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O Estado de S. Paulo: Vamos ter uma alteração estrutural da economia no pós-covid, diz Edmar Bacha
Integrante da equipe que criou o Plano Real disse que recuperação do Brasil será lenta, mas abrirá espaço para a questão da distribuição de renda do País e o aumento dos gastos públicos
Vinicius Neder, O Estado de S.Paulo
RIO - O economista Edmar Bacha, diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (IEPE/CdG) e integrante da equipe que criou o Plano Real, vê pouco espaço para uma recuperação rápida, em “V”, da economia brasileira, que entrou em recessão no primeiro trimestre deste ano, conforme o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Membro do órgão colegiado, Bacha acha que o mais provável é que o ritmo de recuperação da atividade estacione num platô, à medida que o impulso das medidas do governo for passando.
Embora seja favorável à discussão sobre a manutenção dos auxílios emergenciais via unificação dos programas de transferência de renda, Bacha ressalta o aperto dos gastos públicos no País, que exige reformas para liberar espaço para ampliar o investimento em políticas focadas na redistribuição da renda.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Estamos em meio à recessão, mas há espaço para recuperação em “V”?
Nos Estados Unidos, como reportou a Marcelle (Chauvet, professora da Universidade da Califórnia, integrante do Codace, na reunião da última sexta-feira, 26), foi feita uma pesquisa muito interessante com economistas sobre a forma da retomada. Já houve duas rodadas da pesquisa. Na primeira, a maior parte dos economistas colocou o “V”, e, agora, todo mundo mudou do “V”, para algo que começa com um “V” inclinado, mas logo depois atinge um platô. E essa questão do platô é fundamentalmente por causa do esgotamento dos impulsos fiscal e creditício que o governo está dando. Quando isso acabar, como vai ficar? Depois, do lado do vírus, tem a questão de que isso vai exigir uma realocação muito pronunciada da atividade econômica. O mundo pós-covid não vai ser o mesmo. Vai ser bastante diferente. A natureza da atividade econômica vai ser muito distinta, com setores que vão ser beneficiados e os setores que vão ser prejudicados. Vamos ter uma alteração estrutural, se não permanente, pelo menos prolongada na estrutura das atividades econômicas.
No caso do Brasil, o quadro é diferente, já que o espaço fiscal para manter medidas é menor?
Obviamente, o Brasil tem bastante menos espaço fiscal do que os países que têm moeda-reserva. (…) Com esse agravamento do quadro fiscal, estamos indo para uma relação dívida pública sobre PIB de 100%. Agora, se temos menos espaço fiscal, temos um pouquinho mais de espaço monetário. Os juros lá (nos países desenvolvidos) já estão em zero. Isso é uma questão complexa, que vai depender muito da capacidade que temos de reestabelecer o ânimo empresarial e a disposição dos consumidores a gastar.
Os impulsos ficais ajudam no consumo das famílias, não?
Nos Estados Unidos, por causa das transferências, houve uma retomada muito forte, praticamente no nível anterior, do consumo das classes mais pobres. O consumo que está retraído é o consumo dos 25% mais ricos, do pessoal que fugiu de Manhattan. Esse consumo vai voltar quando o medo passar. O curso do vírus é que vai determinar um pouco esse processo de retomada do consumo da parte mais substantiva do total. Embora seja menos gente (os 25% mais ricos), o poder de compra é muito maior.
Isso vai acontecer no Brasil ainda?
Com certeza. Não temos ainda esse tipo de dado. Nos Estados Unidos é um pouco mais fácil porque aqui as pessoas mais pobres ainda gastam em dinheiro. Isso é mais difícil de traçar.
Diante disso, deveríamos investir na manutenção dos auxílios emergenciais?
O ideal seria a gente encontrar um espaço fiscal para fazer uma ampliação do Bolsa Família. Esse é um tema que está em discussão muito ampla, tem propostas pipocando para todo lado, algumas mais fantasiosas, outras mais realistas. Há uma coisa emergencial, que é o prolongamento do auxílio, dado que o vírus não se abateu no período que estávamos com esperança que se abatesse. A outra questão é como será o formato mais ou menos prolongado desse processo.
O sr. é favorável a uma ampliação das transferências?
Acho importante, temos que discutir isso. Podemos fazer desta crise uma oportunidade para uma discussão séria sobre distribuição de renda no País.
É possível fazer isso sem reformas, como a administrativa e a tributária?
A alternativa a isso seria aumentar brutalmente os impostos, o que não é o caso. Já estamos com uma carga tributária, para nosso nível de renda, bastante alta. Temos que conseguir um jeito é de redistribuir o gasto. E tem que melhorar a qualidade dos impostos, obviamente.
Qual a consequência de continuar aumentando a dívida pública?
Isso seria autodestrutivo, porque a retomada depende do restabelecimento de um ambiente de negócios. As oportunidades estão aí. A do saneamento está sendo criada (com a aprovação, na semana passada, do novo marco regulatório para o setor). A questão é saber se o pessoal (os investidores) vai vir. Para vir, precisa ter confiança no ambiente de negócios e em tudo o mais. Num País que está com a dívida descontrolada, quem vai ser louco (de investir)?
Como fazer as reformas?
Vai ter que fazer uma redistribuição. Então, vai haver perdedores, sem dúvida. Não é fácil. Não é uma coisa para fazer do dia para a noite. Vai precisar de um debate amplo na sociedade, para ter uma avaliação muito clara para as pessoas do que se trata. Não vai chover dinheiro. Vamos tirar dinheiro de um lado e colocar no outro. É importante que esse debate seja bastante amplo, porque se depender só dos lobbies que pressionam o Congresso, não vamos chegar a lugar algum.
O sr. está mais pessimista ou otimista com os rumos da economia?
Estamos numa situação extremamente difícil. Normalmente, os períodos de expansão são muito mais prolongados do que os períodos recessivos. É uma característica do ciclo econômico tradicional. Agora, pega essa última leva. Tivemos um período recessivo, de 2014 a 2016, que é praticamente da mesma extensão (11 trimestres) que a expansão que tivemos até o ultimo trimestre do ano passado (de 12 trimestres). Só isso já é uma sinalização bastante clara da precariedade. A economia já estava andando de lado. Essa expansão não foi nada para ficar muito entusiasmado. A economia já não vinha bem das pernas. Precisamos ter um conjunto de mudanças muito substantivas para uma retomada mais vigorosa e para termos um espaço mais amplo para essa discussão dos sistemas redistributivos, que são tão importantes no Brasil.
As medidas dos países desenvolvidos podem beneficiar o Brasil com um crescimento global maior?
Já estamos nos beneficiando da retomada na Ásia. As exportações brasileiras para a Ásia estão indo muito bem, obrigado. Nesse sentido, sim, mas isso olhando para os próximos meses. A questão que se coloca mais à frente, pós-covid, é como vai ser essa reestruturação, a recomposição da economia mundial, toda essa questão do protecionismo e do papel das organizações internacionais. Isso vai depender muito do resultado das eleições (presidenciais) americanas (marcadas para novembro).
Eliane Cantanhêde: A crise continua
Bolsonaro mantém Decotelli em nome de seus 42 anos de vida pública, mas até quando?
A erosão do “robusto currículo” do professor Carlos Alberto Decotelli dá raiva, pena e, principalmente, medo da disputa reaberta no Planalto para fazer o novo ministro da Educação depois do inusitado Vélez Rodríguez, do inqualificável Abraham Weintraub e do constrangedor Decotelli. A ala militar, que indicou o doutor que não é doutor, está envergonhada. A ala ideológica, dos filhos do presidente, está esfregando as mãos, gulosa. E o Centrão, vai desperdiçar essa chance?
