o estado de s paulo

Eliane Cantanhêde: Me engana que eu gosto

Bolsonaro esconde números, mas Trump conta ao mundo o fracasso do Brasil na pandemia

Além de negar a pandemia, o presidente Jair Bolsonaro quer esconder os balanços de mortos, contaminados e recuperados, achincalhando o Ministério da Saúde. Demitiu um ministro, expeliu outro, nomeou um general intendente como interino, descartou o isolamento, empurrou a cloroquina garganta abaixo de médicos e especialistas e agora isso: sonegar os números.

Pois vamos a eles: são mais de 35 mil mortos (35 mil!) e quase 650 mil contaminados (650 mil!), numa expansão macabra, fora de controle. O presidente dá de ombros para os mortos – “E daí?” – e os governadores relaxam atabalhoadamente o isolamento para abrir lojas e serviços na pior hora. Logo, vai piorar.

O “amigão” Donald Trump fala mais uma vez do fracasso brasileiro e informa ao mundo que os EUA teriam não 108 mil, mas até 2,5 milhões de mortos, se tivessem agido como o Brasil e a Suécia – país, aliás, que Bolsonaro citou como referência no combate à pandemia, contra o isolamento, com tudo aberto, e hoje é um exemplo mundial de derrota.

Assim, o Brasil divide o pódio de mortos: EUA em primeiro lugar, Reino Unido em segundo, Brasil em terceiro, perto de chegar ao segundo. O que os três têm em comum? O negacionismo de Trump, Boris Johnson e Bolsonaro. Com uma diferença, literalmente, vital: Trump e Johnson (que pegou a covid-19) ridicularizaram e negaram, mas voltaram atrás, enquanto Bolsonaro continua obstinadamente negacionista.

A pandemia mata inclemente, mas o presidente só pensa e age numa direção: a política. Para salvar seu mandato e armar sua reeleição, com o cerco se fechando no Supremo (PF e fakenews, que pode chegar ao “gabinete do ódio”), no Congresso (CPMI das fakenews e 30 pedidos de impeachment) e TSE (oito ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão). O temor do Planalto é que elas afunilem e um pressione o outro. Uma rede, uma máquina do mal.

O que o presidente não entende é que essas ações isoladas só terão chance se confluir para um movimento único contra seu mandato com um empurrão decisivo: o total fracasso pessoal dele na condução – e percepção – do coronavírus, com efeito na economia, nas empresas, nos empregos e, portanto, na estabilidade social. O destino de Bolsonaro não depende das cinco frentes de investigações e, sim, como seus erros gritantes vão potencializá-las.

De jet-ski, helicóptero ou a cavalo, brincando de tiro ao alvo e animando shows antidemocráticos sem usar máscara, Bolsonaro não governa o País, não dá uma palavra sobre o combate ao vírus, nem sobre a economia, nem sobre a articulação federativa. É o oposto. Quando abre a boca sobre a pandemia, reclama da “histeria” e diz “e daí?”, “é o destino de todo mundo”. Sobre a economia, ou joga para Paulo Guedes (que submergiu) ou culpa os governadores, “esses m….”, “bostas” e “estrumes”, capazes de fazer tudo isso só para prejudicá-lo. Uma confusão mental.

Diante das condições adversas, Bolsonaro corre para setores católicos (com verbas de mídia), consolida o apoio evangélico (com uma forcinha da Receita), dá aumento para as polícias e centenas de cargos para o Centrão. Pela mesma janela que a Lava Jato saiu com Sérgio Moro, entram os alvos da Lava Jato com Roberto Jefferson, Valdemar da Costa Neto, Arthur Lira.

Não há pesquisa sobre a “posição das Forças Armadas”, mas a cúpula do Exército abre canais com Judiciário e Legislativo, enquanto milhares de oficiais fecham olhos e ouvidos para os absurdos de Bolsonaro e dividem alegremente os nacos de poder com o Centrão. O discurso para defender o indefensável na pandemia, na economia e na política ainda é a esquerda e o liberalismo de costumes. Mas é só pretexto. No fundo, o toma-lá-dá-cá é uma delícia, tentador. Me engana que eu gosto.


Vera Magalhães: Domingo, o dia D

Bolsonaro busca pretexto para golpe enquanto comete crimes em série

A questão atual não é se Jair Bolsonaro cometeu ou não crimes de responsabilidade desde que resolveu rasgar a fantasia de democrata ainda em janeiro, mas notadamente a partir do início da pandemia do novo coronavírus.

É notório que o presidente da República usa a crise de saúde e econômica para afrontar os demais Poderes, avacalhar as instituições, avançar em seu projeto armamentista e de cooptação das Forças Armadas e das polícias militares para defendê-lo das tentativas de contenção constitucional dos demais Poderes.

A cada fim de semana, o Brasil agrava seu estado de anomia, caminhando de forma perigosa, sob o beneplácito de muitos dos que teriam obrigação legal de agir, para algo próximo de uma ruptura. Este domingo pode fornecer o pretexto que o presidente busca, mas não é este o único risco colocado diante de uma nação perplexa, apavorada e, em grande medida, ainda inerte.

Na última semana, o presidente resolveu incluir outro crime no rol dos que já cometeu: atentado à saúde pública. Diz o artigo 267 do Código Penal que é crime contra a saúde pública causar uma epidemia. Isso pode se dar por ação ou omissão, e ao verbo “causar” pode-se incluir ações para agravar uma epidemia em curso.

Bolsonaro determinou a revisão do horário e da metodologia de divulgação de dados da covid-19. Pior: depois de efetivar um general como interino na pasta, de coalhá-la de militares e exonerar técnicos em massa e de estabelecer, por medida provisória, um “excludente de ilicitude” para ações de servidores ao longo da pandemia, pressiona pela revisão de todos os dados até agora. O site do Ministério Interino da Saúde também passou a omitir dados divulgados desde o início da crise.

Tudo isso configura atentado oficial, deliberado e com documentação contra um País que vive um pico desordenado de covid-19 enquanto seus governantes discutem uma reabertura prematura e também ela criminosa.

Para agravar o que já é uma situação-limite, neste domingo, tudo conspira para que haja confrontos entre manifestantes e que esse seja o pretexto que Bolsonaro aguarda para tentar medidas ainda mais autoritárias.

Opositores do governo, com pautas justificadas, organizam atos em várias cidades contra o racismo e o fascismo. Mas o fazem também eles ignorando a necessidade de distanciamento social e não percebendo que levar o enfrentamento do governo para esse campo é tudo que a natureza golpista e belicosa do bolsonarismo quer neste momento.

Não por outra razão o presidente e seus 300 fanáticos afrontam mais de 70% da população do País semana após semana. O que o presidente, o vice, os filhos do presidente, as milícias bolsonaristas e os deputados teleguiados querem é que haja violência que justifique tentar enquadrar grupos antigoverno na Lei Antiterrorismo, num claro movimento de cerceamento ao direito de manifestação e sem tratar com o mesmo critério aqueles que pedem intervenção militar ou fechamento do Congresso e do Supremo.

O domingo pode fornecer a desculpa que o presidente está buscando para tentar empastelar as investigações do STF, impedir que elas cheguem à Justiça Eleitoral e calar ainda mais um Congresso que já está com o rabo entre as pernas enquanto os partidos do Centrão vão às compras nas gôndolas, antes fechadas a eles, do bolsonarismo.

É preciso que os líderes dos movimentos de oposição entendam a armadilha e orientem seus seguidores a não caírem em provocações e não deem pretexto para policiais simpatizantes do presidente agirem com truculência. Os governadores também precisam comandar suas polícias efetivamente, sob pena de serem as primeiras vítimas de um golpe que, se vier, terá nas PMs a força motriz.


Marco Aurélio Nogueira: As ruas como recurso e dilema

A democracia não vive sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a sociedade, como pedir para os que se sentem afetados não se manifestarem? Há, porém, a pandemia e a correlação de forças

Como fazer manifestações presenciais – nas ruas – em plena pandemia? O vírus está vivo, em propagação ascendente, e todo contato é fonte de perigo. Manifestações aglomeram, mesmo quando feitas com organização.

Mas como pregar que as pessoas não se manifestem? É provável que muitas estejam cientes do contágio a que estarão expostas. Mesmo assim aceitam o risco, o que é meritório. Há um quê de paradoxal aqui: combate-se a crise sanitária com uma mobilização que, no limite, pode agravar a própria crise. Também ocorre que muitos manifestantes são pessoas já expostas diariamente ao vírus, para as quais ir ou não às ruas pode não fazer maior diferença em termos de segurança sanitária.

