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Adriana Fernandes: PIB mostra que Guedes vai precisar muito mais do que gogó para retomada da economia
O ministro da Economia, Paulo Guedes parece ter exagerado nos argumentos de que a economia estava voando antes da economia
O resultado do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil nos três primeiros meses do ano, divulgado nesta sexta-feira, 29, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que a economia brasileira nem de longe estava “decolando” antes da pandemia do coronavírus.
Sem surpresas, o instituto informou que a economia brasileira encolheu 1,5% no primeiro trimestre de 2020 em comparação ao quarto trimestre do ano passado com cerca de um sexto do período afetado pelos efeitos da paralisação das atividades da pandemia no Brasil, a partir da segunda quinzena de março.
Como reconhece a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia, em documento divulgado nesta sexta-feira para comentar o PIB, a economia apresentava “sinais” de retomada, após dados fracos de atividade no último trimestre de 2019. Eram, portanto, sinais ainda não consolidados, com os meses de janeiro e fevereiro marcados por “bons” resultados nos indicadores de arrecadação, mercado de trabalho e atividade. Nada excepcional a comemorar.
O ponto mais negativo foi a queda do consumo das famílias de 2% em relação ao quarto trimestre do ano passado – a primeira diminuição desde o último trimestre de 2016 e a maior retração desde 2001. Do lado positivo, a alta de 3,1% dos investimentos (FBCF), explicado pela SPE pela melhora que ocorreu nos meses de janeiro e fevereiro deste ano.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, parece ter exagerado nos argumentos de que a economia estava voando antes da economia. Consumo estava melhorando, e com queda de juros, parecia que ia continuar nessa toada positiva. Mas a economia ainda não tinha decolado da forma como o ministro fala. Muitos entraves a serem resolvidos e dificuldades da equipe econômica em emplacar a sua agenda depois da reforma da Previdência.
Por praxe, ministros da economia têm que ser otimistas. Vender bem o seu peixe. No caso de Guedes, há também outra explicação. O desempenho fraco da atividade no último trimestre do ano passado já havia colocado pressão do Palácio do Planalto para a equipe de Guedes mostrar resultados.
Retomada lenta incomodava o presidente e o seu círculo de auxiliares mais próximos. A pandemia só amplificou esse debate, como já mostrado no episódio da disputa em torno do programa Pró-Brasil, para ampliar o investimento público em infraestrutura.
Quadro que tende a piorar com o impacto da pandemia mais forte no mercado de trabalho, diante do fracasso, em alguns casos, e da demora das linhas de crédito de socorro para as empresas.
Tudo isso deve acentuar a tensão entre Bolsonaro e governadores por reabertura mais rápida da economia, como já está acontecendo em muitos Estados. Mal feita, essa abertura pode atrasar ainda mais a recuperação da economia depois do tombo assustador do PIB que está contratado e por vir.
Guedes tem dito que a economia vai crescer em “V” depois da pandemia e que gosta da imagem do pássaro ferido, que quer começar a voar e precisa das duas asas de novo. Vai precisar muito mais que palavras estimulativas desse tipo para coordenar o processo de recuperação com a responsabilidade que o cargo impõe.
Rogério L. Furquim Werneck: Cenas de desgoverno
Teria sido menos deprimente se os participantes da reunião tivessem se limitado a não contestar os acessos de primitivismo de Bolsonaro
É impossível ver o vídeo da fatídica reunião ministerial de 22 de abril sem ser tomado por avassaladora apreensão com a forma como o País vem sendo governado. Calam fundo não só os gritos, como os silêncios. Entre muitas outras barbaridades, o presidente da República confessou aos brados, com todas as letras, para quem quisesse ouvir, que está ostensivamente empenhado em levar adiante um projeto com o objetivo deliberado de “armar o povo” para que possa confrontar autoridades constituídas dos governos subnacionais.
Já houve tempo – e não me refiro às duas décadas de regime militar – em que tal confissão faria soar todos os alarmes nas Forças Armadas. Não foi o que se viu. Nenhum dos muitos oficiais-generais presentes na reunião sequer piscou. Mas o que de fato importa, no caso, é o que o Supremo e a Procuradoria-Geral da República terão a dizer sobre tão desafortunada confissão. Acuado como está, o presidente não perde oportunidade de se encalacrar cada vez mais.
Teria sido menos deprimente se os participantes da reunião tivessem se limitado a não contestar os acessos de primitivismo de Bolsonaro. Mas o que se viu foi um torneio de capachismo, em que ministros e outras autoridades presentes se revezavam em louvores aos despropósitos vociferados pelo presidente, sem descuidar do estilo primitivo que parecia ser de uso protocolar na reunião.
Afora uma intervenção curta e anódina do ministro 02 da Saúde, pouco se ouviu sobre a pandemia, a não ser diatribes impublicáveis contra governadores e prefeitos, trovejadas por um presidente inconformado com as limitações que lhe são impostas pelos preceitos constitucionais de uma República federativa.
Nesse ambiente carregado, o ministro da Economia fez o que pôde para tentar dar seu recado, com amplo uso da cota de excessos verbais que lhe cabia na reunião. Arguiu que, por abalado que tenha sido pela crise, o governo não tinha perdido a bússola. E que, se souber retomar o trilho da política econômica, tão logo a pandemia esteja sob controle, o País surpreenderá o mundo. E a reeleição do presidente estará assegurada.
O problema é que, na bússola de Bolsonaro, o único rumo a seguir passou a ser o da resistência ao impeachment. E, como bem mostrou a reunião, boa parte do governo e de seus novos aliados no Congresso anda fascinada com a possibilidade de acelerar a recuperação da economia com a adoção de políticas nacional-desenvolvimentistas.
Não há autoengano que resolva. É impossível não perceber quão gritante é a desproporção entre a enormidade dos desafios com que o País se defronta e as acanhadas possibilidades de atuação eficaz da cúpula do governo, cruamente desnudadas pelo vídeo da reunião de 22 de abril, em Brasília.
Questão de múltipla escolha
Imagine que você esteja entre os 210 passageiros de um voo intercontinental e, em plena travessia do Atlântico, o avião seja colhido por uma tempestade perfeita – a maior em 100 anos, surgida do nada, para grande surpresa dos meteorologistas. Atribulada com o enfrentamento da tempestade e a tranquilização dos passageiros, a tripulação começa a se dar conta de que o comandante parece estar fora de si, gritando frases desconexas, alheio à gravidade da situação e, o que é pior, insistindo em manobrar o avião com alarmante imprudência, ao arrepio do que, em circunstâncias tão adversas, sugerem regras elementares de condução da aeronave.