As chances de Decotelli permanecer ministro pareciam ter ruído junto com o seu currículo, já que a tese de mestrado na FGV é acusada de fraude, o título de doutor na Argentina não existe e o pós-doutorado na Alemanha foi uma um devaneio – não há pós-doutorado sem doutorado. O presidente Jair Bolsonaro, porém, decidiu prestigiar “o lastro acadêmico e sua experiência de gestor”, em detrimento de “problemas formais de currículo”. Por enquanto, Decotelli fica. Até quando?
O único item do currículo que fica em pé é o curso de Administração na Universidade Estadual do Rio (Uerj), o que poderia ser suficiente para a posse no MEC. O problema é inventar títulos e ser acusado de plágio, um vexame inominável para ele próprio e um constrangimento desnecessário para Bolsonaro, que, induzido ao erro, publicou nas redes sociais o currículo cheio de buracos. Assim como ele, a mídia também.
Bastaram os repórteres vasculharem daqui e dali para descobrir esses buracos. Por que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) não fez o seu trabalho de filtro? Ou displicência, ou a checagem de nomes é só ideológica, ou a decisão foi tão rápida pelo presidente que não deu tempo de consultar o GSI/Abin. A terceira hipótese faz mais sentido. Bolsonaro tinha pressa para indicar um nome, porque a “ala ideológica” – leia-se: os filhos e assessores fascinados pelo tal guru da Virgínia – não queria perder a vaga. A “ala militar” agiu rápido e o presidente assinou a nomeação.
O fato é que Bolsonaro não dá a mínima para o ministério e para a própria Educação, fundamentais em qualquer lugar do mundo e ainda mais no Brasil, onde o problema maior, o problema-mãe, é a desigualdade social. Como criar uma grande nação com uma parcela tão grande da população excluída, sem chance de um lugar ao sol. Como salvar a Educação, garantir o futuro das crianças pobres? Com Vélez, Weintraub, Decotelli, ideologias fajutas, currículos fraudulentos? E esse drama não acabou. Pobre MEC, pobre Educação, pobres crianças pobres.
E por que a “pena”, ao lado de raiva e medo no primeiro parágrafo? Decotelli é um professor negro, respeitado no meio acadêmico, com perfil técnico, e foi muito bem recebido depois de dois traumas sucessivos no MEC. Num momento de mobilizações nos Estados Unidos e no mundo democrático pela igualdade racial, ele seria o primeiro negro num governo que tem na Fundação Palmares Sergio Camargo, um negro que nega o racismo no Brasil. Logo, Decotelli tinha tudo a ver. Mas não resiste aos fatos.
O professor deu estranhas versões ontem ao presidente e à mídia, dizendo que o plágio na tese de mestrado na FGV foi porque “leu demais” e que sua tese de mestrado foi reprovada por ser “muito profunda”, o que remete a uma comparação injusta, mas que acaba surgindo, com o mentiroso advogado Frederick Wassef. Haja cara de pau!
O que fica é tristeza, desencanto, constrangimento, vergonha. Decotelli parecia uma grande referência e exemplo, mas foi virando uma grande decepção e constrangimento. O presidente anuncia que ele fica, mas, como tudo o que é ruim sempre pode piorar, não convém desprezar a hipótese de um terceiro “olavista” no nosso MEC.
Carlos Pereira: Tea Party à brasileira
Perfil similar a movimento dos EUA garante sobrevivência política de Bolsonaro
Diante da avalanche de notícias e eventos ruins que o governo Bolsonaro tem acumulado nas últimas semanas, era de se esperar uma queda mais acentuada da popularidade do presidente e um crescimento mais vigoroso da avaliação negativa do desempenho de seu governo.
Afinal de contas, já são mais de 1,3 milhão de pessoas contaminadas pela covid-19 e mais de 57 mil mortes. Houve redução de aproximadamente 10% da atividade econômica e estima-se que a taxa de desemprego já esteja em torno de 16%.
Para completar a “maré de azar”, o ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro e também amigo de longa data do presidente, Fabrício Queiroz, foi preso enquanto escondido na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, sob acusação de ser o operador de um esquema de lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e formação de quadrilha liderado pelo próprio filho do presidente.
Entretanto, os institutos de pesquisa têm mostrado que a popularidade de Bolsonaro se estabilizou em 30%, o que sugere grande resiliência política do presidente.
Quem seriam os eleitores que continuam apoiando o presidente, mesmo diante de eventos tão negativos?
Em pesquisa de opinião desenvolvida com o apoio do Estadão, identificamos que os eleitores que se autodenominam de direita e de centro direita (27% da amostra de 7.020 respondentes) são majoritariamente homens (71%), brancos (73%), acima de 40 anos de idade (67%), possuem renda superior de 5 salários mínimos (70%), são profissionais liberais ou trabalham na iniciativa privada (51%) e dizem possuir alguma religião, notadamente judaica (39%), evangélica (38%) ou católica (33%). Apresentam perfil predominantemente conservador, baseado nos valores morais e da família, e preferem políticas econômicas liberais.
Esse perfil de eleitor brasileiro apresenta grande similaridade com o de eleitores que se identificam como pertencentes ao “Tea Party”, movimento surgido em 2009 nos Estados Unidos em oposição às iniciativas do governo de Barack Obama, especialmente à reforma do sistema de saúde (Obamacare) e ao plano de resgate econômico à crise de 2008. No livro The Tea Party and the Remaking of Republican Conservatism, Theda Scokpol e Vanessa Williamson mostram que os membros do Tea Party tendem a ser republicanos, conservadores, homens, brancos, ter mais de 45 anos, ser de classe média e protestantes evangélicos.
Analisamos como os eleitores brasileiros de direita e de centro direita, que apresentam características sociodemográficas e políticas semelhantes aos simpatizantes do Tea Party americano, se comportariam nas eleições presidenciais de 2022.
A grande maioria dos Tea Party à brasileira reelegeria Bolsonaro ou por forte identidade com o presidente (56%) ou para evitar a vitória de um candidato de esquerda (32%). Apenas uma pequena parcela desse grupo não votaria em Bolsonaro de jeito nenhum (12%). Por outro lado, uma proporção bem menor de eleitores que não compartilham características dos simpatizantes do Tea Party votaria com certeza em Bolsonaro (37%). Um contingente um pouco maior reelegeria o presidente para evitar a vitória da esquerda (41%) e uma parcela não desprezível de “Não Tea Party” não votaria em Bolsonaro de jeito nenhum (23%).
Pesquisa recente do Pew Research Center sugere que os eleitores que pertenceram ao movimento Tea Party apoiariam a reeleição de Donald Trump em 2020. Não seria difícil imaginar qual seria o candidato dos simpatizantes do Tea Party caso eles pudessem votar no Brasil. O inverso também seria de se esperar.
Marcelo Godoy: Moro ataca bolsonarismo ao criticar 'intervenção militar'
Em um País em que oficiais se fizeram intérpretes da Constituição, ex-magistrado tenta decifrar os militares e desagrada generais
Se Jair Bolsonaro decidiu que os militares podem dirigir quase tudo no governo - da construção de pontes à entrega de cartas, do combate à covid-19 às negociações com o Centrão –, os militares também terão de se acostumar com um novo fenômeno: nunca tantos civis interpretaram seus atos, gestos e silêncios. Mesmo o que é óbvio se torna polêmico. Quis o comandante do Exército, Edson Pujol, chamar a atenção do presidente ao lhe oferecer o cotovelo em vez da mão em um comprimento público? Qual a razão de o bolsonarismo pagar penduricalhos ao militares em meio à crise fiscal?