Talvez não haja outro modo de proclamar o mal-estar, a indignação, a revolta. Afinal, tem sido o próprio governo a promover tal estado de espírito coletivo. Martelando o conflito e o autoritarismo o tempo todo, Bolsonaro entrou em atrito com fatias crescentes da sociedade. Hoje, pesquisas indicam que seu apoio não passa de 30%, e é declinante. Inevitável que sempre mais gente queira ir às ruas, por a angústia para fora, sacudir o pó acumulado pelos longos meses de quarentena. É um estado de espírito que necessita de ponderação e análise circunstanciada da realidade concreta.

A democracia e a luta por ela não vivem sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a sociedade com retrocessos autoritários, como pedir para os que se sentem afetados não se manifestarem? Além disso, precisamos admitir que a política institucional não está respondendo à sua própria crise, aos abusos do governo e ao sofrimento popular. Seus setores mais “saudáveis” estão carentes de pressão e apoio.

Deste ponto de vista, as ruas podem ajudá-los.

Manifestações de rua não são a única forma de luta, certamente. Tão importante quanto elas é a articulação dos democratas e a abertura, no mundo político em sentido estrito, de fendas que propiciem a construção de melhores patamares de negociação.

Nenhuma ida às ruas é sem consequências. Mesmo que a intenção seja tão somente dar vazão a uma revolta, o ato em si tem desdobramentos. Hoje, não é difícil visualizar dois desdobramentos potenciais.

Um é a ampliação do enfraquecimento do governo, com a explicitação mais ostensiva de que ele não goza de consenso inequívoco, como o bolsonarismo vem declarando. Por esse caminho, as vozes da rua podem ecoar no campo político e incentivar a ação mais firme dos políticos, dando a ele condições de dar passos além. No terreno concreto em que nos encontramos, isso pode significar impulso para que avancem as tratativas dedicadas a formar frentes e alianças pela democracia.

Outro desdobramento é mais complicado. As ruas podem ser instrumentalizadas pelo governo. A disposição à violência pode não integrar os planos iniciais, mas simplesmente acontecer graças a provocadores, infiltrados ou não, e à exacerbação dos ânimos. Afinal, são “torcidas”. Se ocorrerem colisões com a polícia repressora ou com os bolsonaristas, as ruas podem servir de pretexto para um reforço demagógico da narrativa governamental, qual seja, a de que há “baderneiros” querendo atacá-lo e prejudicá-lo.

Neste segundo desdobramento, há quem argumente que as ruas podem facilitar a manobra golpista do bolsonarismo. É um risco real, não há como negar. E cabe, aos democratas, firmeza para dizer isso com todas as letras.

Mas será que, perante tal ameaça, as ruas também não poderão funcionar como antídoto, criar um cordão protetor da democracia? Caso consigam se organizar com um mínimo de eficiência e afastem de si as tentações maximalistas e voluntaristas, uma página será virada. Os democratas também precisam reconhecer isso, com seriedade e cautela.

O dilema das ruas está justamente na intersecção destes pontos.

Bolsonaro não tem forças para dar um golpe contra o governo democrático, ou seja, um autogolpe. Não tem maioria sustentável na sociedade e seus apoios nas Forças Armadas parecem não ser tão expressivos quanto se imagina.

Durante a corrente semana, o governo perdeu batalhas importantes. Viu crescer a tragédia da epidemia sem oferecer qualquer resposta ou demonstrar qualquer empatia. Revelou-se também que o Ministério da Saúde camufla e retarda a divulgação de dados. Ampliou-se seu desgaste entre a população. E, com as manifestações da OAB e da Câmara dos Deputados, o presidente perdeu a possibilidade de permanecer defendendo a “intervenção constitucional” das Forças Armadas.

Estamos numa encruzilhada complicadíssima. As “torcidas” estão de algum modo “empoderadas”. Há “heroísmo” de um lado. As hordas bolsonaristas são insufladas pelo presidente e pelo gabinete do ódio. O confronto será trágico, caso ocorra. Por outro lado, não há força política para interromper isso. Vozes em prol da ponderação são importantes e devem se posicionar. Podem alguma coisa, mas não podem tudo e não são ouvidas pelos ativistas. Também não têm representatividade suficiente para conclamar as pessoas a que não se manifestem fisicamente.

Falta ao país um megafone, uma liderança. Instituições como o Congresso e o STF estão cumprindo um papel decisivo, com cautela e paciência, de certo modo travando os movimentos do Poder Executivo. Mas, como instituições, seus ritos e ritmos não acompanham a insatisfação social no mesmo andamento dela. Ainda são vistos com desconfiança pela sociedade. Os partidos não dirigem nem orientam, estão a dever.

Tudo isso está necessitando de reforço: criar uma opinião democrática no âmbito da opinião pública, valorizar as instituições e trabalhar para que elas sejam compreendidas pela população.

Temos muito coisa em marcha, mas faltam-nos coesão, liderança clara, narrativa e capacidade de compreensão do que há de novo na sociedade.

Manifestos são excelentes como forma de vocalizar o grito de angústia preso na garganta. Indicam que a sociedade passou a se mexer em sentido democrático. Mas precisamos ir além da reverberação deles. A direita democrática, o centro liberal e a esquerda precisam se articular e honrar o “Basta!” que vem sendo proclamado. A hora é de unidade política. Quem não se dispuser a ela, que fique para trás.

*Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp


O Estado de S. Paulo: ‘Generais viram que proposta de Bolsonaro é a guerra civil’, diz Gabeira

Para jornalista, presidente tornou-se fator de radicalização dos militares e pode recorrer a PMs para dar um golpe

Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo

RIO – Um ano atrás, o jornalista Fernando Gabeira tinha críticas ao presidente Jair Bolsonaro, mas avaliava que as instituições eram suficientes para contê-lo, como expressou em junho de 2019 em entrevista ao Estadão, onde é colunista. Não pensa mais da mesma forma. A pregação em favor de armar a população, que o mandatário fez na reunião de 22 de abril com ministros, seus movimentos para atrair as Forças Armadas com verbas e cargos e sua aproximação das Polícias Militares foram decisivos para o jornalista mudar de ideia. Agora, Gabeira defende a mobilização dos brasileiros para neutralizar Bolsonaro até 2022 ou para afastá-lo do cargo definitivamente. Para ele, a ação do presidente sugere o espectro de uma guerra civil ou um golpe de Estado, sem, necessariamente, participação direta das Forças Armadas.

“Muito possivelmente ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas”, diz Gabeira, em nova conversa com o Estadão, nesta quinta-feira, 4. “Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar.”

Gabeira critica a postura dos generais que ocupam cargos no ministério porque na reunião do dia 22 de abril ouviram calados o que considerou a defesa explícita da constituição de milícias com fins políticos. “Para mim é absolutamente novo na história do Brasil: os generais ouvindo a ideia de armamento, armar a população para a sua expressão política, sem terem algum tipo de reação”, afirma.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Há quase um ano, em entrevista ao Estadão, o senhor fez algumas críticas ao governo Bolsonaro, mas se mostrou confiante nas instituições para contê-lo. Recentemente, o senhor passou a defender que os brasileiros, no Brasil e no exterior, se mobilizem para barrar um possível golpe do presidente. O que aconteceu?

O primeiro aspecto da minha confiança eram os contrapesos democráticos, que estavam baseados no Congresso e no Supremo. Esses contrapesos não foram alterados, continuam tentando fazer frente a esse processo. Mas há sobre eles, hoje, uma carga muito intensa, a partir do bolsonarismo e dos seus aliados. As manifestações foram claramente dirigidas ao fechamento do Congresso e do Supremo. Então, o que alterou bastante é que o Bolsonaro não está aceitando muito bem a presença desses contrapesos, pelo contrário, está tentando neutralizar alguns deles. Esse é um fato. Outro é a relação com as Forças Armadas, que sempre (desde a redemocratização) tiveram, aparentemente, um papel democrático, e funcionaram, ao longo desses anos, recuperando a sua imagem. E as Forças Armadas foram muito envolvidas pelo Bolsonaro. Não só através do trabalho orçamentário, mas também pela visão da reforma da Previdência dos militares, pela entrada de 3 mil militares no governo, entende? E sobretudo agora pela aliança que fizeram na Saúde. Praticamente, (as Forças Armadas) estão atraindo, participando ou partilhando uma política que pode trazer para elas uma repercussão nefasta. Então, isso tudo alterou muito o quadro.

