o estado de s paulo

Vera Magalhães: Rebuliço!

O 'garoto' Felipe Neto, assim estigmatizado por analistas de todos os lados, deu um banho de humildade e maturidade em políticos e analistas no 'Roda Viva'

Confesso que me causou espanto o nó que o convite a um influenciador digital com milhões de seguidores, Felipe Neto, para uma entrevista, provocou na cabeça de pessoas de várias faixas etárias e de diferentes cortes ideológicos. A reação, um verdadeiro rebuliço, para usar uma palavra que o próprio Felipe transformou em bordão nos seus vídeos, é sintomática do grau de infantilismo do debate político brasileiro.

O “garoto” Felipe, assim estigmatizado por analistas de todos os lados, deu um banho de humildade e maturidade em políticos, analistas políticos, cientistas sociais e outros que torceram o nariz para sua presença no centro do Roda Vida.

Dizendo de cara que não era especialista e que seu “lugar de fala” era o de um empresário, especialista em comunicação e cidadão interessado em política, falou com propriedade sobre autoritarismo, negacionismo científico, estratégias de comunicação via redes sociais e necessidade de união de esforços para preservar a democracia.

Admitiu erros do passado, propôs caminhos de convergência com a propriedade de quem sabe que influencia um imenso público jovem e se dispôs a ouvir.

A reação do bolsonarismo foi a de tentar desqualificá-lo pela idade e pelo fato de ser um youtuber. A de parte da esquerda, sobretudo do petismo, foi bater bumbo em cima de uma frase que ele falou de passagem em uma resposta, a de que hoje acredita que o impeachment de Dilma Rousseff teria sido um “golpe”. Pronto! Veio uma espécie de catarse retroativa nas redes sociais, e passou batido o que ele disse sobre a oposição estar totalmente vendida no debate público (como ficou comprovado, aliás).

A resistência de formadores de opinião e políticos a encarar que a forma como se faz comunicação mudou e que uma nova gama de influenciadores tem de ser trazida para o debate público mostra por que não será simples deixar um momento de interdição de ideias e do campo democrático do qual o bolsonarismo se alimenta.

Enquanto o presidente usa a rampa do Planalto como playground de golpistas à luz do dia de um domingo, os que o rechaçam se horrorizam com o fato de que um youtuber pode atingir mais pessoas para mostrar por que esse comportamento é inadmissível que muito político barbado e ultrapassado. O tempo passou na janela, e só Carolina não viu.

Covid-19: Prefeitura de SP insiste em medidas improvisadas para achatar curva
A Prefeitura de São Paulo resolveu tentar achatar a curva da covid-19 na base da tentativa e erro. Medidas arbitrárias, aleatórias e sem amparo em dados técnicos são anunciadas pelo prefeito Bruno Covas e em seguida revogadas, sem resultado algum para conter o aumento da transmissão do novo coronavírus. Do ponto de vista político, o improviso joga contra o discurso de Covas e do governador João Doria, ambos do PSDB, de tentar se contrapor às ações do governo federal com o argumento de que em São Paulo as decisões são tomadas com base na ciência e nos dados.

Depois de anunciar e voltar atrás no fechamento de grandes vias da cidade e na ampliação do rodízio de carros (que aumentou, como era óbvio, a aglomeração no transporte público), Covas decidiu fazer um feriadão prolongado de hoje até a próxima segunda-feira. As escolas municipais mal acabaram de conseguir iniciar uma mal ajambrada substituição para as aulas, depois de um mês de férias no início da pandemia. Grande parte dos alunos não conseguiu ainda acessar o aplicativo para acompanhar as aulas, pois não dispõe de recursos digitais. Nas escolas privadas, que também se adaptam, ainda que com muito menos dificuldade, ao ensino a distância, o feriado vai deixar famílias cinco dias com crianças em casa sem fazer nada enquanto os pais tentam trabalhar. Qual o convite? Para que as pessoas deixem a cidade para passar o feriado rumo ao interior e ao litoral, levando o vírus para passear.

A educação já sofrerá um imenso baque com a interrupção das aulas presenciais. O feriadão prolongado só vai desestimular alunos e professores. Além disso, regiões como a Baixada Santista estão próximas do colapso pela covid-19. Estimular a ida de famílias entediadas para essas cidades só vai agravar o problema. O custo de medidas improvisadas na base do “a gente vê, e se não der certo volta atrás” é o mesmo das declarações irresponsáveis de Bolsonaro: aumento da proliferação do novo coronavírus. Se São Paulo quer mesmo dizer que se guia pela ciência, é bom prefeito e governador coordenarem suas ações.


Rosângela Bittar: Fase 2, sobrevivência

Bolsonaro entregou, sem hesitar, a chave do cofre bilionário do FNDE ao Centrão

É imperativa a compreensão do alcance da firme reação humanista com que homens públicos de diferentes tendências e origens estão respondendo ao surto de barbarismo do governo Jair Bolsonaro. As manifestações ponderadas de ex-ministros de Estado chamam à realidade muitos dos seus sucessores, em áreas sensíveis como Direitos Humanos, Relações Exteriores e, nesta semana, Defesa. A exortação enfática à razão visa o presidente.

Duas vantagens com as quais Bolsonaro ainda conta, porém, impõem cautela na tradução dos manifestos em ação concreta: o apoio de parte da opinião pública, que se reduziu, mas não acabou; e a sua ínfima, porém real, capacidade de, mesmo cambaleando, ainda conseguir obter o apoio de um grupo político como o Centrão. Às feras da barganha entregou, sem hesitar, a chave do cofre bilionário do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Uma prova de que Bolsonaro ingressou, definitivamente, na fase 2 do seu governo, a da sobrevivência.

Para isso, precisou recuar de promessas e remodelar o teatro. Além do Centrão, quer a seu lado os egressos da carreira militar, da ativa ou da reserva. Se há uma distorção do conceito de poder que habita Bolsonaro esta é a que simplifica a conjugação do verbo mandar. A lógica é: ele manda, todos obedecem. Os militares, como têm na disciplina um norte, se estão no governo, defendem o governo.

Os argumentos recentes de três deles, apresentados para justificar a crueldade e descaso presidencial com a população doente e enlutada, são evidências desta missão. Um deles, a título de ser portador de boa notícia, anunciou um plano econômico, ainda no esboço, cuja existência ocultara do ministro da Economia. Outro, em fórum internacional sobre o assunto, omitiu a perplexas autoridades a gravidade da situação brasileira. Um terceiro alegou, em entrevista, os vários tipos de morte, inclusive no trânsito, para se queixar da ênfase aos que perderam a vida com a infecção por coronavírus.

