o estado de s paulo
Eliane Cantanhêde: Cobra naja e tubarões
Aliança com PGR para devassa na Lava Jato ameaça união do Supremo pela democracia
O Supremo Tribunal Federal (STF) está de parabéns por liderar a resistência democrática com posições firmes que por vezes extrapolaram alguns limites, mas, no conjunto, foram decisivas para inverter os ataques e, assim, “cortar as asinhas” e “baixar a bola” do Executivo e de bolsonaristas assanhados, loucos por golpes e aventuras. Mas a união exemplar do Judiciário no primeiro semestre pode não se repetir no segundo.
Quando estão em jogo a democracia, arroubos do presidente, ameaças dos meninos do presidente, bravatas de ministros do presidente e ataques virtuais ou reais de seguidores do presidente, o Supremo se une, é um monobloco. Decisões e manifestações do presidente Dias Toffoli, do decano Celso de Mello e do relator das fakenews, Alexandre de Moraes, são acatadas, em geral, por unanimidade. Mesmo com críticas e muxoxos nos bastidores.
Saindo da esfera democrática, porém, emergem ideologias, idiossincrasias, divergências e velhos rancores. O que detona isso? Toffoli tomar partido da Procuradoria Geral da República (PGR) contra a Lava Jato. Ao determinar que as Forças Tarefas de Curitiba, Rio e São Paulo entreguem todos os seus arquivos à PGR, incluindo dados financeiros de 38 mil cidadãos, Toffoli não só autoriza a devassa na Lava Jato e dá excesso de poder ao procurador geral Augusto Aras como reabre as feridas no Supremo.
Exemplo: Gilmar Mendes vota com Luiz Roberto Barroso e Edson Fachin contra ação de golpistas no prédio do STF, máquinas de moer reputações na internet, acusação de interferência política na Polícia Federal e ameaças de “basta”, “ruptura”, “consequências imprevisíveis” e de “não cumprir ordens”. Com Lava Jato, a coisa muda de figura.
No fim do recesso do Judiciário, em agosto, vem o julgamento da liminar monocrática de Toffoli a favor da PGR de Aras e contra a Lava Jato de Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e forças-tarefa, num movimento combinado para implodir a operação por “excessos”. Aí… Gilmar vai para um lado, Barroso e Fachin para outro. Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio se aliam para cá, Luiz Fux e Carmen Lúcia, para lá.
O clima político desanuviou com o silêncio e a reclusão do presidente, primeiro por cálculo político, depois pelo teste positivo. A covid-19 tem agora o efeito da facada na campanha: esconder e proteger Bolsonaro de Bolsonaro. Mas a guerra continua. Cerco aos militantes das fakenews, inclusive no Planalto e no Congresso. Prende-e-solta de Fabrício Queiroz entremeado com depoimentos do Zero Um. Devastação do ambiente. Saúde sem ministro. O pastor Milton Ribeiro, quarto ministro polêmico da Educação. Quanto tempo o “paz e amor” resiste?
E o clima quente do Judiciário será também no Superior Tribunal de Justiça (STJ), depois do habeas corpus do presidente João Otávio Noronha para tirar Queiroz da prisão e premiar a mulher dele, Márcia Aguiar, que fugiu da polícia. Noronha tem um caso de “amor à primeira vista” com Bolsonaro (nas palavras do próprio Bolsonaro), está de olho em uma vaga no STF e argumentou que Márcia precisa cuidar do marido! Um marmanjo que vivia de festas, churrascos e cerveja em Atibaia! E as presas pobres que têm filhos largados e agora fora das escolas?
Assim, o segundo semestre promete. Supremo com Lava Jato, STJ com Queiroz e Márcia, Congresso com projeto das fake news e prisão após segunda instância, Planalto com Ricardo Salles, Ernesto Araújo e Milton Ribeiro. A covid-19 contamina, mata, destrói empresas e empregos e cria cicatrizes num País já tão machucado. Brasília não é mais a cidade das cobras e lagartos, mas das cobras Naja e de tubarões em aquários. Ambos, Najas e tubarões, proibidos. O resto, não. É parte da paisagem.
José Roberto Mendonça de Barros: Muitas mudanças após a pandemia
Provavelmente veremos a valorização de uma vida mais simples, a ampliação do comportamento “faça você mesmo”
Mesmo com uma estimativa melhor do desempenho da economia no segundo trimestre, a maior parte das projeções para este ano está na faixa de uma queda de 6%, que também é a da MB. Nestas condições, o PIB per capita brasileiro terá caído, desde 2015, algo como 15%, ou seja, ficamos inequivocamente mais pobres e isto tem de ser bastante bem avaliado por todas as empresas, especialmente, nos mercados de bens de consumo. Genericamente, se elevará a demanda de produtos mais simples, o que já é totalmente visível no setor de alimentos.
Entretanto, devemos concentrar nossa atenção nas mudanças de comportamento que existirão após a experiência do distanciamento social que a Covid-19 impôs ao País.
Pesquisas disponíveis sugerem que as pessoas deverão alterar parcialmente suas percepções enquanto cidadãos, consumidores e trabalhadores.
No primeiro caso, provavelmente veremos a valorização de uma vida mais simples, a ampliação do comportamento “faça você mesmo” (mais matérias-primas e menos produtos finais) e o reforço à ideia de maior preservação do meio ambiente. Acredito também que o bairro e a proximidade sairão mais apreciados nas cidades grandes.
Entretanto, o confinamento e a valorização das regras de higiene aceleraram a entrada no mundo virtual, algo que já ocorria lentamente. De uma hora para outra, foi preciso aprender a trabalhar em casa, a comprar pela internet e a utilizar extensivamente os pagamentos digitais.
A experiência de consumo também se alterou drasticamente com a explosão das vendas pela internet. Estas representavam algo como 5% do faturamento do comércio, número que irá aumentar muito rapidamente. Os consumidores conheceram e navegaram em plataformas de grandes empresas, muitas das quais perseguem a estratégia pioneira da Amazon, acolhendo milhares de lojas virtuais de empresas menores. Em decorrência, a experiência de compra será diferente, com menos aquisições por impulso e com maior comparação de preços, o que resulta em menor fidelidade às marcas. Isto é uma pequena revolução nos hábitos com um gigantesco impacto nas empresas, que discutiremos mais adiante.