Recentemente, houve algum fato que acelerou a sua mudança de opinião sobre o governo Bolsonaro? Por exemplo, a saída do Sérgio Moro?

Não, a saída do Sérgio Moro, não. Mas aquela reunião do (dia) 22 (de abril), que foi divulgada (por vídeo, liberado por ordem do ministro Celso de Mello, do STF) apresentou alguns fatos alarmantes. O primeiro deles, o mais importante para mim, foi a defesa pelo Bolsonaro do uso de armas. Se você lembrar da campanha eleitoral, o Bolsonaro tinha como (base da) proposta de armamento da população a necessidade de se defender do caos urbano, da violência urbana. Cada pessoa poderia ter uma arma para se defender, eventualmente, de um assalto, de uma invasão da sua propriedade. Mas naquela reunião ficou evidente que ele tem uma visão de armas para a expressão da sua visão política. A pessoa armada teria condições de se expressar politicamente através das armas. Inclusive, sugeriu que isso fosse feito contra a quarentena. Quatro generais do Exército estavam presentes e não moveram uma palha, nem houve uma expressão de surpresa. Isso para mim é absolutamente novo na história do Brasil: os generais ouvindo a ideia de armamento, armar a população para a sua expressão política, sem terem algum tipo de reação.

Na campanha de 2018, muita gente dizia "Bolsonaro só fala essas coisas horríveis para ganhar voto, isso não é a sério". Ou então diziam: "Ele já pensou assim, não pensa mais." De certa forma, não ocorreu com ele o mesmo erro que houve com (Donald) Trump (presidente dos EUA), o de achar que ele tinha um discurso para campanha, mas governaria de outra forma?

Bolsonaro, na Câmara dos Deputados, tinha um tática de popularização. Ele utilizava vários temas, como direitos humanos, como a questão das mulheres, da homossexualidade… Ele usava isso para poder se popularizar. A tática dele era pegar algumas pessoas conhecidas, por exemplo Maria do Rosário, Jean Wyllys, e fazer diante das câmeras alguns debates que sustentariam o seu público. Mas ele não tinha muito ideia de uma proposta para o Brasil. Tinha um saudosismo do governo militar, mas que não tinha correspondência naquele momento com a própria situação das Forças Armadas.

Ao chegar ao governo, ele faz uma política de sedução das Forças Armadas. Com uma política de sedução que, em alguns aspectos, é muito certa. Em primeiro lugar, através do Orçamento, da reforma da Previdência, da inclusão de 3 mil militares no governo, da parceria em uma política temerária em relação à covid-19, na utilização do ministro da Defesa em manifestações propondo o fechamento do Congresso e o fechamento o STF… Ele está usando as Forças Armadas, de uma forma bem clara, como um elemento de intimidação. E as Forças Armadas, pura e simplesmente, estão se deixando usar. E isso não é o único perigo dele. Ele tem uma boa penetração nas Polícias Militares. Então, muito possivelmente, ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas. Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar.

O senhor falou em projeto; quando era deputado, na sua opinião, Bolsonaro não tinha um projeto, era apenas uma coisa de agitação, digamos assim. Pode-se dizer que Bolsonaro tem um projeto hoje?

Ele não tinha um projeto, nunca teve. Mas ele andou se relacionando com pessoas que tentaram trazer um recheio teórico para o projeto dele. É o caso do Olavo de Carvalho, é o caso do ministro Ernesto Araújo, que tentam dar assim a visão de um projeto cristão, em primeiro lugar um projeto cristão. Em segundo lugar, um projeto nacionalista, contra organismos globais, quer dizer, contra o que eles chamam de marxismo global. Então, isso foi acontecendo. E mais ainda: foi dada a ele, através do Olavo de Carvalho, a necessidade de uma guerra cultural, contra todos os setores da cultura que eles consideram adversários e ligados de alguma forma à esquerda.

Voltando aos militares, quando começou o governo, havia uma expectativa de que seriam um fator moderador dos impulsos do Bolsonaro. Isso ficou para trás?

Olha, aconteceu o seguinte: ao invés de os militares se tornarem moderadores do Bolsonaro, ele se tornou um fator de radicalização dos militares. O general Augusto Heleno, por exemplo, tem se tornado um radical, cada vez maior, dentro do governo. É claro que, no caso do general Heleno, pesou também aquela prisão, lá na Espanha, de um oficial (na verdade, o sargento Manoel Silva Rodrigues) da Aeronáutica com grande quantidade de cocaína. E ele, como o homem do GSI, foi considerado responsável pelo furo de segurança pelo Carlos Bolsonaro. Depois disso ele ficou um pouco assustado e começou a tomar posições mais radicais e se unir a este chamado grupo ideológico.

Outros generais, por exemplo, o general Braga Netto (chefe da Casa Civil), que esteve no Rio de Janeiro, na intervenção (na Segurança do Estado em 2018), tem até uma capacidade de organização boa. Ele é um homem que entende de organização, gosta de organizar. Eu vi, ele me mostrou o trabalho dele de organização, mas ele não tem condições de segurar o Bolsonaro. Da mesma maneira, o (vice-presidente Hamilton) Mourão não tem esse papel. O Mourão sempre foi considerado pelos próximos ao Bolsonaro como um adversário em potencial. Então, ele se recolheu também. O general (Luiz Eduardo) Ramos (chefe da Secretaria de Governo), que deu entrevista dizendo que é um democrata, que são todos democratas e que é uma ofensa às Forças Armadas pensar que elas podem estar sendo cúmplices de um golpe, ele também é o cara que está fazendo a política do Bolsonaro.

Por exemplo, ele estava presente naquele dia em que Bolsonaro falou que ia armar todo mundo, que era necessário armar todo mundo. Então, esses generais viram que a proposta do Bolsonaro é a guerra civil. Eles sabem muito bem que Bolsonaro é um homem que ganha as eleições e denuncia as eleições como fraudadas. Então, com as armas na mão, o que vai querer fazer? Vai querer se rebelar. Eles sabem disso. Então, não adianta o general Ramos dizer é uma ofensa às Forças Armadas pensar que elas podem (dar um golpe). Mas diante desse silêncio de cumplicidade ali, o que você pode pensar? Se você não ofende as Forças Armadas pensando nisso, você ofende a sua própria inteligência tendo que escolher entre uma coisa e outra

O que explica a reação do Bolsonaro à pandemia, chamando de gripezinha, pregando contra o isolamento, saindo às ruas e provocando aglomerações?

Olha, Bolsonaro pensa muito curto. Ele pensou o seguinte: "O que isso pode fazer comigo? O que isso pode representar para o meu governo? Então, uma crise econômica, o desemprego, vão atrapalhar minha gestão. Então, vou negar essa epidemia." Ele negou a epidemia porque achava que era contrária a ele. O mesmo lance que o Trump fez nos Estados Unidos, até certo ponto. Eles intrepretaram a epidemia como uma coisa que era destinada a enfraquecer o governo deles. Eles não viram a neutralidade da epidemia. Tanto que aqui no Brasil o próprio ministro das Relações Exteriores chamou de vírus comunista. O vírus era um produto do comunismo, destinado a enfraquecer os governos democráticos ocidentais. Então, ele (Bolsonaro) pode ter tido essa visão, de que era um vírus comunista, destinado a enfraquecer o governo dele. Então, ele precisava negar o vírus. Qual foi o processo de negação? Primeiro, dizer que não era importante, que era apenas uma gripezinha. Quando começaram a surgir as mortes, eles disseram que o número de mortos era inflacionado, que estavam dizendo que morreu mais gente de coronavírus que de fato morreu — quando, na realidade, tudo indica que essas mortes são subnotificadas. Quando começaram a enterrar as pessoas, eles começaram a negar que os corpos estivessem dentro dos caixões, que eram pedras, que estavam enterrando caixão vazio…

É uma visão de política como guerra, não?

