o estado de s paulo
Celso Ming: Medo da segunda onda da pandemia
Aumentaram as evidências de um rebote global do novo coronavírus, justamente quando a atividade econômica começava a ser retomada
Os mercados globais desabaram nesta quinta-feira (veja o gráfico) porque aumentaram as evidências de que uma segunda onda do coronavírus já está atuando globalmente, justamente quando a atividade econômica começava a ser retomada – e não só nos países avançados, mas também no País.
Pelo feriado de Corpus Christi, no Brasil, o impacto sobre os mercados internos só ficará claro nesta sexta-feira. O número de mortos por aqui já ultrapassa os 40 mil e o de infectados, mais de 790 mil.
As grandes aglomerações que aconteceram na Europa e nos Estados Unidos, nos protestos contra a escalada no racismo, realizadas sem a observância mínima de cuidados, são a hipótese com maior probabilidade de se confirmar como o fator disparador mais importante desse novo agravamento. Mas não é a única. A abertura gradual e possivelmente prematura do comércio, das atividades escolares e da convivência social em alguns países também levanta suspeição.
Antes das manifestações, os epidemiologistas dos Estados Unidos e da Europa temiam possível segunda onda apenas lá por setembro ou outubro. Mas à medida que os protestos tomaram corpo, eles passaram a disparar novos sinais amarelos. Nesta quinta-feira, novas projeções da Universidade de Washington apontam o novo pico de uma nova onda na segunda semana de setembro e um total de 170 mil mortes nos Estados Unidos até 1.º de outubro.
No Brasil, onde também houve manifestações contra e a favor do governo – e menos contra o racismo –, também poderá haver novo alastramento dos casos em consequência do afrouxamento do distanciamento social. Até o fim deste mês, poderão ser contabilizadas mais de 60 mil mortes. As autoridades operaram no escuro quando exigiram a quarentena e continuam a operar no escuro com o relativo afrouxamento. O que poderia mudar essa situação seria a aplicação maciça de testes, de maneira a apenas isolar os infectados. Mas, apesar das promessas, não há esses testes.
No Hemisfério Norte, aumentaram as pressões pela flexibilização do distanciamento social e pela reabertura gradual dos negócios como condição necessária para aproveitar o início da temporada de verão.
Se esse rebote do vírus for confirmado, já se podem prever mais prejuízos para o comércio, para o setor produtivo, para o consumo de petróleo e de energia, para o turismo e para as viagens internacionais, para as competições esportivas e, certamente, novo impacto sobre o PIB global. Nesta quinta-feira, os preços do petróleo tipo Brent para entrega em agosto mergulharam nada menos que 3,4%.
É a essa lógica que os mercados passaram a responder. Na semana passada, o presidente Trump havia manifestado euforia com a criação de 2,5 milhões de empregos em maio: “É mais do que uma recuperação em V”, disse ele. Infelizmente, essa é mais uma impressão ameaçada agora de desmanche. Os analistas voltaram a prever novo agravamento do desemprego no mercado americano.
O Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) já havia avisado na última quarta-feira que os juros se manteriam muito perto de zero por cento ao ano, de modo a atender às necessidades de liquidez da economia. A pandemia continua solapando a reeleição do presidente Trump para um segundo mandato nas eleições de novembro.
Ninguém tem noção sobre as proporções dessa agora mais provável segunda onda da pandemia. Em parte, vai depender da capacidade dos governos de conseguir a observância do distanciamento social. Mas podem surgir novos fatores-surpresa, uma vez que muitos desdobramentos da atuação do coronavírus são desconhecidos e uma vacina eficaz ainda parece muito distante.
No Brasil, a flexibilização da quarentena sofre um duro golpe. Governadores e prefeitos podem se sentir obrigados a um recuo estratégico e voltar a urgir o recolhimento social. A conferir.
Eliane Cantanhêde: Atraindo raios e trovoadas
Bolsonaro emenda crises: recuou na Saúde e já partiu para cima das universidades
Saúde e Educação são áreas sensíveis e estratégicas, com corporações mobilizadas e grande capacidade de fazer barulho. Pois a Saúde foi obrigada a recuar e parar de esconder os números da pandemia e, já no dia seguinte, a Educação entrou na roda com uma medida provisória do presidente Jair Bolsonaro que quebra a autonomia universitária e dá poderes a Abraham Weintraub – inimigo número um das universidades – para nomear reitores a bel prazer durante a pandemia.
É assim que o Brasil vai vivendo aos trancos e barrancos. Bolsonaro manda maquiar o número de mortes. Epidemiologistas, sanitaristas, infectologistas, cientistas e associações médicas gritam. O Congresso, a mídia e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta providenciam estatísticas independentes. E o Supremo determina a volta da metodologia internacionalmente aceita. Aí o governo recua.
Sem se dar tempo para respirar, Bolsonaro já providencia automaticamente a nova crise. Se aquela era na Saúde, que sofre um desmanche à luz do dia, esta é na Educação, onde o ministro Abraham Weintraub nunca explicou a que veio, brinca no twitter de “Cantando na chuva” (com guarda-chuva e tudo), provoca os chineses com um vídeo trocando os “R” pelos “L” e ataca professores, alunos e universidades, enquanto massacra a língua pátria.
A Saúde recuou da chocante troca de metodologia dos números da pandemia num dia e já no dia seguinte Bolsonaro anunciava uma medida provisória com a novidade: Weintraub, que despreza as universidades (onde só há “balbúrdia” e “plantações de maconha”), vai adquirir superpoderes, passar por cima do corpo docente, do corpo discente e dos funcionários e indicar quem ele bem entender para ocupar temporariamente as reitorias que vagarem durante a pandemia. Só de pensar no tipo de gente que ele nomeará, ou nomearia, dá um frio na barriga.
A reação no caso da Saúde se reproduziu no da Educação: Congresso, mídia, professores, alunos, entidades de educação e partidos estão botando a boca no trombone. Além do principal – Weintraub escolhendo reitores à sua imagem e semelhança?! –, há a questão jurídica, porque a MP do presidente atinge a autonomia das universidades, logo, é inconstitucional. Assim como recuou na sonegação de dados da covid-19, é muito provável que Bolsonaro recue também no caso das universidades.