A outra face desse fenômeno, com suas implicações institucionais, envolve a confusão entre Exército e Nação e o ressurgimento de um certo bacharelismo entre os militares. Ele tem como alvo o artigo 142 da Constituição Federal e os limites da ação de cada Poder. Muitos falam, mas poucos sabem do que se trata; e a velha confusão entre doxa e episteme, tão antiga quanto o Partenon, reaparece. Só o Comando até agora não falou. "Por dever de ofício", disse um general. Nas últimas semanas, o Exército se sentiu como um paciente em coma, ouvindo vozes ao redor. Em torno da cama, muitos passavam e se perguntavam se ele os poderia ouvir. O paciente se fingiria de morto, enquanto os doutores falavam...
Alguns vozes não passaram despercebidas. Uma delas foi a do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Ele escreveu um artigo na revista Crusoé com o título Honra e Fuzis. Se tantos militares se puseram a interpretar a Constituição, Moro se achou no direito de interpretar os militares. O ex-juiz começou confessando o desconforto com os grupos que usavam a Lava Jato para pregar um golpe de Estado em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff. Revela que, discretamente, pediu, por meio de um bilhete, a manifestantes que carregavam uma faixa com os dizeres "intervenção militar constitucional" que a recolhessem para evitar a confusão entre a luta contra a corrupção e a pregação liberticida. Os turiferários atenderam ao magistrado.
O ex-ministro diz que tinha receio de que a Lava Jato fosse identificada com a pauta antidemocrática, que seu objetivo não era criminalizar a política, mas a "punição de políticos corruptos". O homem, que foi o mais popular ministro de Bolsonaro entre os militares, concluiu: "Democracia é o temos como melhor forma de governo e a única medida a fazer é melhorá-la, não acabar com ela." Em vez de se juntar aos amalucados, como fez Bolsonaro em frente ao quartel do Exército, em Brasília, o ex-magistrado quis mostrar juízo e responsabilidade, qualidades de quem sabe que não se defende a democracia em manifestação que busca matá-la.
Moro quis mais: desejou exibir conhecimento da liturgia que acompanha as autoridades que não se deixam levar por uma ralé composta por oportunistas rancorosos e extremistas ressentidos, todos incompetentes para obter reconhecimento social por seus próprios méritos, o que caracteriza os setores radicais do bolsonarismo. O ex-juiz procura distância de um governo que, até 15 dias atrás, flertava com o caos de uma ruptura institucional nas palavras do presidente ou nas notas oficiais dos generais-ministros. "Intervenção militar constitucional era algo totalmente estranho à Lava Jato. Nenhum dos agentes de lei envolvidos tratou desse tema ou defendeu medida dessa espécie."
Pode-se questionar o magistrado: se nenhum dos agentes da lei flertavam com grupos autoritários, por que não os desautorizou publicamente em vez de usar bilhetinhos? Por fim, Moro escreveu: "Não há lugar, porém, para uma inusitada 'intervenção militar constitucional' para resolução de conflito entre Poderes". Ou mesmo invocar uma tutela do Exército sobre a República. E conclui: "Os militares precisam ser honrados. A história mostra que fizeram jus à confiança neles depositada nas batalhas mais difíceis. (...) Na presente crise política, sanitária e econômica, precisamos dos militares, mas não dos seus fuzis e sim de exemplos costumeiros de honra e disciplina."
Moro precisa explicar para que, afinal, precisa de militares, mas não de seus fuzis, se é justamente a posse das armas que os caracteriza. O ex-ministro – como notou um general – parece incensar o soldado cidadão e a visão positivista de Benjamin Constant, tantas vezes presente em rebeliões e intervenções na República, causando instabilidade política e indisciplina na tropa. "Ele quer o soldado cidadão para impedir uma intervenção do soldado cidadão", disse um general. Não se vislumbra o ideal do soldado profissional e apartidário bem como a defesa da neutralidade de seus atos. Talvez o ex-magistrado conheça tanto os dilemas das relações entre o Poder Civil e o Militar quanto o general-ministro Heleno é um bom intérprete da Constituição.
O militar não deve servir de instrumento às conspirações do Planalto e às da Planície. Saiu-se, no Brasil, de um desconhecimento das questões ligadas à defesa nacional e aos militares para uma "verborragia sem fundamento", imprudente. Enquanto isso, "os profetas do artigo 142 ganham holofotes e produzem mais confusão". O silêncio das últimas semanas recorda, para uns, a drôle de guerre, o período de relativa calma que antecedeu a grande ofensiva alemã de 1940. Para outros, ela seria uma détente? Constatação de que a guerra entre os atores seria catastrófica, daí a necessidade de reduzir tensões e buscar a convivência entre os Poderes, como em uma Guerra Fria?
O general e deputado federal Roberto Peternelli (PSL-SP), expoente da bancada militar no Congresso, está otimista. Acredita que a tempestade passou, os gafanhotos não vieram e agronegócio vai redimir o País. A queda do ministro Abraham Weintraub é uma das razões de seu otimismo. Acredita que agora seja possível desembaraçar as ações de um ministério estratégico, como a Educação. Peternelli sempre foi assim: acreditava que tudo se resolveria. Mas, de fato, livrar-se de um ministro que mal sabia dançar ou escrever, mas se expunha ao ridículo por vaidade, em vez de lealdade ao chefe, foi um feito para este governo.
Bolsonaro sentou-se na cadeira presidencial como se fosse um tenente. Fez o memento de patrulha, o documento em que devem constar as informações necessárias à missão. O valentão escreveu ali que só precisava de faca e cantil como "meios disponíveis" para governar sem coalizão. E foi o que recebeu. Sem mapa, bússola, relógio, comida ou fuzil saiu com seus homens. Esgotada, a tropa quer voltar à base e se reforçar com o Centrão. Se ele e os que o acompanhavam confundiram o governo com uma aventura na selva, as instituições e a sociedade mostraram ao presidente que não se governa com uma lâmina e um pouco de água. E o pior: não há nada que garanta que, ao fim de tudo isso, haverá mais compreensão entre militares e civis.
*Marcelo Godoy é repórter especial. Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).
O Estado de S. Paulo: Aliados de Bolsonaro tentam isolar extremistas
Grupos de apoio ao presidente moderam discurso e apagam vídeos depois de participarem de atos antidemocráticos e STF pôr em xeque ‘presidencialismo de colisão’
Marcelo Godoy, Pedro Venceslau e Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo
Após fracassar sua ofensiva para deter as ações do Supremo Tribunal Federal (STF), o bolsonarismo propõe agora uma détente entre as instituições e procura isolar os grupos radicais que pregam “intervenção militar”, com o fechamento do Congresso e da Corte. Nos círculos mais próximos do presidente, o movimento é justificado em razão da avaliação de que extremistas, como Sara Geromini, estariam “contaminando” os movimentos pró-governo.
A decisão de se descolar desses grupos veio após ações do STF que levaram extremistas à prisão e à quebra de sigilos de apoiadores e parlamentares bolsonaristas, além da prisão de Fabrício Queiroz, apontado pelo Ministério Público como operador financeiro de Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no esquema das rachadinhas. Os grupos intervencionistas sempre foram tolerados e até dividiram carros de som com expoentes do bolsonarismo. Organizadores de atos pró-governo e aliados do presidente pregam agora que eles sejam isolados e rotulados como indesejados, como se fossem black blocs da direita.
