o estado de s paulo
Miguel Reale Júnior: A questão social
No primeiro ano deste governo aumentou a miséria, que crescerá mais com a pandemia
Para os sequazes do presidente, ou se é bolsonarista ou se é de esquerda. Pior, “comunista”. Essa dicotomia radical decorre da devoção a líder atleta salvador da pátria.
É assustador que falar de justiça social seja tido como tema esquerdista em país onde parcela imensa da população vive abaixo da linha de pobreza. Em notícia do Jornal da USP, no início do mandato de Bolsonaro, segundo os indicadores sociais do IBGE, 54,8 milhões de brasileiros estavam abaixo da linha da pobreza, ou seja, um quarto da população nacional tem renda domiciliar por pessoa inferior a R$ 406 por mês, de acordo com os critérios adotados pelo Banco Mundial.
Em novembro de 2019, passado um ano de governo Bolsonaro, a situação não melhorara, conforme o IBGE: a extrema pobreza aumentou no Brasil, somando 13,5 milhões de pessoas sobrevivendo com renda mensal per capita de até R$ 145, recorde em sete anos, e quase um quarto da população brasileira, 52,5 milhões de pessoas, ainda vivia com menos de R$ 420 per capita por mês.
A desigualdade social é secular, em grande parte herança da escravidão, pois a abolição jogou os ex-escravos, destituídos de qualificação, no mercado de trabalho sem condições de competição e possibilidades de progredir por ausência de educação e saúde. Daí (desculpem o uso dessa expressão), a constatação de que “a pobreza atinge sobretudo a população preta ou parda, que representa 72,7% dos pobres, em números absolutos, 38,1 milhões de pessoas”.
A questão social já fora abordada por Rui Barbosa em famoso discurso no Teatro Lírico no Rio de Janeiro na campanha presidencial de 1919, no qual pergunta: “Mas o que fizeram dos restos da raça resgatada os que lhe haviam sugado a existência em séculos da mais ímproba opressão?”. Rui conclui ter sido a abolição uma ironia atroz, pois “ao dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressaram, absolutamente de sua sorte, não vinha a ser mais do que alforriar os senhores”. E aponta o mestre: “Nem instrução, nem caridade, nem a higiene intervieram de qualquer modo”.
A questão social foi objeto de largos estudos ao longo do tempo. Cabe destacar a atenção dada ao problema pelo fórum nacional organizado por Reis Velloso. O estudioso Roberto Cavalcanti de Albuquerque tem por critério não apenas os níveis de rendimento, mas indicadores sociais como educação, saúde, trabalho, rendimento e habitação. Mostra, então, ter havido declínio do crescimento anual nos anos 1980, fruto da crise do petróleo, da dívida externa e da inflação.
Propõe, de conseguinte, em 2004, programa de redução da pobreza para “capacitar os pobres a serem sujeitos de suas próprias inclusões econômico-sociais”. Atendido esse programa, calculou que a extrema pobreza, no porcentual de 12,87% da população, poderia reduzir-se a 4,4% em 2015 (Cinco décadas de Questão Social, Rio de Janeiro, José Olympio, 2004, pág. 141). Enganou-se.
O desastroso segundo governo Dilma jogou o Brasil na recessão e o primeiro ano do governo Bolsonaro no campo social e econômico foi também negativo, proporcionando um aumento da miserabilidade, como antes assinalado.
Medida de grande alcance social, tornada evidente na pandemia, consiste na alteração da legislação relativa ao saneamento básico. O Projeto de Lei n.º 3.261 de 2019, de autoria do senador Tarso Jereissati, baseado em medida provisória de Michel Temer, altera a Lei n.º 11.445, de 5 de janeiro de 2007 (Lei do Saneamento Básico), buscando dar condições estruturais do saneamento básico no País. No caso, todavia, a iniciativa foi do Congresso.
Dos indicadores sociais, portanto, destacam-se: a saúde e a educação. Na área da saúde, o governo federal, em plena pandemia, só conspirou em desfavor das medidas de precaução da disseminação do vírus. Hoje o ministério está militarmente ocupado. No campo da educação o desastre foi total: Weintraub, centurião do bolsonarismo, pretendendo prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal. Agora se chegou a nomear um pretenso pós-doutor reprovado no doutoramento: fake currículo.
Mas, para os bolsonaristas raiz, criticar o chefe é ser esquerdista e “comprometedor” preocupar-se com justiça social e direitos das minorias. Essa narrativa nada tem que ver com o impeachment de Dilma, quando se buscou livrar o País do desastre econômico, que se aprofundaria se ela ficasse no poder, e do aparelhamento do Estado viabilizador da corrupção sistêmica em benefício do PT e de outros partidos.
A corrupção não é de esquerda ou de direita, é negativa. A busca de redução da desigualdade social também não tem lado, é medida de justiça.
Posso concluir com Rui Barbosa, para quem o egoísmo deve ceder frente à solidariedade humana, para se admitir a democracia social visando a reparar os agravos sofridos pela classe miserável, que, infelizmente, crescerá com a pandemia.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Sérgio Augusto: Dedo podre
Só deixei de torcer pelo ministro Porcina (aquele que foi sem nunca ter sido) ao ver entrevista
Circunscrito a um reduzido círculo de conhecimentos (infestado de ineptos, inaptos e bandidos) e à mercê das preferências de dois grupos de pressão superficialmente conflitantes – os militares e os olavistas – Bolsonaro continua fazendo as escolhas mais calamitosas inimagináveis. Além do dedo podre, repito, não tem quadros.
A cada ministro ou secretário demitido, ninguém mais se pergunta “quem será o sucessor?”, mas “que outro estupor ele irá convidar?”. Um estrupício caitituado pela militância ou sugerido pela milicância, favorecido pela ala ideológica ou pela ala verde-oliva? Essa distinção em alas, aliás, é uma lereia. Por que só alas e não facções e grupelhos? Ala, só a das baianas; mais respeito com elas e o carnaval.
Deveria ter soado alvissareira a escolha do professor Carlos Alberto Decotelli. Não fora indicado pelos apparatchiks da ultradireita da Virginia, parecia homem sério, preparado e equilibrado, um antípoda do Weintraub. A negritude, até então apenas representada no governo por Hélio Negão, um Lothar sem Mandrake, noves fora o défroqué noir Sérgio Camargo, também contava a seu favor. Afinal seria o primeiro afrodescendente alçado a ministro da Educação desde a criação do ministério na República Nova. Acabou sendo, coitado, o único ministro da Educação demitido antes de tomar posse.
Mesmo convicto de que qualquer pessoa se desmoraliza ao aceitar integrar o atual governo, torci para Decotelli conseguir provar os doutorados e distinções que dizia ter.