Não está prevista, também, a substituição dos suspeitos de corrupção e dos ministros ventríloquos das ideias estapafúrdias. Com uma exceção recente: Bolsonaro já admitiria tirar o cargo de Abraham Weintraub. Sem noção, desde sempre, além do conjunto da obra, decidiu estranhar a presença do Centrão no seu ministério. Mas Ernesto Araújo e Damares Alves estão garantidos.

À medida que o governo vai se decompondo, as cabeças que ainda davam algum sentido à primeira formação ficam esperando sua hora.

Paulo Guedes se mostra cada vez mais transtornado e agressivo à moda presidencial, no ataque em marcha contra as instituições, os Poderes, os governadores. Engole a seco o conflito do seu plano com as concessões exigidas pela crise e decreta que o inferno são os outros. Sua presença não é mais compreendida. Quando sair, o critério da homogeneidade deve elevar, para seu lugar, a cotação do presidente da Caixa Econômica Federal. Se for, combina.

Também estrela da concepção original, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, sabe que vai sair, só não sabe quando. Ela se enfraqueceu no bombardeio diplomático e ideológico à China, com quem o agronegócio brasileiro mantém vigoroso mercado. É conhecida a máxima da prática política de que ministro forte recebe pedidos e ministro fraco recebe apoio. Não foram poucas as notas de apoio a Tereza Cristina, de cuja competência e seriedade não há dúvidas.

Bolsonaro ainda detém instrumentos de poder, como as prerrogativas de governar, que não usa. Mas usa e abusa de outros, como a autoridade, que não tem. Situação que sugere a urgência de antecipar aquele choque de humanismo inserido nos manifestos referidos. Já espalharia um pouco de ar neste sufocante clima.


O Estado de S. Paulo: Bolsonaro impõe e Saúde libera cloroquina para todos pacientes com covid-19

Documento divulgado nesta quarta-feira recomenda a prescrição do medicamento desde os primeiros sinais da doença causada pelo coronavírus

Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo

Diante da recusa de dois ministros da Saúde, que optaram por pedir demissão para não assinar o documento, coube ao general Eduardo Pazuello, que assumiu a pasta de forma interina,  liberar a cloroquina para todos os pacientes de covid-19. Em documento divulgado nesta quarta-feira com o novo protocolo, o ministério recomenda a prescrição do medicamento desde os primeiros sinais da doença causada pelo coronavírus

Embora não haja comprovação científica da eficácia do medicamento contra a doença, o Ministério da Saúde alega, no documento, que o Conselho Federal de Medicina autorizou recentemente que médicos receitem a seus pacientes a cloroquina e a hidroxicloroquina, uma variação da droga. "A prescrição de todo e qualquer medicamento é prerrogativa do médico, e que o tratamento do paciente portador de COVID-19 deve ser baseado na autonomia do médico e na valorização da relação médico-paciente que deve ser a mais próxima possível, com objetivo de oferecer o melhor tratamento disponível no momento

Na prática, com o novo protocolo, o governo autoriza que médicos da rede pública de saúde receitem a cloroquina associada ao antibiótico azitromicina logo após os primeiros sintomas da doença, como coriza, tosse e dor de cabeça. As doses dos medicamentos se alteram conforme o quadro de saúde. "Os critérios clínicos para início do tratamento em qualquer fase da doença não excluem a necessidade de confirmação laboratorial e radiológico", diz o documento do Ministério da Saúde.

Até então, o protocolo do Ministério da Saúde era mais cauteloso e seguia o que dizem sociedades científicas. A droga pode causar efeitos colaterais graves, como parada cardíaca. Esse é um dos motivos para a resistência de comunidades de saúde em recomendar a cloroquina sem acompanhamento médico.

Médicos que lidam com a covid-19 já levantam dúvidas sobre o documento. O Ministério da Saúde não é claro em exigir a confirmação laboratorial da infecção para a covid-19 para começar o tratamento. O risco, dizem estes especialistas, é que um caso apenas detectado em análise clínica já seja submetido ao tratamento.

Além disso, o documento do Ministério da Saúde orienta a realização de uma série de exames e monitoramento eletrocardiográfico do paciente. Este tipo de procedimento pode exigir a ida ao hospital de alguém  que poderia apenas fazer repouso em casa para se curar.

Embates

Em entrevista ao jornalista Magno Martins, na terça-feira, o presidente brincou com o tema, alvo de divergências devido aos possíveis efeitos colaterias. "Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, Tubaína", repetiu várias vezes ao fazer piada com o assunto.

O uso da substância se tornou foco de embate de Bolsonaro com os agora ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Médicos, eles argumentaram a falta de respaldo científico para que a substância fosse receitada logo no início do tratamento da covid-19. A cloroquina é usada para tratamento de malária e outras doenças autoimunes. Em publicação no Twitter antes de ser demitido, Teich chegou a alertar sobre possíveis efeitos colaterais da droga. Diante de um "ultimato" de Bolsonaro, optou por deixar o governo.

“Um alerta importante: a cloroquina é um medicamento com efeitos colaterais. Então, qualquer prescrição deve ser feita com base em avaliação médica. O paciente deve entender os riscos e assinar o ‘Termo de Consentimento’ antes de iniciar o uso da cloroquina”, escreveu Teich no Twitter no dia 12 de maio, três dias antes de pedir demissão.

Antes de sair, em abril, Mandetta também disse ter sido pressionado, em uma reunião no Palácio do Planalto, a assinar um decreto permitindo a prescrição da cloroquina a todos os pacientes da doença. Na ocasião, disse que só o faria quando entidades médicas respaldassem a orientação.

Para poder usar o medicamento, o paciente deverá assinar um termo de "Ciência e Consentimento". O documento inclui declarar conhecer que o tratamento pode causar efeitos colaterais que podem levar à "disfunção grave de órgãos, ao prolongamento da internação, à incapacidade temporária ou permanente, e até ao óbito."

No termo de consentimento que o paciente deverá assinar, também divulgado pelo Ministério da Saúde, o paciente diz aceitar o risco de tomar a droga "por livre iniciativa".

"Estou ciente de que o tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina pode causar os efeitos colaterais descritos acima, e outros menos graves ou menos frequentes, os quais podem levar à disfunção grave de órgãos, ao prolongamento da internação, à incapacidade temporária ou permanente, e até ao óbito", diz o termo, também divulgado pelo ministério.

A posição de médicos e entidades

O Estadão ouviu três dos principais médicos e pesquisadores que têm se dedicado nos últimos meses ao estudo e tratamento do novo coronavírus no Brasil. Eles afirmaram, de forma unânime, que ainda não existem testes que comprovem a eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da doença.