Enquanto faz da Saúde e da Educação gato e sapato, Bolsonaro vai desdizendo o que disse na campanha de 2018 e o que acaba de declarar, em 30 de abril, à Rádio Guaíba: “Não existe nenhum ministério sendo oferecido para ninguém, como aconteceu no passado, nenhuma presidência de banco oficial e tampouco estatais”. E ainda ressaltou: “Esse é o nosso trabalho e vai continuar sendo feito dessa maneira. O resto é intriga.”
Então, intrigantes, o que aconteceu? Além de ter nomeado indicados do Centrão para fundos milionários (atenção!) da Educação e da Saúde, o presidente também deu a eles o Banco do Nordeste (o indicado caiu em 24 horas, em mais um recuo) e acaba de brindá-los com um ministério. Não um já existente, mas um recriado: o das Comunicações. O deputado Fábio Faria vem aí! Ele é do PSD do ex-prefeito Gilberto Kassab, que integra o Centrão, e genro do dono do SBT, Silvio Santos. Uma combinação perfeita, uma síntese da “nova política”.
Se a moda pega. O general Mark Milley, chefe do Estado Maior Conjunto e principal autoridade militar dos EUA, pediu desculpas por ter participado de uma presepada de Trump que nada tem a ver com Forças Armadas: “Minha presença (…) criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna”, lamentou. Bingo. Já imaginaram no Brasil? Ia ter fila.
Fernando Gabeira: O capitão combate a verdade
Ao lado do armamento da população, esse é um passo decisivo rumo a um governo autoritário
“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” Bolsonaro venceu as eleições citando com frequência esse versículo de João. No entanto, não se conhece na História moderna do Brasil um governo que tenha combatido a verdade em todos os níveis.
Os números do desemprego, compilados pelo IBGE de acordo com métodos internacionalmente reconhecidos, foram negados por Bolsonaro. O indice de desmatamento na Amazônia obtido com ajuda de satélites foi contestado por Bolsonaro e o cientista Ricardo Galvão, demitido. Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz sobre consumo de drogas no Brasil foram engavetadas porque não atendiam às expectativas do governo.
A briga contra os dados não se limitou ao choque contra o trabalho científico. Ele se estendeu de forma perigosa contra a própria possibilidade de acesso às informações oficiais.
Com a anuência de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão tentou fazer passar uma diretiva que permitia a funcionários de segundo escalão determinar o que era ou não passível de ser classifico como material secreto. A diretiva de Mourão caiu no Congresso.
Mal começou a pandemia, Bolsonaro, usando-a como pretexto, queria suspender parcialmente a Lei de Acesso à Informação. De novo foi derrotado, dessa vez no Supremo Tribunal Federal
A apoteose dessa medida obscurantista foi na semana que passou, com a decisão de censurar as informações sobre a pandemia de covid-19.
Inicialmente, um homem chamado Carlos Wizard, um bilionário que supõe entender de tudo, disse, em nome do governo, que os números de mortos estavam sendo inflacionados nos Estados e municípios porque os gestores queriam mais dinheiro.
Wizard foi para o espaço no momento em que se articulava na rede um boicote a suas atividades empresariais, incluídas ss de greenwashing, aquelas em que você ganha dinheiro fingindo que protege o meio ambiente. Mas foi Bolsonaro que, radicalizando sua política de negação da pandemia, ordenou que as notícias diárias sobre mortes e contaminações não poderiam ser divulgadas antes dos jornais noturnos de TV. E, mais ainda, ordenou que o número de mortos não poderia ultrapassar mil, sem explicar como combinaria com o vírus. Felizmente, as emissoras se deram conta e passaram a divulgar as notícias em plantões especiais, com audiência até maior que no início da noite.
O site do Ministério da Saúde saiu do ar. Voltou sem o número total de mortos. O governo queria baixar esse número e divulgar apenas a quantidade óbitos nas últimas 24 horas, sepultando o resultado do exame de outras mortes que não ficaram prontos no mesmo dia. Com esse expediente, o número de mortos iria baixar, pois nem todos os exames ficam prontos no mesmo dia.
Felizmente, todos perceberam. Uma onda de protesto percorreu o País, unindo Estados, Congresso, TCU, órgãos de informação, cientistas e opinião pública. A repercussão internacional também foi imediata. Jornais europeus criticaram, a própria OMS se pronunciou pela transparência.
O que aconteceu de forma escandalosa nesse momento é apenas resultado da luta de Bolsonaro contra a verdade, palavra que usou na campanha para enganar os eleitores, revestindo-a com um invólucro religioso.
A luta permanente contra a transparência é uma luta contra a democracia. Os militares, no período ditatorial, tentaram esconder um surto de meningite. Mas os tempos são outros.
A mais recente investida de Bolsonaro contra a realidade se deu na arena em que ele está apanhando muito dela: a do avanço da pandemia do coronavírus. Ele começou tachando-a de uma gripezinha. Não era. Questionou o isolamento social, o número de mortos, a existência de outras doenças entre os que foram levados pela covid-19. Um diretor da Polícia Rodoviária Federal caiu porque lamentou em nota a morte por covid-19 de um de seus comandados.
Diante da morte real, bolsonaristas começaram a contestar o conteúdo dos caixões. Houve vídeos afirmando que os caixões estavam cheios de tijolos. A deputada Zambelli chegou a insinuar que um caixão no Ceará estava vazio – é a mesma deputada intimada a depor sobre fake news e a mesma que aparece na internet, durante a campanha, dizendo que as lojas Havan pertenciam à filha de Dilma. Olha que audácia, refletia ela, usam o nome de Havan em homenagem a Cuba e erguem uma Estátua da Liberdade.
Mais tarde, ficou claro para o Brasil quem é dono da Havan. Aliás é impossivel ignorá-lo, com sua cabeça reluzente, vestido de verde e amarelo É desses seres que você não precisa perguntar quem é seu líder, pois sabe que ele o levará direto ao Palácio do Planalto.
Ao lado do armamento da população, essa luta contra a verdade é um passo decisivo rumo a um governo autoritário. Uma espontânea frente pela transparência se formou esta semana. Exatamente na semana em que as pessoas, apesar da pandemia, foram às ruas com a imensa faixa “todos pela democracia”.
Parece vago, dizem alguns políticos. Calma, digo eu. Daqui a pouco tudo fica mais claro. Na luta comum, aparecem as respostas.
*Jornalista
Celso Ming: Mais um mês de inflação negativa
Inflação em queda e política monetária expansiva produzirão consequências para o País
Mais um mês de inflação negativa: menos 0,38% em maio, depois do menos 0,31% de abril. Os analistas esperavam queda mais acentuada (para menos 0,46%), que, no entanto, não se confirmou em razão do reajuste dos combustíveis.