É que sua figura me trouxe à lembrança um professor de Latim do Colégio Pedro II, José Pompílio da Hora, sujeito preparadíssimo, também mestre em grego, filosofia e história, formado em direito pela Universidade de Nápoles, daí o leve sotaque italianado que nunca perdeu e lhe conferia um ar meio solene, quase pedante.
Pompílio da Hora era negro e por duas vezes no início da década de 1950 teve sua entrada no Itamaraty frustrada pelo que então chamavam de “preconceito de cor”. Não guardou rancor, nem se entregou à autocomiseração. Esse episódio de racismo marcou minha adolescência, de maneira indelével, como se pode notar.
Prof. Pompílio protegia descaradamente as meninas da turma, descascava os rapazes, e me fez decorar e traduzir, de castigo, os primeiros versos da Eneida (“Arma virumque cano…”, canto as armas e o varão), enquanto lubrificava a garganta com pastilhas Valda, seu único vício público. Pensei nele, no racismo do Itamaraty e só fui deixar de torcer pelo ministro Porcina (aquele que foi sem nunca ter sido) ao assistir àquela fatídica entrevista que ele deu à Globo News no início da semana.
Achei-o antipático, presunçoso, pernóstico e enrolador. Cheguei a desconfiar que a mídia o estivesse tratando com mais rigor que o dispensado aos cascateiros brancos do governo (Ricardo “Yale” Salles, Damares, o próprio Weintraub), com seus turbinados currículos acadêmicos, mas, em vez de ficar ruminando sobre um eventual viés racista da imprensa (e da Fundação Getúlio Vargas) em relação a Decotelli, preferi assuntar a presença dos negros na carreira diplomática e o comportamento deplorável de antigos ministros da Educação.
Nosso primeiro embaixador negro, Raimundo Sousa Dantas, foi uma ousada invenção de Jânio Quadros. Sua nomeação para representar o Brasil em Gana (África), em 1961, gerou resistência entre diplomatas e intelectuais brasileiros. Se hoje ainda só temos 5% de negros na carrière, assim mesmo graças a uma política de cotas e bolsas de estudos relativamente recente, imagine 60 anos atrás. Hoje Pompílio da Hora seria até embaixador, como Jackson Luiz Lima Oliveira, que já nos representou em Zâmbia e na Nigéria, e conhece a fundo a influência do racismo estrutural no Itamaraty.
Como teria sido Decotelli à frente da Educação é curiosidade que jamais será satisfeita. Pior do que seus dois antecessores (Ricardo Vélez Rodriguez e Abraham Weintraub) não seria, mas não consigo imaginá-lo ao nível do que Ney Braga e Eduardo Portella, sobretudo o segundo, conseguiram ser no governo Geisel.
É possível entender as razões do estado deplorável do ensino, e não só do ensino, no Brasil pela trajetória dos que assumiram o ministério da Educação desde sua criação em 1930. Seu primeiro ocupante, Francisco Campos, foi quem redigiu, em 1937, a Constituição do Estado Novo e, em 1964, os dois primeiros atos institucionais da ditadura militar.
Em 20 anos de ditadura, tivemos 10 ministros da Educação e dois interinos, nenhum naturalizado (como o colombiano Vélez), nem palhaço (como Weintraub), uns mais, outros menos afinados com os “ideais revolucionários” do regime. Os quatro primeiros (Luiz Antônio da Gama e Silva, Flávio Suplicy de Lacerda, Moniz de Aragão e Tarso Dutra) foram de lascar.
Gama e Silva ganhou o cargo pela limpeza ideológica que fizera, quando reitor da USP, banindo de seu corpo docente os professores Florestan Fernandes, Mario Schenberg, Octavio Ianni, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso e outros “esquerdistas”. Quatro anos depois poria sua sapiência jurídica a serviço da redação do AI-5.
Suplicy de Lacerda notabilizou-se por um acordo de cooperação do MEC com a Agência de Desenvolvimento dos EUA (Usaid), que visava transformar o ensino brasileiro num projeto tecnocrático e foi levado adiante por Tarso Dutra, que pegou pela proa as revoltas estudantis de 1967-69, motor e flecha da Passeata dos 100 Mil e outras decisivas manifestações de repúdio à ditadura. Por ser jurista, como Gama e Silva, encarregaram-no de revisar o texto do AI-5.
Não podia dar muito certo um ministério historicamente mais preocupado com a repressão do que com a educação.
Pedro Doria: O boicote vai fazer sucesso?
Será que agora o gigante – Facebook – enfim se move para enfrentar de vez a questão do discurso de ódio e da desinformação?
Para atacar o problema, o Facebook só tem um jeito: mexer em seu algoritmo.
Em meio à campanha de boicote à publicidade no mundo digital em curso, há uma confusão que precisa ser esclarecida. A campanha promovida por ONGs contra racismo como a Liga Anti-Difamação (contra antissemitismo) e NAACP (que enfrenta preconceito contra negros) não tem por foco todas as redes sociais. O que propõe é que grandes negócios não anunciem no Facebook e no Instagram, que pertence à holding. Mais de 500 companhias já se juntaram, incluindo-se na lista a Unilever, segunda maior anunciante do mundo.
Será que agora o gigante enfim se move para enfrentar de vez a questão do discurso de ódio e da desinformação?
Não está claro. Segundo informações obtidas pelo site The Information, que costuma acompanhar com lupa os bastidores do Vale do Silício, o CEO Mark Zuckerberg está desafiante. “Nós não vamos mudar nossas políticas por conta da ameaça a uma pequena parcela de nosso faturamento”, ele afirmou a um grupo de funcionários. De fato, são companhias gigantes com verbas publicitárias enormes, mas o negócio dos anúncios na maior de todas as redes sociais é muito fragmentado. Segundo uma estimativa, os 100 maiores anunciantes representam 6% do faturamento. Ou seja: é dinheiro, mas o Facebook pode perfeitamente viver sem isto.
Só que este jogo não se conta em dinheiro. Se conta em reputação. As companhias economizam com o dinheiro que gastariam e, mais de um analista já observou, a decisão de deixar a plataforma faz bem a sua imagem. É deste jeito que Zuckerberg está avaliando o tabuleiro: como um jogo no qual estas empresas estão ganhando reputação às custas de sua rede. “Minha aposta”, ele disse, “é de que estes anunciantes retornam à plataforma logo.”
Pode ser que retornem. O Facebook fez alguns gestos, como o de anunciar que informará que é discurso de ódio, quando for o caso, postagens de gente graúda, como o presidente americano Donald Trump. Para as ONGs, é muito pouco, quase nada. Como desde então mais e mais empresas se juntaram ao boicote, parece que pequenos gestos não serão o suficiente.
