o estado de s paulo
Eugênio Bucci: O que é desinformação?
O problema é grave, mas uma lei improvisada não vai resolvê-lo
Avança no Congresso Nacional um projeto de lei para combater fake news. Claro que todo mundo é contra a mentira e a favor da verdade, mas equacionar essa matéria por meio de um diploma legal pode não ser tão simples. Ao contrário, pode nos desviar para um desfiladeiro traiçoeiro, de caminhos minados. Basta ver que, enquanto se discute o projeto de lei, a CPMI das Fake News pega fogo. Em outro prédio ali perto, no Supremo Tribunal Federal (STF), o inquérito sobre as mesmas fake news, as mesmíssimas, faz a temperatura subir ainda mais. Agora as investigações chegam perto do tal “gabinete do ódio”, um suposto órgão semiclandestino que, sob comando de gente próxima ao presidente da República, espalha calúnias contra desafetos do bolsonarismo.
Nesse ambiente inflamável, o debate do projeto de lei não flui. O texto não para de sofrer alterações. As votações são adiadas e remarcadas. Para complicar, tudo está de pernas para o ar – tudo, principalmente os argumentos. Defensores históricos das liberdades democráticas são acusados de censores, em mais uma saraivada de ofensas odiosas. Do outro lado, os milicientos do fascismo animalesco – aqueles mesmos que difamam artistas, professores, cientistas e jornalistas, os mesmos que idolatram a ditadura militar, os mesmos que se fantasiam de Ku Klux Klan do cerrado e carregam tochas em rituais noturnos para pedir o fechamento do STF – invocam para si a “liberdade de expressão”. Carregam faixas com os dizeres “fake news não é crime” – como se todo mundo aqui não soubesse que, mais do que crime, são um verdadeiro festival de tipos penais.
Os milicientos invocam em vão o nome da liberdade para pleitear impunidade. Querem atentar à vontade contra a República e a Constituição. Na novilíngua que adotaram, “liberdade” quer dizer impunidade para eles, assim como a “democracia” deles quer dizer ditadura para todos os demais.
Com berros irracionais desse tipo, negociar um diploma legal se converte numa roleta-russa. O processo legislativo pede racionalidade e prudência. Nenhuma boa decisão brotará da correria. Por isso os mais sensatos vêm recomendando que, se há alguém bem-intencionado por trás do projeto de lei, esse alguém deveria conter o passo, dialogar com a universidade e avaliar com responsabilidade como é que pode funcionar – e se pode funcionar – uma lei contra a mentira. A matéria pede calma. Se o Direito positivo servisse para banir as inverdades deste mundo, a Constituição federal poderia resumir-se a um único artigo, “é proibido mentir”, e tudo estaria resolvido.
Acontece, nós sabemos, que nada estaria resolvido. Um artigo nesses termos, além de cômico, seria vazio, cairia na ineficácia absoluta. O que é a mentira? O que é “mentir”? A resposta não cabe dentro dos domínios da técnica legislativa. Não por acaso, um dos gargalos do projeto das fake news acabou sendo precisamente a impossibilidade de definir um tipo específico de mentira: a “desinformação”. O ímpeto legiferante (ou legifobético) não capta o sentido da palavra “desinformação” e sem captá-lo não consegue caminhar.
A pesquisadora Claire Wardle, líder e fundadora do projeto First Draft, ajuda-nos a entender essa palavra. Ela sintetizou sete categorias, apenas sete, e com elas classificou os “conteúdos” que sabotam o conhecimento dos fatos. No centro de gravidade dessas sete categorias Claire desenhou o conceito de “desinformação”. A partir do pensamento dela, mas indo um pouco além, podemos traçar a definição que nos interessa e nos falta: a “desinformação” constitui uma novíssima modalidade de mentira industrializada (fabricada em redes complexas de trabalho organizado), envolvendo recursos de monta e equipamentos ultramodernos, com foco nas redes sociais e com a intenção (dolo) de violar direitos das outras pessoas para obter vantagens (indevidas) políticas ou econômicas.
Usurpando as plataformas sociais, a indústria da desinformação (que inclui as fake news, mas não se resume a elas) tem alcance incomparavelmente superior ao da imprensa. Essa forma contemporânea de mentira massiva e poderosa infecta como um vírus os organismos da democracia. A desinformação industrializada – cada vez mais a serviço quase que exclusivo das falanges de extrema direita – corrói os meios legítimos de que dispomos para registrar aquilo que Hannah Arendt definiu como “verdade factual”.
Como se vê, não precisamos de uma resposta definitiva sobre a natureza da mentira ou da verdade na Filosofia para entender o estrago causado pela desinformação. Basta-nos entender o valor da verdade dos fatos, essa pequena forma de verdade cotidiana, simples, que todos percebemos. Onde vigora a desinformação, a sociedade perde a capacidade coletiva de constatar e nomear os fatos – e quando essa capacidade se dissolve, a política fica inviável e a democracia, impossível.
O problema é grave, mas uma lei improvisada não vai resolvê-lo. Antes de legiferar, deveríamos pensar mais, debater mais, informar mais.
- Eugênio Bucci é jornalista e professor da Eca-Usp
William Waack: A falta que faz liderança
Generais e ministros do Supremo estão às turras, sem solução à vista
Vamos pegar o bastão deixado pelo general Hamilton Mourão, que se converteu na voz política pública entre os militares. Ele encerra seu mais recente artigo, aqui no Estadão, dizendo agora ser mais importante do que nunca a “necessidade de uma convergência” em torno de uma agenda mínima de reformas. Mas, para isso, é preciso refletir sobre o que está acontecendo no Brasil.
Neste exato momento, fora a tripla crise de saúde, economia e política, o que está acontecendo é um seriíssimo embate entre a farda e a toga. O pessoal da farda (incluindo os que acabaram de trocá-la pelo paletó e gravata ou pelo pijama) está convencido de que, se houve “extremismos”, “exageros retóricos” e “falas impensadas” contra instituições, isso empalidece diante do que o pessoal da toga no STF impôs para cercear os poderes do presidente da República – uma usurpação acompanhada igualmente por falas irresponsáveis e desonestidade intelectual.