Finalmente, os impactos no mercado de trabalho estão sendo enormes: elevação drástica do desemprego e desaparecimento instantâneo de muitas atividades de prestação de serviço que faziam a vida de uma parte das famílias. Nunca foi tão grande o número de pessoas fora do mercado de trabalho. Por outro lado, os segmentos que melhor vêm atravessando este período (agronegócio, serviços de logística, comércio eletrônico, serviços financeiros e de telecomunicações) têm como característica comum um consistente investimento de novas técnicas, inclusive digitais, que exigem qualificações razoáveis. Com a aceleração do mundo digital, a demanda por trabalhadores mais preparados crescerá e resultará numa maior segmentação no mercado de trabalho.
Este é apenas mais um indicador do maior custo da pandemia, depois da multidão de mortos: a desigualdade do Brasil vai se elevar.
As empresas, por sua vez, também estão passando por várias transformações, particularmente pela aceleração da digitalização, da automação e da utilização de todos os tipos de serviços à distância, quer com clientes, quer com fornecedores. A mudança mais universal é o trabalho em casa, que em pouquíssimo tempo praticamente se universalizou. Após ajustes e adaptações iniciais houve um surpreendente êxito: a avaliação é que a produtividade até se elevou e muitos custos caíram. Na volta à normalidade é seguro que haverá sempre uma combinação do trabalho à distância com o trabalho tradicional nos escritórios.
Mas não é só a gestão de escritório. Muita gente, eu inclusive, se surpreendeu como houve uma rápida adaptação em áreas como compras, relacionamento com fornecedores, assistência técnica e vendas, que puderam se desenrolar com inesperada facilidade. Estas tendências claramente continuarão.
Haverá também mudanças na governança: além dos aspectos internos à empresa, nesta nova configuração, ficou claro que o relacionamento com a solidariedade na crise e o relacionamento com a vizinhança e o meio ambiente terão que ser incorporados à vida das companhias. Basta olhar a questão das queimadas criminosas na Amazônia.
Nos próximos meses, teremos muito a discutir acerca dessas mudanças. Hoje, finalizaria mencionando apenas que vai se reforçar uma divisão no mundo empresarial: uma nata bem administrada, capitalizada e moderna e um conjunto de empresas que se arrasta e busca privilégios na proteção governamental.
Rogério L. Furquim Werneck: A incerteza como ela é
Resistir à tentação de atribuir probabilidades arbitrárias a cenários imprevisíveis
Esmagados, como estamos agora, por opressiva incerteza sobre o que nos reserva o futuro, é hora de ler o instigante livro de Mervyn King e John Kay, Radical uncertainty (Incerteza radical), recém-lançado nos EUA e no Reino Unido.
Mervyn King presidiu o Banco da Inglaterra por dez anos, entre 2003 e 2013, período em que lhe coube administrar a difícil travessia da grande crise de 2007-2008. É professor da New York University e da London School of Economics. John Kay é um microeconomista, professor de Oxford e renomado colunista do Financial Times.
O argumento central do livro não chega a ser novo. Seu mérito está em destacar e dar novo alento à crucial distinção entre os conceitos de risco e de incerteza, ressaltada por dois grandes economistas da primeira metade do século passado, Frank Knight e John Maynard Keynes.
Nessa distinção, o conceito de risco estaria restrito a situações em que possíveis desfechos futuros e suas respectivas probabilidades fossem previamente conhecidos. Já o termo incerteza ficaria referido a situações em que não se conhecem as probabilidades nem mesmo os possíveis desfechos futuros relevantes.
O que os autores arguem no livro é que, já há várias décadas, economistas vêm ignorando essa distinção e se permitindo tratar incerteza como risco. E, nessa transgressão, vêm sendo alegremente seguidos por estrategistas, analistas políticos e toda sorte de especialistas e consultores.
Trata-se de livro excepcionalmente bem escrito, de leitura agradável, em larga medida acessível a leitores sem formação técnica específica, em que os autores fazem uso intenso e engenhoso de uma profusão de casos concretos e situações amplamente conhecidas para reforçar intuições e dar respaldo a seus argumentos.
Embora a versão final dos manuscritos tenha sido entregue aos editores em meados de 2019, o livro acabou se revelando muito mais oportuno do que seus autores poderiam imaginar, na esteira da enorme incerteza levantada, em 2020, pela pandemia e seus desdobramentos socioeconômicos. Especialmente no Brasil, onde a colossal onda de incerteza vem sendo exacerbada pela complexa interação das crises sanitária e econômica com a difícil crise política em que o País está mergulhado. O que hoje nos aflige não é o desafio de lidar com uma elevação de risco. E, sim, a brutal incerteza, cerrada e inescrutável, que passamos a ter de enfrentar. Um caso claro do que os autores rotulam de incerteza radical.
King e Kay acompanharam de perto, na crise de 2007-2008, os desdobramentos desastrosos da disseminação da prática de tratar incerteza como risco na precificação de ativos financeiros complexos. E essa experiência certamente contribuiu para lhes deixar ainda mais convictos do argumento central que deu lugar ao livro. Mas a verdade é que os autores vão bem além disso, ao dar a tal argumento um tratamento muito mais amplo e geral, em contraste com a pletora de livros – vários deles, muito bons – já publicados sobre a crise de 2007-2008.
King e Kay usam uma expressão elucidativa: unknowable future, futuro incognoscível, que não é previamente conhecível. Em circunstâncias marcadas por incerteza radical, de nada adianta o escapismo de atribuir, a torto e direito, probabilidades arbitrárias a cenários que decorrerão de processos completamente imprevisíveis. Não há alternativa a não ser encarar a real natureza da incerteza envolvida, como de fato é, em toda a sua complexidade.
Os autores ponderam que, diante de incerteza radical, o que se espera dos supostos especialistas – sejam eles economistas, analistas políticos ou epidemiologistas – não é atribuir probabilidades a esmo, mas prover uma narrativa coerente e crível que possa prover um contexto adequado para as decisões a tomar. É com base nessa narrativa que os responsáveis por organizações complexas bem geridas poderão entender com mais clareza a real natureza do problema envolvido. E adotar soluções que se mostrem robustas e resilientes a eventos inerentemente imprevisíveis.
- Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
Eliane Cantanhêde: Missão impossível
Difícil convencer investidores de boas ações e intenções do Brasil no meio ambiente
Com Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) sentados à mesa e deitando falação, como os investidores internacionais podem acreditar em boas intenções e ações do Brasil na defesa da Amazônia e das comunidades indígenas? Araújo ironiza a defesa do ambiente como “climatismo”, “coisa da esquerda”. Salles sofre uma repulsa geral por só pensar em “passar a boiada”. E o presidente Jair Bolsonaro acha tudo isso uma bobajada que atravanca o progresso.
Assim, há dúvidas quanto ao resultado da reunião de ontem do vice Hamilton Mourão, Tereza Cristina (Agricultura), Araújo e Salles com grandes investidores. No mundo de hoje, que governos, empresas e financiadores arriscam suas marcas apostando em países que desmatam, queimam, desrespeitam comunidades ancestrais? (E cultura, educação, saúde…)
É difícil e constrangedor pedir recursos a estrangeiros (ontem) e ao grande capital nacional (hoje) se… os R$ 33 milhões do Fundo da Amazônia estão mofando no BNDES, só 0,7% dos R$ 60 milhões da Operação Verde BR2 foram usados e o ministro do Meio Ambiente é alvo da Justiça, MP, Ibama, ICMBio e da torcida do Flamengo.
É difícil e constrangedor dizer que vai tudo bem, obrigada, se o desmatamento da Amazônia cresce há 13 meses seguidos e isso significa, como todo o mundo, literalmente, sabe, devastação no ato e queimadas depois. Sem falar de Cerrado, Mata Atlântica e das pujantes riquezas naturais brasileiras, ameaçadas por ideologia, ignorância e achismos.
É difícil e constrangedor reclamar de “uma visão distorcida” do mundo sobre o meio ambiente no Brasil, como já reclamou Bolsonaro na reunião do Mercosul, já que é o próprio presidente que manda os fiscais do Ibama descumprirem as leis e deixar os desmatadores em paz.
É difícil e constrangedor, também, explicar que Bolsonaro esperou se eleger presidente para punir o fiscal do Ibama que o multou por pescar em área proibida, demitiu o presidente do Inpe porque não aceitava os dados do desmatamento, tem ideias apavorantes para Abrolhos, Angra dos Reis e Fernando de Noronha e orienta seu governo a “passar a boiada” – como disse Salles na reunião de 22 de abril, referindo-se a leis e regras flexibilizando a proteção ambiental.
É difícil e constrangedor, ainda, jurar de pés juntos para o grande capital nacional e estrangeiro que o governo brasileiro se preocupa realmente com as comunidades indígenas e quilombolas, se o presidente acaba de vetar medidas de preservação da vida e das reservas, como fornecimento de água potável, cestas básicas e itens de higiene durante a pandemia. Argumento: a lei aprovada no Congresso não especificou as fontes de recursos? Ah, bem! Tudo explicado.
Por fim, é difícil e constrangedor explicar a proposta para escancarar as reservas indígenas para todo o tipo de exploração – mineral, agrícola, pecuária, até turística. Tudo isso, porém, pode ser explicado com uma única frase, do então ministro da Educação na histórica reunião ministerial de 22 de abril: “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio o povo cigano. Quer, quer, não quer, sai de ré”. Deveras educativo.
Só não é difícil, apesar de profundamente constrangedor, ver a imagem do Brasil esturricando pelo mundo afora, alvo de perplexidade de líderes democráticos, sociedades, parlamentos, empresas, mídia, chargistas e organismos internacionais. O “soft power” construído ao longo de décadas vira pó, deixando uma triste pergunta no ar: quanto tempo vai demorar para nosso País recuperar, não apenas investimentos e boa vontade do capital internacional, mas sobretudo a imagem, credibilidade e simpatia de todo o mundo?
Fernando Gabeira: Um consenso amazônico
Há esperanças de uma composição com o enfoque conservador, em defesa da região
Numa semana em que esperava olhar um pouco para a frente, com Bolsonaro mais quieto, eis que ele contrai o novo coronavírus e retoma todo o seu discurso de negação e irresponsabilidade. Ele se contaminou na semana em que vetou a obrigatoriedade das máscaras em lojas, templos e presídios, contrariando a orientação científica internacional.
Fica difícil olhar para a frente com o caos criado no Ministério da Educação. Como retornar às aulas em escolas públicas sem um plano adequado? Algumas não têm sequer saneamento básico. E grande parte dos alunos não se pode integrar ao ensino a distância por falta de meios.
Mas o futuro, de certa maneira, pede passagem, na voz dos investidores internacionais e dos grande grupos econômicos do Brasil: eles não aceitam mais a política ambiental do governo para a Amazônia. Há quem ache estranha a procedência desse apelo pela floresta.
A ecologia, sobretudo nos Estados Unidos, sempre foi vista como uma dimensão da luta anticapitalista. Os próprios partidos verdes sempre se voltaram para a esquerda na suas alianças, muitos considerando o socialismo como o horizonte de suas aspirações.
Mas esse consenso de que ecologia e capitalismo não se encontram nunca vem sendo quebrado há muito por filósofos conservadores, como o inglês John Gray, por exemplo. O primeiro contato que tive com sua agenda verde para o conservadorismo foi em 1993, no livro Para Além da Nova Direita, uma crítica ao neoliberalismo. Gray formulava uma agenda para a Grã-Bretanha e partia do princípio de que havia muitas convergências entre o pensamento conservador e os teóricos verdes. Na verdade, ele acha que o berço de algumas ideias aceitas pelos ecologistas podem ser encontradas em pensadores como Edmund Burke.
Uma delas é de que o contrato social não envolve apenas anônimos e efêmeros indivíduos, mas gerações passadas, presentes e futuras. O diálogo da visão conservadora de Gray com a filosofia verde naturalmente passa por críticas ao anticapitalismo que despreza alguns benefícios das instituições do mercado e subestima os custos do planejamento central e seus efeitos catastróficos no meio ambiente, como, por exemplo, na antiga União Soviética.