Só que não é simples o que as companhias estão pedindo de Zuck. E o problema é ele, sempre ele, o algoritmo. Um software movido a inteligência artificial que tem uma única missão: fazer com que os usuários fiquem a maior quantidade de tempo possível dentro da rede. E o que o software descobre todos sentimos na pele. Basta nos deixar indignados. Quanto mais indignados, mais retornamos. E retornamos. Para comentar, protestar, ler avidamente tudo o que há.
É neste cenário que políticos agressivos crescem e políticos amistosos desaparecem. É também um cenário propício à manipulação de opiniões, pois um número pequeno de pessoas publicando em ritmo de bombardeio ideias pesadas ganham muito mais distribução do que outras. Criam a ilusão de consenso e passam, quais pescadores, um arrastão levando os incautos. A sociedade se torna mais agressiva em todos os lados. Mais extremista.
É neste ambiente que racismo, homofobia, agressões de toda sorte que eram consideradas coisas a se esconder há poucos anos ganham a luz do dia impunes, ditas por uma gente que ainda sorri sarcástica e fala: ‘só não sou politicamente incorreto’. O termo é outro. É desumano. Incapaz de compaixão, de empatia.
Só que para atacar o problema só tem um jeito, mexer no algoritmo. Fazer com que os posts distribuídos apelem não para o que há de pior em nós mas para qualquer outro critério. E isto terá resultados. Estaremos menos viciados em redes sociais. O Facebook fará menos dinheiro.
Só que se o boicote se estende, aquelas companhias ganham boa reputação. E o Facebook perde. Neste caso, merecidamente.
Almir Pazzianotto Pinto: O sofisma do Poder Moderador
Conferir seu exercício às Forças Armadas significa abrir largas portas ao arbítrio
Na ausência de motivos para levarem a efeito a ideia do golpe, as hostes bolsonaristas recorrem à figura do Poder Moderador. Invocam a aplicação forçada e torta do artigo 42 da Constituição de 1988.
Poder Moderador existiu, mas na Carta Imperial de 1824, outorgada por Sua Majestade o imperador dom Pedro I. Dizia o artigo 98: “O Poder Moderador é a chave de toda organização política e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente, vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos poderes políticos”.
Para a regime monárquico era aceitável que ao imperador coubesse a prerrogativa de velar, ou seja, de fiscalizar a preservação do equilíbrio e da harmonia entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Afinal, a ele pertencia a chave da organização política. Registre-se, ademais, que Sua Majestade era pessoa inviolável e sagrada, não se encontrando sujeita “a responsabilidade alguma”, conforme prescrevia o artigo 99.
Proclamada a República, as coisas deixaram de ser assim. O presidente da República, chefe do Poder Executivo, não é inviolável ou sagrado. Responderá, se for o caso, pela prática de crimes de responsabilidade e comuns, conforme determinam os artigos 85 e 86 da Lei Fundamental.
Há algum tempo registrei que a Constituição de 1988 é a única, entre oito, que não resultou de golpe militar. Sucedeu à Constituição de 17/10/1969, conhecida como Emenda n.º 1, editada pelos ministros Augusto Hamann Rademaker Grünewald, da Marinha, Aurélio de Lira Tavares, do Exército, e Márcio de Souza Melo, da Aeronáutica. Haviam assumido a chefia do governo com a doença do presidente Costa e Silva. Para fazê-lo afastarem o vice-presidente Pedro Aleixo, seu sucessor natural de conformidade com o artigo 79 da Constituição de 1967. A História aí está para não nos esquecermos.
O dr. Tancredo Neves foi eleito em 5/1/1985, pela pressão popular. O colégio eleitoral apenas ratificou a vontade do povo, cansado de duas décadas de autoritarismo. Unida em torno dos partidos de oposição, a Nação reivindicava, em grandes manifestações públicas e pacíficas, o restabelecimento das eleições diretas e a restauração do Estado Democrático de Direito.
A doença que vitimou o dr. Tancredo quase pôs tudo a perder. Na noite de 14 de março, ao ser divulgada a notícia da internação no Hospital de Base começaram a circular em Brasília boatos de intervenção militar para impedir a posse de José Sarney. A rápida interferência do general Leônidas Pires Gonçalves, futuro ministro do Exército, teria assegurado ao vice-presidente o exercício interino da Presidência até a morte de Tancredo, em 21 de abril.
A Constituição de 1988 não é produto de crise ou de golpe militar. Resultou de Assembleia Nacional Constituinte, convocada e eleita como compromisso da campanha pela redemocratização. Tem defeitos. O maior, talvez, decorrente de irrefreável prolixidade.
Contém, entretanto, os instrumentos necessários à defesa do regime democrático. Às Forças Armadas – constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na disciplina e na hierarquia, sob a autoridade suprema do presidente da República – incumbe a defesa da Pátria, a garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, a defesa da lei e da ordem. A Constituição não as investe do Poder Moderador. Não são elas “a chave de toda a organização política”. Tampouco lhes compete velar pela manutenção da independência, do equilíbrio e da harmonia dos demais Poderes políticos, prerrogativa dos imperadores.
Para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional, ou atingidas por calamidades de grandes proporções da natureza, o presidente da República pode se valer da decretação do estado de defesa. Nos casos de comoção nacional ou de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, ou de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, tem ao seu dispor o estado de sítio. No primeiro caso, o decreto deverá ser submetido de imediato ao Congresso Nacional, para validá-lo ou não. No segundo, o Congresso deverá ser consultado antes (artigos 136/141 da Constituição).
Em ambas as situações, para preservação do Estado Democrático de Direito o Congresso Nacional permanecerá em atividade, sendo assegurada a divulgação dos pronunciamentos dos parlamentares nas correspondentes Casas Legislativas, desde que liberados pelas respectivas Mesas Diretoras. Pelas mesmas razões, o estado de defesa e o estado de sítio não impedirão o acesso à tutela do Poder Judiciário.
Conferir às Forças Armadas o exercício de Poder Moderador, instituto estranho ao arcabouço constitucional, significa abrir largas portas ao arbítrio.
*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é autor de ‘A falsa República’
Eliane Cantanhêde: Devassa
A guerra da PGR contra a Lava Jato está só começando e pode virar uma devassa
A guerra da Procuradoria-Geral da República (PGR) com a força-tarefa da Lava Jato está só começando, com troca de críticas em público e de acusações nos bastidores. Vem aí uma devassa numa operação anticorrupção que ganhou fama mundo afora, mobilizou o Brasil e, com a prisão de um ex-presidente, ex-governadores, ex-presidentes da Câmara e os maiores empreiteiros do País, gerou a esperança de que a lei valeria para todos.
