o estado de s paulo
Monica De Bolle: A bioquímica do teto
Caso o teto permaneça como está, sem modificações nas regras, haverá uma asfixia no orçamento
A glicólise é uma via metabólica pela qual se extrai energia da glicose. Trata-se de mecanismo presente na maioria dos seres vivos, sobretudo por ser processo anaeróbico, isto é, que não depende de oxigênio. Nas diversas etapas do processo, enzimas atuam para catalisar as reações que haverão de resultar na energia que a célula requer. Caso ocorram distúrbios em algumas dessas enzimas ao longo do processo, a glicólise pode não levar à necessária extração de energia, prejudicando, portanto, o funcionamento da célula. Em outras palavras, se houver interferências nesse delicado mecanismo bioquímico, um dos canais de sobrevivência e manutenção celular pode ser alterado em prejuízo do ser vivo.
Agora tomem por “glicose” a molécula da qual o processo de glicólise extrai energia, o gasto público, e por “célula” a economia. Em 2016, a equipe econômica de Michel Temer argumentou que havia uma disfunção no processo de “glicólise”, isto é, gasto público que o transformava em energia para a economia brasileira. Em particular, técnicos de então viram nas etapas de como o gasto afetava a economia “enzimas” que liberavam energia em excesso, ou seja, eram disfuncionais, prejudicando as contas públicas: elas aumentavam a razão dívida/PIB e, por conseguinte, o déficit público. Essas enzimas, diziam os técnicos do governo Temer, eram muito reativas e precisavam, portanto, ser inibidas.
O governo Temer conseguiu aprovar no final de 2016 a Emenda Constitucional 95 (EC 95), conhecida como o teto de gastos. O teto tinha por objetivo inibir as enzimas que resultavam em energia prejudicial às contas públicas. Mas, assim como as células, a economia é um conjunto de mecanismos delicados, interligados, de alta complexidade e não-linearidade. Inibir enzimas no processo de glicólise pode impedir que reações fundamentais ao longo das diversas etapas do processo deixem de ocorrer, impedindo a liberação de energia e prejudicando a célula.
O problema, apontado por mim em artigos nesse espaço e em entrevista para o programa Roda Viva em outubro de 2016, é que a inibição enzimática era, ela própria, excessiva. Em algum momento, o teto, demasiado rígido, acabaria impedindo a necessária liberação de energia para o bom funcionamento da economia. Mais do que isso, havia razões – e elas continuam a existir – para questionar se a EC 95, tal qual formulada, não estaria em desacordo com princípios constitucionais como a sustentação das redes de proteção social, a destinação de recursos para a saúde, o financiamento da educação, ligados à própria imagem de sociedade que a Constituição projeta.
O que havia sido previsto em 2016 se tornou realidade de forma imprevista. Evidentemente, ninguém acreditava que hoje estaríamos convivendo com uma pandemia e com a crise humanitária dela proveniente. Contudo, era inevitável que o intervencionismo excessivo no mecanismo de glicólise econômica se tornasse prejudicial em algum momento. Que fique claro: embora o teto de gastos, hoje, esteja neutralizado pelo decreto de calamidade pública, ele já tem influência sobre o orçamento de 2021: o projeto de lei das diretrizes orçamentárias do ano que vem, o PLDO, prevê que o teto seja o princípio norteador das prioridades para o gasto público. O PLDO tem de ser aprovado pelo Congresso até o dia 31 de agosto de 2020.
Caso permaneça como está, sem modificações às regras do teto que precisam ser discutidas, haverá uma asfixia. O gasto público só pode aumentar de acordo com a inflação de 2020. A inflação de 2020, por sua vez, será excepcionalmente baixa devido à crise econômica, podendo, inclusive, adentrar território negativo. Nessas circunstâncias, não haverá glicose suficiente para alimentar a glicólise, não haverá gasto público para destinar à saúde, à proteção social e menos ainda à educação, que apresenta imensos desafios nessa pandemia. Sem investimentos em capacitação de professores para dar aulas online e de computadores para as dezenas de milhões de alunos nas escolas públicas que não têm acesso digital, perderemos geração de alunos – alunos, diga-se, que já pertencem a domicílios em situação de desigualdade e desvantagens diversas. Ou seja, a EC 95, tal qual existe hoje, impede processos fundamentais para o funcionamento da economia no ano que vem e para a sobrevivência das pessoas em meio à desordem que estará conosco enquanto houver SARS-CoV-2, o vírus.
A bioquímica do teto de gastos não é compatível com a sobrevivência econômica. Tratemos de travar esse urgente debate o quanto antes, deixando de lado os dogmas que costumam orientar o monólogo público no Brasil.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Vera Magalhães: Esqueçam o artigo 142
Generais, com cargos no 1º escalão e de pijama, usam interpretação golpista da Constituição para ameaçar demais Poderes
O maior fator de instabilidade da democracia hoje vem da caserna. As Forças Armadas contribuem de forma definitiva para que paire sobre a Praça dos Três Poderes a sombra de risco de um autogolpe por parte de Jair Bolsonaro à medida que generais com cargos no primeiro escalão e os de pijama em clubes militares nas redes sociais, meio en passant, usam a interpretação golpista do artigo 142 da Constituição para ameaçar os demais Poderes.
Virou moda. O Tribunal Superior Eleitoral vai investigar a chapa Bolsonaro-Mourão? Opa aí não, olha o artigo 142 aí. Pedidos de impeachment são apresentados? Não vamos admitir, temos o artigo 142. O STF usa sua atribuição constitucional de exercer o controle jurisdicional sobre atos do presidente que ferem os princípios da administração pública? Estão exagerando e podemos puxar da manga o artigo 142.
Não, senhores militares, não podem. Diz o famigerado artigo: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Garantia dos Poderes, e não da permanência do presidente no poder.
Não são a guarda de inverno do presidente tresloucado que quer armar a população, acha que pode fazer escambo do Ministério da Educação com a blindagem dos seus extremistas.