O médico Alexandre Biasi Cavalcanti, diretor do Instituto de Pesquisa HCor e integrante da Coalizão Brasil COVID, grupo de pesquisadores independentes que conduz um dos maiores e mais aprofundados estudos sobre o vírus no Brasil, disse que os resultados dos primeiros levantamentos sérios no exterior não apontam a eficácia da droga. 

Rachel Riera, do hospital Sírio-Libanês e da Unifesp, também coordena uma série de levantamentos que incluem toda a literatura já produzida sobre a cloroquina e covid no mundo. Segundo ela, o Ministério da Saúde já foi informado de maneira categórica que não existem evidências científicas sobre a eficácia da droga. 

Infectologista do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, Rosana Richtmann atua na linha de frente do combate ao coronavírus. De acordo com ela, a cloroquina já foi a “droga da esperança” no início da pandemia mas não é mais, pelo no que diz respeito ao uso preventivo ou em estágio avançado da doença. 

Na terça-feira, três entidades nacionais que representam médicos de especialidades diretamente ligadas ao novo coronavírus aprovaram um documento com diretrizes para o enfrentamento da pandemia no qual recomendam que a cloroquina e a hidroxicloroquina não sejam usadas como tratamento de rotina da doença. As entidades são a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.


O Estado de S. Paulo: Bolsonaro demite Regina Duarte da Secretaria Especial da Cultura

Agora, a atriz vai comandar Cinemateca, em São Paulo; expectativa é que o ator Mário Frias assuma o cargo

Jussara Soares e Emilly Behnke, O Estado de S. Paulo

Após dias de "fritura", o presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta quarta-feira, 20, a demissão da atriz Regina Duarte do cargo de secretária Especial da Cultura. Segundo postagem nas redes sociais, ela vai assumir o comando da Cinemateca Brasileira, que fica em São Paulo. O nome do substituto ainda não foi confirmado. A expectativa é que o ator Mário Frias, apoiador de Bolsonaro, fique com o cargo. Regina Duarte estava no comando da Secretaria Especial da Cultura desde o início de março. Antes dela, o secretário foi Roberto Alvim, demitido por fazer alusão ao nazismo.

Jair M. Bolsonaro✔@jairbolsonaro

Regina Duarte relatou que sente falta de sua família, mas para que ela possa continuar contribuindo com o Governo e a Cultura Brasileira assumirá, em alguns dias, a Cinemateca em SP. Nos próximos dias, durante a transição, será mostrado o trabalho já realizado nos últimos 60 dias

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Os dois gravaram um vídeo juntos, na área externa do Palácio da Alvorada, em que Regina começa questionando Bolsonaro se ele está a "fritando". "Jamais ia fritar você", responde o presidente.

Ao anunciar a mudança, pouco mais de dois meses após assumir a secretaria de Cultura, Regina diz que assumir a Cinemateca é um "sonho de qualquer pessoa de comunicação, audiovisual, cinema e teatro". Na prática, ela assumirá um posto em que será subordinada ao seu substituto na secretaria.

"Pode ter um presente melhor que esse? Obrigado presidente", diz a atriz. "Estou sentindo muita falta dos meus filhos e dos meus netos. É um presente duplo. É a Cinemateca e é estar próxima da minha família."

O anúncio desta quarta-feira, 20, ocorreu um dia após o presidente compartilhar nas redes sociais um vídeo em que o ator Mário Frias fala sobre a possibilidade de assumir o cargo da colega de profissão.

O vídeo publicado nesta terça pelo presidente é uma entrevista de Frias à emissora CNN Brasil, exibida no dia 6 de maio, em que o ator diz torcer por Regina Duarte, mas que está à disposição de Bolsonaro. “Para o Jair, o que ele precisar estou aqui”, afirma o ator.

Na gravação, publicada com cortes, Frias defende o presidente e diz que Bolsonaro é “preocupado com o povo” e “defende os três Poderes”.

A entrevista com o ator ocorreu no mesmo dia em que Regina havia se reunido com Bolsonaro no Palácio do Planalto. Na ocasião, o presidente havia demonstrado insatisfação pública com a atuação da secretária e renomeado o maestro Dante Mantoavani no comando da Funarte. O maestro havia sido afastado do cargo logo após a posse da nova secretária. No fim do dia, a nomeação foi suspensa, mas o gesto foi visto no governo como um processo de “fritura” de Regina.

Depois do encontro, em outro gesto considerado como parte do processo de "fritura", o número 2 da pasta, o secretário especial adjunto, Pedro José Vilar Godoy Horta, foi exonerado do cargo. A demissão, publicada em edição extra do Diário Oficial de sexta-feira, 15, levou a assinatura do ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto.

Como revelou o Estadão, Bolsonaro estava incomodado com a ausência de Regina em Brasília e acredita que a secretária é suscetível ao setor “todo de esquerda”. Já a secretária se sente desprestigiada e pressionada pela “ala ideológica” do governo.


Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Pedro Fernando Nery: Edaíquistão

Não será possível instituir uma renda básica melhor que o Bolsa Família depois da crise, sem combatermos os nossos 'e daís'

“Perigo de dano irreparável ou de difícil reparação”. Diante disso, a liminar foi concedida no meio da pandemia, realocando milhões de reais do orçamento da Seguridade Social. Mais dinheiro para a Saúde comprar respiradores? Não, tampouco para a Assistência pagar o auxílio emergencial. Ao contrário, a decisão diminui o dinheiro disponível para as duas áreas. O juiz federal decidiu que os juízes federais não precisam pagar as novas alíquotas progressivas da reforma da Previdência.

Confisco foi a razão para considerar inconstitucional trecho da Emenda Constitucional discutida pelos constituintes ao longo do ano passado. O tema espera julgamento no STF. A liminar do juiz dada neste mês no processo 1009622-08.2020.4.01.3400 é em favor da sua própria categoria – embora seja verdade que o mesmo tratamento foi dado a outras categorias em outras ações.

O argumento é simples: como a alíquota progressiva exige contribuições maiores de quem ganha mais, aqueles no teto remuneratório terão uma alíquota efetiva de quase 17% para a Previdência. Somada ao imposto de renda, a tributação total sobre o salário superaria 40%.

Há dois problemas no argumento. Um primeiro é comparar a contribuição com o salário atual, e não com a renda a ser recebida: a aposentadoria continuará sendo pelo último salário para quem ingressou antes de 2003. Independentemente do salário médio ao longo da vida e do valor das contribuições, a aposentadoria é 100% do maior salário. O subsídio pode ser de milhões de reais por pessoa. Não à toa, o regime dos servidores continuará ostentado déficits financeiros bilionários anualmente e déficit atuarial da ordem de trilhão (a Constituição demanda o equilíbrio, mas o texto é preterido por um princípio na decisão judicial).