No mínimo desde o julgamento do mensalão o pessoal da toga andava dividido, mas se uniu ao entender que o pessoal da farda dá suporte a um presidente que pensa dispor de poderes imperiais, desrespeita limites entre Poderes estabelecidos na Constituição, age por interesses políticos próprios e pessoais para solapar instituições e só não jogou o País ainda numa irrecuperável crise institucional pois eles, os da toga, baseados em princípios e doutrinas, foram capazes de esclarecer e impor limites (como no caso de medidas de combate à covid-19).
Não há saída à vista para esse embate pois ele é a expressão de duas fortes forças políticas que ocuparam duas instituições. Não é só entre o pessoal da farda no palácio que reina a sincera convicção de que o pessoal da toga expressa um “establishment” (sim, é essa palavra meio fora de moda que se usa para falar do STF) que se articulou para defender privilégios que vão de ganhos da magistratura a benefícios fiscais e proteções a setores empresariais, passando pelo funcionalismo público. A luta do “establishment”, portanto, é para impedir a reforma do Estado representada por Bolsonaro e sua eleição.
No outro lado, figuras do STF sempre atentas aos ventos das redes sociais e opiniões publicadas encaram Bolsonaro e o que ele significa como um perigo real para as instituições democráticas e o estado de direito. Consideram suas ações políticas e o endosso explícito que concede a movimentos contra o Congresso e o Judiciário como ações políticas que não são apenas arroubos retóricos. São, nesse entendimento, parte do aberto intuito de destruir as normas mínimas do confronto político, da civilidade e do próprio jogo democrático.
Os bombeiros de sempre, de um lado e de outro, conseguem debelar incêndios pontuais. Mas não têm a capacidade de resolver a situação de fundo que resulta agora num precário equilíbrio. A saber: a “via jurídica” para destronar Bolsonaro, uma possibilidade com a qual uma parte do STF flerta, passa por uma PGR que não vê condições técnicas de denunciar o presidente. A rota para derrubar o presidente via TSE depende desse órgão alterar jurisprudência – fora o tempo que isso leva.
Bolsonaro e sua turma de aloprados não dominam as ruas, não dispõem de apoio nas Forças Armadas para levar adiante uma “revolução” que só existe na cabeça de malucos nos quais o entorno do presidente presta muita atenção. Talvez entendam que vociferar contra o STF nada vai produzir de prático, a não ser dar tempo para alternativas políticas “de centro” (que podem incluir facilmente o Centrão) se articularem e solidificarem.
Em outras palavras, ninguém tem forças para vencer ninguém. As crises econômicas e de saúde demonstraram fartamente a “necessidade da convergência” à qual o general Mourão se refere, mas também como diminui o espaço político para essa convergência. O maior efeito da demonstração da crise está, porém, em outro aspecto.
Para a tal “necessária convergência” precisa-se de liderança. Quem?
Vera Magalhães: ‘Não consigo respirar’
Protestos agregam convulsão social a uma crise sem paralelo
A reação ao assassinato, pela polícia de Minneapolis, do ex-segurança George Floyd, em 25 de maio, foi o estopim para a eclosão de manifestações que se espalharam primeiro pelos Estados Unidos, mas que começam a ganhar o mundo, contra o racismo e o fascismo.
Não é a primeira vez que o mundo assiste a movimentos de rua combinados, que vão ganhando corpo e agregando insatisfações sociais e políticas antes latentes. Aconteceu em 1968. Mais recentemente, ocorreu em 2013, no Brasil e também em diversos países. No ano passado, protestos varreram diversos países da América Latina.
E agora? O que o movimento racial dos Estados Unidos e os ainda localizados, mas inquietantes, confrontos no Brasil entre bolsonaristas e oposicionistas têm de inédito? O óbvio: são movimentos que, para além do chavão “começaram pacíficos, mas descambaram para a violência”, ocorrem em meio à maior pandemia em mais de um século. E isso não é um detalhe desprezível.
No momento em que a França, por exemplo, começa a ensaiar uma reabertura para o turismo e outras atividades econômicas, Paris se viu com as ruas apinhadas de pessoas protestando também contra a violência policial contra negros.
Os Estados Unidos e o Brasil nem chegaram ainda a sair da quarentena, que tanto lá quanto cá se dá de forma irregular, desordenada e tumultuada por presidentes ciclotímicos e desinteressados no combate efetivo ao coronavírus.
Não são os únicos traços em comum das novas jornadas de junho, cuja dimensão ainda somos incapazes de prever. Se em 2013 os motivos iniciais podiam parecer frívolos, agora já se parte de questões que, para dar significado universal à frase repetida por Floyd para o policial branco que o asfixiou, impedem a sociedade de respirar.
Racismo, surgimento de um neofascismo que incorpora elementos de supremacia racial e autoritarismo político, tudo turbinado pelas redes sociais, um mundo assolado por mortes e devastação econômica e um futuro que ninguém ousa desenhar são componentes capazes de fazer a revolta social escalar a níveis nem ensaiados há sete anos, ou mais recentemente.
A Terra está em transe. Governantes desprovidos de empatia social e compreensão de seu dever, como Jair Bolsonaro e Donald Trump, encaram momentos cruciais como esses da história da humanidade como oportunidades vulgares para fotos, seja desengonçado em cima de um cavalo, como o nosso, ou portando uma Bíblia com a qual não tem nenhuma intimidade, como no do “amigo” artificialmente tingido.
O de cá copia o de lá, a ponto de receber de bom grado, com reverência tacanha, carregamentos rejeitados de cloroquina do primo ab(e)astado que se cansou antes de insistir num tratamento ineficaz.
A força das imagens de pessoas indo às ruas contrariando o necessário distanciamento social mostra o quanto governos são estéreis para conduzir nações nessa crise inédita. É uma pandemia, como já houve outras até mais letais, mas ela chega num mundo hiperpovoado, marcado por diferenças sociais, econômicas e culturais brutais e incapaz de uma governança solidária, algo que garantiu o caminho em outros momentos-chave da História, como os pós-guerras mundiais.
A Terra pode ser uma visão emocionante quando observada, em toda a sua circunferência, pelas lentes de um foguete que busca o infinito, como nós, quarentenados de todo o mundo, vimos no último fim de semana no lançamento do Falcon 9.
