o estado de s paulo

Pedro Doria: A verdadeira ameaça à democracia

É preciso entender o que separa movimentos populares espontâneos e sem liderança do populismo digital

Quando esta coluna fechou, o Senado ainda não havia passado pela votação do projeto de lei que visa combater notícias falsas. Não foi pequena a controvérsia no seu entorno. Sua última redação, do senador Ângelo Coronel (PSD-BA), atraiu notas de repúdio de organizações como Human Rights Watch, Boatos.org e E-farsas, as agências de checagem brasileiras e a IFCN – que reúne os checadores de notícias no mundo –, atraiu críticas até do Comitê Gestor da Internet brasileira. Não é um início promissor. Mas, de todo o debate, um ponto muito importante ficou de fora. Quem vê fake news, assim como quem vê robôs no Twitter ou consultores da Cambridge Analytica está vendo árvores. Não a floresta. O que facilitou a eleição do presidente Jair Bolsonaro – ou de Donald Trump, ou do Brexit – foi bem mais complicado do que isso. Hackearam a democracia.

É preciso entender, antes, o que separa movimentos populares espontâneos e sem liderança, que foram e são promovidos online desde a Onda Verde no Irã, do populismo digital. Entre os espontâneos há nosso junho de 2013, assim como a Primavera Árabe, os Indignados espanhóis, Occupy Wall Street e mesmo as passeatas chilenas de 2019. Em comum têm, principalmente, o caos. Pegam governos de surpresa, não costumam ter muitos resultados concretos, deixam um cenário de instabilidade. E embora tudo isto seja verdade, são populares. No sentido de que não são artificiais: nascem de fato da sociedade e gritam sua insatisfação em relação aos governantes.

O populismo digital não tem nada disso. Como no caso de todos os populismos anteriores, é o movimento de um grupo político que busca a tomada do poder, normalmente via eleições. O populista sempre constrói um discurso no qual ele é o único a representar os interesses do povo contra uma elite mal-intencionada. E é na construção deste discurso populismo digital usa a internet. Quem olha de fora, desatento, acredita que há uma mobilização popular instantânea. Não, não há. É tudo criado artificialmente.

Quem desenvolveu a técnica tem nome. É um milanês morto dum câncer cerebral em 2016 chamado Gianroberto Casaleggio. Era executivo da Olivetti, foi CEO de uma consultoria online chamada Webegg, e fazendo experimentos sociais em fóruns online percebeu que conseguia manipular a construção de consensos. O que Casaleggio percebeu é uma dinâmica típica do mundo virtual. Se, num debate, muitas pessoas caminham na direção de um consenso, o resto do grupo tende a acompanhar.

Ou seja: surge um debate na internet. Os manipuladores, em massa, começam a publicar opiniões num mesmo sentido. Estes manipuladores podem ser pessoas de verdade. Podem ser três ou quatro operando 50 contas falsas. Podem ser robôs. Não importa. A maioria do grupo, sem perceber que está sendo manipulado, tende àquele caminho.

A técnica de Casaleggio foi empregada para inventar um partido político do nada, o Movimento 5 Estrelas, e transformá-lo no maior da Itália. Foi o suficiente para chamar atenção do populista britânico Nigel Farage, que foi a Milão, tomou notas e mergulhou no processo, voltou para o Reino Unido e o empregou – conseguiu aprovar o Brexit. Saltou aos olhos de Steve Bannon, que adaptou as técnicas em território americano enquanto tocava a campanha de Donald Trump. E, claro, copiando Trump o time Bolsonaro fez o mesmo no Brasil.

Funciona.

As plataformas têm responsabilidade. Seus algoritmos ajudam a ampliar a voz de poucas pessoas, acelerando a estratégia para formar consensos artificialmente. Fake news, assim como bots, fazem parte da palheta de ferramentas da manipulação. Mas o que ameaça a democracia é seu sequestro pelo método de Casaleggio. É hora de botar foco nisto. A União Europeia já tem relatórios sobre o assunto. 


Eliane Cantanhêde: Jairzinho Paz e Amor

É melhor ‘presidente banana’ que ex-presidente prematuro e Bolsonaro tenta uma inflexão

A escolha do professor Carlos Alberto Decotelli da Silva para o estratégico e sofrido Ministério da Educação é mais um passo na metamorfose do presidente Jair Bolsonaro em Jairzinho Paz e Amor. Decotelli é conservador, sim, e não se poderia esperar algo diferente, mas carrega um belo currículo, não tem nada a ver com o antecessor Abraham Weintraub e muito menos é do grupo “olavista”. Logo, já é um avanço. Sua nomeação ocorre com Bolsonaro acuado, se enfraquecendo na área militar, e esquece manifestações golpistas e se aproxima de Judiciário e Legislativo, amenizando até a expressão facial e o tom de voz. Não à toa. São duas investigações contra ele no Supremo, uma contra Flávio Bolsonaro na Justiça Federal do Rio e outras contra parlamentares, empresários e militantes bolsonaristas, por fake news e atos golpistas, que se aproximam do “gabinete do ódio” e dos filhos do presidente.

O vice Hamilton Mourão entrou no radar, Bolsonaro finalmente concluiu que estava afundando e era hora de nadar e parar de afogar todo o resto. Essa pausa para reflexão, digamos assim, tem um papel fundamental da ala militar do governo, que manifestou incômodo com a ignorância e beligerância de Weintraub e não se dispõe a um abraço de afogados por problemas pessoais de Bolsonaro e seus filhos.

Tanto a queda de Weintraub quanto a ascensão de Decotelli, que teve uma fugaz passagem pela Marinha, têm a influência direta da ala militar, que tem tido contatos com ministros do Supremo e as cúpulas da Câmara e do Senado. Bolsonaro sempre bate no peito para demonstrar autoridade e já perguntou: “vou ser um presidente banana?”. Bem, é melhor ser um presidente um tanto “banana” do que um ex-presidente antes do tempo. De um lado, os militares mostraram desconforto. Do outro, o tal Olavo de Carvalho extrapolou ao postar um vídeo, aos palavrões, ameaçando o presidente. Somados, os dois movimentos reequilibraram o jogo, com a vitória da ala militar sobre a ala ideológica não só na questão pontual do MEC, mas na estratégia de sobrevivência.