Segundo o procurador-geral, Augusto Aras, em conversa ontem com a coluna, “não se trata de linchar quem quer que seja, até porque isso seria cair nos mesmos vícios”. Ele, porém, admite: “Mas é preciso corrigir rumos e seguir regras universais para todos os procuradores. Não podemos ter animais que são mais iguais do que os outros, como em A Revolução dos Bichos (George Orwell)”.
Aras não diz isso tão claramente quanto outros integrantes da PGR, mas a avaliação é de que a Lava Jato foi ótima, até “virarem a chave”. Ou seja, até os procuradores de Curitiba passarem a ultrapassar limites e driblar a falta de provas. Assim, há um “esgotamento” do modelo e é preciso transparência e tirar o excesso de poder e voluntarismo da Lava Jato, garantindo compartilhamento de dados e a participação da PGR. “Eu sou procurador-geral e não tenho o direito de saber o que acontece em Curitiba?”, reclama Aras.
Isso cria mais uma situação estranha num ambiente político já tão estranho. A PGR de Aras, acusado de “bolsonarista”, faz um discurso semelhante ao do PT quando o foco é Lava Jato e Curitiba, algozes do ex-presidente Lula. Como ficam os petistas? Contra Aras, mas a favor da intervenção na Lava Jato? Ou contra tudo e todos?
Aliás, pouco se fala sobre isso, mas o procurador-geral tem tomado sucessivas decisões que contrariam o Planalto. Exemplos: no combate à pandemia; na denúncia contra o deputado Arthur Lira (PP), do Centrão e aliado do presidente Jair Bolsonaro; nas “apurações preliminares” sobre declarações do deputado Eduardo Bolsonaro e do general Augusto Heleno (GSI) com viés antidemocrático. O seu teste de fogo, porém, será denunciar ou não Bolsonaro por intervenção política na PF.
O fato é que as acusações da PGR contra a Lava Jato, e da Lava Jato contra a PGR, vão piorar, com forte questionamento a ações e decisões de Curitiba. Na lista, as delações premiadas. Na avaliação da PGR e outros órgãos de controle, as multas aplicadas aos delatores não chegam a 10% de um valor razoável e eles estão leves, livres, soltos – e nadando em dinheiro desviado.
Na versão da Lava Jato, a intenção da PGR e do próprio Aras é destruir não só a operação, mas o próprio combate à corrupção. Eles dizem que é o oposto: retomar e aprofundar o combate à corrupção, que parou, em novas bases e práticas. Eles acusam a força-tarefa de ter engavetado 1.450 relatórios prontos, sem nenhuma consequência.
A lista da Lava Jato divulgada pelo site Poder 360, camuflando investigações indevidas contra os presidentes da Câmara (“Rodrigo Felinto”) e do Senado (“David Samuel”), foi só um aperitivo para tentar provar o uso de “métodos heterodoxos” da força-tarefa. Eles também não usavam simples gravadores, mas sim interceptadores. Ou seja: a PGR suspeita que grampeavam seus alvos sem autorização judicial.
Nessa guerra, ninguém está totalmente certo nem errado, mas a previsão é de que, entre mortos e feridos, os mais atingidos sejam os líderes da Lava Jato que tanta esperança trouxeram ao Brasil. Aí se chega a Sérgio Moro, o inimigo número um do PT, que passou a ser também dos bolsonaristas e agora corre o risco de ver a Lava Jato, a maior operação de combate à corrupção da história, virar um sonho de verão – ou um pesadelo.
Everardo Maciel: Um imperativo de responsabilidade
Corrupção e a violência se inscrevem num contexto marcado por difamações recíprocas e intolerância
Tomo emprestado conceito desenvolvido pelo filósofo Hans Jonas (1903-1933) para, em meio às enormes incertezas que pairam sobre a humanidade em vista da pandemia, seguir explorando caminhos para enfrentar problemas que se acumulam. Infelizmente, esse imperativo de responsabilidade, no Brasil, é embaraçado por um ambiente estigmatizado por múltiplas torpezas.
É certo que esse ambiente não é de origem recente. Ao contrário, há muito a corrupção e a violência criaram raízes profundas em nossa sociedade, projetando-se sobre o Estado. Erradicá-las de nosso convívio é missão que requer muita energia política, o que não se vislumbra em horizonte próximo.
Mais grave é que a corrupção e a violência se inscrevem num contexto marcado por difamações recíprocas, tagarelice perniciosa, linguagem chula, intolerância abjeta até mesmo contra a intolerância, sobrevalorização de questiúnculas, “militância” política de financiamento escuso,
vilanias veiculadas nas redes sociais. Perdemos a amabilidade, reconhecido traço cultural brasileiro. Exilamos a moderação, a discrição e o autocontrole, que os gregos identificavam na figura mítica de Sofrósina (Sobriedade, para os latinos). Essas dificuldades não podem, entretanto, converter-se em óbice intransponível, mas desafio a ser enfrentado, que deve animar os que assumem a responsabilidade de refletir e propor.
É alentador ver prosperarem proposições que, sem pretensões megalomaníacas ou salvacionistas, ferem, de forma pragmática e consistente, temas de interesse público. No campo tributário, regozijo-me com a apresentação do Projeto de Lei n.º 3.566 de 2020, na Câmara dos Deputados, que dá concretude à proposta de moratória tributária, que suscitei em artigo (Moratória), veiculado no Jota em 24/3/2020.
A proposta é focalizada nos optantes do Simples, inclusive os microempreendedores individuais, e abrange todos os tributos devidos entre 1.º de abril e 30 de setembro deste ano, nos termos do art. 152, inciso I, b, do Código Tributário Nacional (CTN).
O montante devido poderá ser parcelado e, subsequentemente, liquidado mediante pagamento correspondente a 0,3% do faturamento mensal, o que propicia um permanente ajustamento ao fluxo de caixa do contribuinte. Aos microempreendedores individuais, será facultado liquidar o débito em 60 parcelas mensais e iguais.
Essa iniciativa parlamentar revela discernimento em relação à crise vivida pelas micro e pequenas empresas e interpreta corretamente o tratamento tributário que para elas prescreve a Constituição. Contrapõe-se, também, àqueles que, desarrazoadamente, condenam o Simples, no pressuposto de que se trata de renúncia fiscal, sem considerar que o regime decorre de mandamento constitucional e que, se fosse extinto, nenhuma receita existiria, porque esses contribuintes se encaminhariam para a informalidade, gerando por consequência um genocídio tributário.