Governo teme que saída de Mansueto cause ‘efeito fim de feira’
Causou celeuma na esquerda a saída de Mansueto Almeida do Tesouro. Chegaram a compará-lo a burocratas do nazismo que assistiam aos horrores de Hitler calados – embora ele tenha pedido demissão e não haja comparação entre os horrores do bolsonarismo, que são atentados à democracia e à saúde pública, e os do nazismo, que são crimes contra a Humanidade. Já no governo a saída gerou pânico: na equipe econômica e nos poucos ministérios ocupados por não ideólogos a sensação é de que ficar, de agora em diante, significa ter a reputação para sempre arranhada. E o temor no entorno fiel a Bolsonaro é de que haja debandada semelhante à do fim do governo Collor.
STF vai esvaziando inquérito das fake news e transfere ações para outro
O Supremo Tribunal Federal já começou, mesmo antes da decisão do plenário da Corte, a sanear o inquérito das fake news. Primeiro, Alexandre de Moraes franqueou aos advogados dos investigados acesso às provas obtidas e aos indícios que balizaram as diligências determinadas por ele. As novas operações realizadas pela Polícia Federal e as quebras de sigilo de bolsonaristas se deram já no inquérito dos atos antidemocráticos, também relatado por Moraes, que teve trâmite padrão: foi aberto a partir de representação, e não por decisão do próprio STF, teve relator sorteado, e não designado, e o Ministério Público participa desde o início. Isso porque Moraes tem boas razões para crer que, no julgamento a ser retomado nesta quarta-feira, seus pares optem por estipular prazo, objeto e limites para o inquérito “supertrunfo” das fake news, aberto por determinação de Dias Toffoli há mais de um ano e no qual cabe tudo e mais um pouco.
Rosângela Bittar: A batalha mascarada
A cisão das Forças Armadas é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente
Coube a um ministro, general de Exército da ativa, ocupando o cargo civil e político mais importante desta gestão, abrir uma fresta de luz sobre algo muito grave que ferve no corpo a corpo do interior do governo. Há muito se falava de uma tensão latente pela cisão que o presidente Jair Bolsonaro tenta promover nas Forças Armadas, sem que nenhuma autoridade a admitisse abertamente.
Bolsonaro tem a ascendência constitucional sobre Exército, Marinha e Aeronáutica, e é, portanto, legalmente o comandante supremo. Porém, para fazer particularmente o que deseja deste arsenal, teria de passar por cima de algumas cabeças de bom senso que têm ascendência direta sobre as tropas. Entre seus objetivos não explicitados estaria o de manobrá-las politicamente na guerra pessoal que declarou à República.
Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, o ministro mencionado, deixou nas entrelinhas da sua já célebre entrevista à Veja, semana passada, que a cisão pode estar por trás do intenso trânsito na política dos generais e coronéis da reserva, das três Forças.
Uma excitação desproporcional para quem jura que não vai deflagrar um golpe, revelada na redação de notas, advertências e presença em atos que pregam ruptura. Sem cuidados com a imagem, associam-se aos grupelhos de fanáticos que perambulam pela Esplanada em estado de provocação permanente.
Ramos deu a senha que faltava. Disse que ex-alunos seus estão atualmente no comando de unidades do Exército. “Eles têm tropas nas mãos”, avisou. Ou seja, que fique clara sua ascendência (de Ramos e, portanto, de Bolsonaro) sobre eles (alunos) e elas (tropas). Pode-se inferir que quis, com isso, evidenciar o poder de vencer a resistência dos comandantes a atuar na política.
Não há dúvidas de que armas, munições, incentivo à guerra civil, compõem o mundo bélico construído à volta do presidente e seus filhos, bons alunos de clubes de tiro. Tanto melhor se nele puder contar com os amigos que integram as tropas (armadas) do Exército, os amigos das polícias (armadas) militares, que se somariam aos apoiadores (armados) dos acampamentos e às milícias digitais.
A cisão das Forças Armadas, embutida neste enredo, é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente neste ano e meio de governo.
O constrangimento de alguns comandantes revela-se também no seu silêncio diante de tudo que se tem dito em seu nome.
Jair Bolsonaro, desde sempre atuando no informal sindicalismo militar, conquistou a admiração dos quartéis, o voto das famílias militares, o apoio eleitoral de oficiais de patentes variadas. A hierarquia e a disciplina, porém, ainda são valores essenciais para as tropas. Um limite em que se equilibram os comandantes, mas o presidente busca estreitar cada vez mais a relação pessoal e direta.
Aposta na concessão de vantagens financeiras, é fato, uma vez sindicalista, sempre sindicalista. Mas também cultiva amizades, comparece a solenidades, testa seu poder de sedução. Não se vê como poderá desistir de seus planos.
Além da divisão nas estruturas verticais, fica cada vez mais claro o incentivo ao racha entre as três Forças. Da última tentativa concreta teve de recuar sem disfarces: a criação da aviação de asa fixa no Exército. A Aeronáutica, claro, não gostou de perder uma briga antiga numa mísera canetada.
As polícias militares, conquistadas também pelo bolso, onde a disciplina e a hierarquia são valores mais frouxos, integraram-se mais rapidamente ao projeto Bolsonaro. Muitas já lhe devem mais vassalagem do que devem aos governadores. Embora as Forças Armadas olhem com certa desconfiança o movimento do presidente em direção às polícias militares, nada podem fazer quando não podem se distrair e precisam se dedicar, integralmente, à disciplina dos seus. Certamente para não perderem de vez o controle e não terem de ouvir, de um subalterno, que é Bolsonaro que o representa.
José Álvaro Moisés: Constituição admite reação a agressões contra a democracia
Não há surpresa na prisão dos responsáveis pelo ataque com fogos de artifício contra o STF, diz professor de Ciência Política da USP
As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e os inquéritos conduzidos pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal em relação às fake news, ataques contra instituições republicanas e contra pessoas são parte normal e importante do sistema democrático. Na democracia, todos estão submetidos às leis e, se há descumprimento das mesmas, investigações e processos são o caminho previsto para determinar se cabem punições.