Qualquer equilíbrio, porém, é precário. Bolsonaro atacou governadores, prefeitos, STF, Câmara e Senado. E também universidades, professores, alunos, médicos, enfermeiros, ambientalistas, indigenistas, jornalistas, artistas, intelectuais, militantes dos direitos humanos, movimentos negros… E a imagem do Brasil no exterior jamais esteve tão tristemente esgarçada desde os tempos da tortura. Bolsonaro não é vítima e sim réu nesse desgaste nas relações institucionais, federativas e internacionais. E é nesse ambiente adverso que tem de enfrentar as ações no Supremo e as revelações sobre a simbiose entre Flávio, Fabrício Queiroz, Márcia Aguiar, Capitão Adriano, milícias e o imprevisível Frederick Wassef.

Aliás, por que o general Augusto Heleno, do GSI, implodiu de vez a versão mal-ajambrada de Bolsonaro para a acusação de interferência na PF? O presidente dizia que seu alvo não era a PF, mas sim a segurança dele e da família do Rio, a cargo do GSI, quando, furioso, reclamou: “Eu não vou esperar foder a minha família toda (…), porque eu não posso trocar alguém (..).” Em oficio, Heleno responde que não houve “óbices ou obstáculos” para troca nenhuma. Em um ano e meio de governo, foram três na segurança no Rio.

Assim, o presidente tirou Weintraub, nomeou um nome respeitável para o MEC, reabre o diálogo e faz a alegria do Centrão, mas a crise continua. As investigações se aprofundam e não se tem ideia de como Bolsonaro vai se virar no depoimento ao STF. Sobretudo depois de Heleno, é impossível manter a versão inverossímil. E que outra versão podem inventar? O depoimento de Bolsonaro não será mais mera formalidade. E é um problemão.


Fernando Gabeira: Uma pausa para avançar

Além da pandemia, por décadas vamos sentir os efeitos da passagem de Bolsonaro pelo pode

A leitura da História da Europa nos anos 30 mostra uma longa tensão bélica entrecortada por pausas que enchiam de esperança os que sonhavam com a paz. Poucos percebiam, como Winston Churchill, quão importante era aproveitar os momentos de tensão para se preparar para um confronto inevitável.

Guardadas as proporções, o Brasil entra numa pausa com a prisão de Fabrício Queiroz. Jogado na defensiva pelos diferentes processos no Supremo, um contra fake news, outro contra manifestações com bandeiras ilegais, Bolsonaro tende a se acalmar por alguns dias.

Toda a sua energia certamente estará concentrada em se defender do pepino do tamanho de um cometa que ronda seu governo. A presença de Fabrício Queiroz na casa do advogado da família Bolsonaro levou, de novo, não só os problemas de Flávio Bolsonaro, mas a incômoda questão das milícias cariocas para o terceiro andar do Palácio do Planalto.

Dificilmente, nesse período, crescerão as manifestações pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Muito menos Bolsonaro, Mourão e o ministro da Defesa devem lançar novas notas afirmando que as Forças Armadas não aceitam julgamentos políticos. Isso agora soaria como um blefe.

Muito possivelmente Bolsonaro perdeu terreno nas Forças Armadas e também na faixa de seu eleitorado que esperava a luta contra a corrupção. Nesta última ele já havia perdido com a saída de Sergio Moro do governo denunciando suas tentativas de intervir na Polícia Federal do Rio. E as perdas se acentuaram quando firmou aliança com o Centrão, uma espécie de seguro contra o impeachment, que nem sempre é honrado pelos contratantes.

Quando a prisão de Queiroz apertou o botão “pausa” a sociedade estava se organizando para deter o golpe e fazer frente à política nefasta de Bolsonaro. Manifestações de rua surgiram aos domingos e manifestos brotaram de vários setores, indicando a possibilidade de uma frente democrática em gestação.

Nesse momento também a pandemia atingia seu auge, ultrapassando a casa de 1 milhão de contaminados e 50 mil mortos. O Brasil tornou-se um país a ser evitado. O fracasso no combate à pandemia, impulsionado pelo negativismo de Bolsonaro, afasta os potenciais visitantes.

A destruição da Amazônia, que pode alcançar 16 mil km2 no prazo de um ano, por sua vez, afasta os investidores. Fundos de pensão responsáveis por investimentos gigantescos podem voltar as costas ao Brasil, por causa da destruição da floresta e a cruel política para os povos indígenas.

Bolsonaro não torna o País inviável apenas simbolicamente, arrasando a cultura e atropelando nosso patrimônio histórico. Ele nos coloca nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica, agravada pela pandemia. Embora o ministro Paulo Guedes veja um futuro brilhante pela frente, grandes economistas brasileiros, ao contrário, veem no horizonte uma das grandes privações por que passará o Brasil em sua História.

Quem se preocupa com a democracia apenas quando se aquecem os motores dos tanques militares pode ter uma falsa sensação de alívio. A democracia continuará exposta a pequenos golpes cotidianos Além disso, quanto menos margem de manobras Bolsonaro encontrar, mais possibilidade de buscar ações desesperadas.

Enquanto a sociedade se move, ainda lentamente por causa da pandemia, o confronto com as aspirações golpistas concentrou-se na reação do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, o Congresso recuou para segundo plano, talvez temeroso da agressividade da militância bolsonarista.

É preciso que os deputados e senadores superem a fixação numa salvação individual nas eleições. Os deputados da extrema direita, segundo a PGR, usam verbas parlamentares para mobilizar o fechamento do próprio Congresso. Não há como se esconder atrás das togas negras do Supremo. É necessária uma frente democrática no próprio Congresso.

“Somos poucos”, dirão os deputados. Mas não importa tanto o número, o importante é começar. Se a pausa acionada com a prisão de Queiroz for entendida como um momento de distensão, uma época para simplesmente deixar andar o processo judicial, ela pode trazer surpresas desagradáveis…

Naturalmente, os processos legais têm de ser acompanhados. Mas os danos ao País continuam a ocorrer. E a chegada de momentos mais dramáticos da crise econômica pede a construção de redes de solidariedade.

Diz a OMS que o mundo sentirá por décadas os efeitos da pandemia de coronavírus. No caso brasileiro, além da pandemia, vamos também sentir por décadas a passagem de Bolsonaro pelo poder.

No trabalho de reparo dos estragos e reconstrução do futuro não pode haver pausa. Mesmo porque as desgraças não nos abandonam nem no cotidiano. O mínimo que esperamos de novo, nessa pausa, é uma voraz nuvem de gafanhotos que nos invade pelo sul do País.