São alentadoras, também, as reflexões consistentes dos juristas Hamilton Dias de Souza e Gustavo Brigagão que, se convertidas em projetos, darão adequado disciplinamento tributário, respectivamente, aos trusts no exterior e à exportação de serviços.
Além disso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.446, o voto da ministra relatora Cármen Lúcia admitiu a constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN. Pondera, contudo, que a norma, para lograr eficácia plena, demanda fixação, em lei, de procedimentos que até hoje inexistem.
A prevalecer o entendimento da relatora, já acompanhado por quatro outros ministros, serão grandes as repercussões, inclusive em relação a julgamentos já realizados na esfera administrativa. Daí se impõe, como se buscou sem êxito na Medida Provisória n.º 66 de 2002, instituir por lei os referidos procedimentos, adotando, em relação às situações pretéritas, a transação prevista no art. 171 do CTN. Tal medida, ao resolver e prevenir litígios, seria, afinal, proveitosa tanto para o Fisco quanto para o contribuinte.
*Consultor Tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)
Zeina Latif: Vamos falar de trabalho?
Será necessário redirecionar recursos para abertura de novas empresas
O s números do mercado de trabalho preocupam. Houve uma redução de 7 milhões de pessoas ocupadas no trimestre encerrado em maio em relação ao mesmo período do ano passado. Os informais são, de longe, os mais afetados (menos 5,7 milhões).
As medidas do governo para conter a queda do emprego com carteira, no entanto, ajudaram a evitar um quadro bem pior. O programa de redução temporária de salários e de suspensão de contratos beneficiou 11,7 milhões de trabalhadores até o dia 26 de junho.
Os dados do emprego com carteira do Caged reforçam essa avaliação, pois o 1,4 milhão de vagas líquidas fechadas na mesma comparação decorreu muito mais da baixa geração de vagas do que de demissões.
Comparações mundiais são particularmente complexas, até porque as diferentes legislações trabalhistas têm impacto na flexibilidade para contratar e demitir. Mesmo assim, vale citar que, de uma lista de 32 países com informações disponíveis em maio último, o Brasil está no grupo de países mais preservados em termos de aumento da taxa de desemprego (12,9% ante 12,3%), em que pese o fato de partir de uma base elevada, das piores no mundo, sofrendo as consequências da recessão passada e do baixo crescimento.
Esse resultado, no entanto, camufla uma dura realidade, que é o desalento daqueles que não buscam trabalho, pois sabem que não terão sucesso, inclusive por conta do isolamento social. Não fosse isso, a taxa de desemprego estaria em 20,3%. Isso significa que em um possível cenário de lenta geração de vagas e elevação paulatina da procura por trabalho, a taxa de desemprego poderá subir muito nos próximos meses. Ações são necessárias.
A situação de outros países da América Latina – que também sofrem muito com a informalidade elevada – é bem pior: tiveram alta expressiva da taxa de desemprego, apesar da redução da procura por trabalho até mais forte do que a ocorrida no Brasil. O desemprego na Colômbia está em 21,4% ante 10,5%; Peru, com 13,1% ante 6,7%; e Chile com 11,2% ante 7,2%. Em todos esses casos, a queda de ocupados foi bem mais expressiva do que no Brasil.
Quanto aos informais, mais penalizados, medidas de socorro não têm faltado. O auxílio emergencial de R$ 600 beneficia em torno de 65 milhões de pessoas, cifra sensivelmente acima da soma de informais (40 milhões) e microempreendedores individuais (10 milhões) – nem todos elegíveis.
O governo prorrogou por mais dois meses o benefício por conta do isolamento social. Contabilizando os cinco meses totais, o custo do programa deverá ultrapassar R$ 250 bilhões, valor muito além da renda gerada pela metade mais pobre da população, que não ultrapassa R$ 150 bilhões.
A transferência de renda é uma medida relativamente simples de ser implementada e tem grande apelo político, mas não convém perder de vista a necessidade de preparar a mão de obra para o retorno ao mercado de trabalho e estimular a geração de vagas em um quadro de fechamento de negócios. São pautas tecnicamente mais difíceis e menos sedutoras politicamente, mas que precisam ser enfrentadas.
Rever e focalizar os vários programas sociais de transferência de renda entrou no radar do governo. A reavaliação de políticas públicas tornou-se ainda mais urgente.
Não há dúvidas que, mesmo no curto prazo, passado o isolamento social, é necessário ir além da transferência de renda. Não só pelo elevado custo do auxílio emergencial, mas pelo impacto na oferta de trabalho dos indivíduos.
Ricardo Paes de Barros recomenda a “inclusão produtiva”. A renda dos indivíduos decorreria da prestação de serviços, notadamente aqueles essenciais em tempos de pandemia, como os associados a saúde, medidas sanitárias e assistência social. Avalio que também será necessário redirecionar recursos para a abertura de novas empresas e modernização das atuais por meio da redução de renúncias tributárias ineficientes e injustas.
Além disso, deveria se reduzir obrigações que oneram a contratação de trabalhadores, como a contribuição do Sistema S. Precisamos estimular o trabalho. Isso sim.
*Consultora e doutora em economia pela USP
Eugênio Bucci: Extra, extra: o dia em que o Planalto derrubou a Constituição
Ainda bem que logo o episódio se revelou insignificante. Mas prenhe de significação
Foi um evento insignificante, mas nenhum outro poderia vir mais carregado de significação. Há pouco mais de uma semana, no começo da noite de 22 de junho, quem entrasse no site planalto.gov.br para acessar o texto da Constituição federal daria com a cara na porta – ou na tela. Aconteceu comigo.
Naquela segunda-feira, por volta das 7 da noite, eu mesmo dei com a cara na tela. Como faço sempre que preciso consultar o texto constitucional, entrei no site do Planalto, cliquei nos links de costume e, então, no lugar da Lei Maior encontrei um aviso deseducado e mal diagramado. Era um alerta em tons esfuziantes: “Ocorreu um erro!”. Assim, com ponto de exclamação. Na linha de baixo, um complemento enigmático: “O conteúdo não foi encontrado”. Gelei.
Fui buscar a Constituição no site do Senado Federal e, ufa!, lá estava ela, intacta, com todos os seus artigos, tal como os conheço.
Mesmo assim, um incômodo perturbador não se esvaía de meus nervos crispados: aquele ponto de exclamação. Como podia ser?
“Ocorreu um erro!”. Por que a exclamação? Parecia que, do outro lado, alguém comemorava o sumiço da norma.
Telefonei para um jornalista, que telefonou para outro jornalista, que telefonou para a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Duas horas depois, quando já passava das 9 e meia da noite, veio a resposta: “Prezado jornalista, verificamos com a área técnica que houve uma instabilidade no link, mas esta já foi corrigida. A página já está disponível. Atenciosamente, SECOM”.