Responda para você mesmo: o que deveria fazer a tripulação?
1) Nada, porque é ao comandante, e só a ele, que cabe a escolha da melhor forma de enfrentar a tempestade;
2) Esperar que o avião atravesse a tempestade e reavaliar a situação;
3) Esperar que o avião chegue a seu destino e avaliar se seria o caso de relatar o ocorrido à ouvidoria da empresa, com a discrição cabível;
4) Afastar o comandante da cabine de comando, tão logo quanto possível, para que o copiloto possa assumir pleno controle da aeronave em situação tão crítica;
5) Prefiro não responder, nem para mim mesmo;
6) Não tenho tempo a perder com questão tão idiota.
*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
Fernando Gabeira: Algumas notas para resistir
Depende de nós frear a marcha totalitária, deter o obscurantismo. É só querer
O poeta Carlos Drummond escreveu estes versos: Deus me deu um amor no tempo de madureza/ quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. Conversando com um político da minha geração, esta semana, lembrei-me do poeta quando ele disse: “Deus nos deu uma luta pela democracia, nos últimos anos de vida”.
Não esperávamos por essa. No entanto, não dá mais para ignorar que o sinal vermelho do regime autoritário está aceso no Brasil.
De um lado, vê-se um presidente falando em armar o povo, como Mussolini ou Chávez, e isso diante de uma plateia de generais indiferentes à gravidade desse discurso; de outro, um general falar em crise institucional porque um ministro do Supremo apenas cumpriu um artigo do regimento interno, despachando um pedido para o procurador-geral da República considerar: a perícia no telefone do presidente da República.
Nossa atenção estava toda concentrada na pandemia, o maior desafio depois da 2.ª Guerra Mundial. Mas um ministro diz na reunião do conselho que é preciso aproveitar nossa atenção no coronavírus para passar uma boiada de medidas que não suportam a luz do sol.
Pois muita coisa está se passando diante dos nossos olhos consternados com a sucessão de mortes e amedrontados com a síndrome respiratória aguda. Bolsonaro seduziu as Forças Armadas com verbas orçamentárias e uma suave reforma da Previdência. E mais ainda, fez um apelo ao salvacionismo que viaja no espírito deles desde a Proclamação da República e abarrotou o governo com militares.
Tudo indica que estão anestesiados. Generais reagem com sonolência a um projeto de milícias armadas. Sabem que Bolsonaro é homem de denunciar fraudes nas eleições que venceu, logo estará pronto para pegar em armas quando for derrotado adiante.
A origem positivista marcada pela aliança com a ciência foi jogada no lixo e um general se adianta para substituir médicos e inundar o Brasil com uma cloroquina que a OMS não aprova. Se as Forças Armadas resolveram encampar a política negacionista de Bolsonaro diante do vírus, se aceitam que milhares de mortes sejam debitadas na sua conta, é porque já decidiram mandar para o espaço o tipo de credibilidade que ganharam nos últimos anos.
Elas vêm pra cima com o mesmo ímpeto com que os militares venezuelanos defendem o seu governo autoritário. Por isso é preciso preparar a resistência.
A primeira lição é não ver essa luta, que para alguns se dá no final da vida, com os mesmos olhos da juventude. Mesmo porque só generais incompetentes veem uma nova batalha como se fosse a repetição da anterior.
Nada de armas. Num conflito moderno, a superioridade moral é decisiva. Eles vão se enrolar nas benesses do governo numa das crises mais profundas da História.
Olhar para o mundo. Não como no passado, exportando relatórios clandestinos e, com alguns contatos, denunciar desrespeito aos direitos humanos. Isso não é mais o principal. Agora existe a internet, uma infinidade de contatos possíveis com o planeta. Não precisamos comover apenas com corpos torturados, mas convencer os outros povos de que um governo cuja política destrói sistematicamente a Amazônia e favorece epidemias como a do coronavírus é ameaça também à existência deles.
Compreendo que ter o mundo a favor não basta para derrubar um regime autoritário. A Venezuela é um exemplo de que sem uma força coesa internamente não se chega a lugar nenhum. Aí está realmente o problema central: o instrumento. Ele precisa ser uma frente democrática ampla, madura, sem conflitos de egos, sem estúpidas lutas pela hegemonia, tão comuns na esquerda.
Chegamos perto disso no movimento pelas diretas. Candidatos a um mesmo posto conviviam harmonicamente no período de lutas e mais tarde buscavam caminho próprio nas eleições. Mas o próprio movimento das diretas é muito velho para o momento. Novas forças surgiram. Atores políticos menos experientes, mas com a capacidade de falar para milhões de pessoas, entraram em cena.
Na conversa que tive com o amigo disposto a lutar a última luta da vida, chegamos à conclusão de que é preciso apenas um núcleo que saiba contornar as bobagens dos que só pensam no poder e consiga estimular a criatividade social, diante dessa ideia de que a democracia não pode morrer no Brasil.
Não adianta ficar reclamando que o Congresso e o Supremo não conseguem frear a marcha totalitária. Isso depende de nós: é só querer. Na verdade, milhares hoje dão sua pequena contribuição, criticando, resistindo, às vezes até ridicularizando pelo humor.
Todo esse esforço molecular está, na verdade, ligado entre si. O que às vezes impede a consciência dessa união é o desprezo pela política, compreensível pelo que ela se tornou no Brasil.
Mas não se trata de aderir a um partido, militar no sentido clássico. A luta contra o coronavírus, por exemplo, é uma ampla frente pela vida que vai do carregador de maca ao cientista. As pessoas estão unidas pela urgência do presente, sem perguntar de quem é a culpa pelo vírus.
Da mesma forma, não interessa agora saber de quem é a culpa pela marcha do obscurantismo. É preciso detê-la.