Exatamente. "Não existe vírus, existem eles contra mim. Se eles estão do lado que acha que o vírus é importante, é porque é alguma coisa contra mim…"

Inicialmente, o governo avaliou que a divulgação do vídeo do dia 22 foi boa, porque reforçou o entusiasmo do bolsonarismo, fortaleceu a narrativa do governo nas redes. Mas depois o presidente viu sua rejeição aumentar nas pesquisas, com redução na proporção dos que consideravam o seu governo regular. A exibição do Bolsonaro raiz em horário nobre assustou as pessoas?

O que aconteceu foi o seguinte: a divulgação do vídeo mostrou que Bolsonaro não tem condição de ser presidente da República. Mostrou que ele é um presidente incensado por aquelas pessoas que veem nele um mito. Acho que o Bolsonaro está cada vez mais reduzido àquela fração de pessoas despolitizadas ou os polititizados que estão muito agrupados na extrema direita. Isso é um processo que está avançando e não terminou, o isolamento dele não terminou.

Como explicar o apoio de neofascistas? De onde veio essa turma?

Olha, essa crise mundial, que repercutiu, que acabou avançando na eleição de presidentes como Trump, como Bolsonaro, só se agrava. Então, nesses momentos de crise, esses movimentos surgem, tanto à direita como à esquerda. Neste momento, os mais visíveis estão à direita. Então, eles encontaram no Bolsonaro uma espécie de possibilidade de projeção política. As manifestações estão cada vez mais claramente demonstrando os símbolos. Aquela manifestação feita diante do Supremo Tribunal Federal, você vendo a imagem, diz: é a Ku Klux Klan. Ou é uma imagem do nazismo, daquele momento, quer dizer, tem todas as características simbólicas. E tem outros símbolos de supremacia branca, os caras tomando copo de leite, curiosamente, para passar mensagem subliminar (em uma live nas redes sociais em 1º de junho Bolsonaro aparece tomando um copo de leite puro; naquele dia era comemorado o Dia Internacional do Leite, porém, nas redes sociais, o gesto foi associado com um costume dos supremacistas brancos dos Estados Unidos de usar leite como um símbolo). Essas coisas que a gente está vendo.

Uma hora é um secretário que se fantasia de Goebbels para praticamente lhe repetir as palavras. Outra são apoiadores de tocha e máscaras na porta do STF, lembrando caminhadas nazistas. O próprio presidente citou uma frase que foi usada por Mussolini. É tudo coincidência?

Eles negam, mas se você olhar… O livro do Umberto Eco, O Fascismo Eterno, lista as 14 características essenciais, que ele considera do fascismo eterno. E quase todas estão presentes no Brasil. O ultracionalismo, a admiração pelas armas… Quer dizer, todas as características principais do fascismo estão presentes, o pavor da modernidade… Isso está presente, são características do fascismo eterno. O machismo, o culto das armas, o namoro com a morte, tudo isso é caracteristica do fascismo. Está lá no livro do Umberto Eco, que acho uma pessoa insuspeita para falar disso. Escrevia composições, pariticipava de concursos de composições, sob o fascismo, viu chegarem os americanos, estudou a vida inteira isso. Agora, estamos caminhando para o fascismo tabajara, com características próprias, não tem a consistência teórica necessária para isso, mas tem caracteristicas.

Como o senhor avalia a participação de Bolsonaro nas manifestações que pedem o fechamento do Supremo e do Congresso?

Evidentemente, qualquer democrata, diante de uma manifestação desse tipo, passa longe. Ele (Bolsonaro) vai lá saudar os manifestantes. Meio que demonstra, com isso, que tem uma simpatia pela causa deles. Ele tem alguma simpatia pela causa do fechamento do Congresso e do fechamento do Supremo. Agora, no último domingo, ele agravou isso mais. Trouxe com ele no mesmo helicóptero, para participar ou para descer na manifestação, o ministro da Defesa (Fernando Azevedo e Silva). Deu um passo além, simbolicamente. Não significa que trouxe as Forças Armadas para o lado dele. Então, simbolicamente, o ministro da Defesa desceu com ele em uma manifestação. Agora, o ministro da Defesa, depois, foi pedir desculpas, pedir desculpas não, foi se justificar junto à Camara dos Deputados, depois foi se justificar ao Alexandre de Moraes, dizer que não foi bem assim, que pegou uma carona, que não sabia… Afinal, o ministro da Defesa não é o ministro da Defesa da Suécia. Ele sabe que todo domingo tem manifestação ali. Por que ia pegar uma carona? Se ele é tão inocente, não pode ser ministro da Defesa.

Bolsonaro pode ser apaziguado, pode ser levado a respeitar as leis?

Acho que é evidente agora, depois de tudo que ele mostrou, quem viu aquela reunião, que Bolsonaro está querendo armar o povo para uma expressão política, para que o povo tome uma posição política que eles querem. Está querendo criar milícias armadas. Aquilo ele falou com toda a sinceridade. E não voltou atrás nisso, pelo contrário. Continuou disposto a isso. E um homem que quer armar uma parte da população está preparando uma guerra civil. Naquele momento, ficou bastante claro para mim qual é o desígnio dele, qual é a posição. Então, acho que tem que trabalhar para ou neutralizá-lo visando ir até 2022, ou afastá-lo antes disso.


Adriana Fernandes: Velha política

O futuro de Guedes está atrelado ao apoio do Centrão nas próximas votações

A queda relâmpago de Alexandre Borges Cabral, o indicado pelo Centrão para a presidência do Banco do Nordeste (BNB), mostrou falhas e atropelos no ritual de checagem dos nomes apresentados pelas lideranças dos novos aliados do presidente Jair Bolsonaro no Congresso. O “sistema de informação” do presidente não funcionou bem.

Não foi uma boa estreia para a “nova-velha” política de coalizão que Bolsonaro busca com o casamento com as lideranças do Centrão que, aliás, já deu resultados em votações importantes para o governo nas últimas semanas.

Cabral caiu menos de 24 horas após sua posse, no rastro da revelação pelo Estadão de que era alvo de uma apuração conduzida pelo Tribunal de Contas da União (TCU) sobre suspeitas de irregularidades em contratações feitas pela Casa da Moeda durante sua gestão à frente da estatal, em 2018. O prejuízo é estimado em R$ 2,2 bilhões.

A indicação acabou não passando pelas checagens que costumam ser feitas pela Secretaria de Governo do Palácio do Planalto, que podem vetar a indicação. Com isso, não houve o alerta interno das investigações em curso contra Cabral no TCU, o que gerou a decisão de sua exoneração.

A queda foi rápida; porém, nada tem a ver com algum tipo de resistência do ministro da Economia, Paulo Guedes, em ceder cargos do seu vasto ministério, com cinco bancos públicos e outras tantas estatais.

A porteira foi aberta com a presidência do BNB e vai continuar com novas indicações. O loteamento do Centrão avançará em cargos nas estatais e ministérios. Serão muitas indicações nas próximas semanas, já falam abertamente integrantes da área econômica.

É o preço a pagar não só para impedir o impeachment e garantir a governabilidade do presidente Bolsonaro. Trata-se de uma questão de sobrevivência de Guedes no cargo. O seu futuro e da sua equipe estão umbilicalmente atrelados ao apoio do Centrão, que por ora se mostra totalmente alinhado com a ala militar desenvolvimentista do governo.

Pontes de diálogo foram lançadas pelo ministro. A travessia passa pela oferta de cargos e mudanças de políticas. Detalhe: não se ouviu nenhuma reclamação pública de algum líder do Centrão sobre a saída do novo presidente do BNB. Também ninguém se apresentou como padrinho do presidente demitido. Silêncio total.

Com o País quebrado pelo estrago da covid-19, Guedes precisa de votações rápidas para “salvar” a sua política e agilizar a retomada da economia. Com o Centrão em oposição, perde a parada. O ministro já teve um aperitivo ruim na frustrada tentativa de aprovar os seus projetos depois da votação da reforma da Previdência. Nada andou e a retomada da economia entrou cambaleante em 2020 até ser ferida de morte pelo novo coronavírus.

O ministro tem pouco tempo para mostrar os resultados da sua política após a economia entrar numa fase de maior normalidade pós-covid. Os números crescentes de contaminação e mortes mostram que vai demorar mais. Seria impossível aprovar as medidas com uma base de apoio de vinte e poucos parlamentares e um punhado de simpatizantes.

A aprovação da reforma da Previdência foi suada, com uma negociação no varejão que custou caro. Para avançar nas novas pautas, o ministro terá de fazer concessões. Elas já começaram e podem passar, inclusive, pela flexibilização da regra do teto de gastos. É proibido se surpreender com a capacidade política de mudar as narrativas. O retorno da velha para a nova política é a prova desse pragmatismo.