O retorno ao investimento é altíssimo: se produto semelhante estivesse disponível no mercado, os demais cidadãos fariam os aportes felizes, sem jamais pensar que estão sendo confiscados. A confusão existe porque a contribuição previdenciária na prática é híbrida, ora parece aporte ora tributo.

O MPF defendeu em 2018 a fixação de uma tese sensata: aumentar a contribuição previdenciária do servidor seria constitucional, desde que se apresentem estudos financeiros e atuariais mostrando a sua necessidade. Não sendo o caso, haveria o tal confisco.

Um segundo problema no argumento do confisco é ignorar que os trabalhadores do setor privado estão sujeitos a tributação muito maior, inclusive para pagar os benefícios do setor público, sem que se fale em confisco. Como mostrou Bernard Appy neste jornal na excelente coluna de fevereiro “Quem paga imposto no Brasil?”, o produto do trabalho de um celetista chega a ser tributado em mais de 60%. A conta considera não apenas a contribuição previdenciária e o imposto de renda, como os tributos indiretos federais e estaduais (ICMS, PIS-Cofins, IPI) sobre sua produção, que diminuem o que ele levará para casa.

Parte desses tributos fecham o déficit de mais de R$ 40 bilhões por ano dos servidores. Não é este o verdadeiro confisco? Como a previdência do funcionalismo integra a Seguridade Social, o buraco é custeado por contribuições como a Cofins – competindo com Saúde e Assistência. E daí?

As ações sobre o tema no Supremo, hoje com relatoria do ministro Barroso, eram no passado julgadas por Joaquim Barbosa, que expunha esse argumento. Entendia que na ausência do aumento da contribuição do servidor, a conta iria para os demais. Incluindo os filiados ao INSS, que teriam a obrigação de custear os benefícios do regime sem o direito de usufruí-los: “partilhar o déficit com as pessoas naturais e jurídicas privadas é injusto e abusivo.” Mesmo com a elevação da reforma da Previdência, menos de 20% das despesas são custeadas diretamente pelos servidores.

Os argumentos de servidores federais sobre confisco na reforma da Previdência são embalados por duas indignações. Uma é a subtributação da renda de profissionais liberais de alta renda pejotizados. Serviços pagam menos impostos que produtos, e a PJ ainda pode-se distribuir lucros e dividendos para a pessoa física sem pagar IR (E daí?). O juiz olha para o advogado e se sente injustiçado.

A outra é a exclusão de Estados e Municípios da reforma (E daí?). Juízes estaduais, que já ganham mais pela farra das verbas indenizatórias, ficaram a princípio dispensados da alíquota progressiva da reforma. A associação dos federais se mobilizou para não ter e pagá-la também.

Não será possível perenizar o auxílio emergencial e instituir alguma renda básica melhor que o Bolsa Família depois da crise sem combatermos nossos “e daís”. Consolidar a reforma da Previdência nos tribunais, reformar a tributação sobre a renda e eliminar verbas indenizatórias devem fazer parte da busca por recursos no pós-pandemia.

*Doutor em economia


Ana Carla Abrão: De boas intenções…

Temos que ter mais do que boas intenções para desenhar políticas públicas corretas e eficazes para o mercado de crédito

O mercado de crédito responde a riscos. Maior o risco, em particular o de inadimplência, mais caro e mais escasso o crédito. Esse é o mecanismo que garante que os recursos – captados do público pelos bancos ou de investidores pelas fintechs – sejam aplicados de forma segura e sejam canalizados para investimentos com maiores chances de vingar. Vem daí a contribuição do mercado de crédito para o desenvolvimento econômico e para o aumento do bem-estar das pessoas.

No Brasil, há episódios recentes em que se tentou desvirtuar esse mecanismo, forçando a desconexão entre risco, preço e volume de crédito e impondo redução de juros via bancos públicos ou financiando projetos e empresas a juros subsidiados. Esses, na melhor das hipóteses, poderiam ter sido financiados a juros de mercado. Na pior, nem deveriam ter sido financiados. Nessa ilusão de que intervenções diretas no mercado de crédito funcionam, o que se conseguiu ao final foi: i) transferência da inadimplência do sistema para os bancos públicos (e portanto para o Tesouro Nacional) e ii) uma contração maior do mercado de crédito do que seria esperado em condições normais de funcionamento. Vivemos hoje a maior crise da nossa história.

Aliam-se à crise de saúde uma crise econômica sem precedentes e uma crise política desnecessária, mas infelizmente presente e grave. Nada mais natural do que a proatividade na busca de saídas e ações de resposta por parte dos nossos agentes públicos. A maioria deles com a melhor das boas intenções. A bola da vez agora é o mercado de crédito. Sabemos que ele é um importante motor de crescimento e pode ser, quando escasso e caro, um fator adicional de agonia e angústia num momento tão crítico. Mas não se pode abandonar os conceitos quando se busca uma solução, sob o risco de se provocar uma grande desorganização do mercado de crédito e adicionar um fator adicional de instabilidade, ao criar um risco sistêmico que pode agravar ainda mais a atual crise.

A crise na economia real resvala no mercado de crédito por meio do aumento da inadimplência. Foi assim em 2015, por exemplo. Ali, foram observados aumentos de 85% e superiores a 100% na inadimplência de pequenas e médias empresas e de grandes corporações, respectivamente. A atual crise tem características distintas, mas é claramente mais profunda e espalhada. Considerando-se o movimento de expansão de crédito observado pré-covid, não é errado supor que um impacto ainda mais forte possa ser observados sobre as carteiras de crédito atuais.

É possível, com base em cenários de estresse, estimar esses números. Esses exercícios indicam que o impacto nas carteiras deve significar um aumento substancial nas provisões, que podem superar os R$ 400 bilhões. Esse número não difere muito do que o próprio Banco Central apresentou no Relatório de Estabilidade Financeira, divulgado no final do mês passado. Como nosso sistema bancário é capitalizado, o risco sistêmico está controlado na medida em que os bancos possam responder com a contração de crédito necessária para contrabalançar a perda de crédito que se seguirá do aumento da inadimplência, mantendo assim a higidez do sistema e protegendo os recursos dos depositantes.