Um aumento de chances de vitória é uma razão suficiente para intensificar a luta. Quanto menos nos preparamos para ela, mais difícil será o desfecho. Sem necessariamente estabelecer um paralelo com o nazismo, a História dos anos 30 é uma aula sobre as hesitações da democracia diante de um perigo no horizonte.

*Jornalista


Vera Magalhães: Um ano perdido

Fuga de Weintraub é símbolo final de desastre da Educação na pandemia

A fuga canhestra de Abraham Weintraub do País e seu desembarque caricato em Miami foram o apogeu de uma gestão daninha na Educação.

O pior ministro da Educação que o Brasil já teve se despediu com um bilhete em papel de pão, um abracinho no presidente e uma banana para o País. Para poder entrar nos Estados Unidos, se valeu de uma fraude ao Diário Oficial, mais um expediente que vai se tornando rotina no governo coalhado de ilegalidades de Jair Bolsonaro.

Antes de mais essas cenas de pastelão, no entanto, o dono da cachorrinha Capitu entregou um ano perdido, em que os alunos não foram apenas expostos aos riscos para a saúde física e mental decorrentes da pandemia, mas à completa falta de perspectiva para seu futuro escolar graças à inépcia do Ministério da Educação.

Depois de, por pura birra, tentar obrigar alunos do Ensino Médio a fazer o Enem sem ter aulas, ou tendo sido jogados de paraquedas num ensino à distância com mais buracos que a superfície da Lua, e ser forçado a recuar pela Justiça e pelo Congresso, Weintraub simplesmente desligou as operações.

Não houve, por parte do MEC, uma diretriz sequer de retomada a Estados e municípios de como planejar a retomada das aulas, e a que tempo.

Além disso, o ministério, que já era um ator tardio e secundário na discussão do financiamento da educação básica a partir do ano que vem, se esqueceu deliberadamente do assunto.

O ministro-clown preferiu gastar seus últimos dias à frente da pasta conspirando contra a democracia, confraternizando com milicianos golpistas, tentando impor às universidades federais reitores biônicos e exterminar as políticas de ação afirmativas adotadas para franquear o acesso à pós-graduação a negros, indígenas e deficientes.

Numa calamidade sanitária, empenhou toda a sua energia na destruição, na apologia ao golpismo, à obsessão de fechar portas àqueles para os quais a Educação deveria ser uma ponte para o futuro.

O estrago é tão indisfarçável que Bolsonaro, que também não está nem aí para a Educação, tem de cobrar dos candidatos a ministro um plano para a volta às aulas, já que a equipe que o fujão deixou não tem nada a apresentar, ao que parece.

As consequências recaem sobre alunos de todos os ciclos, de todo o País e das redes pública e privada. E a borduna, como sempre, vai bater mais forte na cabeça dos mais pobres. As iniciativas municipais e estaduais de ensino à distância são um conjunto irregular e fake, em que uns saíram levemente na frente e outros não conseguiram nem se organizar três meses depois.

Não há compensação possível, por exemplo, para alunos de universidades federais cujas instituições nem tentaram implementar ensino à distância. Jogados em casa, muitas vezes sem acesso a entretenimento ou cultura, esses alunos questionam se o plano que haviam traçado para o próprio futuro ainda fará sentido após a pandemia ter varrido perspectivas acadêmicas, empregos e cadeias produtivas inteiras.

Os pais dos estudantes de escolas e faculdades privadas podem até ter a ilusão de que as aulas online supriram esse buraco, mas basta acompanhar um dia da rotina de alunos jogados diante de telas que jogam conteúdos incompatíveis com a nova realidade para saber que isso é conversa mole para cobrar mensalidade integral.

Cabe a esses pais e estabelecimentos se entenderem, mas no caso da Educação pública a responsabilidade é dos governantes. É urgente que o MEC exume o fantasma Weintraub e assuma um mínimo de articulação de estratégia educacional. E governadores e prefeitos têm de deixar de pensar em reabrir shoppings e focar em dar a pais e alunos um protocolo responsável para redução de danos de um ano perdido.


Rosângela Bittar: Caça acuada, caçadores em vigília

Os fatores que sustentam a mudança de rumo estão em plena ebulição

Aparentemente, há fatos e indícios demais que justificam o afastamento do presidente Jair Bolsonaro. O consenso na política, porém, é de que o cenário ainda exige cautela. A caça foi avistada, está acuada, mas ainda não pode ser alcançada.

Os fatores que sustentam a mudança de rumo estão em plena ebulição. Apenas a reeleição, que Bolsonaro sempre considerou favas contadas, está fora de cogitação. Sucumbiu junto com os milhões de vítimas da covid-19 e dos desempregados por ela. Ainda há quem acredite na reabilitação do candidato nesses próximos dois anos e pouco, mas estes são raros.

Ninguém mais discute, porém, se o presidente resistirá até o fim do mandato. A dúvida é sobre como vai sair, se pela impugnação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ou pela deposição via Congresso, o impeachment. Para os dois desfechos ainda não existem as condições necessárias, em provas, perdas de apoio, enfraquecimento político.

A novidade atual é a troca de posição das probabilidades. A impugnação no TSE, que até há duas semanas era vista como a hipótese mais fácil, perdeu favoritismo. A equação se inverteu.

Duas razões se destacam para a desistência desta aposta. A cassação eleitoral padece de provas incontestáveis. Robôs espalhando notícias falsas, com formação de rede do ódio e seus efeitos decisivos na eleição, são provas “tênues” politicamente, questões áridas e técnicas, de difícil compreensão, até mesmo para os juízes da corte eleitoral.

A impugnação da chapa tornou-se menos palatável. Também, pelo longo tempo que se passou desde a eleição e a extensão da punição ao general Hamilton Mourão, vice-presidente, que não assumiria o poder. Está prevalecendo, no momento, o argumento oposto ao de um grupo da oposição que prefere esta saída exatamente para se livrar de Mourão. Mas já não é a mais realista.

Não por temor de um levante militar. Como mostrou reportagem de Tânia Monteiro, no Estadão, na segunda-feira, o chamado poder militar, representado pelos 11 comandantes que têm o controle das tropas, não tem gabinete no Palácio do Planalto. Atingir Mourão na derrubada de Bolsonaro pode ser um passo em falso e desnecessário.

Quanto ao impeachment, há muita coisa para se imaginar, mas ainda pouca coisa a ver.