O livro de Gray é só uma das indicações de que conservadores buscam convergências com o movimento verde.
De modo geral, associa-se a visão conservadora ao neoliberalismo, abstraindo sua visão cética sobre o progresso, com suas ironias e ilusões. Aqui, no Brasil, assim como em muitos países do mundo, há a ideia de que o capitalismo, ciente da finitude dos recursos naturais, quer explorá-los o mais rápido possível, consumir tudo antes que a vida humana se torne impossível no planeta.
Essa visão, hoje, na Amazônia, é das forças bolsonaristas compostas por desmatadores, grileiros e garimpeiros, que têm pressa em retirar todos os frutos da floresta, destruindo-a e aos seus habitantes tradicionais. Infelizmente, uma concepção de defesa nacional, no meu entender anacrônica, fortalece esse caminho.
Fica evidente, pela posição dos fundos de pensão e dos grupos econômicos internos, que não é essa a alternativa que aprovam e, nessas circunstâncias, há uma convergência com as bandeiras verdes. Esses grupos financeiros e econômicos não tiraram suas ideias de um mundo abstrato, mas da observação das sociedades onde atuam e prosperam. Nesse sentido, estão em sintonia com instituições brasileiras como o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público, este pedindo abertamente a demissão do ministro do Meio Ambiente por sua política anti-histórica e destrutiva, que, afinal, é também a política de Bolsonaro.
Os grupos econômicos brasileiros decidiram enviar seu apelo ao vice-presidente Hamilton Mourão, que se tem mostrado em sintonia com a política de Bolsonaro na Amazônia. É uma política predatória, que acaba favorecendo os fora da lei que queimam, desmatam e invadem terras públicas e áreas demarcadas para as comunidades indígenas.
Uma consideração sobre o futuro tem de ser, certamente, muito mais ampla do que um simples exame da política amazônica. Há esperanças, no entanto, de uma composição com o enfoque conservador. A vulgaridade da visão de progresso das forças bolsonaristas não pode ser considerada como um produto único do capitalismo. Na verdade, ela é mais a expressão do banditismo e da rapina, de um capitalismo ultrapassado que o mundo contempla com horror, num momento de crise ambiental planetária.
Certamente o edifício reacionário é mais complexo e diverso do que sua expressão amazônica. Mas se ele pode ser rompido em algum ponto onde apodreceu, a ponto de reunir forcas heterogêneas numa frente pela vida, ele pode ser rompido por aqui.
Desse ponto se pode achar um atalho para uma frente pela vida na política contra a pandemia do coronavírus, um consenso sobre a ênfase na educação abandonada; enfim, uma ampla reforma nesse prédio corroído pelo cupim da ignorância e do despreparo. É uma agenda mínima para pensar no futuro para além das peripécias de um governo que não sabe para onde ir.
*Jornalista
Zeina Latif: Sem ministro e sem rumo
Crise atual aumenta o apelo para soluções populistas e pode afastar medidas mais estruturantes
Muito foco tem sido dado à escolha do próximo ministro da Educação, mas muito pouco se discute sobre as medidas para reduzir o atraso educacional, combatendo a desigualdade de oportunidades e elevando a qualidade da mão de obra. É uma visão míope defender mais recursos públicos.
Nunca é demais repetir que o governo brasileiro gasta com educação mais que a média dos países da OCDE (6,2% do PIB em 2015 ante 5%) e que o aumento de recursos foi considerável na última década (4,5% em 2005).
É verdade que o gasto por aluno é bastante inferior (equivale aproximadamente a 41% da OCDE no ensino básico e 88% no superior), mas cabe lembrar que somos mais pobres que a média da OCDE (o PIB per capita do Brasil equivale a 35%) e gastamos mais do que países parecidos. O custo por aluno é sensivelmente maior aqui do que na média da Colômbia e do México, por exemplo (1,8 vez maior no ensino superior e em torno de 1,27 vez no ensino básico).
O aumento de recursos permitiu maior acesso à educação, mas houve avanço insatisfatório dos indicadores de qualidade. O momento atual demanda a melhor gestão e alocação de recursos, reduzindo a ênfase no ensino superior, mais frequentado pela elite.
São menos crianças ingressando na escola, por conta da menor fertilidade, mas ainda há muitas de fora. Apenas 29% das crianças pobres estão em creches e 7,4% delas estão fora da pré-escola. As discrepâncias regionais são elevadas, o que demanda maior flexibilidade nos orçamentos locais e a reprodução de experiências de sucesso.
Em torno de 21,6% dos alunos não concluem o ensino fundamental até os 16 anos, sendo a taxa de conclusão dos mais pobres de apenas 31%.
São 71% dos jovens entre 15 e 17 anos matriculados no ensino médio, mas 35% não o concluem – para os mais pobres, a taxa sobe para 49,8%. A elevada evasão escolar está certamente associada à baixa qualidade do ensino. A taxa de proficiência em leitura no 3.º ano fundamental (dado de 2016) está em 45% (68% entre os mais ricos e 23% entre os mais pobres). Os números para a proficiência em matemática são parecidos.
Na comparação mundial fica ainda mais explícita a baixa qualidade do gasto com educação. As notas do Pisa estão praticamente estagnadas desde 2009 e são inferiores às da Colômbia, que exibiu sensível avanço. A diferença entre ensino público e privado é significativa.
A discussão da renovação do Fundeb será importante teste. A proposta em tramitação no Congresso propõe elevar significativamente a complementação de recursos da União – de 10% para 20%, implicando R$ 170 bilhões a mais em 10 anos. Há vários problemas: não há preocupação com a qualidade do ensino e se engessa ainda mais a alocação de recursos ao não alterar as regras vigentes desde 2009 que farão com que o aumento de recursos se traduza em elevação do piso salarial, já bastante valorizado (204% de ajuste desde 2009 ante inflação de 83%) nas regiões mais pobres.
O MEC não se manifesta, mas deveria ter proposta alternativa, com a manutenção do volume atual de recursos e estabelecendo critérios meritocráticos para a distribuição dos mesmos, levando em conta as diferentes realidades do País, e provendo maior liberdade para sua utilização. Cada administração local deveria definir suas prioridades de gastos.