Mas, aos olhos da sociedade, isso não parece ser o melhor cenário. Afinal, estamos vivendo um período de exceção, com grandes perdas econômicas e um aumento brutal da desigualdade. Lidar com restrições de crédito nesse momento parece ser cruel e desumano. E, de fato, é. Mas é aí que mora o perigo das boas intenções. Interferir diretamente no mercado de crédito – a exemplo do que quer fazer o projeto de lei do senador Álvaro Dias, que limita juros e congela limites – significa emperrar essa roda e adicionar ao cenário um novo risco: o de uma desorganização do mercado de crédito, com impactos futuros que, na melhor das hipóteses, comprometerão ainda mais nossa capacidade de crescimento. Na pior, poderá gerar uma crise financeira sistêmica, fragilizando o mercado, gerando maior concentração e eliminando do setor participantes novos que vinham trazendo competição, eficiência e inclusão financeira à população de mais baixa renda.

O que fazer, então, para se conseguir alívio sem interferir nos mecanismos que garantem o bom funcionamento do mercado de crédito? Um caminho é partir de uma avaliação do potencial problema de crédito já contratado, com base nos cenários possíveis de estresse, e desenhar um amplo programa de apoio ao crédito. Programas pontuais e setoriais, como os já anunciados pelo governo, Banco Central e bancos foram e são adequados para lidar com a crise emergencial de liquidez. Mas podem não ser suficientes para dar conta de uma eventual crise de solvência, abrindo caminho para a proatividade bem intencionada do Legislativo e também do Judiciário. Mas temos que ter mais do que boas intenções para desenhar políticas públicas corretas e eficazes. Até porque, de boas intenções, o inferno está cheio.

*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.


Foto: Reprodução/Google

José Goldemberg: Energia e meio ambiente após a covid-19

Maior respeito pela ciência pode ser uma das consequências mais positivas desta tragédia

Por mais grave que seja a atual pandemia, ela acabará passando, como aconteceu com outras no passado. Nenhuma, porém – nos tempos modernos –, atingiu tantos países e levou a uma paralisação econômica tão profunda, decorrente da imposição de quarentena, que é indispensável para evitar a propagação da doença.

Uma das muitas consequências desta quarentena é a redução do consumo de energia, principalmente no setor de transporte, que representa mais de 25% de toda a energia consumida no mundo.

O que aconteceu no setor do petróleo foi o que se chama “tempestade perfeita”. A demanda diminuiu justamente na ocasião em que havia excesso de produção. O cartel dos grandes produtores – principalmente a Arábia Saudita e a Rússia – não conseguiu fixar cotas de produção, que mantinham o resto do mundo refém do petróleo que produzia. O preço do petróleo não decorria dos custos de produção, era fixado arbitrariamente para suportar a economia dos regimes políticos e sociais dos países-membros do cartel.

Como consequência da falta de acordo dos produtores, o preço do barril de petróleo caiu de cerca de US$ 80 o barril para menos de US$ 20. No mundo pós covid-19 ele dificilmente voltará aos níveis anteriores, pois grande número de empresas e pessoas descobriram que home office funciona e o mesmo aconteceu com o ensino a distância, além do comércio eletrônico.

A necessidade de deslocamentos vai se reduzir permanentemente, com claros benefícios para a qualidade do ar nos grandes centros urbanos, como as fotografias dos satélites nos mostram. Os benefícios para a saúde, com a diminuição das doenças respiratórias, não foram quantificados ainda, mas certamente ocorrerão. Além disso, as emissões de gases de efeito estufa, cuja redução já se está verificando, não voltarão aos níveis anteriores, o que dará mais tempo para a adoção de medidas de adaptação ao aquecimento global.

O sonho dos ambientalistas de reduzir o consumo de petróleo parece tornar-se realidade graças à covid-19.

O que não vai se reduzir, provavelmente, é o consumo de eletricidade, porque as atividades domésticas (incluindo o home office) requerem mais eletricidade. Daí os grandes planos, já propostos nos Estados Unidos, para aumentar a produção de eletricidade a partir de fontes renováveis. Nos pacotes de recuperação econômica que estão sendo adotados naquele país, esse é um ingrediente importante.

No Brasil, perderão prioridade as ideias de que o País poderia ser um grande exportador de petróleo, uma vez que produzi-lo do pré-sal custa muito mais do que na Arábia Saudita. Esperar que os royalties da produção de petróleo “salvem” a economia de vários Estados, como o Rio de Janeiro, provavelmente será em vão.

Mais grave ainda, a produção de etanol da cana-de-açúcar – com todas as vantagens ambientais que tem – vai ser afetada seriamente, mas talvez force o setor a fazer duas coisas que deveria ter feito no passado e não fez:

• Instalar grandes reservatórios para estocar etanol, que seria, então, disponível o ano todo, o que permitiria fazer contratos para exportação de longo prazo, o que o setor nunca fez, preferindo vender o álcool no mercado spot.

• Investir pesadamente em pesquisa para aumentar a produtividade da cana-de-açúcar, que deixou de crescer há vários anos. Essa seria a única forma de baixar os custos do etanol, que poderia, então, competir melhor com a gasolina a preços baixos.

O movimento ambiental pós-covid-19 enfrentará também dilemas sérios, pois a urgência de atacar problemas ligados à saúde, como saneamento básico, vai aumentar. As preocupações com mudanças climáticas – que só se concretizarão a logo prazo – parecerão menos prioritárias.

Diante da tragédia causada pela covid-19 há, contudo, expectativas de importantes modificações nas percepções das sociedades atingidas, com reflexos culturais e políticos positivos.

Essas expectativas se baseiam na condução exemplar da crise por governantes como Angela Merkel, na Alemanha, que adotou políticas públicas que reduziram consideravelmente o número de vítimas, em contraste com outros dirigentes, como o presidente Donald Trump, dos Estados Unidos – e seus seguidores, como o presidente do nosso país –, que minimizaram a gravidade do problema do isolamento social. Angela Merkel percebeu o vulto do problema antes dos outros e preparou seu país para enfrentar a crise, seguindo rigorosamente as estratégias recomendadas por seus cientistas.

É notório que, ao enfrentar problemas complexos, há incertezas e pode haver divergências entre os cientistas, mas a própria natureza do método científico corrige esses problemas. A experiência acaba eliminando as teorias incorretas. Por essa razão, desqualificar o trabalho dos cientistas e o método científico é o pior que dirigentes obscurantistas poderiam fazer no caso da covid-19.

Um maior respeito pela ciência e pelos cientistas poderá ser uma das consequências mais positivas da tragédia humanitária da crise atual.

*Professor emérito e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP)


José Roberto Mendonça de Barros: O Brasil não será o mesmo depois da pandemia

O acordo com o “Centrão” garante que o projeto liberal de Guedes naufragou de vez

O coronavírus é o maior choque das últimas décadas. Espalhou-se rapidamente pelo mundo e é bastante letal. Como ainda não temos remédios definitivos ou vacina, a única recomendação da ciência é reduzir a circulação das pessoas por meio de uma quarentena, com diferentes graus de intensidade.