- Fernando Gabeira é jornalista
José Serra: Receita venezuelana
A conduta política de Bolsonaro evidencia que ele está seguindo a cartilha bolivariana
Ninguém se torna ditador de um dia para o outro. Em primeiro lugar, precisa desacreditar o regime democrático e o sistema representativo. Depois de insuflar as massas insatisfeitas contra a democracia e os representantes eleitos, o líder populista procura demolir as instituições e tudo o mais que impõe limites entre a sua vontade e a submissão do povo ao seu desejo de poder absoluto, transmutado em mito. O terceiro passo é angariar recursos de poder, apoio financeiro de setores das classes dominantes, e armar seus seguidores. Tudo isso em nome da liberdade do povo, supostamente usurpada por autoridades legitimamente constituídas.
Jair Bolsonaro costuma citar a Venezuela como o perfil preferido de seus adversários dentro e fora do País. As evidências de sua conduta política mostram, entretanto, que ele está, ao contrário, seguindo a cartilha bolivariana com certa persistência.
É longa a transmutação de um líder político, eleito por voto popular, em figura mítica onipotente. Hugo Chávez, depois do fracasso de sua tentativa de golpe armado, deu um primeiro grande passo revogando a Constituição venezuelana e adotando uma Constituinte unilateral. Sua tarefa foi facilitada pelo boicote de uma oposição moderada muito fragmentada, a tal ponto que boicotou as eleições. Uma situação muito similar à que se observou entre nós quando, mesmo diante da radicalização política dos extremistas, as forças democráticas moderadas nem sequer tentaram se unir contra a ameaça comum.
Seguiram-se a manipulação populista da economia, a cooptação das Forças Armadas e do setor produtivo, em grande parte estatizado e majoritariamente corrupto, e a manipulação do câmbio para beneficiar as elites. Apesar disso, e incapaz de se unir, o pouco que restou da oposição não podia ser tolerado e Hugo Chávez reinventou a Corte Suprema de Justiça, impondo-lhe a missão de servir, acima de tudo, à “revolução” bolivariana.
O passo decisivo da ditadura chavista foi dado pela criação, em 2009, de milícias armadas, a Guardia Civil Bolivariana, encarregada da defesa contra a crescente organização das oposições e neste ano transformada em braço oficial das Forças Armadas.
Diferentemente das organizações militares tradicionais, as milícias são organizadas em grupos armados dentro de empresas e repartições e em comunidades de residência. São principalmente essas milícias, e não as Forças Armadas, que efetuam a repressão às manifestações, os sequestros, as execuções, a invasão e ocupação da Assembleia Nacional, tudo praticado em nome do socialismo e da liberdade.
A opinião pública brasileira e o debate político estiveram, nos últimos dias, estupefatos pelo conteúdo perturbador de uma reunião entre as mais altas autoridades do País. Mas o que essa reunião põe a nu de mais relevante não é a suposta interferência de Bolsonaro em instituições de investigação e inteligência. É, sim, o propósito anunciado do presidente de armar o povo para que o cidadão comum ameace, com armas de fogo, as autoridades constituídas quando delas discordarem.
Nas palavras do presidente, ouve-se: “Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um p..a de um recado pra esses b…a. Por quê que eu estou armando o povo” - sendo esses b…as governadores e prefeitos que não lhe agradam. Não se trata de um caso isolado. Os insultos ao Parlamento e ao Judiciário estão presentes desde a campanha eleitoral, tornaram-se pauta normal do presidente desde o fim de 2019 e, agora, agenda dominical do primeiro mandatário e de seu Ministério.
Em maio de 2019 Bolsonaro deu um passo nas pegadas de Chávez ao propor um pacto com os demais Poderes da República, convidando o Judiciário a colaborar com as agendas de governo, reiterando que era bom ter a Justiça a seu lado, quando o que cabe a ela é estar do lado da lei. Mais significativamente, na sequência da proposta de pacto, após criticar o Supremo Tribunal Federal por decisões supostamente contrárias às suas convicções políticas e religiosas, prometeu nomear para a Suprema Corte um evangélico, porque o Estado pode ser laico, “mas”, ressaltou, “eu sou cristão”.
Faltava, até agora, o modelo de mobilização de fiéis seguidores, que substituiu o voto popular, para manter no poder o sucessor de Chávez, derrotado nas eleições para a Assembleia Nacional. Trata-se das milícias bolivarianas, que o mantêm no poder mediante ataques armados às manifestações populares, praticam sequestros e execuções e invadem e ocupam o Parlamento.
Não é à toa que a opinião nacional e o Congresso têm reagido contra as tentativas do presidente de anular todas as cautelas e restrições ao acesso universal indiscriminado a armas letais, sob o pretexto de garantir a segurança dos indivíduos e de suas propriedades. Por trás dessa agenda existe, como esclarece o próprio Bolsonaro, uma agenda, até agora oculta, de armar seus fiéis seguidores para que possam resistir com armas na mão contra autoridades públicas que ousarem contrariar seus desejos e interesses.
*Senador (PSDB-SP)
William Waack: Para onde levam os inquéritos
Onde hoje mora o perigo para Bolsonaro não é no Congresso, é no STF
Onde hoje mora o perigo para Bolsonaro não é no Congresso, é no STF. E não é no inquérito que resultou das acusações do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro ao sair do governo. É no inquérito das fake news, também no Supremo, que começou há mais de um ano atirando nos “procuradores de Curitiba” como principais suspeitos de articulações contra o STF e acabou acertando no esquema bolsonarista de pressão e propaganda que, suspeita-se, é articulado em parte desde o Palácio do Planalto.
Não cabe aqui discutir todos os aspectos jurídicos relacionados ao inquérito, que começou impondo censura a órgãos de imprensa (logo derrubada), corre em sigilo e transforma o STF em investigador e juiz ao mesmo tempo. Integrantes da corte acham que o tal inquérito virou uma metralhadora giratória nas mãos do ministro Alexandre de Moraes – o mesmo se ouve na PGR, que foi contra, depois a favor, e agora contra de novo, mas são coisas que ninguém admite em público.
Em outras palavras, o mundo correto jurídico acha o inquérito abominável, porém ainda mais abominável o que representam as redes bolsonaristas. Uma vez que essa ação dirigida pelo Supremo tem como alvo quem se organizou para destruir a institucionalidade, o inquérito é amplo o suficiente para, eventualmente, levar a uma acusação política grave, além de criminal contra seus alvos. Difícil de calcular são as consequências do tipo de ambiente que provoca.