Não há surpresa, portanto, na reação adotada pelas instituições de controle decretando a prisão dos responsáveis pelo ataque com fogos de artifício contra o STF. A ação contempla o que está previsto no funcionamento de um regime baseado no império da lei. Estranho seria se não houvesse resposta dos organismos de controle em face desses ataques que têm se sucedido e, às vezes, com apoio de autoridades do governo. A legitimidade da reação está na Constituição Federal.
A democracia vem estando em risco no país se se levar em conta as mobilizações de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro que atacam instituições fundamentais, estimulados a agirem assim como se se tratasse apenas do direito de expressão ou manifestação. E a participação de autoridades do governo nesses atos é como se o presidente não tivesse em conta o princípio de separação dos poderes republicanos e a sua estrutura tripartite, que assegura a independência e a autonomia de cada um. Por essa razão, não faz nenhum sentido que o chefe de qualquer um deles considere absurda uma decisão da corte constitucional.
É lamentável que alguns cidadãos brasileiros entendam que, para expressar suas críticas a decisões de instituições democráticas, façam ataques dessa natureza. A Constituição e o sistema legal preveem os remédios adequados para quando existe discordância com ações de instituições como o Supremo ou o Congresso. Esses mecanismos podem ser acionados por cidadãos comuns que queiram reclamar. Mas nada disso autoriza agressões à democracia e aos princípios de liberdade e igualdade que ela garante aos brasileiros.
- Professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP)
Eliane Cantanhêde: Ordens absurdas
Bolsonaro é contra ‘ordens absurdas’, mas são dele as ordens e declarações mais absurdas
Tem um probleminha a mais na nota em que o presidente Jair Bolsonaro fala em nome das Forças Armadas e avisa que elas não cumprem “ordens absurdas”: é exatamente dele, do presidente da República, que partem as ordens, os projetos, as decisões e as declarações mais absurdas.
Na campanha de 2018, o então deputado do baixo clero já exigia que a realidade e as pesquisas se adaptassem às suas vontades. Se não confirmavam o que ele achava que tinha de ser, acusava os institutos de fraude e só parou de brigar com eles quando a realidade e a sua vontade convergiram e sua candidatura disparou.
Na eleição, Bolsonaro e seu entorno disseram, ameaçadoramente, que só havia uma alternativa: a vitória ou a vitória. Só respeitariam o resultado se ele ganhasse; se perdesse, seria roubo. Um ano depois, já presidente, Bolsonaro fez algo nunca visto no mundo: acusou de fraude a eleição que ele próprio venceu. Acusou, mas não comprovou.
No governo, Bolsonaro manteve a toada. O desmatamento não é o que ele quer? Demite o presidente do Inpe. O desemprego não é conveniente? Cacetada no IBGE. Uma extensa pesquisa mostra que não há uma “epidemia de drogas” no País? Manda a Fiocruz engavetar. Atenção! Estamos falando de Inpe, IBGE e Fiocruz, orgulhos nacionais.
A “ordem absurda” de Bolsonaro que mais teve consequências foi a demissão do diretor-geral da PF, para ele bisbilhotar diretamente as investigações contra filhos, amigos e aliados. Foi por dizer “basta!” e não acatar essa ordem que o ex-juiz Sérgio Moro saiu do governo e deixou uma investigação do Supremo contra Bolsonaro.
Dúvida: se as FA não cumprem “ordens absurdas”, o que dizer do general da ativa Eduardo Pazuello diante dos achismos do presidente na Saúde? O isolamento social salva vidas, mas não se fala nisso. A cloroquina foi descartada para a covid-19 até pela FDA dos EUA, mas no Brasil pode-se usar à vontade – inclusive os dois milhões de doses imprestáveis para americanos. Só faltava o presidente dar uma ordem absurda – e criminosa – para invadirem hospitais de campanha e mostrar que, ao contrário do que dizem a realidade e os governadores, estão vazios. Não falta mais!
E que tal mudar a metodologia, e até o horário, de divulgação dos dados da pandemia (agora quase 45 mil mortos e um milhão de contaminados)? O presidente acha mais de mil mortos em 24 horas muito ruim para ele e a reeleição. Então, melhorem-se os números. O Brasil chocou o mundo, mas STF, Congresso, mídia e a comunidade médica e científica não engoliram o que Pazuello engoliu a seco. E o governo recuou.
Outra “ordem absurda”: para Abraham Weintraub passar por cima da Constituição e da autonomia universitária e nomear 25% dos reitores federais durante a pandemia. Ou seja: passar uma boiada, fazer caça às bruxas e acabar a “balbúrdia” nas universidades. Mas também não funcionou. As instituições gritaram, o Senado disse não e Bolsonaro revogou a MP relâmpago.
Na sequência, o governo divulgou o balanço da violência em 2019 e excluiu, ora, ora, os dados referentes à polícia, que crescem ano a ano. A alegação foi “inconsistência”, o que, ok, pode acontecer, mas o passado condena. O governo esconde números incômodos e os policiais são da base eleitoral e alvo de cooptação por Bolsonaro. Depois de desmatamento, desemprego, covid-19, emprego… foi só um erro técnico?
Bolsonaro está em meio agora a “ordens absurdas” com efeito bumerangue: foi ele quem nomeou Weintraub, que não trouxe nenhuma solução, só problemas. E foi ele quem deu a ordem para as FA não seguirem “ordens absurdas” e “julgamentos políticos” de outro Poder, o que remete ao imperial:
“A Constituição sou eu”. Há controvérsias. E resistência.
José Roberto Mendonça de Barros: Encontro marcado para setembro
O futuro do governo Bolsonaro e o comportamento da economia em 2021/2022 serão determinados pelo resultado de um grande embate que deverá ocorrer a partir de setembro, quando vários vetores relevantes tendem a se encontrar.
Menciono a seguir os mais relevantes.