Esse recolhimento produz uma parada súbita na atividade econômica, uma vez que muitas empresas fecham e as pessoas ficam, em sua maior parte, nas suas casas. Essa situação resulta, muito rapidamente, em uma forte recessão na economia.

Como já vimos no caso de vários países, após três ou quatro meses o surto inicial do vírus começa a se reduzir e, cautelosamente, as regras de confinamento começam a ser abrandadas.

Neste momento, descobre-se que ficar fechado em casa por um longo período é uma experiência única, que será marcante na vida de todos. Ninguém será o mesmo quando tudo isso acabar. Vejo alterações em pelo menos três dimensões: enquanto cidadãos, trabalhadores e consumidores.

As pessoas, provavelmente, estarão mais próximas de uma vida mais simples e mais natural, que vai afetar, inclusive, o seu estilo de vida e o tipo de alimentos desejados, mais naturais, menos industrializados, orgânicos.

Na esfera do trabalho, muita gente terá aprendido a operar à distância e conhecido muitas técnicas e ferramentas novas, que inclusive tendem a elevar a produtividade. Entretanto, muitas pessoas perderão renda, ficarão desempregadas e dependerão por um tempo de mecanismos de transferência de renda. Para esse grupo, a demanda de alimentos se voltará para os mais básicos. Ainda na dimensão do trabalho, a pandemia vai levar muitas companhias a adotar técnicas mais automatizadas.

Finalmente, o consumidor, além da mudança de hábitos, também está alterando a forma de comprar, entrando firme na direção do e-commerce e dos novos canais de comercialização.

As empresas também serão diferentes. Na verdade, muitas nem sequer sobreviverão à recessão pela qual todos estão passando, inclusive o Brasil, mas as que conseguirem atravessar esse percurso também irão se alterar.

Pensemos um pouco no caso do comércio. O confinamento levou as famílias para a compra por internet em larga escala. Com isso, muitos consumidores aprenderam a usar novas ferramentas, inclusive comparação de preços, levando a um crescimento enorme neste canal de comercialização. As empresas já preparadas deram um salto nas vendas e se beneficiarão muito. Entretanto, muitas companhias nem sequer dispunham do canal. Como na situação pós-covid muitas pessoas ainda evitarão aglomerações, essas empresas sofrerão muito. Por outro lado, as empresas menores necessariamente terão de se encaixar nas plataformas de vendas das grandes. A organização do mercado mudará muito.

Todas essas mudanças ocorrerão no Brasil de forma muito intensa, até porque nossa economia vai cair muito mais do que pensávamos há algum tempo. Hoje, projetamos uma contração de 7,8% no PIB, algo sem precedentes, em meio a uma instabilidade enorme, capitaneada pelo radicalismo e falta de rumo do governo federal.

Sairemos da crise do coronavírus muito mais pobres. Nossa renda per capita ao cabo deste ano será algo como 15% menor em relação a 2014!

Ao mesmo tempo, o país será ainda mais desigual: o desemprego vai crescer muito e a tecnologia avançará na direção da automação. Finalmente, o pior ministro da educação de todos os tempos trouxe um enorme retrocesso na área.

O acordo com o chamado “Centrão” garante que o projeto liberal do ministro Paulo Guedes naufragou de vez, especialmente pela implosão de qualquer reorganização do regime fiscal. Da mesma forma, o Plano tipo Geisel (chamado Pró-Brasil) tem chance zero de dar minimamente certo.

A pergunta que fica: como recompor no futuro um arranjo que permita sonhar de novo com crescimento econômico?

*Economista e sócio da MB Associados.


Eliane Cantanhêde: Nada faz sentido

Reunião foi do balacobaco e ministro da Saúde tem de fazer o que dr. Jair manda

Nada faz mais sentido, com as versões oscilando entre inacreditáveis e ridículas. Mas vamos ao principal: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril confirma toda a versão do ex-ministro Sérgio Moro e deixa o presidente Jair Bolsonaro na patética situação de alegar que não falou em Polícia Federal, só em PF… Ah, bem!

O trecho divulgado pela Advocacia Geral da União, que defende Bolsonaro, deixa tudo em pratos limpos. Bolsonaro não apenas citou a PF como a citou em primeiro lugar. E todo o contexto não deixa dúvidas: “querem F…. com ele e a família”, é preciso cuidar da segurança da família e dos amigos.

O órgão responsável pela segurança pessoal da família não é a Polícia Federal (ok, a PF), é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI. E nem a PF nem a Abin cuidam da segurança de amigos, vamos convir. Logo, o presidente não estava falando da segurança física nem da Abin. Estava falando, sim, da PF. E os desdobramentos confirmam à sobeja.

“Vou interferir. Ponto final”, avisou o presidente. E interferiu. Onde? Na PF. Quem foi demitido foi o diretor geral da PF, delegado Maurício Valeixo, não o também delegado Alexandre Ramagem, da Abin, que chegou, inclusive, a ser nomeado para a vaga de Valeixo. O presidente promoveu quem não estava cuidando direito da segurança pessoal da família e dos amigos?! Não.

Assim, o presidente usa nomes falsos em exames de covid-19, demora meses para entregar os laudos à Justiça, diz que não falou na Polícia Federal, mantém a versão sem sentido da “segurança pessoal”. Dr. Jair, médico renomado, também insiste em desconsiderar estudos científicos do mundo todo para impor o uso da cloroquina em pacientes iniciais, como insiste na sua cruzada contra o isolamento social. E instiga a guerra contra governadores, que “querem quebrar a economia para atingir o meu governo”. Non sense.

Saiu Luiz Henrique Mandetta, entrou Nelson Teich e nada mudou. O presidente exige que o ministro da Saúde, seja quem for, faça o que ele próprio tem na cachola. A Dra. Damares Alves topa o jogo, falando em “milagre da cloroquina”. Mas, se insistir em nomear um general para o Ministério, Bolsonaro vai criar uma saia justa. O estudo mais completo, claro e realístico sobre a importância do isolamento social foi feito pelo… Exército. Um ministro-general vai seguir os estudos científicos ou os achismos do presidente?

A semana, portanto, começa sob duas expectativas. Quem será e o que vai dizer e fazer o novo ministro da Saúde num momento dramático da pandemia? O relator Celso de Mello, do STF, vai quebrar o sigilo integral ou só parcial da reunião do dia 22? Há quem defenda que ele libere geral, em nome da transparência, há quem ache melhor a divulgação em parte, em nome da segurança e da imagem do Brasil.