A pandemia impede que os líderes e negociadores realizem reuniões. Ninguém articula deposição de presidente da República via internet. Bolsonaro está sendo favorecido justamente pela avassaladora e cruel doença que renegou, desprezou e ironizou. A pandemia da covid-19 tende a manter a política sob pressão até o fim do ano, no mínimo.

Por isto, a análise de pedidos de impeachment é considerada sem viabilidade no momento. Depois das eleições municipais, quem sabe?

A imagem do presidente dificilmente se reerguerá. Foi contaminada pelos piores símbolos do seu governo: os apoiadores presos por atos antidemocráticos, os empresários periféricos financiadores da baixaria, os advogados saídos de becos de arranjos. A tradução do governo, hoje, são as Saras, os Queiroz, os Hangs, os Wassefs.

Estão apenas no começo as investigações sobre os escândalos da “rachadinha”, do gabinete do ódio e dos atos que pedem a volta do AI5.

A equipe econômica pioneira já começou a se dissolver. Até quando o ministro da Economia resistirá?

O presidente fez um cálculo objetivo ao apostar todas as suas fichas no Centrão, alimentado pelos melhores cargos políticos, como os Ministérios das Comunicações, possivelmente o da Educação, os bem nutridos Fundos de financiamento da Educação e da Saúde.

Com este arsenal, o Centrão entra forte na campanha municipal. O que fará depois, são outros quinhentos. Se o cofre a proteger estiver vazio, enfraquecido, isolado, o grupo embarcará, como é de sua natureza, na expectativa de poder futuro.


Monica De Bolle: O maior dos descasos

Enquanto o País quer a volta da normalidade perdida, o governo anuncia o fim do auxílio emergencial

O Brasil ultrapassou os 50 mil óbitos causados pelo SARS-CoV-2, o vírus responsável pela síndrome denominada covid-19, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). De acordo com os modelos epidemiológicos mais apurados, é provável que o Brasil alcance a terrível marca dos 100 mil óbitos até meados de julho. Em meio a tantas mortes, tantas pessoas sofrendo nos hospitais, tantas famílias destroçadas, testemunhamos a indiferença de boa parte da população brasileira. Com a “reabertura”, festeja-se o retorno aos shopping centers, aos restaurantes, às academias. Festeja-se as aglomerações, os churrascos, a volta da “vida normal”. Espanta a falta de percepção de que a vida está e seguirá longe do normal.

A vida não está, nem deveria estar normal, em primeiro lugar, porque os mortos pela covid-19 se somam dia após dia. A comoção que o País sentiu pelos italianos e pelos espanhóis parece passar longe dos olhos e do coração de muitos brasileiros, agora que morrem seus concidadãos.

Em segundo, há um vírus letal e altamente imprevisível em circulação. Esse vírus pode não causar sintoma algum, pode causar sintomas leves, pode levar o paciente a ser entubado, pode levar à morte. Esse vírus, como mostram estudos, pode se alojar nos pulmões, no sistema vascular, nas articulações, no sistema neurológico. Pode deixar sequelas severas. Mas, no Brasil atual, é como se ele não existisse. A vida segue como se as pessoas por ele vitimadas fossem apenas números que se computam todos os dias: sua morte não modifica o presente, nem se nota no governo federal ou em parte da sociedade brasileira qualquer intenção de responder à crise humanitária que assola o País.

Desde o início dessa pandemia – e sobretudo desde que chegou ao Brasil – tenho dito que a economia permanecerá contaminada pelo vírus enquanto ele estiver em circulação. Em artigos para esse espaço e nas transmissões diárias registradas em vídeo que tenho feito há três meses no meu canal do YouTube tenho insistido que, independentemente de medidas sanitárias, o que afeta a economia é o vírus. Isso significa que não haverá normalidade econômica com as pessoas morrendo aos milhares, e é importante que essa impossibilidade fique clara. Os restaurantes cheios, os shopping centers cheios, todos esses estabelecimentos, que são foco de contágio e de disseminação da epidemia, sofrerão as consequências do descontrole da doença. Muitos talvez venham a fechar as portas novamente antes mesmo de terem recuperado perdas decorrentes do fechamento anterior. Os trabalhadores precarizados e mais sujeitos ao contágio talvez sejam infectados, talvez percam qualquer possibilidade de subsistência. De nada adianta fingir que o vírus não existe. Ele está aí e em breve chegará a uma pessoa próxima de cada um, pois essa é sua natureza.

Enquanto se abraça o descaso, enquanto alguns são embalados pela ilusão de uma volta à normalidade perdida, o governo brasileiro aproveita o ensejo para anunciar o fim do auxílio emergencial. De tudo o que se fez e não se fez no Brasil ao longo dos últimos meses, a única medida realmente adequada e relevante que se adotou foi o auxílio emergencial, apesar da sua péssima implementação pelo governo federal. Removê-lo no meio de uma epidemia que continuará a matar, a destruir famílias, a fomentar o medo e a insegurança é uma aposta em infundir medo. Não me parece despropositado entender que acabar com o auxílio emergencial, nas circunstâncias presentes, é uma forma de continuar uma política abjetamente irresponsável que a pandemia deu ao governo federal a oportunidade de implementar. Também não é exagero afirmar que, hoje, o fiscalismo excessivo – o zelo pelas contas públicas nesse momento inédito, o dogma do teto de gastos -- abraçado por alguns economistas mata.

O auxílio emergencial e o deslocamento da renda básica da cidadania para o centro do debate público revelam que às vezes vale apostar no que deve ser comum a nós todos: o direito à vida digna, a inclusão na democracia, a igualdade de voz na política. Eles também revelam, no entanto, que isso que nos deve ser comum, a experiência da cidadania, depende de condições materiais. O auxílio emergencial e a renda básica nos unem como sociedade, algo que ameaça qualquer governo que só consegue se sustentar provocando divisões e tensões. Não é hora de acabar com o auxílio emergencial. Também há risco em tornar a causa da renda básica, cujo interesse é transversal à sociedade, uma plataforma a partir da qual generalizar outras lutas, ainda que justas e urgentes. A renda básica terá efeitos sobre injustiças históricas que têm sido articuladas em termos de diferenças, mas ela não é sobre diferenças. Pelo contrário: a melhor forma de se construir a renda básica ao público é a partir daquilo que temos em comum: o direito à cidadania.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Pedro Fernando Nery: Décadas de vírus

Não há isolamento que resolva vírus que contamina em casa

A cadeirinha no carro. O estado de alerta perto de piscinas. A vigilância com objetos miúdos na boca. O medo da posição errada no sono. Preocupações normais de pais de crianças pequenas. Mas o leitor pode se surpreender ao saber que no Brasil há uma causa de morte prevenível muito mais comum nas crianças de até 5 anos. Oito vezes mais frequente que a síndrome de morte súbita, quatro vezes mais que as mortes por afogamento, o dobro das mortes no trânsito ou por aspiração de objetos. É a morte por diarreia, que só em 2015 vitimou cerca de 2 mil crianças brasileiras na primeira infância.