“Desde as Diretas-Já sempre tem um maluco com uma placa que diz bobagem. Esse pessoal com bandeiras inadequadas não representa o pensamento do grupo que apoia Bolsonaro”, disse ao Estadão Luís Felipe Belmonte, terceiro na hierarquia do Aliança Pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro tenta criar. Belmonte foi um dos alvos da ação da PF no caso das fake news. “Essa história de fechar Congresso e STF é uma conversa estúpida e sem nenhum fundamento. Não tem apoio no grupo do Bolsonaro.”
Um dos fundadores do Avança Brasil, Newton Caccaos disse que os grupos radicais “atrapalham” com atitudes impensadas, como os fogos contra o STF. “Não sei qual é a da Sara Geromini, que já foi de esquerda, mas virou de lado. Não podemos ser confundidos com os mais radicais e intervencionistas.”
A operação de retirada do bolsonarismo das pautas extremistas ocorre dois meses após o presidente ter ido a ato que defendia o golpe em frente ao quartel do Exército, em Brasília. A mudança pode ser vista nas redes sociais. Na quinta-feira, o youtuber Alberto Silva, do canal O Giro de Notícia, publicou vídeo no qual aparece vociferando contra “eles”, sem especificar o alvo. “Eles fazem esse tipo de notícia como se nós fôssemos bandidos”, disse, citando escândalos do noticiário nos últimos anos. “Aqui o dinheiro é lícito.”
Dias antes, o canal de Silva apagou 148 vídeos, segundo levantamento de Guilherme Felitti, da empresa de análise de dados Novelo. Os títulos e descrições das obras removidas dão uma ideia de quem seriam “eles”: a sigla STF aparece 251 vezes, sempre como alvo. Outros canais também moderaram o discurso. “Sou contra fechar o Supremo”, disse em vídeo Adilson Dini, do Ravox Brasil, um dos investigados pela Justiça.
Os bolsonaristas apagaram 3,1 mil vídeos desde que o STF agiu contra o esquema que buscava emparedar a Corte, segundo os dados de Felitti. “É claro que o STF está agindo com base em uma demanda, porque a democracia vem sendo atacada. O problema é que a gente está concentrando o poder no Supremo. Qual a garantia de que isso não vai ensejar abusos?”, indagou o cientista social Caio Machado, da Universidade de Oxford, que pesquisa desinformação e discursos de ódio no YouTube.
Colisão
Para o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, Bolsonaro se elegeu como representante da antipolítica e com as redes sociais. “Mas não se governa com a antipolítica ou com as redes.” Ao se recusar a criar uma coalizão, Bolsonaro escolheu o que Jungmann chama de “presidencialismo de colisão”, uma fórmula que está esgotada.
“Desarticulada pelo STF, a base digital dele perde capacidade de operar. Também ficou evidente que as Forças Armadas nunca estiveram à disposição de Bolsonaro (para aventuras).” Símbolo disso seria a passagem à reserva do ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, após pressão do Alto Comando do Exército.
Com a pandemia, as ações do STF e a falta de apoio à ideia de um golpe, o presidente se veria, na análise do cientista político José Álvaro Moisés, em uma encruzilhada. “Ele não cria uma resposta coordenada e eficaz contra a crise da covid-19. Isso afeta todas as classes sociais.”
É por isso que Bolsonaro lançou a détente, afastando-se de manifestações e demitindo Abraham Weintraub da Educação. Na Guerra Fria, a détente foi a política entre as superpotências – EUA e URSS – que visava a diminuir as tensões e o risco de uma guerra catastrófica. A détente bolsonarista serve para estancar a crise com o STF e o Congresso. Em encontro com Dias Toffoli, presidente da Corte, Bolsonaro disse: “O nosso entendimento pode sinalizar que teremos dias melhores para o nosso país”.
Para Manoel Fernandes, sócio da consultoria Bites, Bolsonaro precisa manter a base mobilizada com confrontos. “Em breve vai arrumar outro inimigo.” O alvo, então, pode ser um governador ou o resgate da pauta de costumes. Na guerra fria entre os Poderes, o STF e o Congresso têm suas armas – o primeiro, inquéritos criminais e o segundo, o impeachment. Bolsonaro sabe. E, por isso, adota o estilo Jair paz e amor. “O que ninguém sabe é até quando”, disse Moisés.
Cresce oposição nas redes
Levantamento da Bites mostra que no Facebook, Bolsonaro obteve neste ano mais compartilhamentos do que o presidente americano, Donald Trump. O presidente tem 10,5 milhões de seguidores, fez 990 publicações e conseguiu 20 milhões de compartilhamentos. Trump, com 28 milhões de seguidores, publicou 2.680 posts e teve 17 milhões de compartilhamentos.
Desde a posse, Bolsonaro somou 14 milhões de seguidores nas suas redes – hoje tem 37,4 milhões. Fez 8,7 mil posts e obteve 1 bilhão de interações. Ao mesmo tempo, segundo Fernandes, ele criou um sistema de comunicação em torno dele – só os cinco principais sites de propaganda em forma de notícia do bolsonarismo contaram 24 milhões de visitas em maio, enquanto seus influenciadores mantêm de 400 mil a 2 milhões de seguidores no YouTube.
Mas nem tudo são rosas para o bolsonarismo. A radicalização dele criou um movimento – ainda difuso – de oposição. De 15 de março a 25 de junho, Bolsonaro teve 38,7 milhões de menções no Twitter associadas a hashtags positivas e 17,2 milhões negativas. “Um dado importante é a quantidade de perfis únicos que produziram as hashtags, incluindo as repetições. São 7,1 milhões de bolsonaristas e 8,2 milhões de perfis de oposição. Tem mais gente de oposição falando do que bolsonarista. Os bolsonaristas falam mais vezes”, disse Fernandes. Para ele, os números mostram que só uma oposição unida e com um líder claro pode derrotar Bolsonaro.
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O Estado de S. Paulo: Cresce adesão a rede de extrema direita
Criada nos Estados Unidos em 2016, plataforma Gab não restringe discursos de ódio e desinformação e tem atraído usuários brasileiros
Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Com a adesão de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, o Gab, uma rede social de extrema direita conhecida por não se opor a publicações com teorias conspiratórias, desinformação e discursos de ódio, afirma que seu crescimento explodiu nas últimas semanas, na esteira dos protestos contra o governo e do cerco das grandes plataformas da internet a conteúdos racistas e violentos.
Um comunicado enviado pela empresa a usuários cadastrados, no início deste mês, fez um aceno aos críticos dos movimentos que foram às ruas após a morte de George Floyd, segurança negro assassinado após abordagem policial, em Minnesota (EUA), e zombou do que chamou de “religião” de empresas como Facebook e Twitter.
“Nas últimas semanas, Gab experimentou o maior aumento de crescimento em quase quatro anos de história. À medida que as gigantes de tecnologia continuam a sinalizar apoio aos manifestantes e proíbem qualquer um que se atreva a discordar de sua religião de ‘wokeness’ (expressão relacionada à preocupação com injustiças sociais e racismo), as pessoas estão ficando cansadas e saindo das plataformas do Vale do Silício em busca de comunidades que compartilham seus valores”, afirmou o comunicado.