Os alvos da vez são personalidades das redes bolsonaristas, empresários amigos do presidente e parlamentares que o apoiam. Na lista figura também um ministro, o da Educação, que deverá ser ouvido pelo que disse na já célebre reunião ministerial do dia 22 de abril não no inquérito relacionado a Moro, mas no inquérito das… fake news contra o Supremo. No Legislativo o mesmo inquérito do Supremo reforça uma CPMI para apurar… fake news nas eleições.
Outra voz que ganhou destaque nos últimos dias, a do empresário Paulo Marinho, ex-adepto convertido em inimigo do presidente, também deve ser incluída no que o TSE tem investigado, via corregedoria (considerada mais contundente pelos especialistas) como abuso de poder econômico e político nas eleições de 2018, incluindo disparos em massa de mensagens em redes sociais e, claro, fake news.
Por um lado, o empenho dos atingidos por operações da PF deflagradas por Alexandre de Moraes em caracterizar os ministros do STF como meros adversários políticos, fora o resto, vai em boa parte ao encontro do que pensam militares graúdos que manifestam (tão somente nos bastidores) descontentamento com os rumos gerais do governo, mas não escondem a fúria com o que consideram ingerência indevida do Judiciário nos negócios do Executivo. A reação ao STF forja um tipo de “união”.
Por outro, o que as redes bolsonaristas em geral e o presidente em particular conseguiram com os sucessivos ataques às pessoas dos ministros foi levar o STF a uma inusitada convergência de posturas entre ministros divididos por querelas pessoais ou pelas sérias dúvidas quanto ao inquérito das fake news. Em outras palavras, em que pesem as divergências internas, a resposta do STF tem sido mais institucional do que “pessoal”.
Os ministros do STF reiteram em uníssono que o Judiciário está sendo atacado pelos que não aceitam fiscalização ou limitação de poderes, não respeitam o pacto federativo, interferem em órgãos do Estado (como Polícia e Receita Federal) por motivos pessoais ou políticos, agem contra a saúde pública ao desrespeitar critérios técnicos e científicos no combate ao coronavírus, desprezam a educação e mobilizam setores do eleitorado contra instituições como Legislativo e Judiciário. Em resumo, Jair Bolsonaro.
Nos bastidores do mundo do direito em Brasília admite-se que não surgiram até aqui evidências contundentes para basear eventual denúncia da Procuradoria que “automaticamente” encurtaria a permanência de Jair no Planalto. Tal desfecho só poderia surgir de um julgamento político no Congresso, reitera-se. É exatamente o que um grupo dentro do STF espera conseguir.
Sergio Fausto: Com democracia e bom governo detivemos a aids
Essa memória não pode ser destruída, porque nos serve para enfrentar o desafio da covid-19
Uma das vigas-mestras da mitologia bolsonarista é a afirmação falsa de que, entre o fim do regime autoritário e a o atual governo, o País esteve entregue aos interesses mesquinhos da pequena política e à degeneração moral da sociedade. Bolsonaro seria o líder providencial com a missão de restabelecer o primado do interesse nacional, com maiúsculas, e dos valores tradicionais, protetores da vida.
Essa mitologia se esfarela a cada dia com a expansão de casos de covid-19 pelo território brasileiro e o crescimento do número de mortos. Em lugar de se guiar pelo interesse maior da sociedade, liderando um esforço nacional de combate aos efeitos sanitários e socioeconômicos da pandemia, o mito se dedica a agitar as suas hostes, em manifestações contra o Congresso e o STF, a proteger a si e aos seus com investidas contra a autonomia da Polícia Federal e a cerrar fileiras com a pequena política para preservar o seu mandato. Um espetáculo de desgoverno como nunca antes se viu na História deste país.
Tão importante quanto mostrar que o rei está nu é desconstruir a sistemática campanha de desmoralização do período de conquista e consolidação da democracia no Brasil. Nada mais oportuno do que comparar a politização descabida e a descoordenação da resposta à covid-19 com a construção da política pública de combate à aids, doença infecciosa que crescia velozmente no Brasil no final do século passado.
Não se trata de desconhecer as diferentes formas de transmissão e as distintas consequências para a saúde pública e a economia provocadas pelo HIV e pelo novo coronavírus, mas de destacar os fatores que levaram o Brasil a se tornar um exemplo mundial de sucesso no combate à aids. Essa memória não pode ser destruída, pois nos serve para enfrentar o desafio atual.
O Brasil fez do combate à aids uma política de Estado. Contribuiu para tanto a democratização da sociedade, que se tornou mais aberta e mais engajada graças à liberdade de imprensa e ao aprendizado feito na luta contra o regime autoritário. Particular importância teve o movimento gay, que, defendendo o grupo social no qual era maior a prevalência da doença, soube fazer alianças e tornar o combate à aids um tema de interesse geral da sociedade. Contribuiu também a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), previsto na Constituição de 1988, decisivo na distribuição dos antirretrovirais quando estes se tornaram disponíveis na segunda metade dos anos 90. Igualmente decisiva foi a compreensão por sucessivos governos de que a doença não deveria tornar-se objeto de disputa política mesquinha. Em 1996 o Congresso aprovou lei tornando gratuita a distribuição do chamado “coquetel antiaids” na rede do SUS e governo federal, junto com Estados e municípios, concretizou a medida.
Ao contrário da previsão do Banco Mundial, que previra 1,2 milhão de pessoas infectadas, o Brasil tinha na virada do século 600 mil indivíduos com o vírus do HIV. Nos anos seguintes, a taxa de mortalidade caiu a menos da metade. A mudança drástica na trajetória da doença não teria sido possível se uma coalizão ampla de forças não tivesse vencido resistências conservadoras que, desde o início, procuram minimizar e estigmatizar a doença como “um câncer gay”.
Respaldado por bons resultados, o Brasil ganhou protagonismo na cena internacional, em particular quando se colocou a questão da quebra de patentes dos antirretrovirais, detidas por grandes empresas farmacêuticas. Em 2001, na inauguração da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio, o Brasil foi autor da proposta que abriu caminho para que as empresas se dispusessem a reduzir o preço de venda daqueles remédios.
Sem antiamericanismo, mas também sem subserviência, o Brasil enfrentou a posição capitaneada pelos Estados Unidos. A decisão favorável à proposta brasileira tornou a compra de antirretrovirais acessível a muitos países que de outra maneira não poderiam comprá-los em quantidade minimamente suficiente, mesmo com os recursos a fundo perdido mobilizados pelo programa das Nações Unidas.