Em primeiro lugar, por volta de agosto teremos mais clareza quanto ao tamanho da recessão, do desemprego e da insolvência de empresas. Isso porque muito dos programas sociais chegarão ao seu final e será o momento em que saberemos quais empresas conseguiram atravessar o deserto do isolamento social. O certo é que o número de quebras em empresas médias e pequenas será enorme, sem precedentes. Além disso, teremos mais clareza quanto ao tamanho do déficit primário deste ano, que será de no mínimo R$ 750 bilhões, podendo chegar a um trilhão de reais. Esses valores (PIB, desemprego e déficit fiscal) balizarão o desafio dos próximos anos, que é o de retomada do crescimento, em condições muito adversas.
Também é, neste momento, que teremos uma noção mais precisa do enorme custo humano da pandemia. Sem querer me aventurar no mundo das projeções, parece seguro dizer que teremos, pelo menos, 80 mil mortos acumulados desde o início da pandemia, apenas atrás dos Estados Unidos. A despeito disso, na maior parte das capitais, onde mora a chamada opinião pública, as ruas já estarão livres e manifestações poderão ocorrer. Da mesma forma, é certo que, neste momento, o Congresso já funcionará ao vivo, o que reverbera muito mais os dilemas políticos.
Neste momento, a política econômica e as propostas para os próximos dois anos terão que ser repaginadas e se traduzirão no orçamento fiscal (embora não apenas aí). Digo repaginadas porque a pandemia mudou a natureza do problema e não se pode apenas retomar o que estava na mesa em janeiro. Isto envolve, para começar, as seguintes questões:
– Manter o emergencial como temporário, não apenas nas despesas, como também nos atrasos ou suspensões de pagamentos de todos os tipos. Será um desafio enorme, em tempos de proeminência do Centrão, segurar as dezenas de propostas de elevação de gastos ou de redução de tributos (110 projetos, segundo o Centro de Liderança Pública), bem como a inevitável proposta de um novo Refis. A pressão nessa área será gigantesca.
– A pandemia revelou a fragilidade em que vive grande parte da população. O reforço do SUS e algo na linha de um programa de renda mínima deverão passar a fazer parte do arsenal de políticas públicas.
Daí vem o mais relevante: como fazer para retomar uma trajetória de crescimento e sair do buraco onde estamos?
A questão é grave, porque dentro do governo já se colocaram duas possibilidades, que podemos chamar de Plano Pró-Brasil e Plano Guedes.
O primeiro grupo, do qual participam os ministros militares do Planalto e os Ministérios de Infraestrutura, Energia e Desenvolvimento Regional, propõe que a retomada do crescimento seja liderada por investimentos públicos na infraestrutura, um tipo de PAC.
De outro lado, o Ministro Paulo Guedes terá que apresentar sua proposta. Ao contrário do ano passado, quando muitos projetos sequer foram concluídos, desta vez a equipe econômica terá que apresentar uma visão de conjunto de um plano que vá além das costumeiras declarações genéricas. Isto inclui pelo menos os seguintes pontos:
– O que vai mesmo se encerrar até o final do ano em programas emergenciais.
– O que vai ser incorporado aos orçamentos anuais, especialmente na área de saúde e de programas de transferência de renda.
– Como será encaminhada a conta de pessoal, que continua a se expandir como resultado do poder das grandes corporações, que segue inabalável. Haverá uma reforma administrativa? E a chamada PEC emergencial? E o teto de gastos?
– Haverá um programa realista de concessões? E de privatizações? Nesta hora da verdade, não dá para vir com platitudes como a que previu arrecadar um trilhão de reais vendendo imóveis públicos.
– Como ficarão os principais dilemas regulatórios nas áreas de energia elétrica, de petróleo, de gás e do meio ambiente? Não haverá investimentos relevantes e acordos comerciais enquanto a Amazônia pegar fogo e o Ministro Salles passar suas boiadas.
O embate destas duas vertentes, junto com a política, é que vai determinar se voltaremos ou não a crescer.
Voltaremos a isso em nosso próximo encontro.
- Economista e sócio da MB Associados
Pedro S. Malan: O segundo inverno do governo Bolsonaro
O presidencialismo de confrontação vem encontrando resistência crescente na sociedade
“The life so short, the craft so long to learn” - Geoffrey Chaucer
“A vida tão curta, o ofício tão longo de aprender”, poderia ser essa a tradução para nossa língua do belo inglês medieval com que Chaucer traduziu o conhecido e um tanto insípido original em latim: “Ars longa, vita brevis”.
Em junho do ano passado escrevi neste espaço texto que tinha por título O primeiro inverno do governo Bolsonaro. O artigo tratava da importância de estimular debates políticos “vigorosos e eficazes” (Rorty) e notava que isso exigiria a superação da excessiva polarização vigente e um gradual deslocamento para o centro, de forma que pudessem restar atenuadas as posições extremadas que marcavam o precário debate nas redes sociais. O texto comentava ainda que esse sonho teria de ser construído ao longo dos meses e anos seguintes, porque era difícil imaginar que pudéssemos seguir com o grau de polarização, surpresas e incertezas que marcaram os primeiros seis meses do governo.
E, no entanto, as incertezas, dubiedades e contradições, em lugar de arrefecer, só fizeram acentuar-se desde então. A polarização acerba que aquele texto apontava terá sido a marca dos primeiros 18 meses do governo Bolsonaro, que serão alcançados ao fim deste mês e correspondem a 40% do tempo de que dispõe até as eleições de outubro de 2022.
Ainda este ano o Brasil elegerá nada menos que 5.570 prefeitos, e cerca de 57.800 vereadores. Essa disputa costuma dar-se em torno de agendas locais ou, no máximo, estaduais, à exceção de algumas grandes capitais. Caso queiramos tentar evitar, em outubro de 2022, uma reencenação da experiência de 2018, desde este ano de 2020 as coisas deveriam passar-se de forma diferente. Dois versos do famoso poema de Yeats The Second Coming (1939) vêm à mente: “The center does not hold/ things fall apart” (o centro não se sustenta, as coisas entram em colapso).