Mas, assolada pela peste, pela iniquidade e pela mediocridade de alguns dos seus principais líderes, é um planeta inóspito para os humanos de 2020, que não hesitam em encarar até o vírus e o risco de morte para ir às ruas e poder gritar: “Não consigo respirar”.
Fabio Giambiagi: O que aconteceu com o Brasil?
Neste festival diário de agressividade, grosseria, exacerbação do conflito, não o reconheço mais
O tocante artigo Meu Brasil brasileiro, de minha amiga Elena Landau, publicado neste jornal há alguns dias (22/5), ativou em mim umas memórias que entendi que poderia ser apropriado compartilhar com os leitores. O argentino Jorge Luis Borges, um europeísta assumido, tinha uma frase deliciosa acerca de si mesmo: “Soy un europeo nacido en el exilio”. Essa foi, muito modestamente, por analogia, minha sensação acerca do Brasil. Pela minha história, filho de pais argentinos, tendo nascido no Brasil e ido morar em Buenos Aires aos 10 meses de idade, eu era “um argentino nascido no Rio”.
Quando vim para o Brasil, na adolescência, eu o fiz deixando para trás lembranças associadas àquela época sangrenta da Argentina, uma das mais marcantes sendo a do sumiço de um primo distante. Ele engrossara a lista dos “desaparecidos” e, como quase todos nela, nunca mais voltou ao mundo dos vivos. Ao se esvair no ar, ele deixou a esposa – minha prima – grávida.
O pai – agora falecido – dessa minha prima era um prestigioso cardiologista, que trabalhava no Hospital Militar de Buenos Aires. Eram tempos terríveis e ele convivia com a suspeita de que, provavelmente, em algum momento deve ter tido como paciente um dos assassinos do seu genro.
Vivendo minha prima, após o desaparecimento do marido, na incerteza do que Alencar Furtado, em discurso famoso no Brasil, qualificara como as “viúvas do quem sabe se talvez”, o pai dela, querendo que a filha pudesse reconstituir a sua vida e já com o neto no mundo, ativou contatos chave e solicitou uma entrevista com o comandante de um dos principais comandos militares. Deste, dizia-se, emanavam as decisões acerca de quem poderia ser considerado preso oficial e quem estava destinado a algum dos temíveis “voos da morte”, que despejavam os cadáveres dos “desaparecidos” no Rio da Prata.
O comandante recebeu-o e disse então a frase que, ouvida no relato do pai da minha prima, nunca mais me saiu da memória e reapareceu algumas vezes nos meus pesadelos da juventude: “Doctor, está usted hablando con la persona justa. Yo soy el administrador de la muerte”. Essa era a Argentina da qual minha família escapou no já longínquo ano de 1976.
Corta para o Brasil da mesma época. Só soube do episódio que vou relatar há poucos anos, mas ele aconteceu naquela época e reflete com precisão o contraste da situação dos dois países.
No tempo dos militares, no Brasil, existia a “linha dura” e o que esta chamava de “melancias” (verdes por fora, vermelhas por dentro), na visão de quem todo aquele que não aderisse ao credo mais radical era considerado “comunista”. Em meados dos anos 1970, a cúpula do PCdoB havia sido dizimada, num evento que tinha deixado sequelas negativas para o governo. Depois disso, um político, importante liderança civil do governo Geisel, recebeu a visita de um desses representantes da “linha dura”. Sem meias palavras, este lhe disse o seguinte: “Nós sabemos que você conhece o pessoal do Partidão. Pois bem, eles vão realizar um encontro de cúpula mês que vem. Eles não sabem que nós sabemos, mas nós sabemos. Se esse encontro ocorrer, não vai ter jeito: eles vão ser mortos. E nós não queremos isso. Portanto, peço-lhe um favor: transmita essa informação a eles, para que esse encontro não ocorra”.
Esse líder civil do governo militar entrou em contato com emissários do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi pessoalmente se encontrar dias depois, numa igreja de Brasília, com um representante pessoal de Giocondo Dias, o líder do partido na ausência de Luiz Carlos Prestes, então no exílio. Cada um se ajoelhou para rezar, a certa distância um do outro para não ser algo óbvio, e foi então que esse deputado, liberal das antigas, como Sobral Pinto, transmitiu o recado. O encontro não se realizou e a vida dos membros do Comitê Central do Partido Comunista foi poupada.
Muitos anos depois, já adoentado, ambos idosos, Giocondo Dias tocou a campainha do apartamento daquele político da Arena. Sua mensagem: “Venho lhe agradecer por ter salvado a minha vida nos anos 70”. Sempre que conto a história me emociono.
Costumo dizer, pela experiência de vida que já expliquei acima, que não sou apenas brasileiro: eu virei brasileiro. Sendo o país onde nasci um desconhecido para mim até os 14 anos, foi a terra que acolheu a mim e minha família. Por contraste com o inferno da Argentina daquela época, o País pelo qual nos encantamos é o retratado nessa bela história que relatei acima: uma terra de nuances, de sensibilidade, de humanidade, de sentimentos nobres e de afeto. O país em que, mesmo num governo autoritário, a “turma” mais dura tentava mitigar os conflitos e havia algum respeito pela diferença, cuidados a tomar, diálogo e certa classe.
Hoje, neste festival diário a que assistimos no noticiário, que mistura agressividade, grosseria, falta total de empatia e a exacerbação do conflito, não reconheço mais o País que nos recebeu. Quatro décadas e meia depois daquela época, a pergunta que não quer calar é: o que aconteceu com o Brasil?
*Economista
Marco Aurélio Nogueira: Pessimismo paralisante da sociedade civil se rompeu
As ruas não são mais território exclusivo dos apoiadores do presidente. As manifestações do último domingo, puxadas por torcidas organizadas de futebol, a começar da Gaviões da Fiel, inauguraram uma nova fase na vida política nacional. Representam a ampliação da resistência ao bolsonarismo e do isolamento do presidente, que se vê cada vez mais enfurnado em Brasília.
As manifestações não tiveram densidade de massa. O isolamento social impediu. A batalha é desigual, porque os negacionistas não conhecem barreiras sanitárias e contam com o apoio simbólico do governo, recursos logísticos e mensagens do gabinete do ódio.