A porteira das suas estatais é só a face mais visível do que está sendo negociado, como também foi o fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que tanto prejuízo trará no futuro para a fiscalização da Receita e arrecadação do governo.

Como Guedes comanda um superministério e detém muitos poderes, tem muito a oferecer. O mercado financeiro já viu que a área econômica pode ganhar mais com a nova aliança. A resposta tem sido uma melhora consistente dos indicadores. Não só pelo otimismo vindo de fora do País. Os investidores estão se antecipando aos efeitos positivos que essa aliança com o Centrão pode garantir nas votações. Sem medo do Centrão apelidado de gastador.

Guedes quer preservar BNDES, Caixa e Banco do Brasil do loteamento político. O tempo dirá se vai conseguir.


Bolívar Lamounier: Elegia para um país à deriva

Triste como se comporta um presidente, que deveria contribuir para desarmar os espíritos

Em janeiro de 2019 Jair Messias Bolsonaro subiu a rampa do Palácio Planalto convencido de que seus eleitores lhe haviam outorgado um mandato para fazer o que bem entendesse. É um fato comum no sistema presidencialista de governo.

O eleito tende a pensar que dezenas de milhões de eleitores compareceram às urnas com um único pensamento. Sabiam exatamente os objetivos que o candidato de sua preferência deveria perseguir, e por que deveriam fazê-lo. Uma parte deles por certo se lembrava de que, na democracia, o poder é exercido dentro de limites estipulados na Constituição e nas leis, e também pela existência do “outro”, ou seja, dos adversários, que foram derrotados, mas não deixaram de existir.

Embora típico do sistema presidencialista, no caso de Bolsonaro o sentimento de onipotência a que acima me referi apresenta riscos adicionais de suma importância.

Primeiro, ele vê aquela enorme massa de votos como a voz do “povo” - de todos os brasileiros - e a escolha dele entre os diversos candidatos como um reconhecimento dos méritos que supostamente possui. Ora, ninguém ignora que a maior parte de sua votação se deveu à rejeição generalizada ao PT e ao desastroso legado dos governos petistas; e, complementarmente, ao péssimo desempenho dos partidos de centro, que não conseguiram se unir em torno de uma candidatura e de símbolos apropriados ao tenso momento sob o qual o Brasil tem vivido já há vários anos.

Uma pequena parcela do eleitorado intuiu que o candidato pretendia fazer reformas. Designado com antecedência, Paulo Guedes sinalizava uma orientação liberal na economia, e ele mesmo, Bolsonaro, falava em acabar com a “velha política”, expressão tão vaga como o “contra tudo o que aí está” dos primórdios do PT. A cereja do bolo - quero dizer, a parte mais esdrúxula do imaginário mandato bolsonarista - ficou a cargo do sábio da Virgínia. Seria o combate a um moinho de vento por ele denominado “marxismo cultural”.

Mas os riscos embutidos na visão política de Bolsonaro vão muito além dos que acima tentei alinhavar. Mais grave, ao que tudo indica, é o fato de tal visão existir muito mais no campo da psicologia que no do raciocínio.

Parco em letras, Bolsonaro parece travar uma luta diária contra os limites que o sistema político lhe impõe e seu fígado, que o estimula a derrubá-los. Desconhece por completo o significado e o alcance da expressão “liturgia do cargo”. Não compreende que, uma vez investido na suprema magistratura do País, ele não mais se pertence.

Sua propensão a demonstrar “franqueza” tem muito de infantil. Como chefe de Estado, ele deve se comportar com moderação e comedimento, abstendo-se de recorrer a termos inadequados à posição que ocupa e de insultar integrantes dos outros Poderes e jornalistas.

Esse perfil assaz telegráfico que estou tentando traçar indica que o presidente tem uma indisfarçável inclinação autoritária, ditatorial, mas isso ainda é dizer pouco. Não por acaso, o último rumor que nos devia atormentar - a iminência de alguma aventura golpista - passou a frequentar diariamente as páginas dos jornais.

Do fígado, que ele a duras penas tenta controlar, vez por outra emergem traços francamente paranoicos, notadamente a percepção de que decisões ou pronunciamentos contrários a seus desejos são indícios de alguma conspiração. Vale dizer, da perfídia de inimigos empenhados em apeá-lo do poder.

A controvérsia sobre o artigo 142 da Constituição, que supostamente confere às Forças Armadas a faculdade de intervir como um poder moderador na eventualidade de conflito entre os Poderes, deu à conjuntura o toque pitoresco que talvez lhe faltasse. O que se pode sensatamente afirmar, especialmente em relação ao Exército, é que sua excessiva presença no governo empresta uma aura de veracidade a essa tolice, com grave prejuízo para sua imagem institucional.

Salta aos olhos que a chegada da covid-19 - bem como a atribuição, pelo Supremo Tribunal Federal, da responsabilidade primária pelo combate à epidemia aos Estados e municípios - elevou os riscos precedentemente mencionados à enésima potência. Ignorando e contrariando - exatamente como fez Donald Trump, nos Estados Unidos - o diagnóstico elaborado pelos serviços de inteligência, Bolsonaro retardou o sentimento de urgência que se impunha. E levou-o a solapar tais esforços, descumprindo deliberada e ostensivamente as recomendações adotadas não só no Brasil, mas em quase todo o mundo.

É triste ver comportar-se dessa forma um presidente que deveria contribuir para o desarmamento dos espíritos e para a eficácia do atendimento aos doentes. Um homem corajoso, ex-atleta, não se deixaria intimidar por uma “gripezinha”.

Uma palavra de preocupação ou compaixão pelas famílias enlutadas não parece compatível com tal perfil. Pena não ter ele até agora demonstrado sua coragem, passando um dia num hospital e colaborando, quem sabe, em tarefas que não requerem conhecimentos específicos de saúde.

*Sócio-diretor da Consultoria Augurium, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Miguel Reale Júnior: Ação afirmativa

A sociedade civil resolveu vir à tona para proclamar a defesa da democracia

Vive-se contínuo desassossego em tempos de Bolsonaro, fonte única de uma crise política que não tem outra razão de ser que não sua personalidade conflituosa.

Tem-se a impressão de estar a fazer viagem no trem fantasma ao percorrer o Palácio do Planalto: na primeira curva encontra-se a figura da viúva do coronel Ustra com um retrato do marido com dizeres em letra grande: Herói Nacional. Logo em seguida, tromba-se com o Major Curió em cadeira de rodas sendo homenageado. Depois de pequena reta, surge o rosto encaveirado de Roberto Jefferson vociferando contra os vagabundos do Supremo Tribunal Federal. Um longo túnel retrata os grupos dos domingos presidenciais antidemocráticos, bolsonaristas carregando faixas clamando pelo fim do Congresso Nacional. No final da viagem encontra-se, bem sentado numa poltrona, sorridente, o ex-deputado Valdemar Costa Neto.

Em face de investigação pelo Supremo sobre as fontes das fake news, com determinação de busca e apreensão em endereços de apoiadores do presidente que constituem a origem da indústria de notícias falsas, veio uma reação desmedida, com a pregação da possibilidade até mesmo de guerra civil por dezenas de coronéis, com aviso nesse sentido pelo ministro do GSI e o comentário do deputado Eduardo, o filho 03, reconhecendo inafastável a ruptura, bastando saber quando ocorreria.

Em vista desse quadro de radicalismo crescente, com ataques permanentes aos Poderes Legislativo e Judiciário, a sociedade civil, até aí adormecida, resolveu vir à tona para proclamar a defesa da democracia.

Surgiram, então, manifestos que reúnem pessoas de diversos matizes, ganhando destaque o divulgado pelo Movimento Estamos Juntos, subscrito por mais de 150 mil. Assevera-se que “somos muitos, e formamos uma frente ampla e diversa, suprapartidária, que valoriza a política”, pedindo eficácia na resposta a crimes e desmandos de qualquer governo.

Em outro manifesto, intitulado Basta, subscrito por cerca de 600 profissionais do Direito, pontua-se: “O presidente da República faz de sua rotina um recorrente ataque aos Poderes da República, afronta-os sistematicamente (…). Descumpre leis e decisões judiciais. Assim, é preciso dar um BASTA a esta noite de terror com que se está pretendendo cobrir este país. Não nos omitiremos”.