Há razões para acreditar que “as coisas” estão mudando, e podem continuar a mudar. O presidencialismo de confrontação permanente – com adversários que, embora legítimos, são vistos como inimigos a serem batidos, derrotados nas ruas, nas redes e, se necessário for, pelas armas – vem encontrando resistência. Resistência por parte dos outros Poderes, da mídia profissional e, crescentemente, por parte expressiva da sociedade. Daí a importância das eleições municipais deste ano. Seus resultados terão forçosamente influência nas eleições de 2022.
Aplicam-se ao Brasil de hoje as palavras com que Barack Obama, em discurso recente, se referiu a seu país: “Por mais trágicas que as últimas semanas tenham sido, (…) elas também foram dias de oportunidades incríveis para que as pessoas acordem para algumas questões – e (…) para que trabalhemos juntos para enfrentá-las”. Obama referia-se à pandemia de covid-19 e ao racismo, que chamou “praga e pecado original da sociedade americana”. Ao final de seu discurso, realçou a importância do voto; ao tratar da discussão na internet sobre votar versus protestar, sobre participação política versus desobediência civil, apontou a necessidade de “ressaltar qual é o problema, fazer as pessoas que estão no poder desconfortáveis, mas também (de) traduzir isso em leis”. Lá, como aqui, nos três níveis de governo.
Gradualmente, insisto, a sociedade brasileira vem se expressando mais. Em poucos meses, com as eleições municipais, haverá ocasião especialmente relevante para fazê-lo. Será fundamental que a expressão – de vontade, de opinião – resulte de cuidadosa avaliação: sobre quem os partidos indicaram, sobre como conduziram suas campanhas, sobre as eventuais novas faces que terão surgido e se mostrado dispostas a de fato contribuir para mudar para melhor a vida das pessoas no âmbito de suas respectivas cidades, sobre quantos, enfim, terão demonstrado real conhecimento dos desafios a enfrentar – e não se limitado a expressar platitudes, chavões batidos e promessas fadadas ao descumprimento.
Volto à epígrafe deste artigo. A parte inicial da expressão medieval de Chaucer pouco se aplica a países, que só muito raramente têm a vida “tão curta”. Mas a palavra craft, quando precedida do vocábulo state, significa ofício de estadistas – statecraft. Este será sempre, para países, um ofício “longo de aprender”.
Países que não têm praticantes desse ofício e não estimulam seu surgimento tendem a ficar para trás com relação aos que os têm e que o fazem. Estes produzem – por meio do funcionamento da democracia, pelo voto – lideranças (o plural é importante). Que se caracterizam por respeito aos fatos, capacidade de coordenação, predisposição ao diálogo franco com pessoas e partidos de visões diferentes, incluídos aí adversários políticos, que podem discordar, mas também concordar em matérias de interesse geral – e não devem ser vistos, todos, como inimigos.
Statecraft, está claro, é o que não temos hoje em nosso país e, a julgar por estes primeiros 18 meses, não teremos nos 60% do tempo que resta até as eleições de outubro de 2022. O presidente – e seus fiéis seguidores – julgam que esses 60% constituem pouco tempo. Muitos outros discordam, legítima e pacificamente. Como é natural em democracias.
*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC
Rolf Kuntz: Dinheiro público, dinheiro sujo e guerra à democracia
Até o TCU entra na briga pelo Estado de Direito contra a política de Bolsonaro
Democracia tem tudo a ver com imprensa livre - imprensa de verdade, conduzida de forma aberta e responsável - e essa verdade tem sido comprovada no dia a dia do governo Bolsonaro. O presidente mantém uma simetria perfeita entre seus atos contra as instituições, como a presença em manifestações golpistas, e, de outro lado, o combate constante aos meios de comunicação profissionais e o apoio às centrais de mentiras e de mensagens de ódio. O horror do presidente e de seus minigoebbels ao jornalismo decente já ultrapassou as fronteiras da política. Tornou-se um fato também contábil, como demonstra, por exemplo, o parecer preliminar do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as finanças federais de 2019.
Com 14 ressalvas, 21 recomendações e 7 alertas, o parecer recomenda, apesar de tudo, a aprovação do balanço encaminhado pelo presidente da República. Mas passa longe de recomendar o comportamento presidencial em relação às instituições e à sociedade ferida pela pandemia de covid-19. Ao apresentar o documento, numa sessão virtual, o relator do processo, ministro Bruno Dantas, propôs em primeiro lugar um minuto de silêncio em homenagem às vítimas do novo coronavírus. Foi um gesto de respeito raramente esboçado pelo presidente Jair Bolsonaro, até a sessão ministerial transmitida ao vivo, há poucos dias, numa encenação de seriedade governamental.
“A democracia brasileira pode ser jovem”, disse o ministro, “mas seu conceito não é recente, nem é efêmera sua construção. O abalo dos alicerces de nosso Estado de Direito Democrático não é um mero recuo à década de 60 do século passado. É um recuo de oito séculos, ao período medieval”. Ele falava, nesse momento, da cooperação, da independência e do respeito entre os Poderes, noções frequentemente renegadas, com sua anuência silenciosa, por apoiadores do presidente. Mas às vezes, de fato, nem tão silenciosa, como quando ele anuncia - para em seguida se corrigir - a disposição de rejeitar decisões do Judiciário ou do Legislativo.
A defesa do Estado Democrático de Direito foi mais detalhada quando o ministro examinou a relação do Executivo com os meios de comunicação. A distribuição de verbas de publicidade, comentou, tem seguido “critérios pouco técnicos”. Mencionou conflitos com a Folha de S.Paulo e a ameaça de não renovar a concessão da Rede Globo.
“Por certo”, concluiu o ministro nessa parte, “esse assunto não se esgotará aqui, devendo toda a sociedade e este tribunal ficar vigilantes, atentos e zelosos pela regularidade, legitimidade e economicidade dos gastos com comunicação social do governo federal, visando a garantir a isonomia de tratamento entre os veículos, a imprensa livre e o compromisso com a verdade.”