Uma das fotos mais tristes da atual pandemia é a do fotógrafo Michael Dantas, mostrando um garoto beneficiado por uma campanha de distribuição de máscaras em um bairro pobre de Manaus. A máscara amarela se destaca: além dela o menino veste apenas uma bermuda, cercado por uma água imunda tomada pelo lixo. É de uma ironia melancólica: a máscara para protegê-lo do coronavírus, enquanto segue exposto aos rotavírus, adenovírus, enterovírus, norovírus, sapovírus, astrovírus, calicivírus ou o da hepatite A – além das bactérias e vermes da água escura que cerca seu corpo.

Os dados que abrem esta coluna são de estudo da professora Elisabeth França e outros pesquisadores brasileiros, publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia e financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates. Ele mostra também que houve enorme progresso quanto à morte de crianças por doenças diarreicas desde 1988, apesar desta ainda ser uma das dez principais causas de morte até os 5 anos. Para além do índice de mortalidade, outros estudos mostram o impacto devastador que a falta de água limpa tem nessas vidas.

Como os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento do cérebro, ele é prejudicado pelas doenças da água suja, que afetam a absorção de nutrientes. A ausência de saneamento afetará no futuro desde a altura até as capacidades cognitivas desse cidadão. Pesquisadores chegam a estimar a perda de pontos no QI ou de anos de escolaridade em função das diarreias nos primeiros anos de vida. Para piorar, alguns protozoários e bactérias de água suja podem afetar o desenvolvimento ainda que não causem diarreia. O total do potencial humano perdido não se estima.

No Brasil, quase metade da população não tem serviços de coleta de esgoto e cerca de 35 milhões vivem sem acesso a água tratada. A situação é pior para a população negra e no Norte e Nordeste. A realidade também é dramática nas escolas: 15% nem chega sequer ter banheiro em suas dependências.

Os adultos, evidentemente, também são afetados. A OMS calcula que cada real investido no saneamento economiza quatro reais na saúde. Já o Instituto Trata Brasil projeta bilhões de reais de ganhos no PIB com a universalização do saneamento, decorrentes de aumento da produtividade do trabalho, menos afastamentos, melhora no aprendizado nas escolas – além dos ganhos com valorização imobiliária e turismo. Mas para o instituto, no ritmo atual de investimentos a universalização pode demorar 120 anos.

O marco do saneamento, que passa por idas e vindas desde 2018, pode ir à votação final esta semana. Ele estabelece a universalização até 2033 (ou em determinadas condições até 2040), com competição com o setor privado.

Parte da controvérsia sobre o projeto pode ser visualizada na manifestação de uma deputada que votou contra ele: “Chega a ser um escárnio. Porque o projeto propõe metas para as companhias públicas”. Metas de universalização e quebras de monopólios mobilizam os interesses das corporações dessas companhias públicas, o que explica parcela da dificuldade que a pauta teve em avançar nos últimos anos. O especialista em infraestrutura Claudio Frischtak mostra que de 2014 a 2017, 3 de cada 4 companhias estaduais priorizaram gastos com folha em relação aos investimentos.

Convidado por Bill Gates para contribuir a resolver “o problema do saneamento”, o engenheiro Peter Janicki, bem-sucedido dono de uma empresa que fabrica componentes aeroespaciais, se surpreendeu: “Que problema do saneamento?”. Para parte da sociedade, é difícil conceber que as famílias mais pobres vivam de forma tão diferente da sua. Mesmo entre os ambientalistas parece haver interesse muito maior por pautas mais “instagramáveis”, como a questão da Amazônia.

Se na pandemia debatemos temas do século 21, como a renda básica universal, ainda não superamos um tema dos séculos passados: o saneamento básico universal. Quando o coronavírus passar, milhões de brasileiros pobres continuarão convivendo com doenças infecciosas na rotina de suas famílias. Não há isolamento que resolva vírus que contamina em casa.

*DOUTOR EM ECONOMIA


Ana Carla Abrão: Paciência

Na ausência de planejamento, a recuperação no Brasil deverá frustrar as expectativas

O mundo parou, o Brasil parou. A atividade econômica foi desligada pela pandemia e agora começa a ser religada – de forma mais ou menos organizada, a depender da existência ou não de um plano estruturado de gestão das medidas de isolamento.

Nesse processo de volta, várias pesquisas estão sendo feitas com o objetivo de se entender o que mudou no comportamento das pessoas e qual será a intensidade da retomada econômica. Há algo de boa notícia em boa parte delas. Assim como há uma clara alteração nos padrões de comportamento das pessoas. Essas alterações deverão afetar de forma relevante as decisões econômicas dos agentes.

Pelo lado da boa notícia, há alguns sinais de recuperação da confiança. Eles estão presentes, por exemplo, no Observatório da Febraban, um tracking nacional realizado entre 1.º e 3 de junho, com uma amostra de 1.000 entrevistados que visa a representar a população adulta brasileira bancarizada. Os resultados não deixam de surpreender positivamente ao sugerirem que 49% dos entrevistados acreditam que suas finanças voltarão ao que eram antes da pandemia no prazo de até 1 ano. Desses, 21% acham que isso acontecerá ainda este ano. Quando a pergunta se volta para o Brasil, percebe-se um otimismo menor, mas algo positivo se considerarmos que 24% acreditam numa recuperação da economia brasileira em até 1 ano e outros 43% em 2 anos, ou seja, até 2022. Homens e jovens se mostram mais otimistas nas duas dimensões. Certamente porque também foram menos impactados pela crise que reforçou as desigualdades sociais, em particular as de gênero.

O Observatório segue com outras informações onde também surgem sinais de que há uma demanda que os meses de isolamento não fez sumir. Dentre os entrevistados, 14% afirmam que seu volume de compras vai crescer e 15% pretendem buscar financiamento para adquirir um imóvel residencial. Outros 14% declararam intenção de comprar um carro ou uma moto financiados. O crédito consignado aparece como a linha de desejo para 15% dos entrevistados. Desejo que certamente deixará de ser atendido se prosperar o Projeto de Lei 1.328/2020 de autoria do senador Otto Alencar (PSD-BA) e aprovado no Senado Federal na última semana. Assim como serão afetados todos os demais que indicaram a intenção de buscar linhas de financiamento e os outros 16% que demonstram intenção de recorrer a empréstimos bancários. Sim, o populismo sai muito caro e prejudica a população.