Paralelamente, passaram a circular manifestos endossados por centenas de milhares de cidadãos, intelectuais e artistas. Diferentes setores da sociedade civil somam sua voz à dos ministros do STF, os grandes jornais estampam diariamente sua indignação, surgem movimentos inéditos de aproximação entre partidos até há pouco separados por divergências complicadas. Tudo mostra que o diálogo e a reunião dos democratas parecem ter encontrado um desaguadouro promissor.
O quadro ainda é impreciso. Não há nele uma via de mão única. O bolsonarismo continua vivo. Bem ou mal, ocupa o poder federal, onde acamparam segmentos das Forças Armadas que lhe têm fornecido respaldo e batem continência para o capitão. O governo tem buscado erguer no Congresso Nacional uma base de sustentação, preocupado com sua sobrevivência. O apetite guloso do Centrão, com seus próceres desprovidos de maior dignidade ou respeito constitucional, alimenta o governo mas também o impede de funcionar.
Há muito combustível para a expansão do protesto cívico e o reagrupamento dos democratas.
Começou a se romper o pessimismo paralisante em que a sociedade civil se encontrava. O cerco ao autoritarismo avança. Não é um trabalho simples. Ele requer combatividade e paciência, metas claras e apoios, ligação entre a defesa da vida, a recuperação da economia e o reforço da democracia.
*É professor titular de teoria política da Unesp
Ana Carla Abrão: Rastro e risco
Milhares de vidas foram poupadas graças às medidas de isolamento social
O governo do Estado de São Paulo divulgou, na última quarta-feira, o plano de modulação da quarentena no Estado. O Plano São Paulo, anunciado pelo governador João Doria, estabelece cinco faixas de risco nas quais estarão classificadas todas as regiões do Estado. Dado que o vírus não respeita fronteiras municipais ou de regiões administrativas, aqui região equivale a “região de saúde”. Busca-se assim compatibilizar a flexibilização das medidas de isolamento – e o consequente impacto delas – com a capacidade de distribuição de recursos e infraestrutura instalada de saúde administradas pelo governo estadual.
O plano se assenta em cinco pilares. O primeiro deles se baseia em indicadores que medem as duas preocupações fundamentais nessa pandemia: a capacidade de oferecer atendimento à população que chega às enfermarias e, principalmente, às UTIs disponíveis no Estado, e o ritmo de evolução da contaminação. A ideia é equilibrar, em cada região, os recursos hospitalares disponíveis com o estágio da epidemia. A visão regional é, portanto, o segundo pilar, refletindo a heterogeneidade da epidemia no Estado.
Capacidade ociosa e contaminação descontrolada significam que a região não pode evoluir na direção da flexibilização e pode também significar volta das restrições ao funcionamento de setores previamente liberados. Vale também o vice-versa: contaminação controlada com sistema de saúde pressionado também indica que a flexibilização precisa de mais tempo para acontecer, ou será necessário retornar aos níveis anteriores (elevados) de isolamento social.
A partir daí, as regiões são classificadas em diferentes faixas de risco e avança-se nas duas dimensões seguintes: (i) definição dos setores a serem reabertos em cada faixa e (ii) protocolos a serem seguidos. Aqui foram usados critérios de impacto setorial da epidemia, baseados em produto e emprego e também em risco ocupacional de cada atividade a ser reaberta.
Tudo isso baseado em trabalho exemplar elaborado pela Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe), liderada pelo economista Eduardo Haddad, e cujas análises permitiram que pudéssemos agregar a visão econômica às restrições de saúde. Protocolos gerais e específicos levam em conta essas dimensões e visam a controlar o risco de contágio e a permitir uma reabertura mais segura. Mas terão de ser seguidos à risca. Gradualismo e controle são as palavras de ordem. Se ausentes, o caminho de volta às restrições está pavimentado, é parte do plano e será usado, conforme afirmaram o governador João Doria e o prefeito da capital, Bruno Covas, no anúncio do plano.
Mas, finalmente – e não menos importante –, há o pilar de testagem. Esse, sim, o farol de monitoramento da epidemia. A identificação e o isolamento de casos assintomáticos são o que permitem uma resposta rápida e eficaz em qualquer uma das duas direções possíveis: de continuidade no processo de flexibilização ou de volta às restrições. A ampliação na testagem – e, consequentemente, uma maior precisão nas estimativas da taxa de transmissão (Rt) – levará à melhora nas previsões da curva epidêmica e à maior capacidade de rastrear e tratar eventuais novos focos de contaminação.
Aqui, como foi no início com respiradores, máscaras e cestas básicas, o setor privado e a sociedade civil poderão fazer toda a diferença. Com grandes empresas abraçando essa causa, aderindo aos protocolos de testagem e colocando em prática uma ampla ação visando à identificação e ao isolamento de pessoas infectadas dentre os seus funcionários, poderemos avançar mais rápido e de forma mais segura.
Se, além disso, também adotarem pequenos fornecedores e empresas parceiras, inserindo-os nos seus programas de testagem, muito melhor. Se, adicionalmente, garantirmos a ampliação de programas de testagem gratuita em comunidades carentes e de trabalhadores informais, poderemos atingir volumes impensáveis de testes comparativamente à situação em que o setor público atua sozinho, com todas as limitações conhecidas.
Estamos, após quase 70 dias de quarentena no Estado de São Paulo, nos movendo na direção de uma flexibilização consciente e gradual. Ela será mais segura e numa só direção quanto maior for a nossa capacidade de administrar os riscos envolvidos numa abertura, mesmo que gradual. Houve grandes conquistas até aqui. Milhares de vidas foram poupadas graças ao sucesso das medidas de isolamento social e à ampliação e maior eficiência no atendimento de saúde no Estado e na capital.
O Plano São Paulo tem como objetivo fazer essa transição entre a fase de resposta aguda e emergencial para a fase da administração e do controle desses riscos sem botar a perder essas conquistas. Daí seus cinco pilares. Eles se refletem na identificação dos riscos, no gradualismo da abertura, na adoção dos protocolos de higiene, na heterogeneidade da epidemia e na testagem e rastreamento. Este último, que deve agora ganhar ainda mais foco, surge do entendimento de que seguir o rastro e controlar o risco sempre andaram juntos. Aqui e hoje, mais do que nunca.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.