Desde que foi criada, no período das eleições americanas de 2016, a rede social acumula críticas por servir, quase sem filtros, como repositório a discursos antissemitas e racistas. Tornou-se um fórum popular entre os chamados “supremacistas brancos”, simpatizantes de ideias nazistas e demais radicais de extrema direita dos Estados Unidos que eram banidos das maiores plataformas.
O homem que cometeu um atentado contra uma sinagoga, em Pittsburgh, em outubro de 2018, era um ativo usuário do Gab e usava sua conta para disseminar mensagens como “judeus são filhos do satã” e compartilhar memes de cunho racista com textos que mencionavam judeus como “inimigos dos brancos”.
Apesar de os números atuais não serem revelados, a comunidade brasileira exerceu papel importante para consolidar a rede social. Em 2018, os brasileiros eram 22,7% dos 635 mil usuários registrados, segundo informações prestadas pela empresa à agência americana equivalente à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A participação colocou o Brasil em segundo entre os maiores mercados do Gab, à frente de Canadá, Inglaterra e Alemanha.
Em 2019, eram 900 mil usuários, ao todo. Conforme o relatório anual apresentado pela empresa em 29 de maio, atualmente 1,175 milhão de pessoas têm perfis na plataforma, que mistura características do Twitter e do Facebook. Há um limite de caracteres a cada publicação, os usuários se organizam por hashtags, é possível seguir perfis e interagir com os posts.
A preferência da extrema direita pela plataforma não se dá por acaso. Por trás do Gab está Andrew Torba, um empresário conservador crítico do que considera “viés ideológico” das empresas de tecnologia e alguém que classifica as fake news como liberdade de expressão. “A liberdade de expressão significa que você pode ofender, criticar e fazer memes sobre qualquer raça, religião, etnia ou orientação sexual. Estou doente e cansado dos padrões de ‘discurso aceitável’ e ‘classes protegidas’, tanto à esquerda quanto à direita”, escreveu Torba, na rede social que criou.
O movimento que passou a levar brasileiros ao Gab, em 2018, foi influenciado por críticas que Facebook e Twitter também sofriam à época por restringir publicações. Além disso, campanhas de desinformação que alertavam para uma falsa cobrança de mensalidade nas redes mais populares funcionaram como incentivos, relatam pesquisadores.
Houve, ainda, propagandas veladas no Twitter. O emoji que representa um sapo foi apropriado por grupos de extrema-direita e passou a ser usado no microblog. Uma ilustração do animal era usada como marca do Gab. A inspiração vem de Pepe The Frog, um desenho animado com cabeça de sapo e corpo humanoide. O personagem foi listado como símbolo de ódio por organizações judaicas.
O presidente Jair Bolsonaro e os filhos não têm perfis oficiais no Gab, mas brasileiros se organizam em grupos de apoiadores que replicam ataques feitos por bolsonaristas em outros meios. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso são alvos frequentes, assim como ex-aliados, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) e o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Inspirado pelos protestos nos Estados Unidos, um perfil identificado como “STFDefendeBandido17” publicou mensagem que chama os negros de preguiçosos porque “botaram os brancos para protestar para eles”.
O grupo Direita Brasil é um dos mais movimentados por assuntos de política brasileira no Gab, com 10,2 mil integrantes. Embora os números sejam módicos, se comparados com o alcance de Facebook, Twitter e Instagram, pesquisadores salientam que esses sites não podem ser analisados de maneira dissociada. “Temos a mania de encarar as plataformas como universos distintos, mas são todas um mesmo ecossistema. Quem vê um meme no Instagram manda pelo WhatsApp ou compartilha em outra rede. O conteúdo vai quicando. Ainda que o número de usuários de 4Chan e Gab, por exemplo, seja restrito, a estratégia é de escoamento. Uma parte vai atingindo plataformas maiores, e a gente não sabe quanto”, afirmou Caio Vieira Machado, pesquisador do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut).
Ideal
Para o coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio, Ivar Hartmann, os métodos das grandes redes sociais para controlar conteúdos têm problemas, o que dá margem para o surgimento de plataformas que apostam na ideia de liberdade irrestrita. “Hoje, a maior parte da comunicação e da manifestação política se dá em plataformas privadas. E as empresas decidiram tomar decisões sobre o que, como e quando censurar. Não está claro que elas tenham legitimidade para isso. No Brasil, certamente não, porque a Constituição Federal diz que liberdade de expressão é direito fundamental”, avaliou. “Facebook e Twitter tomam decisões sobre quando censurar e, talvez, não devessem ter todo esse poder. Se têm, temos que repensar o nível de transparência sobre o exercício desse poder.”
Para Hartmann, o relativo sucesso de redes sociais como o Gab, com inclinação à direita, se dá pela conjuntura política atual. Caso o cenário fosse outro, uma plataforma com o mesmo perfil, mas à esquerda, poderia despontar. “Uma parte do impulso do apelo de uma rede social como o Gab é se identificar com essa reivindicação de que empresas privadas não podem ser as donas da liberdade de expressão das pessoas. Essa reivindicação não é só da extrema direita ou da direita. Qualquer pessoa na esquerda ou na extrema-esquerda também não quer que empresas privadas possam definir o que pode e não pode ser dito. Nesse momento, em função da conjuntura atual, são os grupos de direita que estão mais cientes e escaldados com a atuação das redes sociais privadas.”
Vera Magalhães: Sapo na festa do céu
Enquanto esquerda discute quem pode integrar frente, Bolsonaro lhe rouba a agenda
A discussão em torno da formação de uma frente, que se pretendia “ampla”, em defesa da democracia e dos direitos e em reação às investidas de Jair Bolsonaro contra esses dois pilares empacou em critérios tão adultos e democráticos como birra, picuinha, ciúme, ressentimento e cálculo eleitoral para 2022.
Enquanto entidades, políticos e partidos do espectro que vai da centro-direita à esquerda discutem quem pode integrar a frente, tirando dela qualquer amplitude, Jair Bolsonaro vai, na surdina, lhes roubando a principal agenda: a discussão da renda básica universal.
Mais esse erro crasso dos que se opõem a Bolsonaro me remeteu à fábula da festa no céu. Poderiam participar todos os animais voadores. Mas o sapo deu um jeito de burlar as restrições e entrar no céu escondido na viola do urubu.
O sapo é Bolsonaro. Assiste subitamente calado aos desdobramentos do caso Fabrício Queiroz, sabendo que pode se complicar feio por aí, enquanto vai, por meio do auxílio emergencial, entrando no baile da esquerda, que se perde na distração de discutir quem pode ou não fazer parte da tal frente.
Quando o necessário auxílio emergencial de R$ 600, por três meses, foi aprovado, alguns analistas logo enxergaram o potencial que aquilo, dinheiro na veia dos mais pobres, teria para dar a Bolsonaro uma nova base social. Me lembro de textos nesse sentido de Carlos Pereira, no Estadão, Carlos Andreazza, no Globo, e Fernando Canzian, na Folha, para ficar nos primeiros que trataram do tema.
Não deu outra. Dados da Pnad Covid divulgados pelo IBGE mostram o efeito rápido e impressionante do auxílio – mesmo com todos os seus problemas de logística na distribuição, fraudes e exclusão de gente que preenche os critérios para recebê-lo – na redução da pobreza e da extrema pobreza.
Mesmo Bolsonaro, cuja inteligência não é tão grande quanto à do engenhoso sapo, já percebeu o filão de recuperação de sua popularidade, assolada pela absoluta incompetência que ele demonstrou para conduzir o País na pandemia e por seus arreganhos autoritários, entre outras inadequações ao cargo que ficaram escancaradas desde janeiro.