Para que fique claro o custo de decisões erradas tomadas em momentos cruciais, recorro, para concluir, ao exemplo negativo da África do Sul, país onde quase 20% da população adulta se encontram hoje infectados pelo HIV. Parte importante da responsabilidade por essa tragédia humanitária se deve ao desatino do ex-presidente Thabo Mbeck, no poder entre 1999 e 2008. Alegando que a compra de antirretrovirais custaria muito dinheiro e que não haveria comprovação científica de que a aids fosse causada pelo vírus HIV ou suscetível à ação daqueles remédios, Mbeck resistiu até onde pôde às pressões internas e externas para fazer a coisa certa. Só o fez depois que a Corte Suprema do seu país, acionada por movimentos da sociedade civil, o obrigou a tanto. Estima-se que a resistência de Mbeck a comprar e distribuir os antirretrovirais tenha custado mais de 300 mil vidas.
Ainda é tempo de evitar que o Brasil enverede por semelhante descaminho.
*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Vera Magalhães: Tudo dominado
Após reunião, Bolsonaro interferiu na PF e ‘escancarou' política armamentista
Não se pode dizer que Jair Bolsonaro não logrou êxito na pauta que levou à dantesca reunião ministerial de 22 de abril. A partir dali ele de fato:
- interveio na Polícia Federal;
- “escancarou” a política armamentista de seu governo em várias medidas;
- está sendo informado, e informando seus aliados, sobre passos de investigações;
- degolou o ministro da Justiça, como ameaçou fazer,
- E fez os ministros se exporem, e muito.
Agora só falta “prender" governadores e prefeitos, como pregou a diligente Damares Alves, mas não parece estar distante o dia em que ele tentará essa jogada.
De todas as agendas que explicitou no encontro, a das armas acima de tudo é uma das mais avançadas.
O presidente revogou, e anunciou no Twitter, portarias editadas pelo Exército que previam a marcação e o rastreamento de armas e munições.
Mais: o general Eugenio Pacelli, que havia assinado as portarias estabelecendo a necessidade de rastrear armas e munições, depois revogadas, foi exonerado da função e saiu dizendo que houve pressão por parte da indústria armamentista.
Em seguida, Bolsonaro editou, com a assinatura de Sergio Moro, a portaria da qual falava na fatídica reunião, aumentando o número de munições que podem ser compradas por civis e militares.
Por que a sanha armamentista? O próprio presidente desenhou: armada, a população poderá resistir a ordens consideradas abusivas de governadores e prefeitos. Para isso, deu como exemplo as regras de distanciamento social ditadas pela necessidade de combater a pandemia do novo coronavírus.
Ao investir claramente para criar grupos armados e dispostos a defender o governo a qualquer preço, como fica patente nos posts nas redes sociais e no incentivo a atos semanais de conformação golpista em Brasília, o presidente dá a senha para a criação de milícias paramilitares no Brasil, nos moldes da Milícia Nacional Bolivariana da Venezuela, criada por Hugo Chávez em 2007, e que hoje conta com mais de 1 milhão de cadastrados. Nicolás Maduro, o ditador que sucedeu Chávez, quer chegar a 2 milhões de homens armados, que, juntamente com o Exército amplamente inflado pelo chavismo são as duas forças que mantêm o regime de pé.
Escrevi a esse respeito na coluna intitulada “Bolsochavismo”, ainda em fevereiro, quando o apoio dos bolsonaristas ao criminoso motim de policiais militares em vários Estados já era o ovo da serpente do que se quer criar.
Não é coincidência o fato de pulularem nas redes sociais vídeos de policiais militares de todo o País se colocando à “disposição" para defender Bolsonaro do STF, do Congresso e de governadores (aos quais as PMs estão subordinadas).
Aliada à investida sem disfarces sobre a Polícia Federal e seu uso como polícia política, inclusive perseguindo adversários políticos do presidente, a urdidura de milícias fortemente armadas e dispostas e matar e morrer por Bolsonaro é a gestação de um projeto autocrático de poder que, se não for parado agora pelos demais Poderes, aos quais a Constituição delegou a tarefa de exercerem o controle sobre os arreganhos do Executivo, será difícil de deter no pós-pandemia.
Não é à toa o uso do verbo “aproveitar" a covid-19 para “passar a boiada”, feito por Ricardo Salles na reunião dos círculos do Inferno. Não é só no Meio Ambiente que o presidente aproveita a confusão que ele mesmo cria diariamente no combate à peste para avançar com o arbítrio.
Isso está sendo feito sobre a liberdade de imprensa, sobre os direitos fundamentais e trabalhistas e também no sentido de um Estado policial e paramilitar que garanta a Bolsonaro não ser admoestado. E talvez nem fosse precisar, dada a tibieza da resposta das instituições.
Monica De Bolle: Estupidez em cima de estupidez
Fala de Guedes na reunião de 22 de abril revela alguém que se comporta como um gestor de fundo de quintal
O título deste artigo é autoplagiado do meu livro Como Matar a Borboleta Azul: uma Crônica da Era Dilma, publicado em 2016. No capítulo sobre os anos 2014 e 2015, tratei da má condução da economia e das escolhas que se revelariam estúpidas, ainda que não mal-intencionadas. Falava ali sobre o ensaio de Carlo Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, sobre o qual já escrevi diversas vezes neste espaço, em que neste mês completo dez anos e que me rendeu colunas que acabaram sendo fonte para o livro sobre Dilma.
Recapitulo aqui para o leitor as cinco leis de Cipolla. A primeira reza que sempre e inevitavelmente cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação. A segunda lei estabelece que a probabilidade de certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dela própria. A terceira defende que uma pessoa estúpida é aquela que causa danos a outras sem tirar nenhum proveito para si, podendo até sofrer prejuízo com isso. A quarta lei mostra que as pessoas não estúpidas desvalorizam sempre o potencial nocivo das estúpidas. A quinta advoga, enfim, que o estúpido é o tipo de pessoa mais perigoso que existe.
Tenho refletido muito sobre o ensaio de Cipolla, pois há tempos ele retrata bem a realidade brasileira. Na verdade, constatei que temos nos aprimorado em nos tornarmos a representação viva de tudo o que o historiador falecido em 2000 elaborou de forma sublime. Penso que Cipolla estaria muito fascinado em ver como as leis da estupidez funcionam na prática e como a sua tentativa de traçar as linhas mestras da natureza humana, sobretudo da natureza dos estúpidos, está tão bem representada no Brasil de Bolsonaro.