Paulo Hartung: Democracia, valor universal
Fora das luzes democráticas, o que temos é a escuridão institucionalizada
Em meio a uma trágica pandemia, a maior catástrofe vivida pelas atuais gerações, devastadora para vidas humanas e avassaladora para o sistema produtivo, o Brasil se obriga a enfrentar outra frente desafiante: a defesa da democracia como um valor essencial para organizar a nossa sociedade. Espantosa missão, seja porque há pouco mais de três décadas saímos de uma ditadura, seja porque já temos problemas demais a superar, seja porque “estamos em pleno século 21 sendo afrontados com discursos, ameaças e situações medievais”. Inacreditável, mas terrivelmente real.
A partir de 1964, foram 21 anos de arbítrio, com censura à imprensa e às artes, exílio forçado de concidadãos, cassação de direitos políticos, desaparecidos e presos políticos, torturas e mortes nos porões da opressão, supressão de eleições, interdições a liberdades civis e políticas (opinião, reunião, organização, etc.), entre tantas tragédias urdidas nos “anos de chumbo”. Ao fim, o poder civil recebeu o País com um endividamento externo irresponsável e a economia em frangalhos.
Nos anos 1970, na universidade, entrei nos movimentos sociais em busca da retomada das liberdades em nosso país. Nesse tempo de embates e formação política, tive um aprendizado fundamental: a democracia é um valor universal a nortear as formas de conquista e exercício do poder em toda e qualquer sociedade que se queira civilizada e humanística.
Sob a Constituição de 1988, reconstruímos a democracia. Não foi um tempo perfeito, como nenhum foi ou será, até porque a política não é feita por deuses, mas por seres humanos, suscetíveis de erros e imperfeições. Mas é inegável que percorremos um período de avanços socioeconômicos, com o funcionamento do Estado Democrático de Direito e as devidas correções de rumos e penalizações de desvios, por exemplo.
Entre as conquistas, podemos citar a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a universalização do acesso à educação básica, a derrocada do flagelo da inflação e a criação do Real, a ocorrência de eleições periódicas e transparentes, com alternância de poder, os avanços nas agendas dos direitos humanos, do meio ambiente e da sustentabilidade, e uma abrangente rede de proteção social (Bolsa Família e outros).
Enfim, ainda que lidando com desafios gigantescos e mal administrando uma impositiva agenda de reformas estruturantes, mas incrementando nossa incipiente experiência democrática, o Brasil tornava-se pouco a pouco um país que jamais tinha sido, em seus mais de 500 anos de História.
Há uma agenda de ajustes? Sim! Pelo nível de suas entregas, temos uma estrutura governamental cara e ineficiente, além de atravessada por vícios de corrupção e assaltada por corporações cercadas de privilégios. Temos um País inaceitavelmente injusto, inseguro e desigual. A educação precisa se qualificar e se tornar contemporânea. A produção deve incrementar a sustentabilidade de seus processos, além de ampliar sua produtividade e competitividade. As instituições precisam se digitalizar, promovendo o reencontro do modus operandi governativo com o modus vivendi da sociedade.
É patente que, em função dessa realidade, agravada por ampliações de privilégios de grupo nas áreas pública e privada, recessão econômica e escândalos de corrupção, há uma insatisfação crescente da sociedade. Mas não há atalho para superarmos os desafios, especialmente atalhos à via democrática. O conserto disso tudo não é substituir a democracia pelo autoritarismo. Até porque os diversos períodos ditatoriais por que passamos não resolveram problemas históricos e quase sempre os agravaram.
A democracia não é um regime pronto e acabado, nem perfeito, mas é o melhor já produzido pela humanidade para organizar o exercício do poder em sociedades livres, igualitárias e fraternas. Como bem resumiu Winston Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas”.
Fora das luzes democráticas, o que temos é a escuridão institucionalizada, abrindo espaço a toda sorte de violências, perversões e injustiças que se alastram no submundo da ação política articulada em torno do obscurantismo e da deslegitimação da vontade e do poder do povo.
Como disse recentemente o ministro Luís Roberto Barroso, a “democracia não é o regime político do consenso, mas aquele em que o dissenso é legítimo, civilizado e absorvido institucionalmente”. E, neste tempo em que tanto necessitamos de lucidez, recomendou: “Precisamos de denominadores comuns e patrióticos. Pontes, e não muros. Diálogo, em vez de confronto. Razão pública no lugar das paixões extremadas. (…) Precisamos armar o povo com educação, cultura e ciência”.
Que a sociedade, a partir do entendimento e mobilização de todas as suas forças vivas, sustente a democracia como um valor central ao Brasil. Que sejamos capazes de superar este tempo excepcionalmente difícil como uma nação livre e plural e, assim, apta a transformar em plena realidade as nossas potencialidades de justiça social e prosperidade compartilhada.
*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos Pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
Eliane Cantanhêde: Inteligência? Que nada!
Ao exigir relatórios, Bolsonaro não visa dados estratégicos, mas sim de aliados e adversários
O presidente Jair Bolsonaro recebeu um relatório do Exército e outro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) mostrando com gráficos, curvas epidemiológicas e estudos científicos que o isolamento social era, como é, a forma mais eficaz de conter a disseminação e as mortes pela covid-19. O que ele fez? Deixou para lá, se é que não jogou no lixo, junto com as orientações da OMS e as pesquisas sérias sobre a cloroquina.
Isso confirma que, ao contrário do que disse na reunião de 22 de abril, o presidente não está preocupado com a qualidade dos relatórios de inteligência da Polícia Federal, dos órgãos de informações de Exército, Marinha e Aeronáutica e da própria Abin. Na verdade, ele não dá a menor bola para eles.
O importante, para Bolsonaro, não é ter relatórios de inteligência, e de técnicos inteligentes, para refletir, tomar decisões e governar. Ele só quer informes que confirmem o que ele acha – como no caso do isolamento social – e que avisem direitinho se alguém está se metendo com sua família, amigos e aliados. Não é questão de inteligência, é de interesse.