Com a costumeira falta de sutileza, foi ao Twitter expor um casal “muito humilde” do Vale do Jequitinhonha que lhe agradecia pelo auxílio. “De tudo o governo está fazendo, dentro do possível, para garantir a mínima dignidade ao povo”, postou, assumindo o populismo e já despido da fantasia liberal que vestiu para a eleição.
A renda básica universal é uma pauta que Eduardo Suplicy carregou como um Quixote por décadas. Era ridicularizado até no PT. Com a pandemia, o assunto voltou à discussão pelos escritos de economistas como Monica de Bolle, no Brasil, e ganhou também outros países.
Paulo Guedes a princípio resistiu, tentou limitar a R$ 300 o benefício e achou que seria possível circunscrevê-lo a três meses, mas agora já trabalha com a possibilidade concreta de a transformação do Bolsa Família num programa turbinado e rebatizado ser a única agenda possível daqui para a frente, já que as reformas parecem ter perdido o bonde.
E Bolsonaro vê seus índices nas pesquisas pararem de despencar em pleno caso Queiroz. “Como?”, perguntam os desatentos. É o auxílio, estúpido. Bolsonaro já sacou, e daqui para a frente apostará tudo que puder na fidelização de uma nova base social, nas classes D e E e nas periferias das cidades e rincões do País, ao passo que coopta o Centrão para não ver o impeachment avançar.
Alheia a tudo isso, a esquerda deixa de constituir a frente e construir uma agenda que era sua, para ficar fiscalizando quem tem asa para entrar na festa do céu. E lá vai o sapo escondidinho na viola.
José Roberto Mendonça de Barros: O agronegócio ameaçado
A destruição da Amazônia é uma ameaça real e tem gente que teima em não reconhecer
Meu primeiro artigo deste ano, neste espaço, tinha por título “O aquecimento global entrou na alta finança”, comentando a reunião do Fórum Econômico Mundial, realizada em Davos, Suíça.
Nela, “Klaus Schwab, fundador do evento, distribuiu uma carta aos participantes, escrita em coautoria com os presidentes do Bank of America e da Royal DSM, na qual diz que o atual modelo econômico não é mais sustentável e que terá de mudar para incorporar, entre outras coisas, tolerância zero com a corrupção, proteção ao meio ambiente, uso ético de informações privadas e respeito aos direitos humanos em toda a cadeia de fornecedores”.
Em suporte a essa visão, Larry Fink, presidente da Black Rock, gestora global de recursos, em sua influente carta anual, disse que sua empresa evitará investimentos em companhias que apresentem grandes riscos associados a sustentabilidade.
Daqui em diante, não se poderá dizer que meio ambiente é apenas objeto de manifestações da esquerda, de “onguistas” ou de europeus. Ao contrário, os maiores líderes mundiais de negócios estão dizendo que a coisa é “importante e urgente”.
Entretanto, o governo federal não tomou conhecimento do que lá foi dito. Ao contrário, o ministro do Meio Ambiente continuou inteiramente dedicado a “passar a boiada” e, em consequência, o fogo e o desmatamento ilegal da Amazônia continuaram a crescer sem parar.
Não bastasse isso, ministros, como o (ex, felizmente) da Educação e o das Relações Exteriores continuaram insistindo em insultar e atacar o nosso maior cliente, a China.
Finalmente, certas lideranças do setor mantêm uma atitude agressiva e pouco construtiva de que “eles não têm alternativa, têm que comprar de nós”. A propósito, seria bom lembrar que o cemitério de empresas está cheio de gente arrogante que, em algum momento, desprezou seus clientes, esquecendo que ninguém é insubstituível.
Na semana que passou, 29 grandes gestores de fundos de investimento, que administram mais de US$ 4 trilhões, enviaram carta às embaixadas do Brasil para alertar que “desenvolvimento econômico e proteção ao meio ambiente não são mutuamente excludentes...instamos o governo do Brasil a demonstrar um compromisso claro para com a eliminação do desmatamento e a proteção dos direitos dos povos indígenas”. Pedem ainda, os fundos, uma conversa com representante do Executivo.
É impossível maior clareza quanto ao risco que estamos correndo.
Importantes lideranças empresariais, ao contrário de certos ministros, também alertam para o perigo e as consequências da forma como o Brasil está lidando com a questão ambiental. Estas preocupações foram manifestadas, ainda nestes dias, pelos presidentes dos dois maiores bancos brasileiros.
O agronegócio tem sido um dos poucos segmentos a enfrentar com galhardia esta que é a maior crise do Brasil moderno. Na verdade, o faz desde a recessão de 2014/2016.
Mas a destruição da Amazônia é uma ameaça real. É inacreditável que ainda tenha gente que teima em não reconhecer este fato.
ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE
Gustavo Franco: Liberalismo e pandemia
A pandemia não pode servir de pretexto para ressuscitar a feitiçaria econômica
Os adversários do liberalismo econômico, à direita e principalmente à esquerda, são de três tipos:
Há os que dizem que o liberalismo, o neoliberalismo e a teoria econômica convencional estão todos obsoletos, já mortos, ainda mais agora com a pandemia.
Há os que dizem que o liberalismo econômico é hegemônico no Brasil e, por isso, precisa ser abandonado, uma vez que a economia brasileira está estagnada desde os anos 1980.
E há os que dizem as duas coisas.
Sobre os do tipo número dois, me ocorre um comentário a esse respeito do próprio Roberto Campos, feito nos idos de 2000, quando afirmou que, até aquele momento, o liberalismo ainda não havia sido tentado no Brasil.
Campos deixou esse mundo em 2001.
Pois bem, depois disso o PT fez dois presidentes que foram reeleitos, e os dois outros presidentes a seguir, colegas improváveis de Campos da 50.ª legislatura (entre 1991 e 1994), Michel Temer e Jair Bolsonaro, nada tinham de liberais.
É verdade que o Brasil está estagnado desde os anos 1980, mas muito provavelmente isso tem a ver com deficiência de liberalismo, e não com hegemonia.
Sobre os que dizem que o liberalismo e o saber convencional em economia estão mortos, seria bom lembrar que uma das piores consequências do politicamente correto, à esquerda e à direita, era desvalorizar a “expertise”.
A internet, como se sabe, cada vez mais funciona como uma espécie de memória auxiliar do cérebro humano: o que você não sabe, pode ser encontrado no Google ou na Wikipedia, em segundos, basta teclar no seu celular. Com esses auxílios, qualquer um se torna um especialista ou, pior, um apoquentador de especialistas: subitamente, a expertise não apenas não vale mais nada como atacá-la virou uma demonstração de independência e desprendimento. Os novos idiotas da objetividade são os cretinos da internet, Nelson Rodrigues e Humberto Eco estariam rigorosamente na mesma página nesse assunto.
A ciência devia nos guiar, sobretudo quando a noite cai, mas, em vez disso, nesse clima de rede social sem controle há tempos que se ouve que a ciência é apenas uma narrativa, uma de muitas, e que todas são legítimas, todas estão presentes na internet, ao alcance dos dedos, e que vai prevalecer a que tiver mais clicadas.
Sou um otimista, acho que vai ser o contrário, a pandemia vai sumir com essa cretinice de que a ciência é apenas uma narrativa. Tomara que seja também o caso da medicina alternativa em economia, que possui uma vertente milagreira de viés contábil, crescentemente presente em Brasília, com o auxílio da qual sempre se pode encontrar algum tesouro escondido (amiúde no balanço do Banco Central) que vai pagar todas as contas da pandemia, ou algum truque contábil que vai fazer sumir as dívidas do Estado.