A reunião ministerial de 22 de abril de 2020 que o diga. Lá há estúpidos aglomerados, falando sem freio, sem noção de si ou do cargo que ocupam, sobre o País estraçalhado pela pandemia e pelo governo de Jair Bolsonaro. Nada daquilo surpreende, embora tudo choque. Choca a fala do ministro do Meio Ambiente quando menciona “passar a boiada” na Amazônia. Choca a fala do ministro da Educação sobre as instituições democráticas do País. Choca a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que essa – a crise humanitária – é uma espécie de oportunidade para o governo ganhar dinheiro ajudando as grandes empresas. As pequenininhas, afinal, não valem o esforço, segundo Guedes. Com elas, o governo perderia dinheiro.
Embora todas as falas sejam chocantes e profundamente estúpidas pelos danos que causam ao País e a quem as profere – sim, eles todos se prejudicam com os despautérios proferidos, ainda que o mercado brasileiro prefira enxergar uma realidade paralela –, ative-me à de Guedes.
Guedes é o ministro da Economia, logo, sua responsabilidade é com todas as entidades e indivíduos que formam o que chamamos de economia brasileira. Mais do que isso, seu dever é com o coletivo, com a ideia de entregar um País melhor para todos do que aquele que encontrou. Mas o que fez Guedes? Sua fala revela alguém que se comporta como um gestor de fundo de quintal ao afirmar que seria possível o governo lucrar dando dinheiro para as grandes empresas.
Reflitam por um momento: eu não comecei este artigo falando sobre a gestão Dilma à toa. Quando foi a última vez que o governo lucrou dando dinheiro para grandes empresas? Ou não houve esse dia, esse momento não aconteceu? Guedes conseguiu a proeza de sair-se muito pior do que Guido Mantega, quando este defendia as políticas de campeões nacionais. Porque lá, ao menos, a ideia era fazer o País crescer. Agora, a ideia é lucrar no meio de uma crise humanitária, com dezenas de milhares de mortos e com o Brasil tornando-se, rapidamente, o epicentro da pandemia. Mais. Guedes falou em lucrar com grandes empresas enquanto as pessoas penam para receber o auxílio emergencial, enquanto o governo faz de tudo para dificultar o pagamento. E ele ainda tem o desplante de dizer que não haverá dinheiro para prorrogá-lo. Não se trata de não saber fazer conta. Trata-se de má intenção mesmo. Sem contar que salvar grandes empresas geraria uma imensa distorção no Brasil, já demasiado concentrado.
O que sobra, então? Sobra fazer um gráfico. Num eixo, mede-se do menos ao mais estúpido. No outro, medem-se as intenções: dos mal-intencionados aos bens intencionados. Peguem uma folha de papel e tracem os quadrantes. Agora, ponham os nomes de cada ministro no gráfico. Trata-se de terapia para tempos de estupidez galopante.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Pedro Fernando Nery: O Brasil de Jajá
‘Política econômica também é política’, resume incoerências que Jailison apontava
Perdemos o (muito) jovem economista Jailison Silveira. Auditor do Tesouro Nacional, ocupou cargos importantes no Ministério da Economia. Era vice-presidente da Associação dos Servidores do Tesouro Nacional (ASTN), de que foi um dos fundadores. Com sua liderança, a associação rapidamente se diferenciou das demais organizações do funcionalismo. Parecia menos pautada pelo simples corporativismo e mais pelo debate propositivo, em que pregava o ajuste fiscal coerente.
A entidade que Jailison criou questionava a reforma da Previdência: não por ser contrária a ela, mas porque deveria ser igualmente abrangente com os militares. Questionava o ajuste fiscal, não por negar sua necessidade, mas pela sua ênfase unicamente nas despesas, ignorando frequentemente privilégios concedidos que deterioram a arrecadação. As tais incoerências.
O Brasil de Jailison está bem presente, entre outras documentos, na publicação que elaborou junto com outros auditores do Tesouro para as eleições de 18. Chamado 18 diretrizes para um ajuste fiscal coerente, a contribuição se fundamentava na noção de que falta conhecimento da sociedade sobre as políticas públicas que financia.
A necessidade de avaliação permanente dos subsídios concedidos pela União, da ordem de 5% do PIB em 2017 – a maior parte em “gastos tributários” (a faculdade de pagar menos imposto, normalmente de forma permanente, dada a certos grupos). O imperativo de reformar a Previdência, mas incluindo de verdade os militares. As distorções nos salários do funcionalismo.
O combate à burla do teto remuneratório feita pelas verbas falsamente indenizatórias (como auxílio moradia). A ineficiência dos gastos com saúde às vésperas de veloz envelhecimento da população. A inadequação dos gastos diante das metas para a educação básica do Plano Nacional de Educação (PNE).
Por uma ampla reforma tributária, que diminuísse a participação dos tributos indiretos que pesam sobre o consumo dos pobres e aumentasse a participação dos tributos diretos sobre a renda dos ricos. Que ampliasse a progressividade do sistema tributário e diminuísse a desigualdade injusta de tributação entre empregados na CLT e profissionais com pessoa jurídica. Que limitasse as possibilidades de deduções com gastos particulares que diminuem o imposto de renda pago pelo topo da pirâmide, enquanto faltam gastos públicos nas mesmas áreas para a base.
A reformulação das regras fiscais, para reduzir a dívida pública. O tratamento desta dívida com maior transparência, combatendo as fake news oportunistas e contraproducentes para a sociedade.
Nesse sentido, as contradições da política fiscal impediriam a formação de consensos e maiorias, já que a percepção de que há favorecidos pelo Estado brasileiro reduziria, para a população, a legitimidade das medidas de ajuste, comprometendo o próprio processo decisório.
O mote que dava a organização que concebeu sintetiza as incoerências que apontava: “política econômica também é política”.
Na academia, Jailison vinha de um mestrado na UFRJ e cursava o doutorado da PUC-Rio, infelizmente interrompido. Na carreira tão curta, foi coordenador geral de modelagem econômica na Secretaria de Política Econômica, onde também foi chefe de divisão de economia e legislação. No Tesouro, atuou em duas referências da Esplanada: a coordenação de estudos econômico-fiscais e a coordenação de planejamento estratégico da dívida pública.