Há outras tantas agendas importantes no MEC, como a coordenação de esforços regionais, propiciando replicar os vários casos de sucesso na educação.
É necessário introduzir meritocracia na universidade pública, lembrando que 85% das despesas é com pessoal, sobrando pouco para a pesquisa acadêmica.
Especialistas apontam para a necessidade de unificar programas de assistência estudantil para um direcionamento mais eficiente dos recursos, criar mecanismo de devolução de recursos de indivíduos que se beneficiaram de recursos públicos no ensino superior, reduzir a gratuidade do ensino superior para os mais ricos, viabilizar convênios entre as universidades públicas e a rede básica.
A crise atual aumenta o apelo para medidas populistas e pode afastar medidas mais estruturantes. Não podemos cair nessa armadilha.
*Consultora e doutora em economia pela USP
José Serra: Quem somos nós e por que lutamos
Com os não radicais fragmentados, só vamos continuar a marcar passo
Uma iniciativa de opositores às aspirações autoritárias do atual presidente busca inspiração no movimento das Diretas-Já, de 40 anos atrás. Episódios históricos são sujeitos a revisões e reversões de seus fatos e significados ao longo de décadas e séculos.
Mesmo aqueles que, como eu e muitos de minha geração, participaram ativamente do movimento terão versões particulares do que viram e ouviram contar. Gostaria de compartilhar aqui lições que pude aprender com base em meu testemunho pessoal e nos conhecimentos das ciências sociais.
O movimento das Diretas não foi apenas um tipo de movimento coletivo, agrupamentos que se movem ao mesmo tempo, sem objetivo preestabelecido, não necessariamente de modo convergente, nem no mesmo espaço, e sem um desfecho previsto. O Diretas-Já foi mais do que isso: um movimento social, definido pelo sociólogo francês Alain Touraine – grande amigo e estudioso do Brasil e da América Latina – como um movimento coletivo com objetivo claro, com adversário definido e senso de identidade. Em suma: quem somos nós, por que lutamos e contra quem.
Parece claro que nem os diversos movimentos coletivos em nosso passado recente, nem mesmo grande número de partidos políticos, têm clareza sobre essas dimensões, que, idealmente, deveriam ter presidido sua criação.
O Diretas-Já teve um alvo imediato bem definido, a aprovação do projeto de emenda constitucional do deputado federal Dante de Oliveira que aboliria a eleição indireta do presidente da República por um colégio eleitoral criado sob medida para eleger quem o regime escolhesse. Era uma ideia com grande apoio popular, mas uma ideia só não faz verão, e a oposição não tinha votos suficientes (dois terços das duas Casas do Congresso Nacional, na época) para aprovar aquela emenda.
Três fatores transformaram essa ideia em movimento social. Em primeiro lugar, nos dez anos precedentes formou-se um grande movimento de ideias. Intelectuais, editorialistas, artistas, lideranças dos mais diversos matizes, políticas, sindicais, religiosas, martelavam diuturnamente, nos meios de comunicação tradicionais e alternativos, o princípio da primazia da sociedade civil sobre o regime autoritário, da legitimidade das instituições democráticas e da representação popular.
Isso deixou claro “quem somos nós” (a sociedade civil) e “contra quem lutamos” (o governo militar). Inicialmente, o ideal por que lutávamos era pontual: devolver à sociedade civil o direito de eleger o presidente da República.
Outro fator foi a liderança política assumida pelo governador Franco Montoro, do Estado de São Paulo, o mais poderoso da Federação, que propiciou a mudança de patamar de manifestações restritas para um movimento político com uma estratégia de poder. Com isso foi possível reunir a capacidade de mobilização popular de praticamente todos os governadores e dominar as ruas em todo o País. O mais importante, entretanto, é que, quando o movimento foi derrotado – por não ter alcançado o quórum constitucional –, o ideal do movimento se transformou, de restaurar o voto popular direto para conquistar o poder, mesmo disputando dentro das regras impostas pelo regime. Ou seja, nós, a sociedade civil, lutamos para conquistar o poder político, contra o regime autoritário e tudo o que ele representa.
Essa nova razão de ser do movimento – conquistar o poder político, e não apenas mudar as regras do jogo – acrescentou outra dimensão: o princípio das concessões mútuas. Para conquistar a vitória no colégio eleitoral a oposição teria de conquistar votos entre os adversários, a fim de que seu candidato fosse eleito.
Essa opção não foi aceita por alguns governadores e líderes partidários, particularmente do PT, que recusavam disputar o poder “dentro das regras da ditadura”, porque reconheciam, até com razão, que sua chance de vitória seria disputando eleições diretas. O maior partido do Congresso e em número de governadores, o PMDB, contava com três fortes candidatos capazes de reunir a condição sine qua non para ganhar o pleito indireto, isto é, serem aceitos pela Frente Liberal, dissidência do partido do governo, e aceitarem os moderados do governo como aliados para o pleito. Eram eles o grande articulador das Diretas-Já, Franco Montoro, o líder inconteste da oposição, Ulysses Guimarães, e Tancredo Neves, cujas inclinações moderadas seriam mais aceitáveis para a Frente Liberal.
Montoro propôs a Ulysses que ambos renunciassem à candidatura por ser Tancredo mais viável para compor a chapa com José Sarney, líder da Frente, que acabara de renunciar à presidência do partido do governo.
O movimento das Diretas não fracassou quando derrotado em seus objetivos iniciais. Adotou uma estratégia de poder, com definição clara de sua identidade e do adversário, e criou uma maioria, atraindo os mais moderados entre os adversários.
Enquanto os não radicais da classe política e da sociedade civil continuarem fragmentados entre radicais dos dois lados e não adotarem um estratégia convergente de poder, continuaremos a marcar passo.
- José serra é senador (PSDB-SP)
William Waack: Meia-volta forçada
A crise inverteu prioridades econômicas do governo, mas falta um plano
O economista britânico John Maynard Keynes não era um dos autores da preferência do ministro da Economia, Paulo Guedes, quando ele estudou em Chicago. Ao contrário: no período da sua formação acadêmica, “Chicago” definia o polo oposto doutrinário e intelectual a Keynes, eternizado no templo de algumas escolas de economia como guardião da intervenção estatal (isso não é justo com Keynes, mas é assim que acabou ficando no imaginário).