Outro documento, com 170 assinaturas de personagens da área do Direito, enfrenta a justificativa de interferência militar com base no artigo 142 da Constituição federal: “A nação conta com suas Forças Armadas como garantia de defesa dos Poderes constitucionais, jamais para dar suporte a iniciativas que atentem contra eles. Assim, às Forças Armadas não se agregam o papel de poder moderador entre os Poderes”.

Associações de magistrados e procuradores foram incisivas em sua manifestação, ao deixar preciso que “todo ato que atente contra o livre exercício dos Poderes e do Ministério Público, em qualquer das esferas federativas, se não evitado, será objeto, portanto, de imediata e efetiva reação institucional”. Igualmente, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) divulgou nota repudiando os eventos antidemocráticos que “demonstram desprezo absoluto à independência judicial”.

Nota do colégio de ex-presidentes da Associação dos Advogados de São Paulo explica: “A Nação está exausta em razão do clima artificial de confronto criado toda semana pelo senhor Presidente da República. (…) A sua estratégia fica dia a dia mais clara. A sociedade civil já percebeu o engodo e vem se posicionando por meio de manifestos que unem pessoas de diversos matizes políticos, identificados, todavia, pela crença nos valores da democracia”.

Seis entidades da advocacia de São Paulo emitiram nota, pontuando não se poder viver sob sombra de constante lembrança de intervenção ou ruptura, a serem devidamente repudiadas. Igualmente o fizeram 130 organizações da sociedade civil no documento Juntos pela democracia e pela vida. O núcleo pensante do País veio à tona.

Os excertos dos manifestos mostram viva disposição de se impedir qualquer retrocesso autoritário, em “superação de diferenças políticas em favor da preservação da democracia”, a ponto de unir torcidas organizadas de times arqui-inimigos.

Pode-se, então, destacar nesses trechos a presença de duas tônicas: a defesa da independência do Judiciário e o aviso de se estar vigilante contra qualquer tentativa de limitação das liberdades democráticas, prometendo-se reação institucional ou uma resposta eficaz em face de crimes e desmandos.

A conduta daqui para a frente desses organismos formais e informais, que tomam posição em defesa da democracia, dependerá de como vai agir o sr. presidente, que na sua megalomania saiu a cavalo levantando o braço esquerdo como os generais em guerra até o fim do século 19. Pode ser um Napoleão de hospício, que, como dizia Nelson Rodrigues, é feliz por não ter Waterloo.

Espera-se não ser necessária nenhuma batalha para o mandatário sair do seu universo paralelo e cair na realidade do jogo democrático honesto e transparente.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Eliane Cantanhêde: Desigualdade de armas

Resistir e unir é preciso, mas sem criar pretextos e ambiente favorável a golpistas

A ida às ruas de torcidas organizadas e de grupos pela democracia no Rio, São Paulo e Curitiba serviu como aperitivo. E não foi aprovada. A intenção é boa, o temor com a audácia dos atos golpistas existe e resistir à escalada contra as instituições é preciso. Mas há que se considerar a questão da oportunidade e da forma: quem, como, quando, onde e por que, tal como no jornalismo.

Há que se investigar a possibilidade de infiltrados, de “black blocs”, no movimento pela democracia para promover vandalismos e confrontos com as polícias. Se você dá um espirro hoje, tem sempre uma câmera ou um celular por perto, mas não há um só registro do momento em que o ato pacífico descambou na Avenida Paulista. Com pedrada de manifestante? Ou com bombas de efeito moral da polícia? A única imagem de infiltração é daquela bolsonarista com um taco de beisebol (beisebol?!)…

Assim, a união de corintianos e palmeirenses pela democracia, que merece aplausos, produziu comparações incômodas com atos bolsonaristas. De um lado, as torcidas com gente parruda e agressiva, vestida de preto e em ritmo de guerra. Do outro, famílias até com crianças usando os símbolos e cores nacionais (da maioria…), como se estivessem passeando.

Imagem é tudo e, nesse confronto, inverteram-se objetivos e percepções. Afinal, os parrudos de preto defendem a democracia, os princípios, as boas causas, enquanto as aparentemente inocentes famílias usam a bandeira nacional contra a democracia, o Supremo e o Congresso.

No dia seguinte aos choques dos novos manifestantes com as polícias dos governadores João Doria e Wilson Witzel, de oposição, o presidente Jair Bolsonaro, que confraterniza alegremente e até a cavalo com golpistas em plena pandemia, chamou de “marginais” e “terroristas” os que passaram a dividir as ruas com seus apoiadores. Já o vice Hamilton Mourão acusou a novidade paulista de “baderna” e indagou em artigo no Estadão: “Aonde querem chegar? A incendiar as ruas do País, como em 2013?”

Quem defende a democracia é “terrorista” e faz “baderna”. Quem prega golpe contra a democracia é e faz o quê? E, enquanto Bolsonaro e Mourão condenavam os manifestantes pró-democracia, setores bolsonaristas faziam uma leitura enviesada do artigo 142 da Constituição para defender o uso das Forças Armadas contra os Poderes. São movimentos isolados?

Líderes da saudável resistência de instituições, partidos, entidades e cidadãos pró-democracia vêm-se declarando contra atos de rua fora por causa da pandemia. Se os bolsonaristas fazem aglomeração, problema deles, os pró-democracia são também pró-ciência, isolamento social, vida. Mas esse não é o argumento principal.

O pedido para não disputar as ruas agora tem base mais complexa: a desigualdade, literalmente, de armas. De um lado, juristas, artistas, intelectuais e cidadãos se armam com as palavras e manifestos. De outro, Bolsonaro amplia a munição disponível para a sociedade, enquanto reduz a fiscalização das armas de civis e milícias; atiça o bolsonarismo contra governadores, enquanto adula as polícias estaduais – ou seja, deles.

Convém, assim, avaliar o risco de atos contra Bolsonaro provocarem confrontos desiguais com milícias e polícias e até justificativa para convocação das Forças Armadas. Vira e mexe, militares e o entorno do presidente se referem a um cenário de caos social que não interessa a ninguém, a não ser a golpistas.

Líderes responsáveis e do bem têm de desprezar o egocentrismo do ex-presidente Lula e mobilizar o centro, unir as esquerdas, buscar alianças com a direita democrática e resistir. Mas sem criar pretextos e ambiente favorável para golpes defendidos à luz do dia, com estímulo e empurrão de… vocês sabem de quem.


Ignácio de Loyola Brandão: Chega, presidente. Abra o jogo

O senhor vem procurando corroer nossos espíritos, buscando nos destruir

Desperto a cada dia pensando: o que ele vai dizer hoje para nos afligir? Quando digo desperto, deveria dizer despertamos, porque somos, no mínimo, dois terços da população brasileira sofrendo do mesmo mal: a espera da palavra presidencial no puxadinho do ódio frente ao Alvorada. Esse é um pensamento que oprime. A cada dia, são vergastadas vindas de um iletrado, ofensas a todos e à língua portuguesa, recorrências ao palavrão, ao mesmo tempo que em nossas mentes aumenta a angústia da espera: quando ele virá? Ele. Todos sabem o quê? Ele promete, sonha, gostaria que se concretizasse.

Está próximo o dia em que ele vai cumprir a palavra? O filho anunciou, agora é a ruptura. Vai intervir em tudo e em todos em nome da democracia? A democracia dele tem outra etimologia. Aqui, o demo é de demônio. Sartre disse: o inferno são os outros. Estava errado. O inferno é o Brasil hoje com esse presidente.

Decidi. Chega. Chega, presidente.

Não aguento mais. Não aguentamos mais. O senhor vem procurando corroer nossos espíritos, tentando nos aniquilar moralmente, buscando nos destruir, minando nossas forças. Resisto. Não sou apenas eu, não estou sozinho. Somos milhões.

Presidente, decida logo! Tire o paletó e nos encontre ali na porta, anunciando: é agora. Pegue seus filhos e coloque-os à frente das forças armadas.