Para que Bolsonaro precisaria da Abin (órgão de assessoramento direto da Presidência), se ele tem todas as certezas? Quando os relatórios da Abin e das Forças Armadas chegam, ele já foi emprenhado pelos ouvidos por filhos, gurus, empresários que financiam fake news contra instituições e por puxa-sacos variados que pululam à sua volta – como de qualquer presidente.
“Se os fatos não correspondem à versão, danem-se os fatos.” Se os dados não correspondem à vontade do presidente, danem-se também. E assim vai-se vivendo, e morrendo, com Bolsonaro jogando relatórios fora, indo a aglomerações golpistas, exibindo-se em helicópteros, jet skis e cavalos, com meio milhão de infectados, 30 mil mortos e uns malucos replicando a macabra Ku Klux Klan na porta do STF.
É chocante, mas não é novidade a guerra de Bolsonaro com ciência, estatística, pesquisas, estudos internacionais e racionalidade, para prestigiar achismos, teorias e maluquices em nome de uma ideologia que ninguém entende direito, mas em torno de 30% de brasileiros seguem obtusamente. O passado condena. E se repete o tempo todo. Desde a campanha, por exemplo, o presidente desconfiava de pesquisas e das urnas eletrônicas e depois até já acusou, sem mostrar qualquer prova, que a própria eleição foi fraudada. É inédito que seja o vencedor a denunciar fraude.
O cientista Ricardo Galvão foi demitido do Inpe porque os dados sobre desmatamento da Amazônia (como os da Abin sobre isolamento) diferiam do que o presidente exigia. Novos estudos confirmaram os de Galvão, o desmatamento em abril foi o maior em dez anos e a destruição da Mata Atlântica também só aumenta. Aliás, com o ministro Ricardo Salles aproveitando a “distração” com a pandemia para passar boiadas, as coisas podem piorar muito.
Assim, dados científicos de Saúde, Ambiente e Educação não valem. Bolsonaro não quer, nem tem paciência, para estudos sobre temas nacionais e estratégia. Ao acusá-lo de querer interferência política na PF e acesso direto aos relatórios de inteligência, o ex-ministro Sérgio Moro se refere a dados que possam ter uso político contra familiares e aliados, como “10 a 12 deputados do PSL”, ou de espionagem contra adversários. (Na mesma cesta, podem estar o Coaf e a Receita.)
Ah! Na segunda, o presidente criticou as posições de Moro contra o aumento de posse e porte de armas e a favor de medidas duras contra contaminados pela covid-19 que pusessem pessoas em risco deliberadamente. Nos dois casos, Moro se pautou em dados científicos e estatísticas. Mas errou. Não era inteligência que o chefe esperava dele, da PF, da Abin…
Carlos Pereira: O homem que fala demais
Bolsonaro arrisca os limites institucionais, pois precisa blefar para alimentar seu núcleo duro
A atual composição do Supremo Tribunal Federal é fruto de indicações de seis diferentes presidentes. Este processo gerou uma Corte composta de preferências políticas e ideológicas muito distintas. Apesar dessas diferenças, percebe-se que as últimas decisões da Suprema Corte têm mostrado uma unidade incomum entre seus onze membros, especialmente em se tratando de um plenário tão diverso. Será que as heterogeneidades ideológicas e políticas entre seus membros foram diluídas?
As decisões unânimes da Suprema Corte podem estar diretamente relacionadas com os discursos e ações belicosas do presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores mais fiéis, que têm confrontado de forma polarizada e plebiscitária as instituições democráticas, em especial o próprio Supremo, mas também o Congresso Nacional.
Precisou que o Supremo “pagasse para ver” ao demonstrar seu compromisso firme com a democracia, por meio de decisões consistentemente unânimes e contrárias às preferências do presidente, para que, mesmo timidamente, os céticos e temerosos com a solidez das instituições democráticas brasileiras percebessem que as ameaças autoritárias do presidente Bolsonaro não passam de um blefe.
Se as chances de sucesso da estratégia de confronto com as instituições democráticas são praticamente nulas, por que de Bolsonaro não apenas insiste em utilizá-la, mas também o faz de forma cada vez mais virulenta e ameaçadora?
Bolsonaro blefa porque essa é a uma das poucas armas, talvez a única, que populistas plebiscitários, como ele, dispõem para continuar alimentando seus vínculos políticos e identitários com seu núcleo duro de eleitores. Bolsonaro, na realidade, encontra-se encurralado e, consequentemente, necessita não apenas de conexões identitárias polarizadas, mas da sua utilização com intensidade e frequência cada vez mais alta.
Quando Bolsonaro decidiu governar de forma minoritária, rejeitando a necessidade de construir coalizões legislativas estáveis, ficou cada vez mais dependente destas conexões diretas com seus eleitores para sobreviver, especialmente a partir de apelos de perfil fortemente identitário que funcionam como atalhos cognitivos de proteção para os membros do grupo.
A má gerência da pandemia do novo coronavírus e os riscos decorrentes das investigações em curso pela Polícia Federal e dos inquéritos no Supremo obrigaram Bolsonaro a fazer importantes inflexões no seu governo contrárias aos compromissos assumidos com seus eleitores. A montagem de uma coalizão de sobrevivência com os partidos do Centrão e a intervenção na Polícia Federal, que culminou com a saída de Sérgio Moro, são exemplos que corromperam alguns dos pilares centrais que nutriam as conexões identitárias com seus eleitores.
Sob risco de ver erodir ainda mais as suas conexões identitárias e observar seus eleitores mais fiéis também se desgarrarem, Bolsonaro não pode se dar ao luxo de simplesmente parar de falar. Precisa do confronto polarizado para continuar a existir politicamente.
O presidente, portanto, enfrenta um dilema de difícil solução. Tem que manter seu núcleo duro firme e coeso por meio de apelos identitários cada vez mais inflamados e com alguma coerência, mas, ao mesmo tempo, não pode cruzar os limites institucionais que venham a colocar em risco o seu próprio mandato. Ou seja, precisa dar a impressão que vai para os extremos, mesmo que ele saiba que não pode fazer isso, pois o desfecho final será certamente desfavorável a ele mesmo.