Guedes parece seguir agora uma das frases pelas quais Keynes é lembrado: “Se os fatos mudam, eu mudo de opinião”. É exatamente a volta que Guedes deu nas últimas semanas, surpreendido por uma crise de saúde pública inédita e que tem como grande consequência o fato de tornar milhões de brasileiros pobres ainda mais pobres, e milhões de desempregados ainda mais distantes de conseguir trabalho. Descobrimos 38 milhões de invisíveis, resume Guedes. Ou seja, gente fora de qualquer mercado formal.
O governo Bolsonaro conquistou coração e mentes de agentes econômicos prometendo menos Brasília, menos intervenção e um rápido destravamento da economia via reformas estruturais. Não era bem um plano – era um conjunto de intenções, que coincidiam em grande medida com aspirações de vastos segmentos, especialmente empresariais. Assumia-se que renda e emprego viriam automaticamente com as reformas estruturantes e a consequente expansão da economia.
Agora é exatamente o contrário. Renda e emprego são o foco declarado das ações que Guedes pretende que o governo desenvolva da forma mais rápida e ampla possível. A crise jogou o governo e Guedes num intrincado dilema: precisa ao mesmo tempo salvar pessoas que caíram para baixo da linha da miséria, garantir programas emergenciais para empresas que estão demitindo e falindo, estender a mão para entes da Federação sufocados pelo buraco das contas públicas (que está aumentando), buscar não se sabe onde recursos para investir, atrair a iniciativa privada para minimamente compensar a perda da capacidade de investimento do Estado.
As razões políticas que levaram o governo e seu principal ministro a rever radicalmente orientações e ações são óbvias: Bolsonaro está também trocando de eleitorado, e o “dinheiro do Bolsonaro” (o coronavoucher) esclarece boa parte da forma com que seu prestígio pessoal supera as constantes crises que ele cria para si mesmo. Claro que Guedes percebeu como os fatos mudaram e, portanto, como também teria o governo de mudar de “opinião” – empurrado ou não pelo cálculo político eleitoreiro (totalmente legítimo, aliás) de curto prazo, o que se estabeleceu foi uma prioridade, e ela é social.
A questão central, porém, continua sendo a mesma do início do mandato em 2019. Há um conjunto de intenções que rimam perfeitamente com a percepção que se tem da realidade brasileira (combater miséria, doença e desemprego é a prioridade zero zero) em todos os setores, mas não está claro qual seria o “road map”, qual a sequência de ações que levariam o País a “aterrissar”, como gosta de dizer o ministro da Economia, numa situação de renda mínima para os mais necessitados e expansão da economia com empregos de qualidade.
As opções para agir se reduziram consideravelmente e hoje são basicamente arrombar os cofres públicos e tentar reformas que demoram para trazer resultados. Tendo de manobrar uma massa de parlamentares fisiológicos, conhecida como Centrão. E sem muito tempo, fator essencial que o cínico Keynes resumiu tão bem na mais conhecida de suas frases: “A longo prazo, estamos todos mortos”. Politicamente, pode-se morrer bem mais cedo ainda.
José Nêumanne: Até quando Jair fará pouco de nossa sobrevivência?
Furto não é ‘rachadinha’; Wassef é cúmplice, não advogado; e Bolsonaro está é apavorado
O Brasil não é mais um Estado de Direito a respeitar, mas um país do faz de conta em que os mandatários recorrem à picaretagem malandra de eufemismos para maquilar crimes abomináveis, dando-lhes nomes simpáticos e leves para agradar a vassalos e enganar os tolos incautos. Dilma, a Weintraub petista de saias, reduziu o peso dos delitos pelos quais seus companheiros foram condenados, chamando-os de malfeitos. Eles, aliás, são malfeitores mesmo.
As enganações do momento têm apodo carinhoso ou são batizados em inglês: “rachadinha”, fake news… A primeira deriva de “rachid”: parlamentares de baixos clero e nível cometem a prática de contratar funcionários fantasmas, dos quais tomam de volta a parte do leão da injusta remuneração que recebem sem dar expediente. O nome do crime de que Flávio Bolsonaro foi acusado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) é peculato, administrado pelo operador, Fabrício Queiroz. O dito representante do povo remunera com dinheiro público quem não tem qualificação para exercer cargo com alto vencimento e furta, no mínimo, 80% deste.
Trata-se de nefanda prática criminosa vigente em Casas Legislativas federais, estaduais e municipais, associada a lavagem de dinheiro, corrupção e organização criminosa. Antes que algum bolsonarista, em defesa do hoje senador, aponte para o presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (a Alerj), o petista André Ceciliano, cuja assessoria foi flagrada pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) com “movimentações” 20 vezes superiores às do gabinete do nota zero um, ele tem de ser investigado. Mas furto é furto, seja qual for o valor. Teria de ser investigado no inquérito do MP-RJ, mas não inocenta Flávio por ser menor sua quantia.
Circula nos meios jurídicos uma boutade sobre inútil busca em foros de alguma petição redigida pelo ex-satanista Frederick Wassef, que defendeu o titular do mandato na Alerj, conquistado pelo voto. Mas isso não elimina o fato de que, como advogado, ele exibe feito memorável, do qual jamais se poderiam orgulhar colegas celebrados como Sobral Pinto, Rui Barbosa ou Victor Nunes Leal. Com sua lábia de “jurista de porta de cadeia”, ele convenceu o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, a suspender todas as investigações do Coaf sobre crimes financeiros no País inteiro, só para manter o cliente longe das grades.
Mesmo, porém, que escape da justa punição da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que deixou de ser uma respeitável instituição da cidadania para se defender do arbítrio e virou mero sindicato de causídicos a serviço de ricaços, responderá pela condição de “coiteiro” de suspeito de miliciano. Esse termo define fazendeiros que davam guarida a cangaceiros no sertão e serviram de tema para um romance de José Américo de Almeida. Foi criminoso o papel que exerceu ao homiziar Fabrício Queiroz num escritório fake em Atibaia. Sua impunidade é um acinte. Por favorecimento pessoal, como acha o professor Miguel Reale Júnior, ou por eventual participação em organização criminosa, como aventa o desembargador Walter Maierovitch. E uma sanção administrativa da OAB.