É claro que são truques ordinários, como o que fazia desaparecer o déficit da Previdência com uma reclassificação contábil, e que nada se resolve desse jeito. Mas os políticos adoram. Perde-se tempo precioso com isso, remédios milagrosos, cloroquina contábil.
O fato é que a urgência sanitária vai elevar o gasto e a dívida pública a níveis impensáveis em 2020. Depois de muito esforço, nesse ano íamos fazer um déficit de uns R$ 100 bilhões, e estávamos na beira do precipício da sustentabilidade fiscal. Pelo que se fala no Congresso, o déficit vai para perto de um trilhão, e a dívida pública vai chegar em 100% do PIB.
Como será o funcionamento do governo federal nessas condições? Será parecido com o que se vê em alguns Estados quebrados? Atrasos e calotes todo o tempo? Como nos países que lutaram na Segunda Guerra durante muitos anos depois do término do conflito?
As democracias liberais não deixam de ser democracias, nem deixam de ser liberais, quando lutam guerras. Democracias adultas pagam as suas contas e sabem de onde vem o dinheiro. A pandemia não pode servir de pretexto para ressuscitar a feitiçaria econômica.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS
Eliane Catanhede: ‘Caráter inusitado’
PGR em chamas, MP, PF, Receita e ex-Coaf são peças do quebra-cabeças lançado por Moro
A Procuradoria-Geral da República está em chamas e a força-tarefa da Lava Jato reclama do “caráter inusitado” da ação da subprocuradora geral Lindôra Araújo, braço direito de Augusto Aras e ligada à família Bolsonaro, que desembarcou em Curitiba exigindo arquivos e dados sigilosos das investigações e criando a impressão de uma devassa na Lava Jato que pode atingir até o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro. Esse, porém, é apenas mais um fato “inusitado” num país com quase 60 mil mortos de covid-19.
A audácia de Lindôra corresponde à sucessão de mentiras ridículas do advogado Frederick Wassef, capaz de inventar até “forças ocultas” que queriam matar Fabrício Queiroz para atingir o presidente Jair Bolsonaro. E lembra o pedido inusual da delegada da PF Denisse Ribeiro para o Supremo suspender as investigações sobre bolsonaristas golpistas e, assim, evitar “risco desnecessário para a estabilidade das instituições”. Tudo muito inusitado.
O mais grave, porém, é que a ida da procuradora a Curitiba ocorre quando o presidente Jair Bolsonaro é investigado pelo Supremo justamente pela acusação, feita por Moro, de intervir politicamente na Polícia Federal. E tudo num contexto maior de controle dos órgãos de investigação do País, não só para proteger filhos e amigos, como admite o presidente, mas também para perseguir adversários, como suspeitam governadores, ministros do STF, cúpula do Congresso e o próprio Moro. Ou seja, os alvos.
Lindôra, aliás, também exigiu os arquivos da Lava Jato em São Paulo e Rio e já tinha requisitado de todos os Estados e DF as investigações contra governadores. Ela alega que é coordenadora da Lava Jato na PGR e isso faz parte do trabalho, mas seus próprios pares desconfiam dessa “justificativa técnica”, convencidos de uma ação política coordenada. Tanto que três procuradores pediram demissão do grupo de trabalho e uma quarta já tinha saído por divergências.
Assim como Bolsonaro é investigado por intervir na PF e Lindôra invade investigações do MP em Curitiba, Rio e São Paulo, vale lembrar que, depois de revelar ao mundo a existência de um tal de Queiroz, o Coaf saiu do Ministério da Justiça, pulou de galho em galho e foi parar no Banco Central com o nome de UIF. E Bolsonaro, segundo o Estadão em 30/4, já pressionou a Receita Federal para perdoar dívidas milionárias de igrejas evangélicas.
Tudo somado, tem-se que Bolsonaro e seus seguidores têm uma visão muito particular e pouco republicana dos órgãos de investigação: PF, MP, Receita e Coaf, agora UIF. Essas peças vão montando o quebra-cabeças lançado por Moro a partir da demissão do competente delegado Maurício Valeixo da PF e das sucessivas mexidas na superintendência do Rio. Foram inusitadas, mas fazem todo o sentido.
Com Bolsonaro acuado e os militares passando a estabelecer (finalmente...) claros limites entre governo e Forças Armadas, veio à tona o personagem “Jairzinho Paz e Amor”, que dialoga com Judiciário e Legislativo, baixa o tom, ameniza a expressão, para de incendiar o País a cada manhã e de atiçar golpismos a cada domingo. Paz e amor, porém, implicam também órgãos de Estado e de governo independentes, apartidários, sem ações de “caráter inusitado” para salvar filhos e amigos e massacrar “inimigos”. Paz é paz, guerra é guerra.
Saúde
Reunido na quinta-feira para definir as promoções, o Alto Comando do Exército manteve em aberto e não indicou ninguém para a vaga de general de Divisão de Eduardo Pazuello, que foi cuidar da logística na Saúde e acabou ministro. Ele avisou que volta à Força em três meses. É a previsão para o fim da pandemia?
Sergio Fausto: Trump e Bolsonaro, não há mal que sempre dure
A maré montante de líderes direitistas de índole antidemocrática parece retroceder
Após 155 anos da aprovação da emenda constitucional que pôs fim à escravidão e 56 anos depois da entrada em vigor do Civil Rights Act, que tornou inconstitucional a segregação racial e quaisquer outras formas de discriminação nos Estados Unidos, milhões de norte-americanos foram às ruas para protestar contra a sistemática prática policial de violência contra os cidadãos negros daquele país.
“The arch of History is long, but it bends towards justice”, dizia Martin Luther King. O longo arco da História americana curvou-se em direção à justiça sempre que negros e brancos se juntaram para fazer valer a mais importante passagem do documento que em 1776 fundou a nação. “Todos os homens são criados iguais e com direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade”, se lê na Declaração de Independência. Em dois séculos e meio, a História americana alternou períodos de conformismo com momentos em que uma maioria social e política se formou para encurtar a distância entre o ideal proclamado e a realidade vivida. Vivemos uma dessas conjunturas críticas.
O assassinato de George Floyd por um policial da cidade de Minneapolis pode vir a ser o gatilho de um realinhamento de forças sociais e políticas de longa duração nos Estados Unidos, com efeitos para além das fronteiras do país. As manifestações que se seguiram não apenas reduzem ainda mais as chances de reeleição de Donald Trump, já abaladas pela avaliação negativa do seu desempenho diante da pandemia, como também dão impulso a tendências que podem levar a uma derrota histórica do Partido Republicano em novembro deste ano.
O partido de Abraham Lincoln foi colonizado ao longo das últimas décadas pelo fundamentalismo religioso, pela xenofobia e pelo racismo (não dito, mas praticado, como transparece nas diversas medidas aprovadas em Estados dominados pelo partido para dificultar o exercício do voto por negros e latinos). O Grand Old Party, quem diria, terminou sequestrado por um político sem ideais ou escrúpulos, como Donald Trump.
Pesquisas de opinião mostram que os democratas consolidam progressivamente uma ampla coalizão majoritária. A indignação contra o atual presidente fornece a energia que provavelmente levará jovens, negros e latinos às urnas em maior número do que quatro anos atrás. A vantagem do candidato democrata entre as mulheres não tem precedente histórico. Além disso, o partido está recuperando parte dos votos dos brancos de menor escolaridade e seu candidato presidencial está à frente entre os maiores de 65 anos.