Junte os milicianos a que estão ligados. Acrescente seus empresários aliados e coloque-os no ministério da Economia. Arrebanhe seus seguidores na redes sociais e deixe-os no comando do combate à pandemia. Chame o Aras e coloque-o logo no Supremo. Peça ao 02 que apanhe logo um cabo e um soldado e feche o que ele acha que tem de fechar. Jogo limpo. Às claras. Mas não nos deixe nessa agonia, nessa ansiedade que corrói, aguilhoa. Estão esgotados na farmácias os estoques de ansiolíticos. Os laboratórios não dão conta de produzir às toneladas. Terapeutas, psiquiatras, psicanalistas, psicoterapeutas estão exaustos. O senhor, cientista, nos diga que medicamento vai curar esta esquizofrenia pior do que o vírus da covid-19.

Estamos vivendo o suplício chinês da água pingando numa chapa de metal, plim plim, plim, até ficarmos loucos, surtarmos. Se é possível surtar mais do que estamos. Assim, decida logo. Saia para rua com seus tanques, uma vez que foi dito na porta do Alvorada: “não dá mais, hoje é o último dia.” Último dia do quê?

Não me deixe – não nos deixe – em suspenso a cada momento, cada minuto, segundo. É essa sua intenção? Nos dissolver?

Presidente.

Defina a situação. Não fique prometendo. A espera alucina. Como diz o ditado popular, transe ou saia de cima. Desocupe a moita. O Brasil está esgotado, avariado, demolido, arrasado, enfraquecido. Diga logo o que quer. Não adianta ficar esbravejando na porta do Palácio. Chega de nos tratar como moleques na escola, que gritam “te espero lá fora”. Resolva.

Jogo aberto. Quem tiver de ser preso, será. Quem tiver de ser condenado, será. Quem tiver de perder os direitos, perderá. Quem o senhor decidir que deve ser torturado, será. Quem tiver de ser exilado, será. Mas abra o jogo. Basta de sadomasoquismo. Seja claro, não hesite um minuto, não fique nessa indecisão que nos mata, não nos deixa dormir, provoca urticária, nos come pelas beiradas, e pode nos deixar doentes, neuróticos, deprimidos, em pandarecos, abilolados, com úlcera no estômago, câncer. Assim é a espera, a cada dia na expectativa, olhando o relógio, o calendário. Venha com seu desejo mais íntimo desde que se elegeu. Estamos aqui, desarmados. Mas não estamos escravizados.

Será agora? Daqui uma hora? Duas, uma semana, um mês, em 2021 ou 2022? Súbito me lembrei que o Reich de Mil Anos durou apenas doze e o líder dele se matou num subterrâneo. Será agora, quando será, vai ser, quando? Está próximo? Demora? Quando, quando, quando, quando, e este quando não está chegando.

Saia do chiqueirinho da porta Alvorada e venha para campo aberto com seus tanques, navios, canhões, armamentos, bombas nucleares, napalm, armas químicas, pó de mico, o que tiver e acabe com essa história.

Saia do armário.

Escancare.

Só precisamos saber quantos vão sobrar, depois da fome, das prisões, mortes, das epidemias, do corona. Quantos estarão vivos para o senhor governá-los? Bye Bye Brasil, como disse Cacá Diegues. Pelo amor desse Deus que o senhor diz que está acima de tudo: quando será esse momento?


Elena Landau: O Joelho Juvenal

'Escalavrada' é o adjetivo que define a democracia que vivemos no País hoje

A escatológica reunião ministerial já foi dissecada por muita gente, mas, mesmo assim, volto a ela. Não se pode banalizar a gravidade do que foi dito ali. Não é um novo normal. É anormal e perigoso. O que se viu foi um coro, quase unânime, em defesa de um golpe institucional. Ainda bem que veio a público.

Além do conteúdo, a forma de expressão das ideias foi chocante. Nem nas arquibancadas do Maracanã, que sempre frequentei, eu vi algo parecido. A ministra Damares, tão preocupada com obras do diabo, não enxergou o capeta sentado bem à sua frente.

Muita coisa foi escancarada nesse encontro. Ficou patente a urgência da aprovação da autonomia do Banco Central. A presença do presidente do BC, tanto no ato de desagravo a Moro, como nessa reunião, na qual fez coro com os descontentes com a mídia, é inaceitável. A independência que Roberto Campos Neto tem demonstrado na condução da política monetária pode ser questionada pela sua participação na vida política. Não é bom.

O show dos liberais de pau oco não passou despercebido. Guedes revelou o que pensa de empresas estatais e privatização. Se não puder servir a meus propósitos políticos, tem de vender essa droga logo, disse ele sobre Banco do Brasil. Se não me serve, vende. Nenhum liberal advoga em favor da desestatização em causa própria. Deve ser por isso que não se viu nenhuma reação sua à entrega do Banco do Nordeste ao Centrão. Foi, enfim, privatizado por Valdemar da Costa Neto.

A inveja do poder de Pedro Guimarães era evidente. Onyx deu de presente à Caixa o monopólio na distribuição dos R$ 600. Sendo de capital fechado, acionistas minoritários não atrapalham, é o que pensam os liberais deste governo. Governança, cuidado com a coisa pública e transparência só servem para atrapalhar. Qualquer semelhança com os governos intervencionistas não é mera coincidência.

Com essa proteção legal, a Caixa aproveitou para expandir sua atuação no segmento digital. Recusou a ajuda de instituições financeiras, mesmo diante das filas nas suas agências. Povo passando necessidade é apenas um pequeno sacrifício para que o banco avance na área das fintechs. De quebra, esse monopólio vinculou o auxílio ao governo. Já vimos esse filme antes. O populismo não tem ideologia.

Para liberais do Bolsonaro, competição só é boa no terreno alheio. Esse governo desmoraliza a desestatização. Não querem nem sabem fazer. E quando a defendem, é pelo motivo errado.

Temos um ministro Nem Nem: nem abertura comercial, nem reforma tributária, nem reforma administrativa, nem privatizações. Nem humanidade.

Em nenhum momento da reunião houve referência aos milhares de mortos ou aos milhões de desempregados, que sofrem com uma total falta de perspectiva, enquanto o governo amplia os estragos sobre a economia e saúde com seu combate terraplanista à quarentena. Em ato falho, o ministro da Economia se refere ao banco de desenvolvimento como “BNDE”, sem a letra S, de social. E, sem enrubescer, apoia os desatinos autoritários de seu colega da Educação. “Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu … Nós tamos aqui por esses valores.”

É a eterna cantilena dos golpistas incompetentes; sempre precisam de mais tempo e liberdade para implantar seu projeto. A culpa é sempre dos outros.

Após a divulgação da queda do PIB no 1.º trimestre, Guedes pediu solidariedade e cooperação, palavras que soam falsas em sua boca. Pede a união da sociedade, não para obedecer ao que recomendam médicos e cientistas, mas para tentar salvar sua biografia, já marcada por promessas e devaneios não cumpridos. Mas podemos ficar tranquilos, porque a recuperação será em V, ainda que um V meio torto, como disse o ministro.

Ninguém está no governo Bolsonaro por acaso. Não surpreende que Salles, Weintraub e Damares não tenham sido demitidos. Surpreende que os demais presentes não tenham pedido demissão. Todos se tornaram coniventes com um protótipo de ditador que estimula a desobediência civil de uma população armada.

Tenho pensado em adjetivos para qualificar o que se passa neste momento no País. O “inacreditável” não dá mais conta.

Lia muito com meu filho quando ele era criança. Sua coleção preferida era uma série de Ziraldo, Corpim, que conta histórias de partes do corpo de forma divertida. O favorito dele era o Joelho Juvenal. A razão era menos a anatomia e mais o adjetivo usado para ilustrar as artimanhas do menino que deixava o joelho todo escalavrado. Meu filho adorava a palavra. Líamos a história repetidas vezes e ele gargalhando com o “escalavrado”.

Hoje, lendo com o neto, lembrei de Juvenal. E, imediatamente, me veio a imagem de uma democracia escalavrada. No dicionário é “o mesmo que: arranhada, golpeada, machucada”. Encontrei meu adjetivo.

*Economista e advogada


Zeina Latif: Autocontenção

A sociedade manda recado de que não aceitará retrocessos democráticos

As atitudes antidemocráticas do presidente Bolsonaro fazem muito mal à jovem democracia brasileira. Estimulam a intolerância e o radicalismo já presentes na sociedade, e estressam as instituições democráticas, aumentando indevidamente seu ativismo. O País desvia-se do caminho do enfrentamento dos seus problemas e do avanço civilizatório.