No período de 12 meses terminados em maio, a inflação é de apenas 1,8%. Como o Banco Central tem de buscar em 2020 a meta de 4,0%, é provável que os juros básicos (Selic) tenham de cair para abaixo do nível de 2,15% ao ano previamente anunciado pelo Banco Central. A próxima reunião do Copom, agendada para 17 de junho, pode não ser a última do ciclo de baixa. Como exposto abaixo, tanto a inflação em queda quanto a política monetária mais expansiva produzirão consequências.
Inflação tão baixa é fato inédito por aqui. Houve meses em que o índice estava mais baixo, mas foi o resultado de pauladas de estabilização, época dos grandes planos econômicos dos anos 80 e início dos 90. A inflação de agora não leva tabelamentos nem outros artificialismos. O mergulho do custo de vida é o resultado do colapso da demanda neste período de isolamento social, pelo fechamento do comércio e pela queda do poder aquisitivo – e não do saneamento fiscal e monetário.
Nada menos que cinco entre os nove grupos de despesa que integram a cesta de consumo do IPCA registraram queda de preços em maio. Um dos efeitos negativos de um período de deflação relativamente longo é o recuo também constante da demanda. Se a percepção do consumidor é de que, dentro de alguns meses, os preços ficarão mais baixos, seja porque estão naturalmente em queda, seja porque o comércio venderá com descontos, a tendência é o adiamento do consumo. É o que já acontece nos países mais avançados.
Apesar disso, para os próximos meses, deve-se esperar por certo avanço da inflação, não só porque o comércio começa a reabrir, o que deve reativar a demanda, mas também porque os reajustes dos preços dos combustíveis devem liderar a alta. Também é de prever algum impacto do encarecimento do dólar sobre os preços dos importados.
Como já foi mencionado acima, fica reforçada a expectativa de que o Banco Central derrube os juros a níveis mais baixos do que os previstos na reunião do Copom de 6 de maio. São dois os argumentos para isso: a inflação em 12 meses cairá mais do que o previsto – o mercado projeta 1,53% e não mais o 1,76% de cinco semanas atrás; e a deterioração da economia é maior do que há um mês e exige mais irrigação monetária do que a antes estipulada.
É preciso prever mais duas consequências. Juros mais baixos empurram os devedores para renegociação dos seus passivos. Não é uma tratativa que os bancos apreciam, mas acabarão por entender como inevitável.
O outro impacto é sobre o mercado financeiro. Juros cada vez mais baixos derrubam patrimônio do aplicador. Daí a maior propensão a diversificar seus investimentos para a área de risco. O maior afluxo de pessoas físicas para a Bolsa é indicação disso.
Combustível
Reajuste nos preços dos combustíveis impediu que a deflação de maio fosse mais acentuada Foto: Tiago Queiroz/Estadão
» Abaixo estas estátuas
A Europa está derrubando estátuas de escravocratas. Mas até onde devem ir os movimentos revisionistas? Se for aplicada a mesma lógica que está atingindo os traficantes de escravos, não seria preciso banir também o Infante Dom Henrique, Colombo, Cortez e Pizarro?
» E os bandeirantes?
Aqui no Brasil tivemos grandes preadores de índios, venerados como heróis nacionais, em estátuas no Museu do Ipiranga. O bandeirante Domingos Jorge Velho foi decisivo na destruição do Quilombo dos Palmares. Existem a estátua de Borba Gato em Santo Amaro e o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera.
» Rodovias e ruas
Algumas das principais rodovias de São Paulo homenageiam escravagistas de índios: Anhanguera, Raposo Tavares, Fernão Dias e, a síntese de todos, Rodovia dos Bandeirantes. O bairro de Pinheiros tem mais de dez ruas com nomes de bandeirantes. Será preciso mudar tudo e reescrever a História?
Zeina Latif: A montanha-russa do mercado
Há muito trabalho a ser feito para melhorar as perspectivas de crescimento
Passado o pico de tensão no mercado financeiro em meados de marco, os preços de ativos tiveram importante valorização desde então. O gatilho veio de fora, como sempre ocorre. São fatores externos que preponderantemente ditam as reversões de ciclo aqui. Fatores domésticos estão mais associados à intensidade do movimento, para o bem e para o mal.
Do lado externo, as políticas de estímulo dos bancos centrais foram um fator chave para a reversão das expectativas. O grande destaque foi o Fed, que anunciou um pacote de injeção de liquidez no mercado e socorro a empresas (mesmo as mais arriscadas) ainda mais potente e amplo do que o da crise de 2008.
Nas últimas semanas, o movimento de valorização de ativos ganhou ímpeto por conta do relaxamento do isolamento social nas economias avançadas, associado à expectativa de que não haverá uma segunda onda de infectados, pois o grau de contágio da covid-19 está mais baixo.
Tudo isso combinado a dados positivos esparsos de atividade econômica (como a geração de empregos nos EUA em maio) alimenta o cenário de recuperação rápida nas economias avançadas ou no formato da letra “V”, usando o jargão dos analistas.
Certamente esse não é o quadro mais provável para o Brasil, que deverá enfrentar uma lenta e acidentada recuperação pela frente. As dificuldades financeiras de empresas e as incertezas do quadro econômico prejudicam o investimento e, assim, o crescimento de curto e longo prazos. Tampouco há razão para otimismo dos consumidores tão cedo, apesar de o impacto do auxílio emergencial gerar a percepção de que o pior já passou, ao menos no varejo.
A crise fiscal é um capítulo à parte que poderá ameaçar a estabilidade macroeconômica, alicerce do crescimento sustentado, caso o Brasil não retome tempestivamente as reformas para o ajuste fiscal. A única forma de equilibrar a significativa piora das contas públicas com juros baixos ao longo do tempo será a perspectiva de conserto adiante. Há uma agenda dura de redução de gastos obrigatórios a ser enfrentada por todas as esferas de governo.
Apesar do otimismo recente, o mercado financeiro dá sinais de que não está alheio ao cenário de grandes desafios.
A recuperação da Bovespa se dá em ritmo bem aquém do observado nas bolsas de emergentes – acumula queda na casa de 17% no ano contra 9% nos emergentes –, diferentemente do ocorrido nos anos anteriores, quando a Bolsa brasileira descolou favoravelmente das demais, embutindo um cenário excessivamente otimista de crescimento.
