo brasileiro está enfrentando agora um dilema que a Coréia ou Taiwan enfrentaram dois meses antes. Se não usarmos esse poder de cooperação, será muito difícil derrotar o vírus. Portanto, não sou contra impor a quarentena e fechar fronteiras e assim por diante, mas até isso precisa ser feito com base na cooperação, e não na culpa e no ódio aos outros.

Luciano Huck: Filmes futuristas – como Blade Runner, Robocop, Total Recall ou Matrix – marcaram a tua e a minha juventude, e imaginávamos um futuro em que o governo sabia tudo sobre nós apenas olhando para os nossos rostos. Agora, em certo sentido, isso é uma realidade, basta ver a realidade na China nos últimos tempos. Como você vê essa dinâmica entre vigilância e pandemia, incluindo países emergentes como o Brasil?

Yuval Harari: Certamente precisamos confiar nas novas tecnologias para combater a epidemia. É a nossa vantagem sobre os vírus, nossa capacidade de criar novas tecnologias, sejam medicamentos ou vigilância, que nos dizem quem está doente e quem está infectado. Mas temos de fazer isso de maneira muito cuidadosa. Caso contrário, podemos criar países totalitários. Vemos agora que mesmo os países democráticos estão instituindo esses sistemas de vigilância que provavelmente continuarão a existir depois que a crise acabar. Eles são muito fáceis de criar e difíceis de eliminar, porque sempre há outra emergência ou outra justificativa. E temos de lembrar algumas diretrizes sobre vigilância. Antes de tudo, a autoridade para vigiar não deve ser dada às forças de segurança, como a polícia ou militares, porque elas podem abusar dela. Em vez disso, ela precisa estar nas mãos de algum tipo de autoridade sanitária, talvez uma nova autoridade – uma autoridade epidemiológica –, completamente separada da segurança pública e focada apenas na saúde das pessoas. As pessoas que ouvem a palavra vigilância geralmente pensam no governo ou na empresa olhando para você e para mim. Mas também pode ser diferente: podemos usar a vigilância para que você, eu e todos os espectadores possam monitorar o governo. Por exemplo, mencionamos anteriormente que os governos agora gastam bilhões e bilhões de dólares para salvar empresas. Isso deve ser transparente. Eu quero monitorar isso. Quero garantir que o governo esteja aproveitando esta oportunidade para salvar pequenas empresas, e não apenas para salvar as grandes corporações próximas ao governo. Então, sim, precisamos vigiar as pessoas, mas, ao mesmo tempo, as pessoas precisam vigiar o governo e ver o que ele está fazendo. Se mantivermos essas duas diretrizes – a vigilância das pessoas por uma organização de saúde, não pelas corporações, pela polícia ou exército, e, ao mesmo tempo, um meio em que eu possa vigiar o governo – a democracia poderá ser preservada. Isso será também muito útil no combate a essa epidemia e as que vierem depois. Uma das coisas boas dessa crise é que você vê que a grande maioria das pessoas ainda confia na ciência mais do que em qualquer outra coisa. Nos últimos anos, todos esses políticos populistas disseram às pessoas que os cientistas são uma pequena elite desconectada. E existiam todas essas teorias da conspiração em torno da mudança climática ser uma farsa, por exemplo. Agora, felizmente, vemos que em uma crise real quase todo mundo se volta para a ciência. Em Israel, fecharam as sinagogas. No Irã, as mesquitas. Igrejas em todo o mundo também. Por quê? Porque os cientistas recomendaram. Assim, mesmo a Igreja, judeus e muçulmanos religiosos, em uma crise, sabem que aqueles em quem você realmente deve confiar são os especialistas científicos. Espero que essa lição permaneça.

Luciano Huck: Faço, então, uma pergunta que talvez soe ingênua. Estamos vendo países como Israel, onde você mora, usar tecnologias de combate ao terrorismo para rastrear cidadãos. De fato, todos sabemos que o governo gasta muito mais dinheiro com segurança e defesa do que em ciência e saúde. Alguns meses antes da pandemia, o Brasil havia acabado de aprovar um orçamento de bilhões de reais, resultando em cortes nos investimentos em ciência e pesquisa médica. Claro, historicamente a tecnologia militar tem impulsionado a civil, numa espécie de simbiose entre essas áreas. Mas como você imagina que seria o mundo se gastássemos mais em ciência e saúde pública do que em guerra?