Curiosos foram os argumentos do procurador geral Augusto Aras, contra a divulgação integral: trata-se de um “arsenal de uso político” e de “instabilidade pública”, “proliferação de querelas” e de “pretextos para investigações genéricas sobre pessoas”. A conclusão é que a reunião foi do balacobaco. Além do presidente falando palavrão, mostrando que é capaz de qualquer coisa para proteger a família – o que consta dos trechos da AGU –, há ministros falando qualquer coisa para agradar ao presidente.

Um verdadeiro vale tudo com provocações gratuitas contra o maior parceiro comercial do Brasil, proposta de botar na cadeia os onze ministros do Supremo, a ideia de prender junto os governadores. Celso de Mello, portanto, vai ter de decidir se os brasileiros têm ou não o direito de saber onde estão metidos e se o mundo precisa saber o que está ocorrendo no Brasil.


Vera Magalhães: Piada no exterior

Bolsonaro, isolamento meia boca e falta de dados tornam País pária mundial

Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão

Renato Russo escreveu os versos de Que País é Esse? em 1987. De lá para cá, voltamos a eleger presidentes, dois dos cinco eleitos sofreram impeachment, ainda integramos o que se chamava de Terceiro Mundo na época dele, e agora se diz eufemisticamente país em desenvolvimento, e vivemos a primeira pandemia de um século que o líder do Legião Urbana não chegou a conhecer ainda na condição de piada no exterior.

O desgoverno Jair Bolsonaro, como o Estado consagrou em sua capa neste sábado, nos faz enfrentar o novo coronavírus de forma destrambelhada. Irresponsabilidade, omissão, sarcasmo, falta de empatia, autoritarismo, fanatismo, desapreço pela ciência e desprezo pela vida compõem o arsenal que o presidente da República lança, como perdigotos tóxicos, sobre uma Nação estupefata todos os dias.

Jogamos fora a vantagem temporal que tínhamos em relação à Ásia, à Europa e aos Estados Unidos no enfrentamento da covid-19 descartando as experiências exitosas que essas regiões tiveram e piorando as desastradas, algo que choca a imprensa internacional, a comunidade médica e científica global e os investidores já assustados com uma recessão planetária sem precedentes. É perceptível em textos de publicações científicas internacionais, em comentários em telejornais de outros países e em análises que agências de risco ou papers acadêmicos a dificuldade até de explicar certas atitudes e declarações de Bolsonaro, dado seu descolamento de qualquer traço de realidade.

A demissão do segundo ministro da Saúde em 29 dias no pico da pandemia foi a cereja desse bolo de vergonha mundial que somos obrigados a passar, como se já não fossem tantos os desafios perturbadores impostos pelo desgoverno e pela pandemia em si.

Paulo Guedes pode se esgoelar para falar que fez tudo certo, Tereza Cristina merece elogios por tentar limpar nossa barra com parceiros comerciais ofendidos grosseiramente por seu chefe e seus pares, mas não nos enganemos: dada nossa incapacidade de formular qualquer plano racional para saída programada de um isolamento sabotado desde o dia 1 pelo presidente, pegaremos a cauda do cometa da recuperação econômica global. Essa retomada não será nada simples, nem linear. Os países reemergem de suas quarentenas atingidos de forma diferente e mais fechados.

Quem vai querer investir num país em que o presidente assina uma MP eximindo servidores de responsabilidade por atos tomados durante a pandemia ao mesmo tempo em que tenta forçar um ministro (qualquer um) a assinar decreto tornando protocolo de tratamento um remédio cuja eficácia já foi questionada por estudos no mundo todo? Que está prestes a ser mostrado em áudio e vídeo em todo seu esplendor apoplético e autoritário dizendo que vai intervir na Polícia Federal para proteger sua família e “ponto final”?

Que já demitiu 11 ministros em 500 dias e ameaça, estufando o peito de orgulho, fazer (mais) um pronunciamento em rádio e TV vociferando contra o necessário e até aqui insuficiente isolamento social? Vamos ficar ilhados no Brasil, com dificuldade para obter vistos para viagens de turismo ou negócios, talvez sem sermos convidados até para campeonatos de futebol pelos vizinhos mais pobres, mas mais bem sucedidos no combate ao vírus.

A música da epígrafe tem ainda os versos “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação”. Só que enquanto Bolsonaro vilipendia a primeira sob silêncio conivente de seus ministros e dos demais Poderes, esse futuro se torna mais distante. Não sabemos qual será o mundo pós-covid-19. Mas podemos cravar que o Brasil estará no fim da fila para ingressar nele.


Celso Lafer: Política externa bolsonarista

Ações da diplomacia de confronto são desvio incompatível com os ditames constitucionais

Em nosso país a competência constitucional para a condução da política externa é da alçada do presidente da República. Na experiência histórica do Brasil a prática confirma esse tradicional preceito constitucional.

Foi pela ação, e por vezes também pela omissão, que em nosso país os presidentes exerceram a função de conduzir a política externa, definindo, à luz do cenário internacional, os caminhos da inserção do Brasil no mundo e no nosso contexto regional. Nessa condução seguiram a estratégia e o temperamento de sua personalidade.

O mesmo se pode dizer da política externa do governo Bolsonaro, que se amolda à estratégia do temperamento do presidente e do seu modo de ser e de atuar, que foi desde sempre o do confronto.

O confronto marcou a sua curta vida de militar da ativa. E caracterizou, com pouca ressonância, a sua longa carreira parlamentar. A lógica do confronto foi também a marca identificadora de sua campanha presidencial de 2018.

Na sequência, vem governando pelo ímpeto do confronto, nutrido por sua vocação para a “ascensão aos extremos”, destituída, porém, da sobriedade recomendada por Clausewitz nessa matéria.

São incontáveis os eventos da manifesta inconformidade do seu temperamento com tudo o que na vida democrática legitimamente cerceia o poder monocrático da sua caneta de chefe de Estado.

O presidente alimenta cotidianamente a sua lógica de confronto pelo intenso uso das redes sociais, abastecidas pelo “gabinete do ódio”. O ódio é um sentimento que, como esclarece Ortega nas Meditações do Quixote, desliga e isola, fabricando a falta de conexão com o pluralismo da realidade nacional e internacional. O ódio veiculado pelo amplo uso das redes sociais instrumentaliza suas mensagens pelas fake news das falsificações mentirosas.

A política externa do governo Bolsonaro é igualmente a expressão e o desdobramento, no plano externo, da sua lógica de confronto. É uma diplomacia de combate ao que identifica, também no plano externo, como “conspirações” e “inimigos” de sua autorreferida visão de mundo. Em função dessa linha de orientação, rejeita de maneira inédita o significativo acervo de realizações da política externa do nosso país. Denega sem hesitação a seriedade do decoro que sempre a assinalou, e que o Conselho de Estado do Império sintetizou nos seguintes termos: “Diplomacia: inteligente, sem vaidade; franca, sem indiscrição; enérgica, sem arrogância”, traços que granjearam o respeito e a credibilidade internacional do Itamaraty, mesmo em momentos difíceis, interna e externamente.