Fui conferir. De fato, a vigência da nossa Lei Fundamental já se tinha restabelecido no endereço eletrônico do Palácio do Planalto. Era uma boa notícia. Um alívio. Mas, de novo, algo ali me incomodava: desta vez não um ponto de exclamação (não havia nenhum índice de júbilo no comunicado da Secom), mas uma palavra solerte: “instabilidade”.
No emprego daquele substantivo, “instabilidade”, rosnava um subtexto ameaçador. Desde há muitos meses, como sabemos, o País vem se afogando em instabilidades de diversas ordens. Naquela mesma segunda-feira o Estadão noticiava na primeira página que o STF e as Forças Armadas abriam diálogo em busca de pacificação. Note bem o improvável leitor: a “instabilidade” era tão aguda que ministros da cúpula do Judiciário e oficiais de altíssima patente se mobilizavam para pacificar a República. Quanto a mim, sem conseguir achar o texto da Constituição no site do Planalto, eu me perguntava: teria a “instabilidade” das instituições contaminado a cibernética palaciana?
Não era vã a minha apreensão. Paranoica talvez, não vã. Em meados do mês passado, o presidente andava especialmente atacado.
Manifestava-se por urros e mais urros, com incontidos insultos à democracia. Teria ele mandado alguém derrubar a Constituição do site oficial só para registrar mais uma provocação? Ultimamente não duvido de nada. Naqueles dias o homem ainda bufava raivoso pelos cantos, embora já se preparasse para ingressar na fase menos inamistosa em que se encontra hoje, com a adoção de sanfonas em lugar de fuzis (trata-se do primeiro governante da História Universal que, em posição de sentido, mas sentado, fecha a carranca para ouvir a Ave Maria de Gounod mal executada, e isso para emitir um sinal de “paz”). Eu não exagerava ao me preocupar. O que se tramava no Planalto? A pergunta era absurda, mas não irracional.
Em meio às instabilidades da política, da economia, da educação, da saúde pública e dos humores presidenciais, a resposta da Secom admitindo “instabilidade no link” soava perversamente irônica. Que aquela a instabilidade tivesse derrubado a Constituição soava como deboche. Sim, deboche. Nos tempos que nos assombram, com ou sem telemática, um pouco de paranoia, como prudência e caldo de galinha, não faz mal a ninguém.
Ainda bem que ao cabo de duas horas o episódio se revelou insignificante, como tratei de avisar logo na primeira linha. Uma intercorrência computacional. A gente já sabe que, na internet, caem governos, moedas e times de futebol, sem que tenham caído de verdade. Isso vive acontecendo. A Constituição também caiu por um par de horas (sofreu um take down) nos domínios do planalto.gov.br, mas, fora dele, as cláusulas pétreas continuaram de pé, mesmo que trôpegas e balouçantes. Portanto, o que se passou na Secom foi um descuido, uma distração de alguém que tardou a perceber a “instabilidade do link”.
Mas aí é que está: pelo que revelou de desatenção, de quase descaso, o evento insignificante, deveras insignificante, foi tão copioso, tão prenhe, tão transbordante de significação. O ocorrido deixou nítido que não está entre as prioridades da Secom o zelo respeitoso com a Lei Maior. Não houve sequer um pedido de desculpas, nenhuma expressão de reverência ao texto constitucional. Por quê?
Basta entrar no site para saber. O foco do planalto.gov.br é estampar fotografias promocionais do presidente, com links sempre estáveis. O personalismo manda lembranças. A Constituição que padeça na instabilidade. A Constituição é coisa lá da “área técnica”. A Constituição não é fake news, mas, bobeou, é derrubada.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
William Waack: A Lava Jato é o alvo
A força-tarefa terá de compartilhar seu principal ativo: informações sigilosas
A disputa no Ministério Público Federal sobre os dados coletados pela força-tarefa Lava Jato durante os últimos anos já é um clássico da intriga política, da luta pelo poder, do empenho em criar uma narrativa político-eleitoral e, principalmente, uma janela para entender muito do que aconteceu no Brasil nos últimos anos. E está só no começo.
É um clássico de intriga política pois a disputa é, no fundo, sobre quem tem o domínio de imenso arsenal de informações sigilosas obtidas por meio de quebras de sigilo, colaborações premiadas, escutas telefônicas e mais de mil inquéritos. O controle e o vazamento seletivo dessas informações – com a cumplicidade de grandes grupos de comunicação – foram armas relevantes no período em que a Lava Jato foi o instrumento central para apear um grupo corrupto do poder, o que era comandado pelo PT.
É impossível entender a eleição de Jair Bolsonaro sem o fenômeno da Lava Jato e a amplitude do apoio político e popular que recebeu. Mas, uma vez derrotado o PT, a onda disruptiva espraiou-se e estilhaçou em seus vários componentes, nos quais aquele apelidado de “lavajatismo” (ou “vale qualquer coisa para pegar corruptos, danem-se os princípios legais”) perdeu muito de sua força. A aura de que “só Lava Jatos” mudam o País permanece, porém.
Este não é um juízo de valor (desculpem o cinismo), mas não há dúvidas de que o grupo ao redor da força-tarefa da Lava Jato desenvolveu um projeto de poder que, nas origens, nascia da convicção ideológica de que a sociedade brasileira é hipossuficiente – a saber, não consegue se defender sozinha dos abusos cometidos por agentes públicos (classe política) e setores privados (empresários gananciosos). Portanto, precisa de uma proteção “externa”, os integrantes do Ministério Público e da Lava Jato.
É por esse motivo que os expoentes da Lava Jato sempre entenderam sua missão como política em sentido amplo. Hoje, em boa medida também pela saída de Sérgio Moro do governo, consideram-se acuados, tolhidos e controlados por um governo que, intencionalmente ou não, ajudaram a eleger. Talvez não percebam que parte daquilo que qualificam como “interferência” na independência funcional de procuradores não é nada mais do que a reação política e institucional ao fato desses mesmos procuradores terem se organizado como núcleo político na acepção pura da palavra.
A questão não é apenas doutrinária ou teórica. Ela é prática e de enorme impacto, pois o material comprometedor juntado pela Lava Jato é um acervo que vai agora para as mãos de quem? A disputa não é de agora. Desde 2015 a PGR obtinha do então titular da 13.ª Vara de Curitiba, Sérgio Moro, o compartilhamento do material de centenas de inquéritos, alegando sua relevância para julgamentos no STF, entre outros.