Lambanças do governo com verbas de comunicação haviam sido denunciadas no começo de junho pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News. Uma semana antes de aparecer o relatório do TCU, o público já havia sido informado sobre a destinação de verbas a canais nada ortodoxos, dedicados, por exemplo, à pornografia, a jogos de azar, à promoção da figura do presidente e, é claro, à difusão de fake news. Segundo o relatório, elaborado por consultores legislativos, mais de 2 milhões de anúncios foram publicados em sites dessa qualidade num curto intervalo, em 2019. Dados da própria Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom), referentes a junho e julho, foram usados pelos consultores.
A maior parte dos anúncios foi destinada, segundo o relatório, à promoção da reforma da Previdência. O projeto foi defendido até em sites de atividades ilegais, como um dedicado à publicação de resultados do jogo do bicho. Entre os mais favorecidos havia 14 canais destinados ao público infantojuvenil, um deles caracterizado pelo uso do idioma russo. Sites de notícias falsas foram identificados em posições de destaque, assim como páginas de apoiadores do presidente Bolsonaro.
Divulgado o relatório, a direção da Secom tratou de se defender numa nota. Segundo o texto, a destinação das verbas era decidida pelo sistema Google AdSense, por meio de um algoritmo. A explicação deveria caber, portanto, ao Google. O responsável pela Secretaria de Comunicação exibiu, na tentativa de defesa, ignorância de noções fundamentais de administração. Um gestor pode transferir e até privatizar tarefas, mas a responsabilidade é intransferível. Mais que chocante, o desconhecimento ou menosprezo desse fato é inaceitável quando se trata de gestão pública - mais precisamente, de dinheiro público.
Os muito otimistas poderão apostar em mudanças. Descumprindo mais uma de suas promessas, o presidente acaba de recriar o Ministério das Comunicações. Escolhido para o posto, o deputado Fábio Faria (PSD-RN) é genro do empresário Sílvio Santos. O ex-chefe da Secom será secretário-geral, isto é, vice-ministro. Só haverá mudança, obviamente, se o novo ministro renegar a política da Secom e do presidente e seguir os valores do Estado Democrático de Direito. Como fazer isso e ao mesmo tempo obedecer a um Bolsonaro?
Vera Magalhães: Derrotados
Crimes de Bolsonaro levam Brasil a perder a batalha da pandemia
Perdemos. O Brasil não se recuperará da derrota acachapante nesta pandemia. Caminhamos resolutos para romper a barreira de 50 mil mortes e 1 milhão de infectados relegados à própria sorte: sem ministro da Saúde, sem isolamento social em canto algum, sem estratégia, sem governos.
E com um presidente da República que comete crimes diariamente e não é impedido de fazê-lo ou porque os que o cercam, seus ministros e seu vice, são cúmplices, ou porque os que tentam têm à sua disposição instrumentos legais e institucionais que não são capazes de lidar com a sanha autoritária e genocida que Jair Bolsonaro já não faz questão de esconder. O que vai pará-lo? Ou vamos assistir inertes a uma escalada que não tem limites?
Em fevereiro, quando informei que Bolsonaro estava escondidinho no WhatsApp convocando atos golpistas contra o Supremo e o Congresso, ele mentiu e me ofendeu.
Agora, aquelas mensagens parecem coisa de criança perto do que o capitão já fez às claras, ao vivo, em rede nacional, nos palácios que ocupa como se fossem a casa da mãe Joana.
Um breve retrospecto: o presidente já participou, de carro, a cavalo, de helicóptero, a pé ou na boleia de caminhonetes de pelo menos seis atos de natureza claramente antidemocrática. Os convocou, chancelou, festejou, apoiou e abriu a rampa do Planalto para eles; Bolsonaro mandou censurar e maquiar os números de covid-19 no Brasil. Só recuou depois que o Supremo exigiu; em sua sanha persecutória, demitiu um ministro da Saúde e viu outro se demitir porque queria que eles prescrevessem remédio sem eficácia comprovada ou maquiassem os números que depois o general interino topou torturar; agora o presidente deu de flertar abertamente, inclusive em notas nas redes oficiais, com a interpretação golpista do artigo 142 da Constituição, com a assinatura de Hamilton Mourão e dos demais generais ministros, para tentar acossar o Supremo; como se não bastasse tudo isso e muito mais que não cabe em uma coluna, o presidente atingiu o suprassumo da bestialidade ao conclamar (e ser imediatamente atendido) seus apoiadores igualmente lunáticos a invadirem hospitais para filmarem leitos vazios.
Isso precisa parar. O presidente precisa ser instado, a partir de representação imediata do Ministério Público Federal ou dos partidos ao Judiciário, a se retratar de maneira inequívoca dessa última sandice que é crime contra a saúde e a ordem públicas e afronta de maneira textual vários artigos de textos legais, da Constituição à Lei de Abuso de Autoridade, passando pelo Código Penal de cabo a rabo.
É uma vergonha que ministros que se dizem democratas aceitem jogar sua biografia na lata do lixo servindo a um regime que condena o País a esses atentados diários ao bom senso, à paz social, à saúde pública e à economia, porque ninguém mais é capaz de acreditar na balela cínica de que alguém que age dessa forma tresloucada tem qualquer preocupação com empregos e crescimento.
Paulo Guedes pode até fingir que acredita que vamos voltar (voltar?) a crescer depois desse pesadelo, mas não é possível que coloque a cabeça no travesseiro à noite e não reconheça que nenhum investidor com juízo vai colocar dinheiro num País desgovernado.
E governadores e prefeitos, que tiveram do STF a delegação de cuidar das suas populações já que o governo federal não era capaz? Jogaram a toalha e resolveram também se fingir de loucos.
Reabrir a economia na base do vale-tudo, como estão fazendo de Norte a Sul, é tão criminoso quanto o show de horrores diário de Bolsonaro. As ruas abarrotadas, as filas em shoppings, as festas cobrarão seu preço em mortes e hospitais colapsados. E não será possível jogar a culpa toda em Bolsonaro. Fracassamos como País.