Os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, estipulados no artigo 4.º da Constituição, consolidaram a vis directiva da tradição da diplomacia brasileira. As ações da política externa bolsonarista, todavia, são um desvio incompatível com a letra e o espírito dos ditames constitucionais.

A Constituição prescreve a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, o que se faz por meio do relacionamento com outros Estados e pela participação em organizações internacionais. É essa a fundamentação jurídica da diplomacia de cooperação, que nos seus matizes é rejeitada, com graves consequências para o País, pela diplomacia de combate e de confronto do governo Bolsonaro.

O bolsonarismo da política externa apregoado, com patético passionalismo desconectado dos dados da realidade internacional, pelo chanceler Ernesto Araújo aniquila nossa credibilidade internacional. Induz a perda de mercados e de investimentos. Antagoniza gratuitamente parceiros relevantes como a China, a França, a Alemanha e a Argentina, indispensáveis para a própria agenda econômica do governo. Isola-nos na nossa região, até no Mercosul, e, por via de consequência, corrói a capacidade brasileira de nela atuar construtivamente para lidar com os desafios do presente.

Alia-se ao agressivo unilateralismo dos EUA de Trump, intensificando o desmoronamento da nossa capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, especialmente no âmbito das instâncias multilaterais, como a ONU, a OMC e, inexplicavelmente, em função das urgências da pandemia de covid-19, com a Organização Mundial da Saúde. Liquida o nosso ativo de liderança na área do desenvolvimento sustentável, construído a partir da Rio-92, em consonância com o disposto na Constituição sobre meio ambiente. Faz tábula rasa do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, que deve ser coerentemente harmonizado com o estipulado no plano interno pela Constituição.

Em síntese, a inepta e desastrada política externa de combate e de confronto do bolsonarismo não permite traduzir necessidades internas em possibilidades externas, que é a tarefa da diplomacia como política pública. É um fardo imobilizador da capacidade do Brasil de encontrar o seu apropriado lugar num mundo tenso e turbulento que tende a se complicar no amanhã do pós-covid-19.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP; foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Adriana Fernandes: As disputas de Guedes

Se tem algo que incomoda o ministro na aliança entre Bolsonaro com o Centrão é um avanço sobre os bancos públicos

Se tem alguma coisa que pode tirar o ministro da Economia, Paulo Guedes, do sério na aliança em construção do presidente Jair Bolsonaro com o Centrão é a tentativa de avanço sobre os bancos públicos: BNDES, Caixa e Banco do Brasil. Esse é o sinal.

O presidente já atropelou pontos importantes da agenda econômica do ministro, mas ao final os dois acabam sempre arrumando um jeito de acertar os ponteiros, numa relação simbiótica de patamar bem diferente daquela que havia entre Bolsonaro e Sergio Moro.

É só fazer uma retrospectiva dos embates em torno das empresas retiradas do alvo do programa de privatização, a reforma administrativa, a autorização para lançamento do Pró-Brasil, o congelamento de salários dos servidores públicos e o atraso do presidente em vetar a lei do auxílio emergencial aos Estados e municípios. Isso só para citar a lista mais recente das disputas bolsonarianas com o seu ainda superministro.

Após a tensão de ontem, em Brasília, com a demissão do ministro da Saúde, Nelson Teich, Guedes fez discurso no Palácio do Planalto de completo apoio à estratégia do presidente, ao lado de outros três ministros. “O presidente é um homem determinado”, justificou. Em discurso alinhadíssimo, apelou: “Vamos subir em cadáveres para se aproveitar do governo?”

Guedes já havia participado da marcha empresarial de Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF) e da polêmica videoconferência em que o presidente instigou a guerra dos empresários com os governadores. Ele também assinou a Medida Provisória (MP), considerada inconstitucional, e que isenta agentes públicos de serem responsabilizados por erros que cometerem durante o enfrentamento da pandemia da covid-19 ou de seus efeitos na economia do País.

“Tamo junto”. É o que diz o ministro sobre o presidente. Mesmo que o presidente esteja demorando (já passou uma semana) para vetar artigo da lei que permite reajustes de dois terços dos servidores públicos. Guedes cobra e Bolsonaro dá tempo para governadores e prefeitos darem os reajustes. Mas ele estava lá no Palácio.

Como revelou o Estadão, foi tudo acertado com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, para o reajuste dos salários de policiais. Guedes chiou? Não. A assessores, diz que o acerto dos reajuste já havia feito há seis meses. E a espera continua.

Guedes já aceitou indicações políticas para cargos do seu gigantesco ministério e deverá aceitar outros. Os indicadores dos cargos terão que cuidar dos seus indicados. Numa espécie de porteira fechada às avessas. Eles que respondam pelos seus erros.

Mas não mexam no quintal mais importante do seu jardim. É o que ministro chama de “principais ferramentas” para a sua política econômica. Essas ele não abre mão, como ocorreu na reação ao Plano Pró-Brasil, lançado a sua revelia e momento em que chegou a pensar se valia a pena continuar no governo. É mexer no que ela acha que está no caminho certo.

A blindagem dos bancos públicos é central para a equipe econômica. Tem gente de olho também na secretaria especial que representava o antigo ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Por isso, as notícias recentes de divisão do Ministério da Economia.

Como a divisão do ministério, os bancos também estão na mira do Centrão.

É onde tem o poder da concessão do crédito e onde o teto de gasto não é uma restrição. Basta decisão política. Explico: as capitalizações de empresas estatais estão fora do teto. É um espaço de cobiça para 2021, quando o Orçamento de Guerra não estará mais em vigor, assim como a licença para gastar com dinheiro do Orçamento.

A Caixa é o principal alvo. Ainda mais agora que é a responsável pela distribuição do auxílio emergencial de R$ 600 para a população de baixa renda e os trabalhadores informais atingidos pela covid-19. Uma arma eleitoral e de prestígio tão poderosa que dificilmente o ministro e sua equipe conseguirão acabar com o benefício no prazo determinado.

Se antecipando, o Ministério da Economia começou a desenhar uma reforma na política social para depois da pandemia, já que não conseguirá manter os R$ 600 para tanta gente, mas sabe que terá que dar uma resposta nessa área. Imprescindível para o momento. Um embate que pode ajudar a reverter gastos tributários ineficientes, injustos, e subsídios para setores específicos que não se justificam num cenário em que a população vai sair mais pobre ainda da pandemia.

*É jornalista