Na dimensão comportamental, segue o Observatório, 46% da população bancarizada tende a priorizar as soluções digitais, ante apenas 14% que vão se manter fiéis ao atendimento presencial. No consumo, as respostas apontam na direção de manutenção ou aumento de hábitos, como as idas ao supermercado (78%), a salões de beleza (66%) ou a comércios de rua (55%). O resultado é contudo ambíguo quando a pergunta se volta a bares e restaurantes ou shoppings, com parcelas quase iguais das pessoas entrevistadas afirmando que vão manter/aumentar ou diminuir sua frequência nesses serviços.

Há outras pesquisas circulando, todas com algum grau de otimismo e sinalizando mudanças comportamentais relevantes. A pesquisa feita pela revista Fortune, com presidentes das 500 maiores empresas mostra uma expectativa de recuperação um pouco mais lenta, iniciando-se em 2021, mas se concentrando no início de 2022. Ali também, há claras indicações de mudanças comportamentais, em particular no que tange a volta ao local de trabalho, à retomada das viagens a trabalho e à aceleração digital, todos fatores que continuarão impondo desafios às companhias do mundo todo e com grandes impactos em alguns setores econômicos.

Os desafios são muitos aqui e lá fora. Mas na ausência de planejamento, a recuperação no Brasil deverá frustrar as expectativas daqui e ficar aquém da realidade de lá. A mesma paciência que tem nos mantido em isolamento social e tantas vidas já salvou deveria se reverter em impaciência com a ausência de uma coordenação, pelo Executivo, das agendas nos diversos níveis federativos e entre os três Poderes constituídos.

Uma crise dessa magnitude exige que o Executivo defina e apresente à sociedade com clareza quais são suas prioridades no Parlamento e quais serão as ações nas áreas social, econômica e de crédito para tirar o País da crise. No campo federativo, há que se discutir como Estados e municípios poderão sair da crise fiscal que já os assolava e que agora se agravou. Não há como contar só com o otimismo do mercado e as expectativas positivas da população como motores de recuperação. À economia que já vinha frágil, juntou-se o agravamento das condições sociais e o tombo que jogou produtividade e crescimento para o campo negativo. A continuar esse quadro, nem as expectativas terão paciência.


Eliane Cantanhêde: Medo e barbeiragem

De erro em erro, Bolsonaros embolam Queiroz, Adriano, Wassef e demonstram medo

Nesse oceano de pessoas e fatos inacreditáveis, destacam-se as barbeiragens da família Bolsonaro ao tratar do amigão Fabrício Queiroz e de todas as questões nebulosas, e sob investigação do Ministério Público, que envolvem o agora senador Flávio Bolsonaro e resvalam perigosamente para o próprio presidente Jair Bolsonaro.

Tudo começa com a rachadinha operada por Queiroz no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, chega a funcionários fantasmas ali e também no gabinete de Jair na Câmara em Brasília, evolui para suspeita de lavagem de dinheiro e traz à tona as ligações de Jair, Flávio e Queiroz com um líder da milícia fluminense, o capitão Adriano, morto pela polícia. Engrossa esse novelo Frederick Wassef, falastrão, exibicionista e longe de ser um criminalista com dimensão para representar um senador, quanto mais o presidente.

Não bastasse a barbeiragem de abrir as portas dos palácios da Alvorada e do Planalto a Wassef, que tal permitir (ou pedir?) que ele escondesse Queiroz na sua casa de Atibaia? Não foi Queiroz que se meteu lá. Logo, meteram o Queiroz justamente na casa do advogado do presidente da República e do seu filho senador. Equivale a jogar Queiroz definitivamente no colo de Bolsonaro e Flávio. Coisa de gênio.

A barbeiragem seguinte vem com as reações de ambos. Numa live para tentar dizer que não tem nada com Queiroz, Jair põe-se a defendê-lo. A prisão foi “espetaculosa”, o amigo não estava foragido e não havia mandado de prisão contra ele, mas “pareciam estar prendendo o maior bandido do mundo”. Bolsonaro está solidário com o amigo que quebrava os maiores galhos do filho? Ou não pode atirá-lo às feras porque Queiroz tem muito revelar?

Segundo depoimentos, Queiroz chegou chorando e muito abalado à prisão no Rio, o que é uma péssima notícia para Jair e Flávio Bolsonaro. Nada pior do que um potencial homem bomba imprevisível e desestruturado emocionalmente, inclusive porque sua mulher, Márcia, fugiu e pode entrar para a lista de procurados da Interpol. Aliás, ela própria tem muito o que contar, se contar.

Outra barbeiragem é o advogado de Queiroz. Nada contra ele, mas contra a simbologia. Paulo Emílio Catta Preta era advogado do miliciano Adriano. Aprofundar os elos entre Queiroz, Adriano, Flávio e Jair Bolsonaro? Depois de Flávio condecorar o líder da milícia, Jair elogiá-lo publicamente e a família empregar a mãe e a mulher dele em seus gabinetes?

A primeira família tem de se preocupar também com Wassef, que está em evidência – e adorando. Se usufruía da intimidade dos Bolsonaro a ponto de abrigar Queiroz em casa, ele sabe de muita coisa. E não tem cara de guardar segredos, nem de dar a vida por alguém. Daí porque enxotaram Wassef dos casos de Flávio, mas o senador fez rasgados elogios ao enxotado em redes sociais: “A lealdade e competência do advogado Frederick Wassef são ímpares e insubstituíveis”. A cobrança de “lealdade” e o adjetivo “insubstituível” para quem está sendo substituído têm um sinônimo: medo.

E aí vem a última barbeiragem - até agora. O substituto do insubstituível Wassef é respeitável, mas foi advogado de Sérgio Cabral e de militares acusados de “excessos” na ditadura. Cabral é um dos maiores símbolos de corrupção. E a sensação de que generais sugeriram advogado para o caso Flávio-Queiroz vai na contramão do desejável: que eles fiquem (ficassem) a léguas dessa lambança toda.