No dólar, ainda que o movimento de valorização da moeda americana no mundo tenha perdido ímpeto nas últimas semanas, a cotação no Brasil mantém uma boa gordura na comparação com uma cesta de moedas de emergentes ou mesmo de países vizinhos. São diferenciais comparáveis a situações de grande estresse no governo Dilma, quando o País estava sem rumo.
Quanto ao comportamento dos juros, houve importante recuo, alimentado também pela possibilidade de intervenção do Banco Central neste mercado, conforme previsto na chamada PEC do orçamento de guerra. No entanto, a inclinação da curva de juros (diferença entre os vencimentos de longo e curto prazos) mantém-se acentuada, apesar de a inflação esperada pelo mercado no longo prazo estar baixa. Fica evidente o desconforto com o elevado risco fiscal.
É possível que ainda haja espaço para valorização dos preços de ativos no curto prazo, com ventos favoráveis do exterior e porque o mercado poderá vir a julgar que a gordura em comparação aos preços em outros emergentes é excessiva. Ondas de otimismo acontecem.
No entanto, é necessário cautela diante da valorização já ocorrida. As incertezas no cenário brasileiro são elevadas e o ambiente é propenso a acidentes. Não faltam motivos para isso, dada a difícil situação atual epidemiológica, política, social e econômica.
O momento é critico. Há muito trabalho a ser feito para melhorar as perspectivas de crescimento e, assim, a confiança de investidores.
*CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP
José Serra: Política nacional de segurança sanitária
Urge uma legislação geral de combate a pandemias e desastres de calamidade nacional
A pandemia de covid-19 é uma calamidade que combina três dimensões: econômica, sanitária e social. Ela causa um choque negativo na demanda e na oferta da economia, afetando a produção, o emprego e a renda. Suas proporções de doença e mortes provocam um choque social: milhões de pessoas, sem emprego ou renda, tornam-se vulneráveis e outras tantas aprofundam sua vulnerabilidade preexistente. Paralelamente, os efeitos da pandemia sobre a população causam um choque no sistema de saúde, ameaçando-o de colapso. A existência prévia de acentuada crise política é sério agravante.
Uma pandemia de coronavírus era prevista pela comunidade científica internacional, mas ao eclodir obrigou o poder público em todos os países a atuar de improviso. A maioria das nações tem adotado medidas pontuais de enfrentamento de emergência da disseminação do vírus e de tratamento dos infectados: transferências de recursos para grupos vulneráveis ou afetados pela pandemia, garantias e subsídios para empresas e proteção ao mercado de trabalho.
A experiência internacional aponta novos rumos para enfrentar calamidades públicas. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, publicou recentemente uma nota técnica que defende a ideia de “válvulas de escape” a serem acionadas em situações de calamidade. Isso permitiria que “regras contra desastres” fossem automaticamente acionadas, assim como é feito quando as regras fiscais são desobedecidas.
O desafio de desenhar políticas públicas às pressas, entretanto, é imenso e afeta mais os países onde há falhas de governo. Nesta pandemia, saíram-se melhor países como a Nova Zelândia, onde a espinha dorsal do orçamento público são políticas de bem-estar e saúde. A Austrália adotou um modelo de gestão compartilhada entre o governo federal e os entes federativos no enfrentamento da covid-19, dando transparência às iniciativas do poder público e funcionando como uma política nacional contra a pandemia.
No caso dos Estados Unidos, não foram tomadas medidas de planejamento de longo prazo, nem medidas imediatas de pronta resposta. Entretanto, desde a pandemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2003, causada por coronavírus, a ocorrência de novas pandemias era tida por certa, a dúvida seria quando. Naquele ano, um Estoque Farmacêutico Nacional, criado ainda na administração Clinton (1993-2001), fora transformado em Estoque Estratégico Nacional, que, no entanto, nunca chegou a reunir insumos e equipamentos básicos, tais como máscaras ou remédios genéricos, indispensáveis para enfrentar uma pandemia. O resultado é conhecido, tendo sido agravado pelo empenho presidencial em se opor ao combate à pandemia.
O governo brasileiro, desde o início, tinha várias condições favoráveis para encarar com eficiência a pandemia. O primeiro, fortuito, foi o começo tardio da presença e disseminação do vírus em nosso território, dando aos órgãos públicos mais tempo para se prepararem, além de proporcionar exemplos, em outros países, do que fazer e do que evitar. Conta também com um sistema de saúde nacional e de alcance universal, gratuito, cobrindo desde o atendimento médico, do mais simples ao mais complexo, até o desenvolvimento de pesquisa e a distribuição gratuita de medicamentos essenciais. E acumulou, ao longo de décadas, uma bem-sucedida experiência de campanhas nacionais de vacinação.
Entretanto, essas vantagens de nossa gestão da saúde pública não se converteram automaticamente em mecanismo capaz de planejar e gerir uma máquina de guerra de combate a um desastre das proporções da pandemia de covid-19. A começar por planejamento estratégico de diagnóstico, elaboração de políticas, implementação de gestão da crise provocada pela pandemia, que vai muito além de seus aspectos sanitários.
Um importante obstáculo são as inevitáveis oposições internas a uma política dessa magnitude. O surgimento de uma quinta-coluna, comandada pelo próprio presidente da República, certamente não ajudou, e ficamos condenados à improvisação em todos os níveis de governo. No início da crise, regras fiscais foram usadas pelo Executivo como pretexto para não atuar energicamente, mesmo após o Congresso e o Supremo Tribunal flexibilizarem os diplomas legais em vigor. Diante dessa omissão, partiu do Congresso a iniciativa de aprovar a Emenda Constitucional 106, a fim de instituir um apropriado regime fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades de um estado de calamidade pública internacional.
Cabe destacar que o novo dispositivo constitucional não deveria restringir-se à pandemia do novo coronavírus, mas alcançar qualquer calamidade decretada pelo Congresso Nacional em razão de emergência provocada por fatores externos. O regime extraordinário instituído pela Emenda 106 alinha-se às “válvulas de escape” propostas pelo FMI. Nesse sentido, é urgente a adoção de legislação geral estabelecendo, nos três níveis de governo, a regulamentação de uma política nacional de segurança sanitária, dotada de um arranjo institucional permanente de combate a pandemias e outros desastres que provoquem estados de calamidade nacional.