Eliane Cantanhêde: A boa notícia
Há resistência, senso de dever e responsabilidade. O Brasil nunca será uma Venezuela
Para quem imagina, ou teme, que tudo está perdido, eis a boa notícia: as instituições e os setores responsáveis da sociedade se movem contra a escalada que vai de impropérios imbecis a ameaças perigosas. Não há reuniões secretas pela madrugada, apenas a velha e boa troca de impressões, informações e perplexidade, à luz do dia. Em plena pandemia, todos conversam freneticamente e há uma saudável resistência democrática no País.
O primeiro passo é contar a verdade, desmontar a versão de que o presidente Jair Bolsonaro é a vítima e que os palavrões e absurdos de 22 de abril foram “desabafo” de um homem perseguido com sua família, amigos e aliados. Afinal, quem ameaça quem? Quem ataca e quem é vítima? Quem precisa de um “basta, pô!”? Certamente, quem faz discurso em atos que se apropriam das cores e símbolos nacionais, com o QG do Exército ao fundo, para atacar a democracia e a ordem constituída.
E não é de hoje. Quem disse que “basta um soldado e um cabo para fechar o Supremo”? Faz apologia de “rupturas”? Comanda o “gabinete de ódio”? Insiste em intervir em PF, Coaf, Receita? Desafia até protocolos universais de saúde em atos contra o Legislativo e o Judiciário?
O senso de dever e responsabilidade uniu os desiguais do Supremo, pôs as cúpulas do Congresso e de partidos de barbas de molho, mexeu com o instinto democrático da mídia, reanimou velhas associações de belo passado e presente inerte e a até a discreta Sociedade Brasileira de Psiquiatria deu um grito pela democracia. A Igreja Católica anda mais quieta do que a história exige, mas as entidades judaicas acusam indignação com o uso de Israel em vão. Cresce a consciência do que se passa no País, cresce a resistência.
As Forças Armadas não passam ao largo disso. Nelas pululam dúvidas, discordâncias, o temor de quebra de uma imagem exemplar. Em nome do que? Do falso dilema entre defender Bolsonaro dos próprios fantasmas ou ser devoradas por dragões comunistas imaginários que estão sob cada cama, ministério, instituição? Louve-se o silêncio dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica. O general Augusto Heleno tentou consertar sua frase sobre “consequências imprevisíveis” e o vice Hamilton Mourão descartou golpes e aventuras militares com desprezo, ironia.
No artigo “O militar surtou”, no Estadão, Manuel Domingos Neto, ex-vice-presidente do CNPq e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), lembra a presença decisiva das FA na engenharia, topografia, desenho, infraestrutura, artes, ciência, história, matemática, veterinária, logística, aeronáutica. E provoca: para hoje os militares se imiscuírem com terraplanistas, criacionistas, inimigos da razão? Contra a ciência e as pesquisas? Artigos assim servem de boia para militares que querem distância de fake news e golpes.
O mais objetivamente grave da reunião de 22 de abril foi o presidente encarnar Hugo Chávez: “Eu quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado”. Não é bravata. Partiu de quem já condecorou e empregou familiares de líder de milícias, derrubou portarias do Exército sobre armas e multiplicou munições nas ruas, enquanto mete as polícias no bolso. Como ficam as FA se milicianos armados tentarem invadir o Supremo, as polícias lavarem as mãos e o circo da democracia pegar fogo? É melhor prevenir do que remediar.
Em 31/03/2019, no texto “Construir, não destruir”, descrevi o que há de comum entre os projetos do capitão Bolsonaro e do coronel Chávez de alimentar as milícias e espancar Judiciário, Legislativo e mídia para instalar suas crenças e delírios de poder. O Brasil, porém, jamais será uma Venezuela. Nem pela direita, nem pela esquerda. Há resistência e é à luz do dia.
Vera Magalhães: O que falta é coragem
Safra de líderes políticos tíbios e pautados pelas redes sociais agrava nosso pesadelo
Da internet vieste, à internet voltarás. Esse parece ser o pesadelo que assola os atuais líderes políticos brasileiros, de todos os partidos, em todas as instâncias. Aqueles que os eleitores colocaram em postos de comando sem saber que dali a poucos anos seríamos assolados por uma pandemia.
Do presidente ao vereador, os incumbidos de tomar decisões que definirão se sairemos antes ou depois desse pesadelo, com mais ou menos mortes e no fundo ou a meio caminho dele no poço econômico, todos pautam suas ações pela repercussão nas redes sociais, por um cálculo mesquinho de perdas e ganhos políticos e por pouca ou nenhuma ciência, o que explica que estejamos no pior dos mundos sob todos os ângulos.
A covardia é um dos atributos que mais contribuem para a maneira tresloucada com que Jair Bolsonaro investe contra as instituições, o bom senso e a saúde pública. Trata-se de um Forrest Gump, aquele personagem que chegou lá por acaso. Estava passando no momento exato da História em que a corrupção desbragada cometida pelo lulopetismo levou uma parcela da sociedade a um surto de eleger qualquer coisa menos um petista.
Bolsonaro sabe que se não fossem o petrolão, as redes sociais e a facada que levou em 6 de setembro de 2018 jamais chegaria à Presidência da República com seu clã da rachadinha, seus amigos milicianos, seu passado desairoso no Exército e na Câmara, sua absoluta falta de ideias sobre qualquer coisa, seu time de ressentidos vingativos e seu saco de gato ideológico que junta tudo de mais atrasado que existe em termos de teorias da conspiração disponíveis no mundo.
Por isso vê inimigos em toda parte e, quando colocado diante de um desafio concreto que o obriga a governar, não tem a menor ideia de o que fazer. Aí faz o que sabe: cria encrenca, cria fantasias – que podem ser nióbio, pílula do câncer, mamadeira de piroca ou cloroquina, ao sabor do momento – e sai atrapalhando qualquer esforço de conduzir o navio para longe do iceberg.
Deputados, senadores, governadores e prefeitos, eleitos na mesma onda de pane coletiva da razão, olham para um presidente desgovernado e agem entre a omissão e uma crítica medrosa.