Para os amigos e colegas, ficarão mesmo a lembrança e a inspiração do Jajá idealista, batalhador e irreverente.
*Doutor em economia
Rubens Barbosa: Bom senso acima de tudo
Acima de partidos e ideologias, o interesse nacional deve ser a tônica na recuperação
Análises e estudos das principais organizações internacionais indicam que a pandemia pode estender-se por um período maior que o antecipado. A vacina contra a covid-19 promete tardar para ser comercializada.
A recessão global vai ser profunda e demorada. As consequências sobre a economia e o comércio internacional poderão ser devastadoras, com grave queda do crescimento e do desemprego global.
A recuperação do Brasil não vai ser rápida, nem o País sairá mais forte, como alguns anunciam. Os efeitos sobre o Brasil hão de perdurar por muito tempo caso medidas drásticas não sejam tomadas. É tempo de repensar nossas vulnerabilidades e aproveitar para passar o Brasil a limpo, de modo a modernizá-lo com menor desigualdade regional e social. E também definir o lugar do Brasil no mundo, como uma das dez maiores economias, inserido de forma competitiva nos fluxos dinâmicos do comércio internacional.
O Executivo – levando em conta o pacto federativo – tem um compromisso inadiável com a aprovação e execução de reformas (sobretudo a tributária e a administrativa) e com medidas regulatórias, simplificação e desburocratização para aumentar a competitividade da economia, tornar mais ágeis as agências reguladoras e tornar efetivas as prometidas desestatizações e vendas de centenas de empresas estatais/paraestatais e concessões de serviços públicos.
Será indispensável um trabalho conjunto e coordenado com o Congresso para avançar nas medidas legislativas essenciais para criar condições de atrair investimentos do setor privado interno e externo. Com a tendência a maior informalidade e pobreza na saída da pandemia, será inevitável, na área social, discutir como tornar permanente o programa de auxílio emergencial para dar proteção a quase 80 milhões de beneficiários. A gravidade da crise, que afetou a todos, exigirá menos atritos entre os Poderes e mais agilidade e rapidez dos legisladores para discutir essas agendas ainda este ano.
Em vista do impacto da crise sobre a economia em todos os países, haverá crescimento do papel do Estado como indutor do investimento público e privado. A exemplo do que ocorre nos EUA e na Europa, o governo central deverá aumentar seu gasto para estimular a recuperação da economia, com impacto fiscal inevitável pela flexibilização de medidas de contenção fiscal, mas com políticas para o controle das contas públicas em médio prazo (âncora fiscal). No caso do Brasil, à luz das políticas liberais do governo, a ênfase está posta na importância da participação do setor privado na fase de recuperação. O envolvimento do setor privado e de organismos financeiros internacionais, contudo, não será automático e dependerá de condições mínimas de segurança jurídica para o investimento, de prioridade em relação a projetos de concessão e obras públicas e de sinalização clara de transparência no trato com o governo.
A ausência de liderança e de uma clara visão estratégica de médio e longo prazos para a condução do processo de recuperação do País pode impedir que medidas duras sejam tomadas para fazer o Brasil superar o impacto da crise. Não existe vácuo em política. Alguém terá de ocupar esse espaço.
O grupo de trabalho criado pelo Executivo e presidido pela Casa Civil deveria ser o catalisador dos esforços visando à recuperação da economia e liderar, em nome do presidente da República, a efetiva coordenação entre representantes dos três Poderes, dos órgãos reguladores e outros que interferem no processo administrativo.
As atividades desse grupo começaram a ser tratadas na famosa reunião ministerial agora tornada pública. Seu âmbito poderia ser ampliado e envolver, além do Executivo, nos próximos três meses, outros segmentos da sociedade: Congresso, economistas, empresários, trabalhadores e instituições técnicas especializadas. O Ministério da Economia começa a traçar cenários e a fazer estimativas para o day after, que – se espera – devem estar articulados com o grupo de trabalho.
Será importante conseguir um consenso mínimo para acelerar a implementação de políticas e de medidas essenciais com o objetivo de retomar o crescimento, reduzir o desemprego e aperfeiçoar as funções do Estado.
Não se pode esperar a adesão de todos ao programa que vier a ser aprovado, pela radicalização das posições em vista da divisão política existente hoje. É sintomático – e um desafio para outras forças políticas – que o PT tenha decidido engajar-se nessa discussão e dar inicio à formulação de projeto de retomada econômica, criação de empregos, reestruturação do Estado e da soberania nacional. O bom senso aconselha que o interesse nacional, acima de partidos e ideologias, com visão de médio e longo prazos, deva ser a tônica das discussões.
Caso a situação política não permita avançar com essa agenda, a alternativa será o aprofundamento da crise econômica, política e social, com a paralisia dos governos federal e dos Estados e municípios, com alto custo para a população.
Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas, já ensinava Maquiavel. Essa lição de realismo deveria ser seguida hoje pelos formuladores de políticas em Brasília.
*Presidente do instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
O Estado de S. Paulo: CNS recomenda suspensão do uso da cloroquina em casos leves
Entidade diz que ‘momento excepcional’ da pandemia do novo coronavírus ‘não pode significar que a população deva ser exposta a condições de maior vulnerabilidade’
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou uma recomendação na sexta-feira, 22, em que pede a suspensão imediata das orientações do Ministério da Saúde para o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de casos leves do novo coronavírus. “Até o momento, não existem evidências científicas robustas que possibilitem a indicação de terapia farmacológica específica”, justifica o documento.
Segundo a recomendação, o “momento excepcional” da pandemia da covid-19 “não pode significar que a racionalidade deva ser abandonada nem que a população deva ser exposta a condições de maior vulnerabilidade”. Ela é assinada pelo presidente do conselho, Fernando Zasso Pigatto.
O documento também recomenda que não seja recomendada “qualquer medicamento” para prevenção da covid-19, “pela ausência de confirmações de uso seguro aos usuários”, e que o ministério “desempenhe seu papel na defesa da ciência e a redução da dependência de equipamentos e insumos, construindo uma ampla e robusta produção nacional”.
Além disso, pede que o Ministério Público Federal (MPF) “tome as devidas providências” para que as orientações para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da covid-19 sejam suspensas.