Joe Biden na Casa Branca com maioria democrática nas duas Casas do Congresso tornou-se uma possibilidade real (basta o partido conquistar três cadeiras no Senado e terá a maioria, com o voto de Minerva da vice-presidente). Sim, no feminino, pois é dado como certo que Biden terá uma companheira de chapa, ao que tudo indica, uma mulher negra.
Não é certo, mas é possível, mesmo provável. Se acontecer, a vitória será do partido que espelha no seu eleitorado e nos seus representantes eleitos as transformações culturais, comportamentais e demográficas da sociedade americana, contra um partido agarrado à nostalgia de uma América em que negros, latinos e mulheres eram cidadãos de segunda classe, a homofobia era a regra e as energias fósseis, sinônimo de progresso. Tão ou mais importante, será a vitória de um partido que, além do apoio de grupos específicos, conquistou corações e mentes do cidadão comum para a necessidade urgente de civilizar o capitalismo americano com a adoção de políticas sociais abrangentes, em especial na área da saúde.
A admiração basbaque de Bolsonaro por Trump é conhecida. Eles têm afinidades, a começar pela falta de empatia com o sofrimento humano e a insensibilidade em relação às injustiças sociais. Para o presidente americano, George Floyd foi apenas mais um negro morto pela polícia. E daí? Perante os protestos, brandiu a ameaça de chamar os militares. Obteve uma resposta à altura de Forças Armadas que bem compreendem o seu papel numa democracia: repúdio. O mais eloquente vindo de ninguém menos que o general James Mattis, ministro da Defesa até dezembro de 2018, que acusou Trump de dividir a nação e infringir os direitos constitucionais dos cidadãos americanos ao ameaçar os manifestantes com o uso das Forças Armadas. O atual chefe do Estado-Maior Conjunto fez um mea culpa público depois de acompanhar Trump numa encenação política diante de uma igreja perto da Casa Branca.
A provável virada política nos Estados Unidos é um alento para as democracias. Indica que a maré montante de líderes direitistas de índole antidemocrática pode estar retrocedendo. E não por motivos fortuitos, mas porque, uma vez no governo, os mesmos atributos antiestablishment que os tornaram eleitoralmente vitoriosos os fazem incapazes de liderar seus países em tempos que pedem políticos de qualidade superior, e não mediocridades orgulhosas de sua ignorância.
- Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP
Adriana Fernandes: Diálogo da Renda Básica
O tema amadureceu diante do aumento da pobreza e dos milhões de ‘invisíveis’ do País
Ninguém segura mais o debate sobre o fortalecimento dos programas sociais na direção de uma renda básica no Brasil após o fim do auxílio emergencial de R$ 600, criado na pandemia do coronavírus para socorrer a população de baixa renda.
Ele está em pleno voo, como tem mostrado uma série de reportagens do Estadão. O tema amadureceu com velocidade inimaginável há seis meses, diante do aumento da pobreza durante a pandemia, que clareou a fotografia dos milhões de “invisíveis” no País.
Congresso e governo se movimentam para não perder esse bonde que se movimenta em alta velocidade por sobrevivência política. Cada um a seu modo. A questão no momento é como financiar o aumento das transferências sociais num cenário de piora das contas públicas, com a dívida pública no caminho de 100% do Produto Interno Bruto (PIB) e a restrição do teto de gastos.
Se quiser mesmo avançar num programa de fortalecimento dos programas sociais e não ser atropelado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá de chamar para o diálogo (melhor que seja o mais rápido possível) os parlamentares e os principais especialistas do tema no Brasil envolvidos na elaboração de uma proposta de renda básica.
Eles são muitos e com grande experiência acumulada em quase 30 anos, desde a apresentação do primeiro projeto de lei de garantia de renda mínima, pelo ex-senador Eduardo Suplicy em abril de 1991.
O grupo tem apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que quer ver aprovado o novo programa ainda durante sua gestão no comando da Casa, para deixar sua marca reformista.
Nessa negociação, o governo, que desenha o Renda Brasil (programa que pretende colocar no lugar do Bolsa Família), não poderá fazer o que fez durante a implementação do auxílio emergencial de R$ 600. Não ouviu quem muito sabe do assunto e não deu transparência total aos dados do programa, sobretudo às informações dos pedidos negados e em análise. O auxílio completa 80 dias neste sábado e tem gente que ainda está em análise.
Muitos erros que ocorreram na implementação do benefício foram apontados antes por esse grupo e ignorados pelo Ministério da Cidadania. Agora, a pressão da sociedade civil aumentou para estender o auxílio até o final do ano (ou seja, mais seis parcelas), e o governo tenta organizar e oferecer a prorrogação por mais três parcelas de R$ 500, R$ 400 e R$ 300, resultando num valor total de R$ 1.200.
O governo tenta ganhar tempo para fechar sua proposta. Uma espécie de transição para impedir, na prática, que não só o Congresso amplie muito as parcelas do auxílio (elevando o endividamento público) mas também que o fim do auxílio fique com o carimbo do presidente Jair Bolsonaro.
Há poucos dias, Bolsonaro disse que não tinha dinheiro para manter o valor do auxílio. Depois voltou atrás, durante a live da última quinta-feira, com a oferta dos R$ 1.200 em três parcelas. O anúncio ocorreu no mesmo dia em que um grupo de 45 parlamentares apresentou projeto de lei para conceder mais seis parcelas e alterar as regras.
A negociação está só começando, e o mais provável é um entendimento no meio do caminho, provavelmente três parcelas de R$ 600. Cada uma delas ao custo de R$ 51,5 bilhões.
A oposição a Bolsonaro já viu que a digital do presidente no programa pode lhe favorecer nas próximas eleições, principalmente em redutos onde não tinha penetração. Com esse perigo, não dá sinais para o diálogo. Pelo contrário, afirmam que Guedes, com sua cartilha liberal, blefa ao falar de aumento dos programas sociais.
Sem o diálogo, as mudanças legais para arrumar o dinheiro que vai irrigar as transferências não serão aprovadas, mesmo com a aliança entre Bolsonaro e as lideranças do Centrão.
A equipe econômica não blefa quando acena com o fortalecimento dos programas por uma simples razão. Não quer perder o teto de gastos e tenta de alguma forma “organizar” as prioridades para conseguir abrir espaço nas despesas para a política social. Para isso, gastos terão de ser revistos e enfrentados pelo Congresso.
Como mostrou o Estadão, cálculos da equipe econômica já apontam a intenção de dobrar o orçamento do Bolsa Família, de R$ 32 bilhões, com remanejamento de despesas de programas ineficientes.
O tempo dirá se é blefe ou necessidade de tomar a dianteira para não ser atropelado pela mudança do teto ainda esse ano, que está na berlinda. A flexibilização do teto parece cada vez mais inevitável, mesmo com a avaliação da equipe econômica de que dá para aumentar os recursos para o programa social sem mexer nele.
O tempo dirá. Maia surpreendeu ao não descartar a mudança no teto em live promovida pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado.
Por ora, o que se pode esperar é uma renda mínima que contemple mais pessoas. Não será uma renda básica universal e sem condicionantes. Mas ficará mais próxima dela. Não será pouco garantir essa mudança, diz à coluna o presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, Leandro Ferreira, que reúne 163 organizações da sociedade civil. O diálogo passa por elas.