É hora de todos desconfiarem de todos e de todos quererem se livrar de todos – presidente, Flávio, militares, Queiroz, Márcia, Wassef, advogados, a mãe e a mulher de Adriano -, mas quanto mais barbeiragens vão fazendo, mais eles se embolam perigosamente. O clima é de medo. E isso tudo ainda vai muito longe.


José Murilo de Carvalho: O grande mudo

A doutrina da mudez política do Exército não prosperou entre nós

O jornalista Larry Rohter, que acaba de publicar excelente biografia de Rondon, citou com admiração em sua coluna na revista “Época” uma frase dita pelo marechal em 1956: “O Exército deveria ser o grande mudo”. Zuenir Ventura, aprovando, repercutiu a citação em sua coluna do GLOBO. Como o assunto é atual, vou espichá-lo um pouco.

A frase chegou ao Brasil em 1920 com os componentes da Missão Militar Francesa, chefiada pelo general Gamelin, que fora contratada pelo ministro Calógeras, o único civil a comandar o Exército na República. Existia na França a expressão: L’Armée est la grande muette, referindo-se, naturalmente, a seu caráter apolítico. Antes, entre 1906 e 1912, por sugestão do barão do Rio Branco, três turmas de jovens oficiais brasileiros tinham estagiado no Exército alemão, que adotava o mesmo princípio. De volta ao Brasil, criaram a revista “Defesa Nacional”, de caráter exclusivamente profissional e que lhes valeu o apelido de jovens turcos. A revista só se referiu uma vez à primeira revolta tenentista de 1922. O autor, um oficial da Missão, insistiu em que a neutralidade política dos oficiais era a marca das democracias liberais. Rondon, então com 55 anos, estava no Rio nessa época e foi seguramente quando tomou conhecimento da expressão que transmitiu a Rohter.

A doutrina da mudez política do Exército, no entanto, não prosperou entre nós. Entre os líderes dos “turcos”, talvez o único que a manteve consistentemente por toda a vida foi o general Leitão de Carvalho. Suas ideias foram expostas no livro “Dever militar e política partidária”, publicado em 1959; sua atuação está descrita nas memórias que deixou. Ele se recusou a apoiar a Revolução de 1930 e todos os muitos movimentos militares das décadas de 1920 e 1930. Outro “turco” de destaque, o futuro general Bertoldo Klinger, fez suas adaptações. Já no primeiro número da “Defesa nacional”, dizia que o Exército deveria ter uma função “conservadora e estabilizante”. Para isso, as intervenções militares não podiam vir de baixo para cima, como em 1922 e 1924, tinham que vir de cima para baixo. Em 1930, vitoriosa a revolução, um Movimento Pacificador depôs o presidente W. Luís. Nomeado chefe do Estado-Maior, o então coronel Klinger propôs uma solução de Estado-Maior. Segundo ele, o destino do Brasil deveria ser o naquele momento entregue aos generais de terra e mar, que convocariam nova eleição.

Dos ex-alunos da Missão Francesa, quem mais se projetou foi o general Góis Monteiro. Depois de ter combatido os rebeldes de 1924, renegou toda ideia de mudez e aceitou a chefia militar da Revolução de 1930. Era, então, um tenente-coronel. Vitoriosa a revolta, foi logo promovido a general e publicou um livro intitulado “A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército”, com prefácio de José Américo de Almeida. Nele escancarou as teses de Klinger. O Exército é “um órgão essencialmente político”. Lançou mão dos ensinamentos militares da Missão Francesa para usá-los contra a doutrina da mudez. Era preciso, escreveu, “fazer a política do Exército e não a política no Exército”. Só à sombra do Exército e da Marinha se poderiam organizar as outras forças nacionais. Durante o período de 1930 a 1945, dedicou-se a aplicar a ideia de Klinger: fazer do Exército um ator político unido, eficaz, falante. Os 88 movimentos militares de protesto de 1930 a 1939 foram reduzidos a seis entre 1940 a 1945.

Entre 1937 e 1945, Góis e Dutra monopolizaram o posto de ministro e a chefia do Estado-Maior. Em 1945, as Forças Armadas, em decisão conjunta dos três Estados-Maiores, derrubaram Getúlio Vargas. Adeus Missão Francesa, adeus Exército grande mudo.

*José Murilo de Carvalho é historiador


Rubens Barbosa: Relações entre civis e militares

Seria importante comandantes das FFAA se dissociarem de atos contra as instituições

As relações entre civis e militares ao logo da História republicana nunca foram bem resolvidas. O pensamento e as atitudes de cada lado se aproximam ou se distanciam por interesses comuns ou por questões ideológicas momentâneas.

Não faltam exemplos de cada uma dessas situações, a começar da Proclamação da República, passando pelo tenentismo, pelo período Vargas, pelo movimento de 64 e, agora, com a forte presença militar num governo civil eleito democraticamente. Nos últimos 35 anos, cabe ressaltar, as Forças Armadas cumpriram exemplarmente seu papel constitucional, mas não se pode negar a ocorrência de tensões, de tempos em tempos, em grande medida por desconhecimento da sociedade civil de suas atividades, prioridades e ações.

No tocante à política interna, do lado militar ainda não foi claramente resolvida a diferença da ação política entre militares da ativa e da reserva. Do lado civil, para ficar nos tempos mais contemporâneos, desde as “vivandeiras de quartéis” até hoje, com os que pedem a intervenção das Forças Armadas e o fechamento do Congresso e do STF, prevalece a tentativa de ignorar os limites do papel dos militares na política.

Do lado militar, não está explicitada claramente a separação entre o profissionalismo das Forças Armadas como instituição do Estado, sem manifestação de apoio a partidos ou grupos políticos, e a atuação política de militares que, ao passarem para a reserva, incorporam valores civis e deixam de representar a instituição.

Do lado civil, Congresso e sociedade deveriam ter maior presença nas discussões sobre questões de interesse das Forças. A Estratégia e a Política Nacional de Defesa, que deverão ser submetidas a exame do Congresso, deveriam ser discutidas em profundidade e merecer a atenção da classe política, ao contrário de até aqui.

A ideia de um centro para o estudo das relações civis e militares, de defesa e segurança, sugerida pelo ministro Raul Jungmann e apoiada pelo Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), viria a preencher uma lacuna com a criação de um fórum privado para exame e discussão de temas relacionados com a despolitização das Forças Armadas, fortalecimento do controle civil e papel dos militares no processo decisório do Estado brasileiro.