Na quarta-feira, 20, o Ministério da Saúde publicou um novo protocolo, que libera os dois medicamentos no tratamentos de todos os pacientes com sinais da doença. Para o conselho, contudo, a mudança “não se baseia em evidências científicas” e faz referências a estudos “criticados pela comunidade científica”.
A recomendação do CNS ainda diz que o ministério descumpriu a legislação do Sistema Único de Saúde (SUS) por indicar os medicamento para um uso que não está registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, tampouco, teve análise e elaboração de diretrizes terapêuticas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).
O conselho ainda chama a mudança de protocolo de uma “decisão política tomada por não especialistas em saúde”. Ele também cita artigos publicados em revistas científicas internacionais que apontam efeitos dos medicamentos no tratamento de pacientes do coronavírus, especialmente em relação a problemas cardíacos, além de diretrizes médicas publicadas por entidades brasileiras, como a Associação de Medicina Intensiva e a Sociedade Brasileira de Infectologia, dentre outras.
“Considerando que a necessidade de avaliação dos pacientes através de anamnese, exame físico e exames complementares nos equipamentos de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), trará um grande impacto à atenção primária e de média complexidade, ao qual o sistema não está adaptado para regular neste presente momento”, aponta ainda o texto.
O CNS é uma instância colegiada do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem o objetivo de fiscalizar, acompanhar e monitorar as políticas públicas de saúde. Ele tem 48 conselheiros, que são representantes dos segmentos de usuários, trabalhadores, gestores do SUS e prestadores de serviços em saúde, além de representantes de movimentos sociais, instituições governamentais e não governamentais, entidades de profissionais de saúde, comunidade científica, entidades de prestadores de serviço e entidades empresariais da área da saúde.
Affonso Celso Pastore: O iceberg, o navio, e o comandante
Não há exagero em prever que os investimentos diretos vão desabar, chegando aos níveis mais baixos dos últimos 20 anos.
Quando o radar sinaliza um iceberg, o comandante adverte o timoneiro a mudar o rumo do navio. Mas pode ser tentado a mudar o timoneiro. Se após a pandemia retornarmos ao teto de gastos, como prega o atual ministro da Economia, o risco é mais baixo. Porém, se a curva de contágio do vírus demorar a achatar, como é provável, a recessão aumenta, minando o apoio da população ao presidente, e no lugar do atual ministro da Economia pode ser colocado algum adepto da cloroquina fiscal, aumentando os gastos públicos para fazer o País crescer. As consequências seriam a insustentabilidade da dívida pública e o aumento das saídas de capitais, que já vem ocorrendo.
O balanço de pagamentos é composto por dois grupos de contas: as contas correntes e a conta financeira e de capitais. A menos de erros e omissões, a diferença entre elas é o saldo no balanço de pagamentos. O Brasil quase sempre teve déficits nas contas correntes, que nunca deixaram de ser superados pelos ingressos de capitais – os investimentos estrangeiros diretos e em carteira (renda fixa e ações). Em 2007, antes da crise de 2008/09, tínhamos equilíbrio nas contas correntes, mas o ingresso de capitais pouco acima de US$ 80 bilhões gerou um superávit de US$ 80 bilhões no balanço de pagamentos, e o Banco Central elevou as reservas. Em 2011, devido à forte recuperação do crescimento, tivemos um déficit nas contas correntes de US$ 80 bilhões, mas os ingressos de capitais chegaram a um pico de US$ 160 bilhões, com novo superávit no balanço de pagamentos e um novo aumento das reservas. Nos últimos 12 meses, contudo, assistimos a um déficit nas contas correntes de US$ 50 bilhões, com um ingresso nulo na conta financeira e de capitais. Pela primeira vez, em décadas, temos um déficit no balanço de pagamentos, que nos últimos 12 meses já atingiu US$ 50 bilhões. Consequência: as reservas caem.
Por que caíram os ingressos de capitais? A queda observada nos investimentos em carteira desde a perda do grau de investimentos do país vem se acelerando. Nos últimos 12 meses saíram mais de US$ 50 bilhões, dos quais perto de US$ 25 bilhões só nos últimos 30 dias. Quanto aos investimentos diretos, nos últimos 12 meses ingressaram US$ 50 bilhões, mas estes devem cair não só devido à redução dos investimentos no Brasil, mas também porque a recessão mundial gera grandes prejuízos nas matrizes de multinacionais, que não têm como (nem deveriam) investir nas suas subsidiárias brasileiras. Não há exagero em prever que os investimentos diretos vão desabar, chegando aos níveis mais baixos dos últimos 20 anos.
Se os déficits nas contas correntes não declinassem teríamos déficits enormes na balança de pagamentos, acelerando a queda de reservas, mas eles também vão cair. Com a recessão há uma redução sensível nos gastos em as viagens internacionais, nas remessas de lucros e dividendos, nos fretes e seguros, e nas importações. No entanto, embora o real depreciado e os bons preços dos alimentos provoquem otimismo quanto as exportações, não se pode ignorar que o valor em dólares das exportações brasileiras tem elevada elasticidade com relação ao valor em dólares das exportações mundiais, que despencam com a recessão mundial.
O que ocorreria se o governo decidisse elevar os gastos públicos, esperando que o “multiplicador keynesiano” elevasse a demanda agregada? O déficit nas contas correntes, que nada mais é do que o excesso da demanda agregada sobre o PIB, tenderia a aumentar. Porém, diante da política fiscal expansionista cresceria o risco percebido pelos investidores não residentes, levando a uma aceleração da saída de capitais. No mercado financeiro ninguém (ainda) acredita que um ministro, que repetidas vezes tem reafirmado seu compromisso como teto de gastos, aceitaria tal mudança de rumo. Mas o presidente, que admite não entender de economia, pode escolher alguém que não hesitaria fazê-lo. Lembrem-se da cloroquina. Uma política fiscal expansionista não só piora a dinâmica da dívida pública como acentua o desequilíbrio externo, e esta outra dimensão da crise ainda não está no radar. Sabemos como termina a história: no limite, para truncar a depreciação cambial e a venda de reservas, chegaríamos ao controle de capitais. É só olhar para a Argentina.
Há um iceberg por perto, e o risco de colisão é alto. Depois de tanto esforço, sofrer uma recaída do “efeito Orloff” seria uma lástima.
*Ex-presidente do Banco Central e Sócio da A.C. Pastore & Associados.