Eliane Cantanhêde: Esticando a corda
Guerra assimétrica: um lado tem as leis e a Constituição, o outro tem armas
A nota conjunta do presidente Bolsonaro, do vice Mourão e do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, é uma clara ameaça e está em sintonia com o secretário de Governo da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos, que disse à revista Veja que é “ultrajante” falar em golpe militar, para em seguida ressalvar: “Mas não estica a corda”. A frase ficou no ar. Faltou completar: senão…
O que significa “não esticar a corda”? Enquanto a resposta não é clara, soa como advertência a um menino levado, desobediente: “Ou você se comporta, ou vai ficar de castigo, levar uma palmada”. O que nos remete às ameaças de “ruptura” e de AI-5, já alardeados por ninguém menos que o filho do presidente da República, que orna a parede da sala de jantar com a imagem de uma metralhadora.
Nos remete também às “consequências imprevisíveis” citadas pelo general Augusto Heleno contra uma decisão do STF e encampadas pelo general Fernando – que é o primeiro militar a ocupar o Ministério da Defesa e desfilou num helicóptero com Bolsonaro para saudar manifestações contra o Supremo e o Congresso. Outros militares de alta patente prestigiaram atos assim, como o próprio Ramos, que é da ativa. Do alto da rampa do Planalto, mas ele estava lá.
Quanto à nota, Bolsonaro e os dois militares dizem que as Forças Armadas estão sob autoridade suprema do presidente e não cumprem “ordens absurdas, como a tomada de poder”. E ressaltam: “Também não aceitam a tomada de poder por outro poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. Novamente, faltou: senão…
É preciso especificar, ou decifrar, o que significa dizer que as FA “não aceitam” isso ou aquilo. No caso, a tomada do poder pelo Executivo (um auto-golpe) ou por um “outro poder”. E vem o dedo em riste: um outro poder que possa fazer “julgamentos políticos”. Vale para o Judiciário, citado literalmente, já que responsável por julgamentos. E vale para o Congresso, que faz julgamentos legal e legitimamente políticos, como o que sofreu Dilma Rousseff.
Em resumo, portanto, temos que o presidente, o vice e o ministro da Defesa anunciam ao País que não aceitam julgamentos do STF, do TSE e do Congresso. Não por que eventualmente contrariem a Constituição e as leis, mas os que ameacem suas posições e interesses. E isso é álcool na fogueira de manifestações antidemocráticas.
É uma situação delicada, a ser tratada com maturidade institucional e firme consciência democrática, num momento em que o Supremo investiga a acusação do ex-ministro Sérgio Moro de intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal, o TSE analisa oito ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão, STF e CPMI acumulam dados sobre fake news que podem chegar ao Planalto e, na presidência da Câmara, pousam 30 pedidos de impeachment de Bolsonaro.
Com trocas de informação, pedidos de vista daqui e dali e declarações variadas contra impeachment, as instituições se autodefendem das ameaças de “ruptura” e acumulam arsenal. O TSE deu sinal verde para embolar as investigações sobre fake news num mesmo processo: no TSE, denúncias de uma máquina de robôs para disparar mentiras na campanha de 2018; no STF, a rede de ataques contra ministros, suas famílias e a própria instituição.
Quem ameaçou primeiro, porém, tem armas, arsenal literalmente mais letal. E é aí que essa guerra se torna assimétrica e nos arrepia. De um lado, a democracia, com apoios e uma resistência difusa, mas atuante, na sociedade civil. Do outro, as armas – e não só das FA. Onde Bolsonaro quer chegar? Até onde as nossas Forças Armadas se sujeitam a ir? E qual a força da munição do Supremo, do Congresso e do TSE para resistir?
O Estado de S. Paulo: ‘São 3 anos de juros zero, ninguém terá renda financeira’, diz Luiz Carlos Mendonça de Barros
Para ex-presidente do BNDES, imprevisibilidade explica o pânico do mercado: ‘a única certeza é que a crise é grave’
Douglas Gavras, O Estado de S.Paulo
Para o ex-presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ex-ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, os últimos dias de turbulência e quedas nos mercados ao redor do mundo comprovam a falta de previsibilidade da crise econômica causada pela pandemia da covid-19. Ele ressalta que o investidor, agora, precisa ter sangue frio. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão.
A última quinta-feira foi um dia tenso nos mercados. Bolsas do mundo todo caíram, muito pelo temor de uma nova onda da pandemia da covid-19. Como navegar em um cenário tão incerto?
Essa é a grande questão. Estamos vivendo uma situação na economia mundial que é completamente desconhecida. Pela natureza atípica da crise atual, não se consegue produzir e nem consumir nada e, como o Produto Interno Bruto é a soma dessa atividade, ele terá forte retração este ano. Não é por acaso que a OCDE (organização apelidada de clube dos países ricos) disse que a depressão econômica deste ano vai ser a maior em um século.
Isso quer dizer os mercados devem reagir mal a cada expectativa de retorno da doença?
É preciso entender a cabeça do investidor, que tem de operar em um ambiente de muitas incertezas. Essa correlação entre normalizar a atividade econômica e o temor de voltar ao isolamento ainda não é uma coisa equilibrada. E o mercado acaba reagindo às notícias que chegam, é a história do apressado que acaba comendo cru.
Se o futuro ainda é incerto, há indicadores de mais longo prazo que devem ser observados?
Há um cenário de juros que está mais complicado ainda. O Fed (banco central americano) sinalizou esta semana que manterá os juros em zero por três anos. Isso é uma coisa que eu nunca tinha visto antes. Quer dizer que ninguém vai ter renda financeira em três anos. Esse conflito é parte do que vimos no pânico dos mercados na quinta-feira, depois da reunião do Fed.
O investidor vai acabar tendo de fazer escolhas mais difíceis nos próximos anos?