SENADOR (PSDB-SP)
William Waack: Miséria, como sempre
É a pobreza de milhões de pessoas, agravada pela crise do vírus, que condiciona as agendas
O coronavírus colocou de novo no centro do nosso vocabulário uma palavra que a gente ouve há gerações e não consegue se livrar dela: miséria. O palavreado inócuo de sucessivos governos petistas alardeando exitosa “inclusão social” e “combate à pobreza” já havia sido desmentido pelos números antes mesmo da atual tripla crise política, econômica e de saúde pública – e Lula foi beneficiado por um ciclo de bonança internacional que não se repetirá por gerações.
No meio da pior crise de nossa memória o atual governo está demorando (assim como demorou para se adaptar ao jogo político) para entender que miséria é o fator que condicionará todos os cálculos políticos e estratégicos. Miséria é o que já jogou para o alto o caminho de ação no qual Paulo Guedes insistia ainda naquela semana de março na qual as medidas de emergência foram decretadas. A saber: o de que reformas estruturantes (Previdência, tributária, administrativa, de Estado, etc) produziriam dentro de um horizonte político conveniente, o de 2022, o “destravamento” da economia e consequente combate sustentável da miséria.
Ocorre que ela aumentou antes, e inverteu prioridades. A miséria está sendo agravada por uma crise que evidenciou de forma ainda mais brutal o grau de informalidade e vulnerabilidade de vastas camadas da nossa população, especialmente nas periferias das grandes capitais. Nesse contexto de pobreza gritante e crescente pode-se chamar o conjunto de parlamentares do que se quiser, menos de bobos, e a resposta que articularam até aqui (a de escancarar os cofres públicos) é o reconhecimento político da gravidade de uma situação social que ainda deve piorar antes de talvez melhorar, e não se sabe quando.
Em outras palavras, o dilema imposto ao governo pela miséria do País é como equilibrar o altíssimo custo político de parecer produzir ajuda insuficiente para milhões de necessitados versus o altíssimo custo fiscal de manter programas de renda básica. Diante da claque com que “dialoga” entrando ou saindo todo dia do Alvorada, Jair Bolsonaro já resumiu o problema para o qual ninguém tem solução. “Não tenho dinheiro para seguir nisso muito tempo”, afirmou.
Aproveitou também para repetir que a “culpa” é de governadores, do STF, de “terroristas” manifestantes, da imprensa ou, mais recentemente, da OMS, que estaria, por motivos políticos, interessada em “quebrar o Brasil” (desalojá-lo do poder, entende-se). Bolsonaro evidentemente aprecia os benefícios político-eleitorais trazidos por programas de distribuição de dinheiro, conforme demonstram as pesquisas. Porém, reconhece que não há mais espaço fiscal para criação de despesas obrigatórias (como prestação de benefícios desse tipo) – a não ser que se arrisque levar as contas públicas à insolvência.
Na busca desenfreada por uma resposta ao “que fazer” surgem as propostas lacradoras de internet, como a de reduzir salários nos três Poderes. É um poderoso símbolo, mas no mundo dos números ainda insuficiente para combater a miséria. Ou a de colocar na frente de qualquer outra reforma a do sistema tributário, que ajudasse, pela simplificação, a diminuir a informalidade – portanto, ampliando o alcance de benefícios sociais. Como é fartamente sabido, o grande obstáculo a qualquer reforma tributária é a ausência de lideranças políticas capazes de refazer o pacto federativo, fora descascar o abacaxi de equilibrar o jogo de interesses de múltiplos grupos econômicos e corporativistas.
Todos que lidam com história de campanhas políticas lembram da célebre frase de marqueteiros americanos quando tratavam de convencer um candidato à presidência (Bill Clinton) a manter o foco. “It’s the economy, stupid.” No Brasil a miséria impõe outra prioridade. “It’s the social, stupid.” É simplesmente não deixar pessoas morrerem de fome. E a gente achava que já tinha deixado isso para trás.
Vera Magalhães: Bafo do impeachment
Somando a gravidade da pedalada com as vidas e o fato de que as ruas começam a encher, Bolsonaro viu a cara do impeachment
Jair Bolsonaro conduziu uma reunião do conselho de ministros nesta terça-feira no Palácio da Alvorada em que quase parecia um estadista. Comedido, falou sobre as declarações da véspera da especialista da Organização Mundial da Saúde (OMS) que minimizou os riscos de contágio da covid-19 por pessoas assintomáticas. Não tripudiou, não comemorou, não desancou a OMS. Não falou palavrões.
No domingo anterior, não fez sua tradicional aparição cercado de apoiadores na rampa do Palácio do Planalto.
Depois de esticar a corda ao máximo, ao determinar que o Ministério da Saúde revisasse e escamoteasse os dados de contágio e óbitos da pandemia, recuou diante de mais uma invertida do Supremo Tribunal Federal (STF), numa semana plena de potenciais encrencas para o governo no Judiciário.
Todos esses recuos são do conhecido comportamento ciclotímico de Bolsonaro, mas agora foram ditados por avisos muito claros que auxiliares fizeram ao presidente: o apagão de dados da covid-19 era o que de mais cristalino em termos de crime de responsabilidade o “capitão” cometeu até aqui, e não passaria incólume só com notas de repúdio.
Tanto que a reação da sociedade, da imprensa, dos Poderes, do Ministério Público, do Tribunal de Contas, da CNBB, do papa, da OMS, da universidade John Hopkins não deixou margem para dúvida.
Somando a gravidade da pedalada com as vidas e o fato de que as ruas começam a encher, Bolsonaro viu a cara do impeachment, e, pela primeira vez, ela estava viva.
ARMAS
Ideia de zerar alíquota é novo
Se o discurso de Bolsonaro está no modo de contenção desde segunda-feira, as ações do presidente continuam mostrando a propensão de ampliar a influência política do bolsonarismo sobre as Forças Armadas e as polícias. Diante de tanta coisa que o presidente fala, passou quase batida sua declaração de que vai zerar a alíquota de importação de armas para “ajudar o pessoal do artigo 142 e 144 da Constituição”. Mais uma vez Bolsonaro investe na leitura golpista dos dois artigos para associá-los à possibilidade de usar os militares e as polícias como forças de “defesa” de um governo ameaçado por riscos reais ou imaginários.