Há uma guerra surda de versões nos bastidores, repletas de todo tipo de teoria conspiratória, de lado a lado. Os procuradores que se consideram pisoteados pela direção da PGR alegam que a nomeação de Augusto Aras foi uma “indicação política” de Bolsonaro para proteger o próprio clã familiar. Do outro lado, ouve-se que os procuradores ao redor do grupo de Curitiba estão apenas preocupados em ocultar o que fizeram de pior ao transgredir leis e princípios para perseguir corruptos (ou desafetos), e não passam de “sindicalistas” descontentes com a perda de poder interno (na escolha do PGR, por exemplo).
Neste momento da ácida disputa o que se verifica claramente é uma correção de rumo geral da política frente à Lava Jato, com Bolsonaro mais na posição de espectador (ficar quieto é o que mais lhe convém) do que no comando de decisões. Grande parte do mundo político e jurídico aplaude o empenho da direção da PGR em retomar o controle central de grupos e forças-tarefa como a da Lava Jato.
Diante disso, já é possível dizer que a Lava Jato não será fator tão decisivo nas próximas eleições. O tabuleiro político é bem mais complicado do que xadrez jurídico no qual Sérgio Moro foi hábil jogador.
Monica De Bolle: Taras
A ligação entre medicina e economia se estende pela história do pensamento econômico
“A economia é uma disciplina afinada com a ideia e a produção de fetiches e taras. Então, por que não dizê-los? Uma tara do momento é aquela pela busca dos “cenários pós-covid”. Fala-se em recuperação em V, em L, em U, em W. Mas o que significa “pós-covid”? Ao mesmo tempo, no Brasil, o fetiche fiscal não se desgarra de muitos economistas. Mas e a dívida? Mas e o déficit? Mas e a dívida e o déficit? Mas e a dívida, e o déficit, e a inflação? A situação atual, que é de transição para algo que não sabemos o que é, não permite enxergar com clareza. É também verdade que, confrontadas com a incerteza, as pessoas muitas vezes se agarram àquilo que conhecem, projetando no futuro o passado. Contudo, é importante algum esforço e desprendimento para julgar o que do nosso passado econômico importa – se é que alguma coisa – para imaginarmos o que vamos enfrentar nos próximos meses e anos.
Antes, contudo, vou repetir algo que já escrevi algumas vezes neste espaço e já disse outras tantas mais no meu canal do YouTube. De nada adianta pensar nas letrinhas da retomada se não há um entendimento subjacente da epidemia e algum acompanhamento dos estudos científicos publicados sobre ela. Muitos economistas preferem pensar que nada precisam entender do assunto para traçar seus diagnósticos e suas previsões. É curiosa essa crença de economistas na autonomia da razão econômica em relação não só às Humanidades, mas a outras ciências. Afinal, na sua formação, a economia como disciplina sofreu a influência de grandes médicos, como John Locke (1632-1704) e François Quesnay (1694-1774), apenas para citar esses dois, cuja obra e pensamento influenciaram Adam Smith (1723-1790). Portanto, a ligação entre a medicina e a economia se estende pela história do pensamento econômico, retornando às suas origens. E, embora pareça divagar aqui, o desvio se justifica porque ignorar as origens da crise econômica para formular políticas públicas e previsões de crescimento é não apenas profundamente equivocado, mas dissonante da própria história da economia como ciência social.
O fetiche fiscalista é outra manifestação do mesmo mal. É claro que temos de nos preocupar com o tamanho do déficit público e com a trajetória da dívida. Mas o que isso significa? Vamos propor o que em termos de medidas econômicas para responder a essas preocupações?
Que o governo retome a defunta agenda de reformas, que nada faria neste momento para sustentar a economia? Que o Estado brasileiro não cumpra o seu papel constitucional de atender aos mais atingidos pela crise, seja por meio de programas de transferência de renda, seja por meio de repasses para a saúde, seja por meio de recursos destinados à educação, sobretudo para permitir que crianças sem acesso às escolas e sem acesso digital possam dispor de algum meio para o aprendizado? Vamos insistir que parte importante de nossos males vêm do sistema Simples, que as empresas sofrem muito com a carga tributária, que é preciso rever todas as políticas públicas para melhorar a eficácia? Nada disso é compatível com a urgência da falta de recursos hospitalares, das filas de quem não consegue receber o auxílio emergencial. É ainda menos compatível com uma ideia que tem de estar clara: a inação do governo é fator determinante da forma de recuperação da economia e do que venha a acontecer com o déficit e com a dívida pública.
Governo que não age à altura da crise atira o país contra a parede. Não à toa, o FMI revisou a projeção para o encolhimento do PIB brasileiro de 5,3% esse ano para 9,1%, chegando bem perto do quadro de depressão econômica sobre o qual venho falando há meses. Quedas do PIB dessa magnitude não precisam de nada mais para fazer um estrago considerável nas contas públicas. A arrecadação salta do precipício, elevando o déficit de forma abrupta. O encolhimento da renda decorrente da redução do PIB diminui o denominador da razão dívida/PIB, elevando-a. Ainda que seja impossível quantificar o estrago da inação, é possível dizer que a falta de medidas adequadas, ou a insuficiência delas, gera precisamente a deterioração tão temida pelos fiscalistas. Por que eles apontam, então, em outras direções, como se essa não fosse determinante de suas ideias fixas?
Por fim, o fetiche do teto. Escrevi sobre ele na semana passada, em modo catabólico – o artigo chamava-se “A Bioquímica do Teto”. Retomo-o agora em modo anabólico: a síntese do teto metaboliza produtos com alto grau de toxicidade para a economia brasileira, impedindo que as ações necessárias de combate à crise aguda e à crise crônica que dela sobrevirá sejam articuladas. Francamente? É duro ter de repetir isso quase toda semana.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Vera Magalhães: Até o totó era fake
Cãozinho Augusto e ministro mitômano povoam anedotário bolsonarista
E eis que, quando as atenções do Brasil estavam voltadas para o currículo a la “jogo dos sete erros” do novo-ex-ministro da Educação, vem a bomba, por avisos de push dos jornais: “Cachorro adotado pela família Bolsonaro já tem dono e será devolvido”.
É verdade que estamos calejados com tantos absurdos, que parecem pastiches de livros de realismo mágico e viraram diários nesses tempos de pandemia. Mas essa manchete, combinada às sucessivas erratas no currículo lattes (até aqui cabe trocadilho) de Carlos Decotelli, foi demais até para quem acompanha o enredo dia a dia.
Sim, faltava um mascote ao anedotário do bolsonarismo. Agora não falta mais. Augusto (talvez nunca saibamos se o nome era homenagem a algum dos Augustos próximos ou a Augusto Pinochet, ditador de estimação da família) na verdade era Zeus. Já tinha dono e teria de ser devolvido, depois de acolhido pela primeira-dama, Michele Bolsonaro.