Quem investe tem de escolher entre ter um risco na carteira de ações ou não ter risco e ficar sem ganhos. O investidor tem uma escolha de Sofia: ou ele corre o risco de perder capital ou faz uma carteira de ações que devem sofrer menos. São três anos de juros zero, como é que faz?
O Ibovespa, principal índice da Bolsa brasileira, teve a primeira semana de perdas após três semanas de ganhos. Parecia descolado das incertezas quanto ao agravamento da pandemia. Isso está mudando agora?
Hoje, eu trabalho com a perspectiva de que o Ibovespa fique entre 90 mil e 92 mil pontos. Agora, a cada mês que passa, você vai conseguindo ter uma visão mais clara do tamanho do problema. A gente nunca passou por nada parecido e o investidor precisa ter paciência e procurar orientação de analistas experientes.
Dá para ser otimista?
O sistema capitalista não vai acabar por causa do coronavírus, as economias vão se normalizar um dia. Hoje, as expectativas estão depositadas na descoberta da vacina. Na hora em que ela chegar, resolve o problema. A única certeza que temos agora é que a crise é grave, o resto é dúvida.
The Economist: Jair Bolsonaro ameaça a democracia?
Desde que assumiu o governo, em janeiro do ano passado, muitos brasileiros temem o risco que ele representa
Em muitos fins de semana desde que a covid-19 chegou ao Brasil, os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro realizam manifestações em Brasília e São Paulo, para demandar a reabertura da economia, parcialmente submetida a um lockdown, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso e o retorno do regime militar dos anos 1964/1985. Alguns estão armados. Em Brasília, Bolsonaro com frequência se junta a eles, distribuindo abraços e apertos de mão e desafiando as regras de saúde estabelecidas. Nem ele e nem as pessoas usam máscaras no rosto.
Desde que Bolsonaro, antigo capitão do Exército com ideias de direita, assumiu o governo, em janeiro de 2019, muitos brasileiros temem a ameaça que ele representa para a democracia. Alguns argumentam que as instituições do País são fortes o bastante para freá-lo. Na verdade, o presidente lotou o seu governo com oficiais militares. Mas eles são vistos como tendo uma influência moderadora e as manifestações são pequenas.
As tensões aumentaram nas últimas semanas. Bolsonaro se tornou mais ameaçador, ao se dirigir ao Congresso afirmando que “o tempo da vilania acabou, agora é o povo no poder”, e ao Poder Judiciário dizendo “acabou, porra!”. Alguns ministros militares, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, general aposentado, também fizeram ameaças veladas contra o STF, o Congresso e a mídia.
Em uma mensagem pelo WhatsApp vazada no mês passado, o ministro do STF Celso de Mello escreveu: “temos de resistir contra a destruição da ordem democrática para evitar o que ocorreu na República de Weimar “que foi derrubada por Hitler”. “A democracia brasileira está sob uma grave ameaça”, diz Oscar Vilhena Vieira, diretor da faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “O presidente não vem tentando apenas criar um conflito institucional, mas também estimulando grupos violentos”.
Deputado durante 28 anos, Bolsonaro nunca mostrou muito respeito pela democracia. E se tornou mais controvertido por duas razões. Em primeiro lugar, o STF iniciou investigações que o envolvem. Uma delas tem a ver com a destituição do diretor da Polícia Federal para proteger um dos seus filhos contra um processo, afirmam seus críticos.
E a outra se refere a apoiadores (incluindo dois filhos dele) suspeitos de orquestrarem acusações falsas e ameaças contra ministros do STF. A segunda razão é que Bolsonaro mostra pouca capacidade para governar. A pandemia amplificou isto. Sua recusa em apoiar os lockdowns e o distanciamento social contribuíram para agravar a propagação da covid-19, com o País registrando hoje quase 40 mil mortes, o terceiro número mais alto do mundo.
Ele vem perdendo apoio popular embora mantenha uma base de 30% de eleitores. Um sinal da sua fragilidade é que ele cada vez mais depende do Exército. Dez dos seus 22 ministros são militares e outros três mil ocupam cargos no governo. “Na verdade, temos um regime miliar”, disse um oficial aposentado. E isto representa um risco para as forças armadas e para a democracia. Bolsonaro tem exacerbado a divisão interna e a politização do Exército, cuja disciplina e hierarquia vêm se desgastando. Muitos oficiais de escalão inferior apoiam Bolsonaro nas redes sociais. Quatro generais com cargos no governo, dois no serviço ativo, têm mais poder do que o comandante das forças armadas, seu superior.
O Exército também coloca em sério risco a sua reputação. Está hoje à frente do ministério da Saúde (onde por um breve período tentou suspender as publicações de dados completos sobre a covid-19), da coordenação política e proteção do Amazonas. “Eles realmente acreditam que sabem como fazer as coisas”, diz um ex-oficial. Eles poderão aprender da maneira difícil, como durante a ditadura, que não sabem. Bolsonaro não parece forte o bastante para desencadear um golpe. Ele enfrenta oposição de muitos governadores.
Embora o vírus tenha temporariamente incapacitado o Congresso, Oscar Vilhena Vieira observa que o STF tem atuado de uma maneira inusitadamente unida. Entretanto, “a democracia pode desaparecer se você não tiver um homem forte”, alerta Matias Spektor, do Centro de Relações Internacionais da FGV. Se Bolsonaro acabar sofrendo um impeachment, Mourão o sucederá, trazendo o Exército para ainda mais perto do poder.
Uma outra ameaça, observa Spektor, é o esvaziamento das instituições democráticas por Bolsonaro, como também a instigação do conflito. Nomeou um procurador geral mais simpático a ele e tem influência sobre as forças de polícia estaduais, como também sobre a Polícia Federal. Uma batida policial silenciou o governador do Rio de Janeiro, que recentemente começou a criticá-lo. Os democratas brasileiros, seus adversários, começam a reunir uma oposição ao presidente. E estão certos em ficar alarmados. / Tradução de Terezinha Martino