PT EM TRANSE
Novos líderes já não escondem incômodo com ‘lulocentrismo’
As recentes bolas foras de Lula na tentativa de mostrar que é uma liderança de peso na pior crise política, econômica, de saúde e social que o Brasil enfrenta em anos já levam boa parte da nova geração não só de líderes petistas, mas de toda a esquerda, a demonstrar em público o incômodo com a forma autocentrada com que o condenado na Lava Jato conduz a sigla. No Roda Viva na segunda-feira, o governador do Ceará, Camilo Santana, fez algo que seria sacrilégio no partido até outro dia: disse com todas as letras que Lula está “equivocado” ao negar fazer parte de uma frente ampla pela democracia, e disse que o PT tem de fazer aliança em Fortaleza sem estar na cabeça da chapa, outra heresia. Não demorou a que Gleisi Hoffmann lançasse a candidatura de Lula em 2022, para mostrar que o establishment petista segue alheio à irrelevância da sigla também na oposição a Bolsonaro, depois de ser apeada do poder com Dilma Rousseff.
Ana Carla Abrão: 'Ensaio sobre a cegueira'
A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa
O isolamento imposto pela pandemia da covid-19 tem motivado várias reflexões. Numa dimensão individual, a necessidade de distanciamento físico nos obrigou a reorganizar os métodos de trabalho, trouxe as famílias de volta ao convívio e nos provocou no sentido de rever prioridades. Nesse processo, muitos resgataram uma leitura (ou quem sabe várias) relacionada a alguma grande peste que assolou o mundo – na realidade ou na ficção. Relemos Gabriel Garcia Marques, Albert Camus, José Saramago e tantos outros.
No cinema, revimos O Sétimo Selo ou, para os que são mais novos, Contágio ou algum outro filme que nos remeta a essa situação inesperada e surreal que vivenciamos hoje. Mas nem mesmo as obras mais perturbadoras conseguem refletir a nossa atual situação, que teima diariamente em ir além de várias dessas trágicas descrições ficcionais.
Nossas mazelas são maiores e mais profundas e se expõem agora como nunca. A primeira delas se refere à nossa inaceitável condição social, onde a desigualdade de renda se escancara na assimetria dos impactos econômico, social e de saúde a depender da classe de renda. Isso gerou, felizmente, uma mobilização filantrópica sem precedentes da sociedade civil e questionamentos sobre a eficácia da nossa rede de proteção social. Esperemos que também se reflita em foco naquele que é o nosso principal problema estrutural e ganhe prioridade na elaboração de políticas públicas – e não só as de complementação de renda.
Pelo lado dos orçamentos públicos, quedas inéditas de arrecadação e mudanças nas prioridades – com os gastos de saúde assumindo protagonismo – impõem um desafio adicional onde o desequilíbrio já era grande. Receitas e despesas terão de ser revistas à luz de uma nova realidade econômica, mas também com base nessas novas prioridades e no aprofundamento da crise. Não deixa de ser uma oportunidade para corrigir problemas estruturais. Mas só para os gestores que se dispuserem a abraçá-la.
Mas é no atendimento de saúde que ainda estará, por algum tempo, o principal foco. Afinal, a epidemia no Brasil já deixa um rastro trágico de cerca de 700 mil casos de contaminação e mais de 36 mil óbitos e ainda continua a se expandir. Embora tenha se espalhado de forma heterogênea pelo território brasileiro, é sabido que o avanço ainda está acelerado em algumas regiões e a atual subnotificação deve multiplicar esses números por muito. Ou seja, a realidade é muito pior. Por isso, e por alguns outros motivos, o mundo nos observa com um misto de pena e temor. Deveriam reconhecer o controle conquistado e as vidas poupadas até aqui por Estados como São Paulo e distinguir a falta de coordenação do governo federal, do esforço e planejamento de vários governadores e prefeitos.
Mas o Brasil é um só aos olhos do mundo. E quem fala pelo País é o presidente da República, que ainda hoje não reconhece a gravidade da pandemia, se recusa a seguir as orientações de higiene mundialmente consagradas, insiste na cura milagrosa de um medicamento sem comprovação científica de eficácia e manda, diariamente, sinais contrários às recomendações de distanciamento social. Ou seja, ao contrário de outros líderes que em algum momento reviram seu ceticismo, movidos que foram pelas evidências, o presidente Jair Bolsonaro continua negando os fatos. E agora ameaça mudá-los.
A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa para quem não quer reconhecê-los para evitar o constrangimento do erro. Aqui no Brasil estamos a viver essa triste repetição. Desde a semana passada, por uma determinação do presidente da República, os dados referentes à covid-19 tiveram sua divulgação atrasada para evitar que fossem notícia. Agora, sob o pretexto de que há fraudes ou manipulação dos dados, as informações estão sendo revistas. Tivesse o governo federal exercido o seu papel de organizar o processo de coleta, dar transparência às informações, garantir uma política ampla de testagem e coordenado ações nacionais de combate à pandemia, teríamos mais clareza em relação aos dados e menor incerteza sobre o número correto de contaminados e mortos. Mas, bem sabem os que lidam com as ações de resposta, se há problemas com os dados eles estão no campo da subnotificação – e não o contrário.
De toda a literatura que ressurge agora nos tempos de isolamento, a que mais nos reflete talvez seja Ensaio sobre a Cegueira e seu mar de pessoas vulneráveis, contaminadas por uma cegueira branca. Numa triste alusão à epidemia, à nossa condição social e à cegueira a que querem nos condenar, peço licença aqui para reproduzir Saramago e finalizar afirmando que “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.
Eliane Cantanhêde: Cortando as asinhas
‘Grande problema’ não são atos pró-democracia, mas falta de governo, de estatísticas, de pudor
À deriva, o governo faz água por todo lado. O presidente Jair Bolsonaro continua fora de órbita, em outro planeta, Moro caiu, Mandetta foi demitido, Nelson Teich desistiu, Paulo Guedes sumiu, o Ministério da Saúde acabou e o da Economia submergiu, enquanto outras pastas pintam e bordam, sem rumo, sob aplausos do presidente. Ou o rumo é romper com a China, estorricar a Amazônia, prender ministros do Supremo e governadores? Uma situação melancólica, ou desesperadora.
Nem a exposição da reunião de 22 de abril, uma síntese do governo, que gerou ou alimentou investigações no Supremo, conteve Bolsonaro. Conforme o Estadão, foi ele quem deu, pessoalmente, a ordem para o Ministério da Saúde divulgar “menos de mil mortes por dia” e “acabar com matéria do Jornal Nacional”. Pois entrou plantão extraordinário na novela, o Congresso está criando uma central própria e Estadão, G1, O Globo, UOL, Folha e Extra fecharam parceria para prestar as informações que o governo sonega ou manipula.