Pior: muitos deles acabam cedendo aos mesmos critérios anticientíficos e irrazoáveis para lidar com a pandemia. Não há outra explicação a não ser capitulação à pressão do próprio Bolsonaro, de empresários e de prefeitos para o governador de São Paulo, João Doria, que vinha adotando um discurso de que pautaria suas ações pela ciência e por dados, ter tomado uma medida tão desastrosa quanto anunciar a abertura da economia a partir desta semana, inclusive na capital, quando está morrendo mais gente do que nunca e os hospitais vão colapsar. Faltou coragem de persistir na linha que ele mesmo traçou, e o desvio de rota pode custar muito mais caro.
E os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre? São espectadores robustos de um espetáculo diário de diminuição do tamanho do Parlamento, enquanto se limitam a notas de repúdio descoladas da gravidade do momento.
Se os eleitos estão atados à própria covardia, resta o Judiciário, que tem agido. Como o rol dos pusilânimes inclui também o procurador-geral da República, Augusto Aras, que dorme e acorda sonhando com uma vaga no Supremo, cabe à corte tentar impor freios à barbárie e ao contrassenso. O problema é que há meios legítimos e outros questionáveis para que o tribunal exerça esse seu papel de freios e contrapesos.
Diante dessa balbúrdia institucional, o melhor para o brasileiro é continuar em casa o quanto puder, porque se depender de seus homens públicos não há segurança para sair na rua sem saber se vamos ser assolados pelo vírus ou por um golpe de Estado. Ou por ambos.
Eros Roberto Grau: A tripartição dos Poderes e a democracia
Qualquer insurgência contra o STF é afronta à ordem e à paz social, prenuncia autoritarismo
Os momentos que estamos a viver cá no Brasil, a Terra da Santa Cruz, levam-me a breve reflexão em torno do tema da separação entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Separação resultante de tripartição de um todo. Todo que, no entanto, não pode ser despedaçado, pois o Estado é um só, a chamada separação dos Poderes prestando-se unicamente a permitir que atue em plena coerência com os princípios e regras da democracia.
A pequena frase de Charles de Gaulle tudo diz: a autoridade do Estado é indivisível! Antes dele, Hegel, ao afirmar que o Estado distribui sua atividade entre vários Poderes, porém de modo que cada um deles seja, em si mesmo, uma porção da totalidade, de um todo único. O Estado é uma totalidade. Quando se fala da diversidade de eficácia dos Poderes, de sua ação e sua eficiência – diz ele –, é necessário não incorrermos no erro de considerar as coisas como se cada Poder estivesse lá abstratamente, por si próprio. Os três são momentos do conceito de Estado. É primorosa a lição de Carlos Maximiliano ao afirmar que – como no corpo do homem – no Estado não há isolamento de órgãos, mas especialização de funções.
Permito-me ir além, recorrendo ao que Kelsen ensina: o que se refere sob o nome de “poder estatal” é a validez de uma ordem jurídica. Daí que a ideia de uma partição dessa validez é absurda, a suposição do funcionamento isolado de três Poderes sendo insustentável. Não é possível supormos que essa trindade – Legislativo, Executivo e Judiciário – não constitua uma unidade.
A organização estatal em funções torna viável, aprimorando-o, seu funcionamento. O Legislativo produz as leis, o Executivo as aplica e o Judiciário decide. Todos como que vestem um manto de autoridade não porque detenham poderes. Autoridade é o saber o que se deve fazer, serenamente. Os romanos chamavam-na de auctoritas. Por isso todos nós a eles devemos respeito e acatamento. Uma das tarefas primordiais do Estado moderno é a produção de uma ordem jurídica que garanta certeza e segurança jurídicas. Sem elas não haverá como vivermos em liberdade.
Ontem interrompi o que até este ponto vinha escrevendo e agora, 24 de maio, leio no Estadão das minhas manhãs a primeira das Notas & Informações, O Estado paralelo de Bolsonaro. Lá estão afirmados pontos que tenho como extremamente relevantes, incluído o de que, em reunião no mês de abril, ministros defenderam a prisão de magistrados que, em obediência à Constituição, tomaram decisões contra o governo. Mais, investiram contra atos de prefeitos e governadores que, seguindo recomendações de autoridades de saúde, impuseram quarentena contra a pandemia de covid-19. Delinquentes seriam os que respeitam a lei e o bom senso, o que resulta da concepção de que este ou aquele dos três Poderes não seria de todo conformado pela Constituição. Um deles, o Executivo – pasmem! – estaria acima de tudo e de todos! O que, na ponta de tudo, conduz à criação de um Estado paralelo ao Brasil que cá está onde estamos. Estado paralelo que investe contra isso e aquilo, até mesmo contra governadores que impõem quarentena em defesa da vida e ministros do Supremo Tribunal Federal.
Ainda que tudo o que desejava afirmar em defesa do Estado Democrático de Direito lá esteja, na primeira das Notas & Informações da edição de 24 de maio do Estadão, enquanto e como membro aposentado do Poder Judiciário insisto em que, se pretendermos viver honestamente, contribuindo para o bem de todos, será indispensável acatarmos, com dignidade, suas decisões. Não porque elas façam justiça. Pois é certo que, como dizia Kelsen e tenho reiteradamente repetido, a justiça absoluta só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus. Temos de nos contentar, na Terra, com alguma justiça simplesmente relativa, que deve ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada. Os juízes são servos da Constituição e das leis, servos de um sistema de normas jurídicas que se presta a assegurar um mínimo de calculabilidade e previsibilidade na prática das relações sociais.
Qualquer insurgência contra essa face do Estado que o Supremo Tribunal Federal é afronta a ordem e a paz social, prenuncia vocação de autoritarismo, questiona a democracia, desmente-a, pretende golpeá-la. Por isso é necessário afirmarmos, em alto e bom som, o quanto de respeito e acatamento devemos ao Poder Judiciário e em especial, hoje e sempre, ao Supremo Tribunal Federal. Sobretudo porque – repito – ele não surpreende por sua independência. O Estado é indivisível.
A soberania popular, força que o constitui, permite apenas que ele distribua dentro de si as suas funções. Por conta disso quaisquer ações deste ou daquele dos três Poderes, avançando sobre outro, afronta não apenas sua tripartição, mas a democracia. Ao fim de tudo, se chegarem aonde pretendem, seremos vistos como pobres, tristes, coitados habitantes da Terra da Cruz!
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do Supremo Tribunal Federal