Os memes vieram imediatamente: nem cachorro Bolsonaro consegue fazer durar no posto; nem o cachorro aguentou esse governo, e por aí vai. A hashtag Bolsonaro ladrão de cachorro (!) foi levada aos temas mais comentados do Twitter. O fato é que a piada foi elevada a categoria política na nova era, dada a dificuldade, em vários episódios, de se encontrar balizas sérias para analisar os acontecimentos.
Basta lembrar que não faz uma semana que, em meio a lives históricas de artistas como Gilberto Gil e Milton Nascimento, fomos submetidos a um show de sanfona do presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, que pretendeu entoar a Ave Maria em homenagem aos mortos pela covid-19 na transmissão semanal de Bolsonaro nas redes sociais, para visível constrangimento de Paulo Guedes.
O que tudo isso quer dizer? Que este governo virou um sitcom de mau gosto, e não de hoje. Os Bolsonaros sempre foram um elenco para lá de cafona, mas, por circunstâncias também elas dignas de um roteiro rocambolesco, seu patriarca chegou à Presidência, levando a tiracolo a “família buraco”, como bem definiu Eduardo em seu inglês avançado.
Os ministérios da Saúde e da Educação viraram a ribalta principal desse pastelão. O primeiro não tem ministro já mais de 40 dias em plena pandemia. O segundo se livrou de um maluco para ser entregue a um mitômano. A linha sucessória Vélez Rodríguez – Weintraub – Decotelli é a demonstração cabal do desapreço que o presidente dedica à Educação – que, não por acaso, é o único caminho seguro para que o País supere a miséria que fideliza o eleitorado a populistas de diferentes cortes ideológicos, mas práticas em muito similares.
Nada disso deveria estar numa coluna de política em pleno 2020 em que mais da metade da população ativa do Brasil está sem ocupação, que o vírus avança sem controle e que o governo não sabe como, por quanto tempo e em que valor vai pagar o auxílio emergencial a quem precisa, esses sim temas urgentes e nacionais.
Mas Bolsonaro consagrou a petecagem como política de Estado. Vulgarizou de tal maneira a Presidência à qual se agarra com o temor dos covardes que temos de comentar pessoas que jamais teriam, com currículo fake ou real, de estar nos postos que estão.
Houve farialimer e passapanista aos borbotões enchendo a boca para falar do ministério “técnico” de Bolsonaro. Já era uma lorota bem antes de Decotelli, basta ver as mentiras sinceras dos currículos de figuras como Ricardo Salles e Damares Alves.
Agora que tudo está descortinado e que o presidente ou nomeia Decotellis ou entrega os cofres ao Centrão sem intermediários, há quem ainda se agarre a Guedes ou a nomes como Tarcísio Gomes de Freitas. Triste sina a deles: virar coadjuvantes de filme sessão da tarde de cachorrinho. Ou plateia de sanfoneiro de beira de estrada.
Rosângela Bittar: Insinceridade geral
A fábula de como se faz um governo aleatório encontrou a simbologia máxima
Com toda a ambiguidade que imprime às suas manifestações, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu disfarçar, já na segunda-feira, o desfecho que só viria ontem: o convidado e nomeado estava dispensado da posse. Na nota com que se despediu do seu terceiro ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, depois de uma reunião improvável em que teria tido paciência para ouvir detalhes técnicos da estrutura curricular da pós-graduação, os elogios feitos pelo presidente se destinavam a consolar a si mesmo, por tê-lo escolhido, e a eximir de culpa os militares, por tê-lo indicado.
Motivação igual teve para dar-lhe a tribuna de 24 horas em que ainda contaria com audiência para se explicar. O que, convenhamos, foi atitude mais elegante do que a da Fundação Getúlio Vargas, que o renegou muitas vezes depois de prestar-lhe homenagens anos a fio pelos cursos que promoveu na instituição. Constatou-se que a FGV foi mais relapsa que a Abin.
Para ser ministro da Educação não é necessário ter doutorado. Mas é preciso ter decência. Este caso não deu para desentortar, como já se fez com tantos outros, inclusive nesta gestão, mas pode ainda inspirar o pensamento sobre o processo e o método de formação do governo Bolsonaro.
A fábula de como se faz um governo aleatório, sem critério e sem identidade, encontrou a simbologia máxima. Convite feito e aceito, ganhou a desculpa da urgência pelo rumo imediato exigido pela área em causa, a começar pela sua atividade mais elementar, o funcionamento das atividades em sala de aula. Nenhum filtro, nenhuma informação ou análise mais profunda sobre alguém que havia ingressado na história do Brasil há apenas cinco dias, levando na bagagem de chegada uma bomba de detonar a partida.
Saudado como técnico e gestor, Decotelli tinha um currículo composto por falsos brilhantes que, na insinceridade geral dos dois ambientes, o acadêmico e o do governo Bolsonaro, abalou as estruturas. Mestrado com tese de trechos copiados sem a citação do autor; doutorado contestado pela banca de Rosário; pós-doutorado, conhecido como posdoc no meio científico, inexistente em universidade alemã. O nomeado retocou a maquiagem, mas não ficou bem para a posse.
Enfeitar o currículo com estas lantejoulas é um clássico nacional. O pós- doutorado pode ser só um atraente turismo científico e, em muitos currículos, não passa disto. Em outros, é uma espécie de emprego temporário para doutores até aparecer coisa melhor. No conjunto desta obra, porém, pesou muito. O mestrado e o doutorado têm significados, sobretudo para quem pretende seguir a carreira acadêmica, mas não pesam para ser gestor público.
Há outras demonstrações de competência acadêmica além dos títulos, como há demonstrações de competência específicas na gestão pública ou privada. Mário Henrique Simonsen possuía de sobra as duas condições. Não tinha nem mestrado nem doutorado e estava fazendo, às pressas, uma graduação formal numa escola qualquer do Rio quando já era um economista respeitado e constava do catálogo de Harvard como professor visitante.
Para o currículo da plataforma Lattes não bastam os créditos do curso, é preciso ter defendido e aprovado tese para receber o título. Na vida acadêmica, a maioria já fez a assepsia. Na iniciativa privada e na administração, os titulares negligenciaram as correções.
Nos governos Collor, Lula, Dilma e Bolsonaro houve escândalos de currículos falsos ainda na memória de todos. Passaram a borracha e continuaram nos cargos.
Comparado com Ricardo Vélez, o primeiro, que saiu sem entrar, e com Abraham Weintraub, o segundo, que fugiu do País, Decotelli não pode ser culpado pela desdita do governo e mais um atraso no início de um plano de recuperação do funcionamento do MEC.
Quem seleciona é que não sabe o que quer nem para onde vai.