Não dá para omitir o fato de que o cavalheiro em questão também se jactava de ser, mais que representante legal, íntimo do presidente Jair Bolsonaro. Que tem defendido, em preito à sua insensibilidade desumanista, lares não ameaçados de invasão por “esbirros” de seus inimigos prefeitos e governadores por desobediência à obrigatoriedade de portar máscara nas ruas. É evidente que o capitão cloroquina não leu os tratados antropológicos de Roberto DaMatta sobre a oposição entre rua e casa, mas é lamentável que sua sesquipedal ignorância oportunista o impeça de distinguir ambiente doméstico de espaço público.
Outra obsessão dele, de garantir a asseclas o direito constitucional de ir e vir, levou o mesmo político do mais baixo clero a confundir liberdade de expressão com fake news, associação de palavras inglesas que têm equivalente em português significando mentira, tema que ele domina.
E já que Bolsonaro foi citado neste panorama de proteção por eufemismos, é útil acrescentar que o presidente da República tem sido favorecido pela covardia dos pais da Pátria, que fingem não perceber que sua atual interpretação de “Jairzinho paz e amor”, inspirada em desempenho de seu antípoda e aliado secreto Lulinha, não passa de mera manifestação de pavor. Tendo levado a função presidencial à completa desmoralização mundial por sua indiferença criminosa, quiçá genocida, à maior pandemia do último século e temendo revelações incômodas do colega de paraquedismo, abandonou seu apoio a atos golpistas antidemocráticos e insultos às instituições da democracia representativa. E adotou o hábito de falso monge trapista. Com esse truque não será punido, como deveria, pelos crimes que cometeu no exercício da Presidência e puseram em risco diploma e mandato.
Parodiando Cícero contra o também populista Catilina, até quando Jair vai caçoar de nossa sobrevivência?
*Jornalista, poeta e escritor
Eliane Cantanhêde: Do ‘e daí?’ ao ‘eu não disse?’
O presidente Jair Bolsonaro tanto fez que acabou pegando a covid-19. Depois de participar de manifestações, ir a ruas e padarias, abraçar estranhos e liderar cerimônias no Planalto sem máscara, o que se poderia esperar? Até que demorou muito. E ele é do grupo de risco.
Se há alguma surpresa, é na forma do anúncio. Quando fez os primeiros exames, ele escondeu o nome e se recusou a dizer qual o resultado – curiosamente, negativo. Agora, admitiu os sintomas, avisou que estava fazendo o teste e anunciou, ele mesmo, que deu positivo. O Estadão nem precisou entrar de novo na Justiça para exigir o resultado.
A grande de pergunta é se o presidente vai seguir os passos do primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que também era negacionista, mas contraiu a doença, foi internado e descobriu que a coisa era feia. Ao pedir desculpas, passou a combater o vírus seriamente.
A resposta quanto a Bolsonaro é um retumbante não, ele não vai mudar nada. Se a gente observa os primeiros momentos após a confirmação, descuidado, minimizando tudo, o mais provável é o oposto: que ele aprofunde o negacionismo e use a própria contaminação para fazer propaganda de suas certezas absurdas.
A expectativa é ele explorar seu próprio exemplo para “comprovar” que a covid-19 é só uma “gripezinha” e, com seu “histórico de atleta”, ele tira de letra. Aliás, dá muito bem para todo mundo trabalhar e levar vida normal mesmo contaminado.
Não bastasse, o pior é o marketing do presidente da República a favor da hidroxicloroquina, que não é recomendada contra o vírus por nenhum estudo sério e tem efeitos colaterais que podem ser graves. Corresponde a estimular milhares ou milhões de pessoas a tomar um remédio perigoso ao primeiro sinal de febre.
Sinceros votos para que Bolsonaro saia dessa rapidamente e da melhor forma possível, mas o risco é ele bater no peito para dizer aos brasileiros que “estava certo” e propagandear a tese da “gripezinha”. O que os familiares, amores e amigos dos mais de 65 mil mortos vão sentir diante disso?
Vera Magalhães: Bolsonarice contagiosa
Tal qual um vírus, impostura do presidente infecta o País
A notícia de que Jair Bolsonaro, depois de tanto desafiar as regras de bom senso em uma pandemia, foi contaminado pelo novo coronavírus deflagrou um outro surto: a ira irracional daqueles que colocam adesivos antifascistas em seus perfis nas redes sociais e passaram a desejar a morte do presidente da República.
A onda não ficou restrita à internet. Chegou a colunas de jornais, travestida de exercício filosófico-linguístico, mas cujo único resultado prático é vitimizar o presidente que até agora destilou sua falta completa de empatia diante da tragédia. Perde a imprensa, perde o País, perdemos todos nós, que nos desumanizamos a cada dia, sem perceber que, aos poucos, nos transformamos naquilo que mais desprezamos.
Bolsonaro não ganhou apenas corações e mentes dos minions que os segue nas portas dos palácios e em posts ensandecidos. O presidente conseguiu comprometer o fígado e o cérebro de parte daqueles que o criticam, num jogo que apenas rebaixa todos ao seu patamar e permite que ele ganhe espaço, porque no lodaçal é imbatível.
Não há nada que justifique que democratas, pessoas e instituições se ponham a “torcer” pela morte desse ou daquele. Muito menos as indignidades de Bolsonaro, uma vez que é justamente contra elas que se conclama a união de esforços daqueles que prezam a vida, a ciência, a educação, a cultura e a civilidade.
Sim, o presidente colhe de volta a absoluta falta de compaixão que cuspiu na cara de um país estarrecido ao longo dos últimos cinco meses. Andou a cavalo, passeou de jet ski, subiu em boleia de caminhão, assoou o nariz e cumprimentou velhinhos em seguida, receitou cloroquina sem ser médico, mandou invadirem hospitais, chegou ao cúmulo de vetar o uso de máscaras e passeou por aí já infectado, possivelmente transmitindo coronavírus para os poucos com os quais diz se importar.