Um episódio que merece reflexão foi a resposta do STF à infame reunião ministerial com ataques à instituição. Parte da classe jurídica aponta excessos na decisão monocrática do ministro Celso de Mello de divulgar quase na íntegra a reunião, com temas alheios às investigações de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal.

Correta ou não, a divulgação da intimidade de discussões de trabalho traz consequências indesejáveis, que deveriam ter sido consideradas. No caso, contribui para uma maior polarização social, acirra a desconfiança entre os Poderes, prejudica a imagem do País no exterior e retira ainda mais o foco na superação da crise atual. Poderá também prejudicar agendas importantes, como a de buscar caminhos para melhorar a ação estatal no campo, sem ameaçar o meio ambiente.

O presidente com frequência desrespeita e maltrata a imprensa, cuja reação autodefensiva muitas vezes a faz desviar de sua missão, que é informar e estimular o debate público – um ingrediente essencial na construção da agenda dos países.

Tem-se discutido pouco as soluções para a área da saúde e as lições das diferentes experiências de combate à covid-19. Assunto não falta: o caso sueco de confinamento mais frouxo; as evidências de que o isolamento social é pouco efetivo em regiões carentes; as diferentes situações nos Estados brasileiros; as estratégias para o fim do isolamento; e como garantir a vacinação em massa no futuro.

Na economia, falta debate qualificado sobre a divisão entre analistas nas recomendações de políticas públicas. Alguns argumentam que não se deve pensar em restrições orçamentárias, enquanto se defende o ativismo do Banco Central no financiamento do déficit público. Outros alertam para a necessidade de garantir o bom uso dos recursos públicos e que as políticas emergenciais não extrapolem o período de calamidade pública, recomendando-se evitar atalhos para aumentar os gastos que poderão custar caro adiante.

A ausência do bom debate e da busca de consensos poderá contaminar os trabalhos no Congresso. A reforma da Previdência saiu porque o debate público amadureceu. Sem isso, a tendência de muitos políticos é defender medidas de cunho mais populista, evitando também combater os problemas estruturais.

Outro ponto a ponderar são as consequências da instabilidade política na economia. Considerando apenas a questão econômica, diferentemente de 2016, quando o impeachment de Dilma era visto como a chance de corrigir a equivocada política econômica, uma ruptura agora poderá penalizar ainda mais o enfrentamento da crise e alimentar a indisciplina fiscal.

Certamente, a questão econômica precisará ficar em segundo plano em caso de ameaça à democracia. No entanto, os analistas políticos estão divididos quanto a gravidade do discurso radical de Bolsonaro. Alguns apontam como blefe, não havendo um projeto autoritário, enquanto outros veem com preocupação sua proximidade com grupos armados, incluindo polícias militares e baixas patentes.

A julgar pelas manifestações do alto escalão das Forças Armadas, desde sempre preocupado com o risco de indisciplina e desordem, haverá esforços para coibir excessos desses grupos, não havendo risco iminente à democracia.

Além disso, a sociedade, agora mais participativa, manda recado de que não aceitará retrocessos democráticos. É improvável que as autoridades do País ignorem o quadro de inquietação.

Convém os adultos voltarem para a sala e praticarem a autocontenção, para não alimentarem extremismos que possam gerar mais instabilidade.

Que as instituições democráticas cumpram seu papel com firmeza e sem complacência, evitando porém revanchismos e visando ao bem comum.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Roberto Macedo: Forte queda do PIB agrava saúde da economia

Banco Central vai comprar empréstimos hipotecários e debêntures

O produto interno bruto (PIB) do Brasil caiu 1,5% no primeiro trimestre de 2020, relativamente ao último trimestre de 2019. Essa queda veio do impacto da covid-19 na economia, desde a segunda quinzena de março último. Como, em números redondos, cada trimestre tem seis quinzenas, bastou esse impacto em apenas uma, a última, para levar a esse mau resultado do PIB, que deverá ser bem mais forte no trimestre corrente, o segundo, todo ele afetado. Isso é confirmado por indicadores de produção, emprego e desemprego, que já alcançaram o mês de abril e mostraram péssimos resultados.

Tal perspectiva também sustenta previsões correntes de que o PIB poderá chegar no fim do ano a uma queda anual superior a 6%. Na melhor das hipóteses, o início da recuperação só viria no terceiro trimestre, mas dependendo da evolução dos efeitos da covid-19, sujeita a muitas incertezas

Com números próximos de mil mortes por dia, conforme dados em média móvel de sete dias publicados ontem pelo jornal Financial Times, o Brasil e os Estados Unidos são os países que hoje apresentam maior número de falecimentos. Mas esse número não é recorde, pois este se verificou há cerca de um mês, quando os Estados Unidos alcançaram 2 mil mortes por dia. Levando em conta o número de mortes por milhão de habitantes, no Brasil está perto de 5, suplantado de perto por Itália, Suécia e Reino Unido. No passado esse número ficou em torno de 20 na Bélgica e na Espanha. O do Brasil havia se estabilizado nos últimos dez dias, mas ontem houve um pequeno avanço, não se podendo afirmar que o pico da doença já tenha sido atingido. Alcançado ou não, a perspectiva é de que vamos conviver com ela por bastante tempo. Por motivos explicados no meu último artigo neste espaço, nossa capacidade de enfrentá-la é frágil.

Preocupado também com a saúde da economia, de onde vêm os impostos, tomei posição por uma liberação controlada e diferenciada por atividades específicas, por municípios, e com protocolos que contemplem equipamentos e serviços de proteção individual, distâncias mínimas entre pessoas em locais fora de casa, e que elas sejam frequentemente testadas para saber se houve contágio ou não. Vejo que se fala muito de respiradores e UTIs, mas a testagem ainda é muito restrita, e é fundamental para conter a expansão da doença.

Como a economia também adoeceu, ela precisa de remédios. No plano macroeconômico, podem vir de duas áreas: a do orçamento do governo, ou fiscal, e a monetária e creditícia, de competência do Banco Central (BC). A situação fiscal do governo já era grave antes da covid-19 e os gastos orçamentários envolvidos na guerra contra ela tornaram essa situação ainda pior, levando a um forte aumento da dívida. Mas esse aumento precisa ser contido, pois pode levar a um desastre se o mercado financeiro relutar em dar crédito adicional ao governo, ou o fizer a um custo que complique ainda mais a situação fiscal. Isso poderia levar também a uma crise cambial, que geraria inflação, complicando ainda mais a situação.

Como a dívida é medida como proporção do PIB, essa proporção poderá ser aliviada se este cair menos ou iniciar uma recuperação. Como fazer? Em face das enormes dificuldades fiscais, a política monetária precisa ser usada com maior vigor. O governo criou um enorme pacote creditício, algo superior a R$ 1 trilhão, mas de impacto limitado pelos bancos, que não estão muito a fim de expandir crédito em condições de risco ampliado. E, salvo poucas exceções, mantêm a sua velha prática de cobrar spreads que elevam muito o custo para o tomador.

Foi por isso que desde meados do ano passado passei a sugerir a adoção, pelo BC, de uma política de aquisição de títulos privados, como hipotecas imobiliárias, debêntures e créditos do BNDES, para irrigar o sistema creditício com novos recursos para expandir esses financiamentos, num procedimento que crescentemente vem sendo adotado por bancos centrais de vários países, conhecido internacionalmente como quantitative easing, ou QE, e aqui como afrouxamento monetário. Hipotecas imobiliárias, debêntures e créditos do BNDES cobram juros bem mais razoáveis, algo como entre 5% e 10% ao ano. (Atenção, escrevi ao ano!) No Brasil ainda se praticam taxas que alcançam 5% ou mesmo 10% ao mês, até mais.

O BC finalmente optou por esse caminho, mas foi preciso uma emenda constitucional para lhe dar poderes para tanto. Aprovada no início do mês passado, trouxe também complicações para o QE, mas não vi uma atuação do BC no Congresso no sentido de eliminá-las e imaginei que talvez ele soubesse superá-las.

Nessa linha, logo depois veio uma boa notícia, que não vi na imprensa brasileira: foi na edição de 8 de maio do citado jornal, que entrevistou o presidente do BC, Roberto Campos Neto, sobre a adoção do QE no Brasil. Ele afirmou que também iria comprar empréstimos hipotecários e debêntures, mas não disse quando.

É a pergunta que fica.

  • Roberto Macedo é economista (Ufmg, Usp e Harvard), professor sênior da Usp e Consultor econômico e de ensino superior