O dr. Jair, epidemiologista, assumiu desde o início uma cruzada particular contra o isolamento social adotado no mundo todo. O dr. Jair, cientista, determinou o uso indiscriminado da cloroquina sem qualquer aval internacional ou nacional. Agora, o deus Jair decide quantos são os mortos do coronavírus. Danem-se os fatos e as mortes. O que importa é a versão do dr. Jair, o Messias Bolsonaro.
É triste, e preocupante, o desmanche do Ministério da Saúde – um antro de esquerdistas, segundo Damares. E é igualmente triste, e preocupante, que generais e coronéis se disponham a assumir o jogo sujo, sem nunca terem visto uma curva epidemiológica, mas prontos para a “missão”: bater continência e cumprir as ordens do presidente que nenhum médico decente cumpriria. “Às favas os escrúpulos de consciência” – e a condenação da história. Por que a prioridade para a “mudança de metodologia” na contagem de vítimas a esta altura? A quem enganam?
Com os mortos passando de 37 mil, as empresas e os empregos derretendo e a previsão de queda de 8% do PIB, o presidente declara, sem o menor pudor, que “o grande problema” do momento são as manifestações de domingo pró-democracia, contra o racismo e o próprio Bolsonaro. “Estão botando as manguinhas de fora”, acusou.
Definitivamente, o grande problema do Brasil não são as novas manifestações, é a gritante falta de governo, que choca o País e o mundo. Como explicar que o presidente brasileiro não apenas guerreia com a realidade como passa a assassinar as estatísticas da pandemia? Fraudar ou dourar o número de mortos e contaminados não é próprio de democracias.
Estamos em más companhias – Venezuela, Coreia do Norte e Arábia Saudita – e até por isso, apesar das dúvidas e das críticas legítimas que cercam a realização de manifestações neste momento, a resistência das instituições, das entidades, da mídia e das ruas vai encorpando e encorajando as pessoas a gritarem “basta!”.
Quem “botou as manguinhas de fora” primeiro? Não foram os que foram às ruas só no último domingo, mas, sim, os bolsonaristas que afrontaram as recomendações da OMS e de quase todos os países para fazer aglomerações em atos contrários ao STF e ao Congresso, usando até o QG do Exército como fundo. E o que dizer dos 30 alucinados que se dizem 300 e se plantam armados na Praça dos Três Poderes?
Os vários manifestos, os atos pró-democracia e a união nacional proposta por Fernando Henrique, Marina Silva e Ciro Gomes não são ataque, são movimentos de defesa. Exatamente para “cortar as asinhas” do “gabinete do ódio” do Planalto e dos golpistas estimulados pelo presidente da República e pelas redes sociais, com o beneplácito das Forças Armadas.
Rubens Barbosa: A Amazônia em tempos de globalização
Em ambiente e clima, o Brasil perdeu a voz e a visibilidade no mundo que teve desde a Rio-92
Destravando a Agenda da Bioeconomia na Amazônia foi tema do encontro live organizado pelo Instituto Escolhas e pelo Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), na semana passada. Tivemos a oportunidade de tratar da questão da bioeconomia e da proteção da Floresta Amazônica como fator de projeção do Brasil no cenário internacional. Questões mais que nunca atuais e relevantes em vista da percepção externa do País extremamente negativa.
É indubitável que o meio ambiente entrou definitivamente na agenda global e um dos focos principais é a preservação da Floresta Amazônica. As imagens relacionadas a desmatamento, queimadas e garimpo ilegal na Amazônia em 2019 ganharam repercussão mundial. A retórica e algumas medidas e políticas governamentais contribuíram para a escalada da opinião pública internacional contra o Brasil, agravada agora pela maneira como é vista a condução das políticas em relação à pandemia e à confrontação política interna.
As preocupações com a preservação do meio ambiente e com a mudança do clima passaram a ter um impacto que vai além das sanções políticas, como no passado. Agora, com a entrada em cena da figura do consumidor e com a inclusão de políticas ambientais nas negociações de acordos comerciais, as consequências são econômicas e comerciais. Atraem restrições às exportações, boicotes e a inclusão de cláusulas específicas de desenvolvimento sustentável nos acordos comerciais, como ocorreu nas negociações do Mercosul com a União Europeia (UE). E Parlamentos europeus já estão votando moções contra o acordo com o Mercosul. O plano de recuperação da UE, depois da covid-19, inclui uma política industrial e uma política ambiental (Green Deal), que preveem punição a empresas que importarem produtos provenientes de áreas de desmatamento florestal.
Desde a conferência sobre meio ambiente realizada no Rio em 1992 o Brasil se tornara um ator relevante, com grande influência nas discussões e na implementação de políticas de meio ambiente e mudança de clima, como resultado do trabalho coordenado do Itamaraty e do Ministério do Meio Ambiente. O cenário atual mudou e o Brasil perdeu voz e a posição de visibilidade no mundo que ocupou nessa área nos últimos quase 30 anos.
O que fazer para transformar a percepção negativa do Brasil no exterior e evitar consequências contrárias aos interesses concretos do setor do agronegócio, o mais visado e prejudicado pela crescente importância que as exportações de produtos primários adquiriram no comércio exterior brasileiro? Nos primeiros cinco meses de 2020 mais de 65% das exportações brasileiras foram de commodities.
Restabelecer a credibilidade externa com o reconhecimento dos erros cometidos, recuperar a narrativa com resultados concretos de medidas e políticas adotadas e voltar a participar ativamente das discussões nos fóruns internacionais sobre a agenda de meio ambiente e mudança de clima são algumas das atitudes a tomar para que Brasil possa reverter essa percepção externa.
Vão na direção correta as recentes medidas do governo relacionadas ao restabelecimento em novas bases do Conselho da Amazônia, sob a coordenação do vice-presidente Hamilton Mourão, a abertura de negociações com a Noruega e a Alemanha para a volta da governança e do funcionamento original do Fundo Amazônia e a decisão de enviar o Exército para apoio ao Ibama e ao ICMbio no combate a ações ilegais de desmatamento, queimadas e garimpo ilegal na região. O Ministério da Economia está estudando um plano para o desenvolvimento econômico da região com o objetivo de discutir o regime de incentivos fiscais da União, inclusive no contexto da reforma tributária. A proposta de associar a Zona Franca de Manaus à biodiversidade da Floresta Amazônica poderia inicialmente complementar as atividades industriais hoje existentes.