Diante de tanta atrocidade, merece morrer? Não. Porque esse pensamento nos prende à barbárie que o presidente, sua família e seu núcleo insano tratam de cultivar desde antes mesmo da campanha, como terreno fértil para permitir a supressão da razão, único ambiente em que alguém tão virulento pode ser eleito presidente da República.
Aqueles que são de fato a antítese de Bolsonaro só têm um caminho: torcer pela medicina, pela ciência e pela sua cura. E para que ele responda diante dos órgãos competentes pelos crimes de responsabilidade que cometeu e diante dos eleitores pelas vezes em que brincou com a vida como um déspota de quinta categoria.
O oposto de Bolsonaro não é a hashtag “força, corona”. Essa é sua consagração, seu triunfo, o caminho para sua perpetuação.
Construir de forma inteligente e lúcida o caminho para que nos curemos de Bolsonaro significa mostrar com dados e evidências o quanto seu comportamento colocou em risco não apenas a si mesmo e seus familiares, mas um país inteiro.
Como sob a falácia de salvar a economia acabou condenando vidas e boicotando qualquer chance de minimizar o estrago econômico.
É acompanhar seu tratamento e repetir aos incautos que não, cloroquina não tem efeito preventivo nem curativo comprovado. E que um presidente da República virar mascate de remédio e impor a um ministério sem ministro há quase dois meses que enfie esse remédio goela abaixo da população é mais um dado que o inabilita para exercer o cargo que exerce.
A morte de Bolsonaro em nada contribuiria para que o Brasil tivesse alta de sua doença crônica e generalizada, em que a política virou uma peste e que, ao se curar de um vírus, você automaticamente cai acamado por outro ainda mais letal. A vacina para isso se chama democracia, já está disponível e permite a imunidade a esse comportamento de rebanho que nos desumaniza.
Monica De Bolle: Preguiça mental
De nada vale o aumento da produção industrial em um mês, porque um ponto apenas não estabelece tendência
Reforma, reforma, reforma, privatização. Repitam comigo: reforma, reforma, reforma, privatização. Agora outro. Teto, teto, teto, ou inflação. De novo: teto, teto, teto, ou inflação. Mais um: a dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. A dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. Resume-se a isso o debate econômico no Brasil. Não, esqueci desse: a queda de oferta é maior do que a queda da demanda, logo, vai dar inflação. Em algum momento vai dar inflação. Aguardem aí que vai dar inflação. A palavra inflação fica ecoando no ouvido como uma taça tibetana, aquelas usadas para meditar, mais apropriadamente conhecidas em inglês como “singing bowls”. O som que emana delas é o ruído da preguiça mental, aquela névoa densa que caracteriza o debate econômico brasileiro.
Cresceu a produção industrial? É a retomada, a hora das reformas, o momento oportuno para privatizar, o tempo do teto, o desfile dos ajustes para conter a dívida. O problema? O problema é que passam-se os anos, passam-se as décadas, e as conveniências continuam as mesmas, pois impera uma preguiça mental. De nada vale um aumento pontual da produção industrial se o ponto de partida era péssimo. Trata-se daquela velha história: se algo que valia 100 caiu 50% de valor, para que volte a valer o que valia antes o aumento precisa ser de 100% -- as condições iniciais importam. De nada vale o aumento da produção industrial em um mês, porque um ponto apenas não estabelece tendência do que quer que seja. Ah, mas a economia reabriu? Falemos sobre a reabertura da economia. Mas tratemos de não ignorar o contexto.
Temos uma epidemia que muitos ainda não entenderam. Como o vírus ataca os pulmões, prevalece a impressão de que a covid é uma doença do trato respiratório. Contudo, o que já se vê nos relatos clínicos e em estudos científicos é outra caracterização do mal que aflige o planeta, e o Brasil em particular. O vírus entra no corpo pelas vias respiratórias superiores, migra para o pulmão, mas também para a corrente sanguínea. Ele tem a capacidade de se ligar ao endotélio, a parede das veias capilares. A rede das veias capilares é a mais extensa e complexa do sistema vascular. Uma vez acoplado ao endotélio, o vírus migra com o fluxo sanguíneo para todos os tecidos e órgãos do corpo. Essa doença que chamamos de covid é, por isso, sistêmica: uma vez no sistema circulatório, o vírus trafega por toda parte. Isso explica por que os sintomas são tão variados. Também explica por que essa doença é tão traiçoeira.
Uma economia em que circula um vírus sistêmico sem qualquer controle é uma economia destroçada, ainda que os efeitos demorem a aparecer. Pois não basta que estejam abertos os estabelecimentos, as fábricas, os bares, os restaurantes. Se a população estiver desprotegida, ou se parte dela for negligente, muitas pessoas adoecerão. Quanto mais doentes, ainda que muitos apresentem sintomas leves, mais sofre a economia. Digo isso levando em conta o que sabemos. Se levarmos em conta o que não sabemos, caberá perguntar: já que o vírus é sistêmico, qual a chance de uma sequela permanente? Qual a chance de invalidez?
Quantas pessoas sofrerão de fibrose pulmonar, problemas de coagulação sanguínea, problemas neurológicos? Quantas terão trombose, ou acidentes cardiovasculares? Enfim, quantas pessoas ficarão permanentemente, ou por um período muito longo, dependentes do sistema de saúde? Quantas dessas pessoas terão o SUS como única via? Nessas circunstâncias, como vamos dar os recursos necessários ao SUS? E se algumas pessoas não puderem voltar ao trabalho devido às sequelas da covid? Como haverão de se sustentar? Qual pode vir a ser o impacto de uma epidemia descontrolada na força de trabalho?
Essa lista de perguntas é apenas uma pequena amostra de tudo aquilo que nossos governantes, economistas, gestores de política pública deveriam estar se perguntando e para o que deveriam tentar mapear saídas. Sim, mapear. Respondê-las com qualquer grau de certeza é impossível. Contudo, em vez de perguntar e pensar, muitos de nossos pensadores e executores se entregam à preguiça mental disfarçada por um repeteco constante de mesmices. Se pudesse acrescentar um efeito colateral do vírus, seria esse de ele ter sido capaz de cruzar a barreira hematoencefálica provocando o adormecimento de muitos neurônios por aí.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University