Yuval Harari: Não estamos na Idade Média. Agora temos a ciência e a tecnologia para derrotar essas epidemias, seja o coronavírus ou qualquer outra. Na Idade Média, quando a peste negra matou milhões, ninguém entendeu o que acontecia, o que estava matando humanos, e o que poderia ser feito. Eles pensaram: talvez Deus esteja nos punindo, talvez todos temos de ir à igreja e orar e isso acabará. E é claro que não ajudou – apenas espalhou a infecção ainda mais rápido. Agora, levou apenas duas semanas para os cientistas identificarem o novo vírus, sequenciar todo o seu genoma e criar testes confiáveis ​​para saber quem está doente. Essa é a base para conter a propagação da epidemia. E estamos trabalhando em medicamentos e vacinas. Todo mundo está perguntando “quando” a vacina estará pronta, e não “se” ela existirá. Portanto, não estamos desamparados como na Idade Média e a base é a ciência. Até para lavar as mãos: a base é o conhecimento científico. É preciso dar às pessoas uma boa educação científica na escola para que elas saibam o que é um vírus e no caso de uma epidemia, elas saibam o que fazer. Se você não dá às pessoas uma boa educação científica na escola, elas não entendem as epidemias e acreditam em todos os tipos de teorias ridículas da conspiração. Se aprendermos a lição corretamente, depois que isso acabar, investiremos muito mais não apenas em pesquisa científica, mas também em educação científica para toda a população. Quando a próxima epidemia chegar, estaremos em uma posição muito melhor para lidar com isso. E, novamente, você mencionou despesas militares. É por isso que enfatizo que isso não é uma guerra. É uma crise de saúde. Isso não é da conta dos militares. Uma enfermeira de um hospital entende muito mais dessa crise do que um general.

Luciano Huck: Em um artigo recente no Financial Times e no início da nossa conversa, você questionou o que acontece quando todo mundo trabalha em casa e se comunica à distância, quando uma escola inteira e uma universidade vão para o online. No Brasil, 90% das escolas públicas não estão conectadas – nosso sistema de ensino público é muito analógico. Mas temos mais celulares do que cidadãos no Brasil. Somos uma sociedade digital, mas com uma lógica de governo ainda analógica. Você acha que essa pandemia pode aprofundar as desigualdade no aspecto digital ou acelerar as mudanças necessárias?

Yuval Harari: São as nossas escolhas que vão definir isso. Certamente é verdade que agora vemos as consequências da desigualdade no mundo real e digital. Em algumas escolas, você pode continuar ensinando, quase como de costume, para que os alunos não sejam muito prejudicados. Em outras, isso é impossível, pois elas não têm infraestrutura e os alunos não têm acesso a internet ou a computadores em casa. Eles são deixados para trás. E com isso a desigualdade só aumenta. O desfecho aqui pode ser governos investindo mais para fechar essa brecha digital, não apenas na educação, mas no mercado de trabalho e em outras instâncias. Quero dizer, também existem oportunidades nessa crise. É a ideia que repeti ao longo de nossa conversa: não é algo predeterminado. É uma escolha de onde investimos nossos recursos. E por isso é tão importante não só acompanhar as notícias sobre a epidemia, mas também observar o que está acontecendo no nível político. Quais são as decisões que o governo está tomando? Quais empresas estão economizando e quais empresas entraram em colapso? Para onde vai o poder? Nada disso é predeterminado. Depende do quanto estamos atentos e do que todos nós decidimos fazer.

Luciano Huck: Talvez, para um país como o Brasil, o aprendizado dessa pandemia seja que educação e tecnologia, somadas, podem superar muitos dos problemas da atualidade e das últimas décadas. Minha pergunta final é sobre isso. Qual é a grande oportunidade, em termos de aprendizado, dessa crise?

Yuval Harari: Uma coisa muito importante é que, nessa crise, nosso maior inimigo não é o vírus, mas nossos próprios demônios interiores. É o nosso ódio. É a nossa ganância. É a nossa ignorância. São pessoas que incitam nosso ódio, culpando a epidemia em algum grupo humano e nos dizendo para odiá-los. É a nossa ganância. São grandes empresas que dizem: “Ei! Temos tido dificuldades ultimamente, talvez possamos aproveitar essa oportunidade para fazer com que o governo nos dê bilhões de dólares”. São pessoas que não ouvem a ciência. Em vez disso, ouvem todos os tipos de teorias da conspiração. Se conseguirmos derrotar nossos demônios interiores – ódio, ganância, ignorância –, não apenas venceremos o vírus com muito mais facilidade, como seremos capazes de construir um mundo muito melhor depois que a crise acabar. Espero que seja exatamente isso que faremos.

Luciano Huck: Gostaria de te agradecer, Yuval. Foi um prazer e uma honra conversar sobre suas ideias no meio dessa crise global.