De parte da sociedade civil, foi encaminhada ao governo, via presidência do Conselho da Amazônia, proposta do Instituto Escolhas e do Irice de um plano integrado da bioeconomia na Amazônia visando a utilizar os recursos naturais e humanos da região para estimular a economia e o emprego. O plano abre a possibilidade concreta de uma política consistente em curto, médio e longo prazos, com apoio de empresas nacionais e estrangeiras, além de governos e instituições financeiras internacionais. Estudo da OCDE mostra que até 2030 a contribuição da biotecnologia pode subir a mais de US$ 1 trilhão, distribuído entre os setores de saúde, produção primária e industrial. Por outro lado, a iniciativa da diplomacia ambiental que o Irice está desenvolvendo vai produzir um levantamento objetivo e transparente dos compromissos assumidos pelo Brasil em todos os acordos incluídos no capítulo de desenvolvimento sustentável do acordo Mercosul-União Europeia e o grau de cumprimento deles.
A defesa do interesse nacional aconselha, como defende o vice-presidente Mourão, uma narrativa transparente com a apresentação de resultados concretos e uma mudança de postura, com o abandono da atitude defensiva e com políticas e medidas para a defesa da Floresta Amazônica, acima de ideologias e partidos.
*Presidente do IRICE
César Mortari e Marcelo Granato: Partido ou pessoas?
… quantos negariam que a derrota, em 2018, de Sarney, Jucá, etc., teve algo de libertador?
Uma das características do noticiário político do último ano é a fartura de nomes e a escassez de siglas. Noticia-se, frequentemente, sobre Bolsonaro, Lula, Witzel, Doria, Ciro, Moro, Huck, etc. Mas pouco aparecem PSL, PT, PSC, PSDB, PDT…
Isso decorre de fatores como a eleição de 2018, marcada pela rejeição à elite política, que rebaixou partidos estabelecidos, como DEM, PSDB, e alçou o PSL. Espera-se que o sistema partidário continue mudando nas próximas eleições, seja pelas restrições aos recursos do Fundo Partidário e ao acesso gratuito a rádio e televisão (artigo 17, parágrafo 3.º, da Constituição federal), seja pelo provável enraizamento da direita, hoje representada pela família Bolsonaro, ou pelo espaço ocupado por movimentos como MBL, Livres, etc. A ver.
Certo é que hoje o noticiário político segue a tendência manifestada nas eleições de 2018: primeiro vêm as pessoas e depois os partidos, o que nos remete ao fenômeno dos “partidos pessoais” de que falava Norberto Bobbio, isto é, ao “partido criado por uma pessoa em contraste com o partido em sentido próprio, que consiste, por definição, em uma associação de pessoas” (Contra os Novos Despotismos). Nesses partidos a lealdade ao chefe (tenha ele criado ou não o partido) é mais forte que ideias ou projetos que vão além dele; o partido, no fundo, serve para exprimir a personalidade do chefe.
Mas essa troca, de partidos por “pessoas-partidos”, é uma boa troca?
De um lado, é fato que os partidos políticos têm sido incapazes de cumprir sua tarefa de identificação, direcionamento, conciliação das diferentes e discrepantes demandas sociais. E isso tem razões variadas: a indistinção de seus perfis – se não a efetiva ausência de ideias e projetos concretos para a sociedade –, seu sectarismo, a defesa de interesses não republicanos, o engessamento de suas estruturas, que contribui para eternizar suas lideranças nacionais (entre 2007 e 2017, os maiores partidos brasileiros renovaram só 24% delas), etc.
De outro lado, a opção pelos “partidos pessoais” não promete um horizonte melhor. Quão aberta, plural, fértil seria a discussão de interesses e projetos coletivos diversos entre partidos de (na prática) um só? E a negociação, conciliação e execução contínua e coerente desses interesses e projetos, quão republicanas e impessoais seriam? Podemo-nos inspirar na Forza Italia, de Berlusconi? Podemos apostar na Aliança pelo Brasil, do presidente (sem partido) Jair Bolsonaro?
O caminho dos “partidos pessoais”, ao que se vê, não é promissor. Mas isso não nos impõe viver com os partidos (e políticos) que temos do jeito que são. A eleição de 2018 o demonstra: podemos aprovar ou não seus resultados, mas quantos negariam que a derrota de Sarney, Jucá, etc., teve algo de libertador?
Não será possível que esses sinais ainda se façam acompanhar de uma percepção mais aguda do Estado, que se converta no combate ao Estado, não “mínimo” ou “máximo”, mas patrimonialista, favorecedor de grupos oportunistas, por vezes improdutivos, mas sempre bem relacionados com o poder?
E não caberia, ainda, o debate de alternativas como a realização da eleição para Presidência da República antes ou depois da eleição do Congresso, de modo que presidente e partidos se articulem e se apresentem à sociedade em termos mais programáticos, para que o exercício do governo dispense troca de favores ou de partidos em cada projeto de interesse? Vale aqui, mesmo em outro contexto, o raciocínio de Bobbio: “Para que nasça um governo estável é preciso que a agregação daqueles que deverão dirigir a política do país aconteça antes do voto, não depois”. Ou seja, se todo governo estável depende de uma divisão clara entre maioria e minoria no Parlamento, “é necessário que (…) sejam os eleitores a decidir qual é a minoria e qual é a maioria” (Entre Duas Repúblicas).
Não estamos, portanto, acorrentados às alternativas de um líder carismático populista ou de partidos fisiológicos, ainda que essas sejam marcas da nossa história política. Ideias como as que estão acima poderiam contribuir para a reconstrução de partidos sérios, programáticos e fortes, e devem ser somadas a uma atuação realmente interessada (pois muitos se beneficiam da “flexibilidade” dos partidos atuais) e tenaz da sociedade e suas instituições (imprensa, Ministério Público, movimentos políticos, Tribunal de Contas, etc.).
No jogo democrático, “os atores principais estão dados, e são os partidos”. Certamente podemos abrir mão deles em prol de um líder, de um herói ou “mito” e, assim (na metáfora de Bobbio), “saltar pela janela”, mas “desde que saiba que se trata de um salto no qual pode até mesmo quebrar o pescoço, que não é como sair tranquilamente pela porta” (O Futuro da Democracia). Em 2018 demos esse “salto” e hoje sofremos com a irresponsabilidade daqueles que observam da janela a queda dos corpos.
*Respectivamente, doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ, é Coordenador científico do Instituto Norberto Bobbio; e doutor em Direito pela USP e pela Università degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio. É professor da Facamp