No atual governo surgiu uma situação diferente dos governos anteriores a partir de 1985. Superado o período de governos militares, nos últimos 30 anos podem ter surgido tensões esporádicas, mas recentemente elas se acentuaram pela participação de grande número de militares da reserva e da ativa em cargos públicos no governo federal (mais de 2.900) e pelo estímulo de setores governamentais a ataques a instituições democráticas. No início julgou-se que os militares no governo poderiam servir de anteparo e de fator de moderação de políticas extremadas com forte viés ideológico, em especial na política externa, com graves e potenciais repercussões para os interesses brasileiros. Com o passar do tempo cresceu a dubiedade de afirmações de militares ministros (“consequências gravíssimas”, “esticar a corda”, “não cumprem ordens absurdas, como a tomada de poder por outro Poder da República por conta de julgamentos políticos”, sempre ressaltando o respeito à Constituição) e a percepção de que as Forças Armadas estão associadas ao governo e o apoiam. Isso resultou no desgaste da instituição e na crescente rejeição de ideias antidemocráticas.

Diferentes interpretações sobre o papel das Forças Armadas, estimuladas tanto por setores civis como por militares, trouxeram a público a discussão sobre o poder moderador dos militares, à luz do artigo 142 da Constituição. O presidente do STF, Dias Toffoli, havia se manifestado no sentido de que “as FFAA sabem muito bem que o artigo 142 da Constituição não lhes confere o papel de poder moderador”. O voto do ministro Luiz Fux, ao fixar regras e limites de atuação das Forças Armadas, conforme a Constituição, tudo indica, deverá ser respaldado pelo plenário do STF. A nota assinada pelo presidente da República, pelo vice-presidente e pelo ministro da Defesa aceita essa interpretação, ao lembrar que “as FFAA destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. A decisão da Suprema Corte poderá ser a pedra angular do novo relacionamento entre civis e militares.

Militares em funções políticas de ministros e altos funcionários do governo observam seguidamente que as atitudes políticas de militares com postos no governo são de lealdade e não podem ser confundidas com a postura isenta das Forças Armadas como instituições de Estado. É do vice-presidente, militar da reserva, a afirmação de que “precisa acabar essa história de que as FFAA estão metidas na política”.

Essas afirmações seriam corroboradas pelo silêncio dos comandantes das três Forças, militares profissionais em função no Ministério da Defesa. Para encerrar de vez esse capítulo seria importante que os comandantes das três Forças se manifestem publicamente, dissociando-as de demonstrações contra as instituições, caso venham a se repetir. Com isso ficaria claro o não envolvimento da instituição na política interna e seu total respeito à Constituição.

*Embaixador, com tese de mestrado sobre as relações entre civis e militares na London School of economics (1972)


Luiz Carlos Trabuco: Em busca do consenso possível

A pandemia está nos dando muitas lições, entre as quais a importância da cooperação e da corresponsabilidade

Passados mais de três meses do início da epidemia da covid-19 no Brasil, já está bastante claro qual será o custo econômico que teremos de enfrentar neste e nos próximos anos. O déficit primário subirá para R$ 700 bilhões em razão dos gastos com os programas de combate ao coronavírus, segundo estimativa da Secretaria do Tesouro, bem mais do que o previsto no início de 2020. Como haverá necessidade de financiamento para conter esse déficit, a dívida pública deve aumentar. Analistas já preveem uma dívida próxima dos 100% do PIB.

Depois do achatamento da curva da pandemia, é o achatamento da curva dívida/PIB o principal desafio dos gastos da pandemia. Quanto mais achatada estiver essa curva, maior será a capacidade de voltar a crescer.
Já enfrentamos cenários difíceis e conseguimos superá-los. Foi assim com a inflação, a dívida externa e os juros.

Para que o Brasil superasse esses desafios houve um fator em comum, que foi a criação de um ambiente favorável à construção do que eu chamo de estado do consenso possível.

Trata-se de um acordo tácito que leva o governo, o Congresso, os partidos políticos, os empresários e os trabalhadores a convergirem em torno de uma agenda mínima a ser implantada.

Acredito que o País está preparado para um acordo sobre como pagar essa conta que chegará ao final da pandemia do novo coronavírus.

A premissa central desse acordo é deixar de lado a ideia de que existe um pacote mágico de medidas. Esse tempo já passou. Será preciso pactuar os interesses, respeitar as diferenças, identificar as prioridades com bom senso, mobilizar a sociedade sobre o que será preciso ser feito.

As alternativas técnicas estão sobre a mesa, o caminho será resultado de diálogo político e convergência pragmática das ideias. As diferenças e divergências políticas não podem ser maiores que o sentimento de urgência para a volta do crescimento econômico, dos investimentos e da criação de empregos.

A equipe econômica dá um exemplo concreto na direção do consenso possível ao restabelecer, no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), prioridade para a privatização ainda neste ano da Eletrobrás, Correios, Porto de Santos e Pré-Sal Petróleo S/A. Trata-se de uma informação importante, que pode dar tração à mudança de expectativas dos investidores – algo que tanto necessitamos.

Outra boa notícia vem do Congresso com o avanço do novo marco regulatório para o saneamento. Uma reforma tributária está amadurecendo, com sinalizações positivas do governo federal, de governadores, de líderes do Congresso e entidades do empresariado. É tema complexo, que exige negociações exaustivas, dedicação, paciência e tolerância de todas as partes envolvidas.

A reforma administrativa é outro exemplo de tema que deve ser encarado como prioridade. A iniciativa privada respondeu à crise da covid-19 com medidas gerenciais de aumento da eficiência. É com esse conceito que estamos conseguindo superar a brusca redução da atividade econômica. A reforma administrativa nada mais é que dotar o setor público de ferramentas para aumentar sua eficiência nesse momento de superação da crise.

Temos a nosso favor, para a retomada do crescimento econômico, juros básicos historicamente baixos. Além de um estímulo ao consumo, tão necessário para a indústria e o comércio, esses juros permitirão que pessoas e empresas se apoiem em mais crédito para a realização de projetos e invistam em novos negócios.

O que desejamos realmente é um Estado mais eficiente, moderno e que não perca de vista suas funções precípuas e compromissos com o bem-estar da sociedade. O maior deles, a responsabilidade fiscal, que é a base necessária para a reconstrução de uma economia melhor e mais justa.

A pandemia está nos dando muitas lições, entre as quais a importância da cooperação e da corresponsabilidade. Seu maior legado, porém, é a esperança de que dias melhores virão.

PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO