o estado de s paulo
Elena Landau: Rios de tinta
Separei as melhores piores frases de Guedes ditas desde o início da pandemia
Meu querido mestre Sergio Bermudes conseguiu vencer o covid-19 depois de meses de muita luta. Grande notícia. Resolvi estudar Direito depois dos 40. Teria cinco anos de curso pela frente e estava impaciente para aprender. Pedi uma lista de leitura a um jovem professor. Com ar blasé ele respondeu: “melhor esperar”. Tudo tem seu tempo. Quase desisti do curso ali.
Um amigo me sugeriu conversar com Bermudes. Eu só o conhecia de nome por conta de uma vitória emblemática durante a ditadura. Muito jovem, foi o autor da petição inicial do caso Vladimir Herzog. Propôs uma ação civil pedindo que o Judiciário reconhecesse a responsabilidade do Estado pela morte do jornalista. Pela primeira vez, o Estado reconhecia que o Estado usava a tortura como instrumento.
Tomei coragem e pedi uma reunião, sem muitas esperanças. Me recebeu em sua casa para um delicioso almoço, em todos os sentidos.
Após quatro horas, saí de lá não só com uma lista de livros, mas com o convite para usar sua famosa biblioteca no escritório.
No antigo prédio da Marechal Câmara não havia espaço para me acomodar, nem mesmo uma mesa disponível. Sergio cedeu o sofá de sua sala e, na sua ausência, sua própria mesa. Isso foi em abril de 2002. Nesses 18 anos, fui estagiária, consultora para assuntos econômicos, sócia, e, acima de tudo, ele foi meu confidente, amigo e parceiro de dança.
Ouvindo suas teses nas discussões de casos com meus colegas aprendi muito mais que nos cinco anos de faculdade. Nos almoços, na disputada mesa da copa, as histórias, as piadas e a poesia são a sua marca, nada de trabalho. Me lembro dele declamando A Carolina, de Machado de Assis, em uma de nossas reuniões. Foi o primeiro de vários poemas e sonetos por ele recitados. Tem uma memória melhor do que elefante.
Nestes três meses que esteve lutando pela vida, Sergio não presenciou o criminoso tratamento deste governo com os infectados pelo vírus. Não ouviu o presidente debochar da gravidade da epidemia. Perdeu a demissão de dois ministros da Saúde e a entrega do cargo, de forma interina, a mais um dos militares, entre os 3 mil, que compõem este governo. Quando voltar a ler seu jornal diário vai ver que o número de mortos consegue lotar um Maracanã. Vai ficar surpreso com o fato que ainda não temos um ministro da Saúde e que as estatísticas confiáveis agora são aquelas divulgadas pelo pool de veículos da imprensa. Já imagino ele me perguntando: “o piloto sumiu?” Sumiu, está alimentando emas no palácio.
Sergio adora comentar as notícias do dia. Nos almoços, sempre vem com as inevitáveis perguntas sobre futebol, especialmente quando o Botafogo perde, e a economia do país: “e o dólar?” “Essa privatização da Eletrobrás sai mesmo?” E, em uma piada interna, vai perguntar o que estou achando do Pacheco, o personagem do Eça de Queiroz que é usado entre nós para identificar uns economistas que se acham.
Fui resgatar as frases de Guedes ditas desde o início da pandemia para contar a ele as peripécias de um Pacheco. Comecei com a “com 3,4 ou 5 bilhões a gente aniquila o vírus e os “40 milhões de testes semanais que o amigo inglês garantiu que vão chegar na semana que vem”, junto com a reforma tributária.
Nessa pesquisa das melhores piores frases de Guedes, encontrei uma dita ainda no início da campanha:
“Bolsonaro reconheceu que não entendia nada de economia (…) Queria um cara que estivesse ‘na lua’ e eu, por acaso, estava na lua”. Profética.
Sergio é o avesso da superficialidade. Mesmo sendo o grande processualista que é, e sabendo os Códigos de cor, continua, a cada caso, a buscar na lei a confirmação da estratégia escolhida para atender ao cliente. Filólogo, tem o Houaiss ao alcance da mão. Participar dos seus ditados para uma petição é um privilégio. Das teses jurídicas ao correto significado de cada palavra, tudo se aprende.
As peças do escritório tem sua marca pessoal. Usa títulos que levam o leitor direto à tese usada para explicar o mérito do pedido.
Nada de receita de livro-texto, como “Das Preliminares” ou “Do Pedido”. Os estagiários do escritório sofrem nas mãos de professores caretas. Eu quase fui reprovada por usar na prova seu estilo.
Sergio não gosta de petições longas e uma de suas expressões que mais me diverte é “Dispensem-se rios de tinta para demonstrar a nitidez da situação”. Descrever de forma concisa uma questão complexa é difícil, mas torna temas áridos em leitura acessível. Não vê necessidade de mostrar sua erudição mesmo tendo lido centenas de livros, no original.
Para escrever tudo que Sergio contribuiu para o Direito no país, e, especialmente, para minha vida, teria que gastar um rio Amazonas.
*Economista e advogada
William Waack: Desastre anunciado
O quadro eleitoral americano parece confirmar as previsões para nossa política externa
Profissional de carreira que é, pode-se assumir que o embaixador brasileiro em Washington já cultive contatos com os democratas que provavelmente vão assumir junto com Joe Biden. Talvez áreas do governo como Economia, Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia, além das pastas militares, possam ajudá-lo. O pessoal da área internacional “pura” do atual governo só tem os números da turma ligada a Trump.
Se as eleições fossem hoje Trump estaria fora, e as relações do Brasil com Washington em precária situação. A opção preferencial pela pessoa do Trump feita por Jair Bolsonaro configura-se um desastre de proporções inéditas na história da nossa política externa. Não há exemplo de “alinhamento automático” tão mal conduzido. Mesmo na Guerra Fria o regime militar brasileiro levou nossos negócios em relação aos EUA de forma mais autônoma.
Cristalizaram-se nos últimos dias dois dilemas geopolíticos que se tornaram ainda piores devido ao apego de Planalto a Trump. O primeiro é o fato de que Joe Biden, o candidato democrata que hoje derrotaria Trump apresentou um ambicioso programa de recuperação econômica dos Estados Unidos baseado na “economia verde”, o que inclui a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris (que o Brasil, macaqueando Trump, maltratou).
Procura jogar a ainda maior economia do mundo numa larga avenida de investimento em energias renováveis, novas tecnologias e provavelmente exercendo ainda maior pressão política e comercial sobre o Brasil e suas políticas ambientais. Biden não vai conseguir fazer o relógio voltar para trás, mas promete retomar muito do “multilateralismo” (“globalismo”, como preferem dizer os bolsonaristas) e restituir parte da importância de agências que Trump fez questão de tentar destruir, como as da ONU (em alguns casos, com implícita colaboração brasileira).
A outra questão geopolítica é a participação da gigante de telecomunicações chinesa Huawei na infraestrutura brasileira do 5G, uma decisão que se aproxima para legisladores e governantes brasileiros, e que já causa notável angústia. O ministro Paulo Guedes resumiu há pouco o problema: “o ideal seria deixar a competição progredir, americanos contra chineses, mas surgiu essa questão geopolítica”. Trata-se da cobrança para o Brasil seguir o mesmo caminho que o Reino Unido, que foi banir a gigante chinesa de telecomunicações.
O 5G vai colocar também a cúpula militar brasileira contra a parede. Nossos militares no momento celebram, e com razão, um entendimento com os americanos que promete aplainar o acesso a tecnologias de ponta na área de defesa. Mas os sinais vindos de Washington são inequívocos: parcerias estratégicas no campo de defesa vão depender do comportamento do Brasil em relação ao uso de tecnologia e equipamentos chineses.
Conter a China é um consenso entre republicanos e democratas nos EUA, com a diferença do mau humor em relação ao Brasil que se pressupõe inicialmente de uma administração democrata – que ainda por cima tem boas chances de conquistar nas urnas em novembro também o Senado. Boa parte do nosso governo acredita que a China precisa comer e não vai retaliar o Brasil, um de seus principais fornecedores de commodities agrícolas. É uma perigosa zona de conforto mental. A China tem condições de nos causar muita dor.
Na figura do general Hamilton Mourão, vice presidente e coordenador das políticas para a Amazônia, o governo brasileiro admitiu no Senado esta semana que a guerra das narrativas está perdida para nós, que o Brasil está na defensiva, e que precisa apresentar resultados ao mundo para “sair das cordas” (Mourão). O que deixa Bolsonaro diante de um problemão formidável de política externa pelo qual só pode culpar a si mesmo.
Eugênio Bucci: Enganos e desenganos na lei das ‘fake news’
Caminho certo é coibir os abusos. Errado é definir por lei o que é verdade ou mentira
Aprovado no Senado Federal no dia 30 de junho, o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, começou a tramitar na Câmara dos Deputados. Apelidado de lei das fake news, o projeto abriu a semana sendo discutido em painéis públicos organizados pela própria Câmara. Melhor assim. Como alertou editorial do Estado publicado na terça-feira (Prudência com as fake news), “é essencial que a Câmara faça uma profunda e serena discussão a respeito do texto aprovado pelos senadores”. O editorial advertiu também que “o açodamento e o populismo podem causar grandes estragos”.
De saída, reconheçamos que durante a tramitação no Senado o PL melhorou. Delírios corporativistas como o de punir quem “ridicularizasse” os políticos caíram fora. Medidas que afrontavam direitos fundamentais foram expelidas. O índice de maluquices diminuiu, mas o PL ainda não está bom.
Algumas passagens assombram como portais das trevas. Há trechos que dão a impressão de que, na implantação da lei, virá uma autoridade (ou uma autoridade delegada) com poderes para arbitrar sobre o que é verdade e o que é mentira. O artigo 4.º, inciso II, fala em diferenciar o que é humor do que não é. Sejamos francos: quem vai estabelecer a distinção entre uma fraude informativa e uma piada de mau gosto? O artigo 6.º, parágrafo 1.º, tenta resguardar “a manifestação artística, intelectual ou satírica” das ações que vedarão as “contas inautênticas”. Ora, quem dará a palavra final sobre o que é o quê?
Fora isso, ficaram no texto possíveis riscos para a privacidade. São riscos menores do que aqueles que o Senado já cuidou de varrer, mas não são desprezíveis. O advogado Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, aponta alguns deles no artigo 7.º e, especialmente, no artigo 10.º, que tratam da identificação do usuário. É preciso mudar a redação desses artigos.
O PL ainda esconde brechas que guardam possíveis ameaças aos pilares fundamentais da internet – neutralidade de rede, privacidade e liberdade de expressão –, já consagrados na legislação em vigor. Se não forem corrigidas, essas brechas poderão dar cobertura, no futuro, a arbitrariedades de autoridades ou, pior ainda, a efeitos colaterais de uma autorregulação que venha a ser mal regulada. Se os conglomerados monopolistas das mídias digitais (como Facebook/WhatsApp e Google, por exemplo) forem investidos pela lei de poderes hipertrofiados, poderemos despencar numa terceirização da censura. Não subestimemos os piores cenários: como sabemos por experiência própria, pesadelos costumam virar realidade quando os legisladores erram.
A lei das fake news tem pontos positivos, claro, mas também tem uma carga ácida de alucinações legifobéticas. Querer responsabilizar as plataformas sociais pelos conteúdos que qualquer um pode postar, como se as plataformas fossem publicações jornalísticas, é um delírio.
Um Facebook da vida pode ser um veículo publicitário (arrecada bilhões de reais com anúncios de todo tipo, drenando de modo insidioso a maior parte das verbas publicitárias que antes iam para empresas jornalísticas), mas não é,, nem de longe, um órgão de imprensa. Uma plataforma social é um ambiente de comunicações em rede, um ambiente dentro do qual coexistem páginas de milhões de órgãos de imprensa. Não há como culpar o ambiente por tudo o que se pronuncia dentro dele. Exigir que as plataformas controlem com rédea curta o que seus usuários dizem equivale a transformá-las num Ministério Global da Verdade, num grau de totalitarismo que nem George Orwell ousou imaginar.
Isso tudo não significa que não deva existir lei nenhuma. Estão equivocados os que dizem que o velho Código Penal, com a tipificação dos crimes de calúnia, injúria e difamação, dará conta de barrar o pandemônio desinformativo em que se converteu a internet. Se o Código Penal resolvesse tamanha monstruosidade, as leis nacionais de porte de armas barrariam a corrida armamentista das ogivas nucleares. Admitamos: uma bomba atômica fere mais que uma garrucha enferrujada, do mesmo modo que a indústria (ilegal) da desinformação é incomparavelmente mais danosa que uma injúria.
Enfim, os conglomerados precisam ser regulados, ou seguirão mandando e desmandando sobre os fluxos e contrafluxos da informação e da desinformação, sem prestar contas a ninguém. A questão é: como regulá-los?
Os parlamentares mais atentos já perceberam o caminho que pode dar certo – e já desconfiam daquele que vai dar errado, com absoluta certeza. Nos artigos em que tem foco nas práticas indevidas (os chamados comportamentos abusivos), o PL encontra sua vocação. Quando enfrenta o uso ilegal de robôs, as contas fraudulentas, os disparos em massa clandestinos, acerta o alvo. Por outro lado, quando envereda por exegeses de “conteúdos”, erra estrondosamente. O caminho certo é coibir os comportamentos abusivos. O caminho errado é definir por lei o que é verdade e o que é mentira.
Se tiverem mais sabedoria que pressa desmedida, os deputados farão um bom serviço.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
O Estado de S. Paulo: 'Maracanazo', ferida que doeu no Brasil durante décadas, completa 70 anos
Derrota na decisão da Copa de 1950 ainda é lembrada como uma das mais sofridas da história do futebol brasileiro
Pelé conta que quando o Uruguai marcou o gol da vitória na Copa do Mundo de 1950 contra o Brasil, seu pai chorou e o menino, com apenas 9 anos de idade, prometeu que um dia conquistaria um Mundial. Em 16 de julho de 1950, o Uruguai venceu sua segunda copa ao derrotar o Brasil de virada por 2 a 1, com gols na reta final de Schiaffino e Ghiggia, no Maracanã, o gigantesco estádio construído no Rio de Janeiro especialmente para o torneio.
'Maracanazo' teve um impacto muito maior do que outras decepções do futebol, como a derrota do Brasil na final da Copa do Mundo de 1998 contra a França ou o 7 a 1 que a Alemanha lhe aplicou em pleno Mineirão, em Belo Horizonte, na semifinal da Copa de 2014.
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Para o sociólogo Ronaldo George Helal, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o "trauma" é explicado em grande parte porque o Brasil era, em 1950, um país que procurava se posicionar no mundo, numa época de consolidação do Estado-nação.
O resultado dessa partida era vivido então como "a vitória ou derrota de um projeto da nação brasileira", baseado na história de um país de harmonia racial, unido em torno da bola, disse Helal em entrevista à AFP.
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"Até a década de 1930 não tínhamos aqui no Brasil uma ideia do que era a nação brasileira", e esta noção foi elaborada em grande medida pelo sociólogo Gilberto Freyre, que em sua obra "Casa Grande e Senzala", de 1933, "traz a miscigenação como um atributo de valor positivo para o brasileiro" e que segundo autores que surgiram depois encontrou um claro expoente nas chuteiras do futebol.
Essa idealização já havia sido questionada em 1950 pelo Projeto Unesco, que pretendia entender como funcionava uma "democracia racial, porque aqui não tinha segregação sistemática das raças como tinha nos Estados Unidos ou na África do Sul". Mas "descobrimos que havia sim racismo, um racismo velado, com a questão do empobrecimento".
A pena eterna do goleiro Barbosa
Para a opinião pública nacional, o grande culpado do Maracanazo foi o goleiro negro Moacir Barbosa. Essa cruel 'condenação' cresceu ao longo dos anos e pesou sobre o próprio jogador, apesar de ele continuar atuando em grandes clubes.
"A pena máxima no Brasil é de 30 anos, e eu estou há 40 anos pagando" por essa derrota, disse Barbosa nos anos 90. Para Helal, o trauma se arrastou até a conquista do tricampeonato, na Copa do México-1970, que foi vivida "como uma vitória da nação brasileira". A pena máxima no Brasil é de 30 anos, e eu estou há 40 anos pagandoBarbosa, goleiro na Copa de 50, em entrevista nos anos 90
E com o passar do tempo, a sociedade brasileira entendeu que "os jogos da seleção são vitórias ou derrotas esportivas", incluindo o 7 a 1 de 2014 em casa. "Em 1950 foi uma tragédia, em 2014 um vexame, que virou meme, porque as pessoas não deram tanta importância", disse Helal, acrescentando que isso mostra "uma maior maturidade da sociedade".
Além disso, os torcedores tendem a se identificar mais com seus clubes do que com a seleção, segundo ele. "Eu sou Flamengo, e se me perguntam se prefiro que o Flamengo ganhe a Libertadores ou a seleção conquiste a Copa do Mundo, respondo sem hesitar: prefiro que o Flamengo ganhe a Libertadores", confessa.
Quanto a Pelé, ele conseguiu cumprir rapidamente a promessa que fez para seu pai. Apenas oito anos depois, o jovem prodígio conquistou a Copa do Mundo na Suécia em 1958, a primeira das cinco erguidas até hoje.
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O Estado de S. Paulo: Governo aponta risco de conflito na América do Sul
Ao atualizar Política Nacional de Defesa, ministério cita possibilidade de tensões no continente e reforça necessidade de proteção de costa do Atlântico e da Amazônia
Tânia Monteiro e Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - A América do Sul não é mais considerada uma “área livre” de conflitos. É o que diz a nova Política Nacional de Defesa (PND), que será encaminhada ao Congresso na próxima semana. Numa atualização da diretriz preparada em 2016, o texto ao qual o Estadão teve acesso destaca a possibilidade de “tensões e crises” no continente, que podem levar o Brasil a mobilizar esforços na garantia de interesses nacionais na Amazônia ou mesmo ajudar na solução de problemas regionais.
Sem citar nominalmente a Venezuela, o trecho sobre política externa do documento avalia “possíveis desdobramentos” das crises nos países vizinhos. A reportagem apurou que o principal foco de tensão se refere a ações do regime chavista de Nicolás Maduro.
Em 21 páginas, a Política Nacional de Defesa traça cenários internacionais para o ambiente regional e assinala que é papel do País “aprofundar laços” no continente. Uma das novidades da nova versão do documento do Ministério da Defesa, porém, é justamente o alerta para as possibilidades de conflitos. “Não se pode desconsiderar tensões e crises no entorno estratégico, com possíveis desdobramentos para o Brasil, de modo que poderá ver-se motivado a contribuir para a solução de eventuais controvérsias ou mesmo para defender seus interesses”, diz o texto.
O documento pede, ainda, atenção especial ao Atlântico Sul, onde se concentram as reservas do pré-sal – entre o Brasil e a África Ocidental. Nesta região também houve, recentemente, derramamento de óleo por navio desconhecido que causou danos ambientais ao litoral brasileiro.
A chamada Amazônia Azul enfrenta impactos de ilícitos transnacionais, inclusive suspeitas de espionagem por navios estrangeiros, como divulgou o Estadão, em fevereiro, ao noticiar que a Marinha brasileira monitorou durante uma semana um navio russo de pesquisa e inteligência, acusado de espionagem por países da Europa e pelos Estados Unidos.
Além do Atlântico Sul, a política de Defesa mantém como prioridades regiões onde se concentram os poderes político e econômico – Brasília, Rio e São Paulo –, a faixa de fronteira com os vizinhos sul-americanos e a Amazônia.
Pela primeira vez, os tratados que compõem a Política Nacional de Defesa incluem no radar do governo desdobramentos das mudanças climáticas e de pandemias. O texto da proposta destaca que estes fenômenos poderão “acarretar consequências ambientais, sociais, econômicas e políticas pedindo pronta resposta do Estado”.
A pandemia do coronavírus, que atinge o País e o mundo desde março, tem exigido mobilização nacional de todos os segmentos, inclusive do Ministério da Defesa que, segundo a pasta, emprega diariamente 34 mil militares no combate à doença. O efetivo é maior que o da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial, quando foram mobilizados 25.800 homens.
A soberania e o desenvolvimento de ações de preservação da floresta amazônica estão entre as prioridades dos documentos que compõem a nova versão da PND. “A Amazônia, assim como o Atlântico Sul, é uma área de interesse geoestratégico para o Brasil. A proteção da biodiversidade, dos recursos minerais, hídricos, além do potencial energético, no território brasileiro é prioridade para o País”, constata o documento, que também apresenta uma “resposta” aos “interesses estrangeiros” na Amazônia.
O texto recomenda, ainda, que a Marinha instale um complexo naval de uso múltiplo nas proximidades do delta do rio Amazonas, na região da Ilha do Marajó, no Pará, por ser uma área que merece “atenção especial”. O Pará é onde ocorrem, atualmente, as maiores queimadas no País e o governo enfrenta pressões de parceiros econômicos internacionais por causa da destruição da floresta.
A Lei 136 de 2010, sobre a organização das Forças Armadas, estabelece que a cada quatro anos sejam atualizados: o Livro Branco da Defesa, com informações públicas sobre como a estrutura militar do País é organizada; a Política Nacional de Defesa, com os oito objetivos do País para a área; e a Estratégia Nacional de Defesa, com as 18 diretrizes para alcance das metas.
Os documentos serão oficialmente apresentados ao Conselho de Defesa, em reunião no Palácio do Planalto, com a presença dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e, em seguida, enviados ao Congresso, no próximo dia 22.
Continuidade
A versão final foi submetida ao presidente Jair Bolsonaro, mas a participação do chefe do Executivo na redação é secundária. Por se tratar de políticas de Estado, a palavra de ordem nos comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica é promover apenas alterações pontuais nas versões anteriores, de modo a representar continuidade. “Parece que estamos emitindo uma política e uma estratégia nova. Não é verdade. É uma atualização, com pequenas coisas. A essência é completamente a mesma. Independe do governo”, afirmou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. “O presidente tem plena confiança no nosso trabalho e até agora não pediu para incluir nem tirar nada. Ele sabe que são políticas de Estado”.
A preocupação com delitos nas chamadas Zonas de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas) está expressa no capítulo referente à Marinha, com trechos incluídos inclusive por causa do desastre do derramamento de óleo no litoral brasileiro, que teve início em novembro de 2019.
“O poder naval deve dispor de meios capazes de detectar, identificar e neutralizar ações que representem ameaça nas águas jurisdicionais brasileiras”, afirma o texto. “A intensificação das ocorrências de atos ilícitos no mar (como exemplo a pirataria, tráfico de drogas e de pessoas, pesca ilegal, crimes ambientais, dentre outros) demanda a presença estatal nos termos do direito internacional com os quais o Brasil tenha se comprometido."
Os principais tópicos do documento
- América do sul
Não se pode desconsiderar a possibilidade de tensões e crises no entorno estratégico com possíveis desdobramentos para o Brasil; País poderá contribuir para solução de eventuais controvérsias e defender seus interesses.
- Clima
As mudanças climáticas ou pandemias (como a do coronavírus) com consequências ambientais, sociais, econômicas e políticas exigem uma pronta resposta do Estado brasileiro.
- Crimes no Mar
Ocorrências de atos ilícitos no mar demandam a presença nos termos do direito internacional com os quais o Brasil tenha se comprometido
- Segurança
Decorrente da estratégia da presença, o Exército atuará de forma episódica e pontual em operações de GLO e colaborará com os órgãos de segurança pública nas ações contra ilícitos transnacionais, perpetrados na faixa de fronteira.
Para lembrar
Como em 2016, o Ministério da Defesa volta a reivindicar a manutenção do seu orçamento na faixa de 2% do PIB. Até 2018, com 1,47%, o País era o sétimo da América do Sul na destinação de parcela das riquezas para gastos com defesa. Estava atrás de Equador (2,4%), Guiana (1,7%) e Bolívia (1,5%). A Colômbia lidera o ranking com 3,2% do PIB. Embora o governo de Jair Bolsonaro tenha atendido parte das demandas do setor, a economia não apresenta cenário favorável para mudanças no porcentual.
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Monica De Bolle: Imunidade de rebanho
O uso indevido de cálculos para a imunidade de rebanho tem consequências econômicas diversas
A revista Science publicou um artigo recente no qual a imunidade de rebanho é modelada como parte de uma série de modelos epidemiológicos que tentam, à luz dos dados e de diversas informações sobre a população de diferentes localidades, dar diretrizes gerais sobre o curso da epidemia. Trata-se, portanto, de um conjunto de artigos, e, em todos eles, pesquisadores têm sublinhado que seus modelos não devem ser tomados ao pé da letra para a formulação de políticas de saúde pública.
Como todos os modelos, eles servem tão somente para entender algumas partes de um problema intrincado, não-linear, dinâmico e que comporta uma miríade de dúvidas, questões não respondidas e, possivelmente, outras ainda não formuladas. Contudo, há quem os esteja interpretando de forma indevida para argumentar a favor da reabertura econômica independentemente da evolução da epidemia e para afirmar, equivocadamente, que alguns lugares já podem estar próximos dessa espécie de Santo Graal da nossa era.
Esses artigos usam de recursos técnico-científicos semelhantes aos empregados por economistas em suas construções retóricas no que deveria ser um esforço por elucidar questões. Vou ilustrar o que quero dizer. Em economia, é comum valer-se de modelos em que há um agente representativo, isto é, um indivíduo cujo comportamento pode ser extrapolado para todos os demais, pois é característico de todos. Modelos com esse tipo de premissa permitem simplificações que em muito auxiliam a avaliação analítica: por exemplo, se todos os consumidores tiverem um comportamento semelhante e redutível ao de um agente representativo, o problema da agregação, típico na macroeconomia, é facilmente eliminado. Para analisar o consumo agregado, basta reduzi-lo às decisões de um único indivíduo, uma vez que todos os demais a ele se assemelharão. É claro que, na prática, não funciona dessa forma, como sabemos por intuição e como revelam os estudos de economia comportamental. Ainda assim, trata-se de um artifício útil.
A imunidade de rebanho clássica, como os modelos de agente representativo, partem do pressuposto de que a imunidade é uniformemente distribuída em uma dada população. Por força desse pressuposto, há uma forma simples para calculá-la. Os 60% a 70% de infectados para alcançar a imunidade de rebanho, supondo que o fator de reprodução do vírus causador da covid seja algo entre 2,5 e 3, são calculados a partir da fórmula proveniente da imunidade clássica. Há, porém, duas questões importantes a considerar. A primeira é que o fator de reprodução real do vírus só será conhecido quando a epidemia acabar. Por ora, temos apenas estimativas que variam de acordo com fatores diversos. A segunda é que a presumida uniformidade imunológica está associada à existência de uma vacina que confere imunidade ao vírus. Ou seja, a imunidade de rebanho clássica só tem sentido no contexto de uma vacina existente para determinar a cobertura crítica de um programa de vacinação, aquela cobertura que atinge a imunidade de rebanho.
Não temos vacina para o SARS-CoV-2, logo, a imunidade de rebanho clássica não é aplicável. Por esse motivo, não se pode partir do pressuposto de uniformidade imunológica. Parte-se, ao contrário, da heterogeneidade imunológica, elaborada de maneiras distintas em diferentes estudos. No entanto, premissas ainda são necessárias. No estudo da Science, há duas: a de que todos os infectados sobreviventes têm imunidade plena contra o vírus e de que essa imunidade é duradoura. Essas premissas, como a do agente representativo, são simplificações necessárias, do ponto de vista da pesquisa científica, para elucidar um aspecto daquilo que se busca entender. Como disse antes e insisto aqui, ambas carecem de evidências científicas para sustentá-las; isso não invalida um modelo que se propõe a avaliar os fatores que podem influenciar a imunidade de rebanho, mas invalida seu uso para defender a reabertura econômica prematura.
O uso indevido de cálculos para a imunidade de rebanho tem consequências econômicas diversas. Ele expõe a população desnecessariamente – sobretudo a mais vulnerável economicamente – ao risco de contágio, com consequências sobre a desigualdade. Ele põe em risco pessoas que podem vir a apresentar sequelas, tornando-as dependentes de um sistema de saúde sub-financiado e as retirando do mercado de trabalho caso apresentem problemas mais graves decorrentes da exposição ao vírus. Para resumir, o uso indevido dos cálculos e do conceito de imunidade de rebanho põem a economia em outro patamar de risco. Economistas não usariam modelos de agente representativo para recomendar políticas de combate a uma crise econômica aguda. Da mesma forma, tudo o que existe sobre imunidade de rebanho deve ser deixado em seu devido lugar: entre os pesquisadores e cientistas que buscam compreender um vírus novo em plena evolução.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Rosângela Bittar: Vingança contra a vida
Não há notícia de correção de rumo do governo Bolsonaro no combate à letal pandemia
Para que não restem dúvidas: já se passaram 48 horas que soou o alarme sobre a calamidade da gestão do governo de Jair Bolsonaro no combate à letal pandemia e não há notícia sobre correção de rumo. Ao contrário, a reação de ontem, atribuída ao vice-presidente, ateve-se à questão militar, presa ao significado literal do termo que sintetizou as consequências do mal, não ao seu contexto.
O agente ativo do sumiço de chão, céu e mar que instabiliza os 200 milhões de brasileiros é Jair Bolsonaro. Ele renega dois aspectos fundamentais deste caso, a palavra da Ciência e a função de liderança que lhe cabe como presidente da República. Dispensa o uso da cabeça e da caneta. Na sua torre de comando o imenso vazio dá espaço para pendurar uma rede.
A dimensão da insegurança generalizada, em que os brasileiros acordam pensando se finalmente o número de mortes baixou e vão dormir sem vislumbrar o fim da agonia, o jurista Gilmar Mendes (STF) e o general Eduardo Pazuello (Saúde) são também vítimas. Só que um deles gritou primeiro e pelo lado correto: Bolsonaro é a caricatura, não tem mais jeito. Já o Exército, não.
Aliás, o general Luiz Eduardo Ramos representava ainda o Exército quando foi para a praça dar apoio tácito a extremistas que exigiam o fechamento do Supremo. Estão quites.
Em lugar de abespinhar-se com a crítica à conivência com o extermínio que a covid-19 vem operando, as autoridades militares, se não têm poder para convencer o presidente a fazer o certo, deveriam podar sua ligação com o errado. Reagindo como reagiram, passaram o recibo da conta que Bolsonaro lhes quis aplicar. Inclusive escudando-se no princípio de que interino no comando de uma escrivaninha de gabinete não pode ser acusado de nada. Todo o governo é sócio da chacota que atinge o Brasil em escala mundial. Os militares mais ainda porque aparelharam o ministério da vida.
Ao criar uma nebulosa interinidade para o Exército, Bolsonaro esconde-se, escarnece da população e do emprego adequado da força. O que diriam os comandantes militares se o Brasil estivesse em guerra e o presidente da República entregasse o Ministério da Defesa a um padre? Ainda que declarando-o interino, álibi para que a Igreja pudesse eximir-se de eventual mau resultado?
A leitura da alma presidencial permite a conclusão de que Bolsonaro conduz seu governo como um interminável processo de vingança. No caso do momento, contra os médicos, cientistas e políticos que não transigiram com prescrições charlatãs.
A demissão de dois ministros que conheciam a natureza do problema não implicou razão ideológica. Foi vingança da condição de homens da ciência que o contestavam. Insuspeitos, um é do DEM, outro, seu colaborador do programa de saúde da plataforma de candidato.
Nem Bolsonaro pode queixar-se de exagero nos ataques sofridos. Quem já subiu à tribuna da Câmara Federal para pedir o fuzilamento de um presidente da República, superou o máximo da virulência de um orador político.
O presidente insiste no seu torcido conceito de autoridade, como se o mandato presidencial não tivesse limites e o destino da Nação não fosse partilhado pelos demais poderes. Como se dissesse à sociedade para engolir o general, os coronéis, os capitães, que não entendem de saúde mas obedecem cegamente às suas desautorizadas prescrições e, ainda agora, o protegem da inconsequência assumindo seu lugar no alvo.
Aproveita também para vingar-se do Supremo por tê-lo afrontado ao reconhecer, a Estados e Municípios, a atribuição de definir medidas do isolamento social que ele se recusava a fazer.
Neste ritmo, Bolsonaro traveste-se de Pôncio Pilatos e lava as mãos do seu papel de liderar o país diante da pandemia. O episódio é um perigoso desvio de atenção da questão essencial da dor em que se concentra a população neste momento.
Eliane Cantanhêde: Sócio no fracasso
Gilmar Mendes errou feio ao usar ‘genocídio’, mas acertou no diagnóstico e no alerta
Apesar de frágil, sempre por um fio, a trégua entre os três Poderes ia bem até ser ameaçada pela declaração impetuosa do ministro do Supremo Gilmar Mendes, de que “o Exército se associou ao genocídio” ao intervir no Ministério da Saúde e assumir a política negacionista do presidente Jair Bolsonaro na pandemia. Foi um deus nos acuda no governo, na Defesa e nos comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica. Porém, o ministro do STF errou feio nos termos, mas acertou no diagnóstico.
O que realmente irritou as Forças Armadas foi o uso da expressão “genocídio” – na definição do Houaiss, “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso” –, que define o crime mais grave do direito internacional, remete ao Holocausto e à morte de 6 milhões de judeus. É despropósito unir Exército e genocídio e não há, tecnicamente, como usar o termo para a ação de Bolsonaro na pandemia, por mais condenável que ela seja.
Assim, a irritação dos militares é compartilhada por magistrados e civis até de oposição, que elogiam a resistência firme do Supremo às investidas de Bolsonaro e às ameaças golpistas de seus filhos e seguidores, mas criticam Gilmar Mendes por “ter ultrapassado o limite”. Lembram que a palavra de um ministro do Supremo tem a força de uma sentença e os excessos vulgarizam, tiram peso, relevância e solenidade da função, que deve servir de reflexão para a Nação.
Dito isso com todas as letras, não se pode negar que Gilmar Mendes não errou nos fatos, no conteúdo. Há um evidente desmonte do Ministério da Saúde, inadmissível em tempos normais e trágico durante uma pandemia avassaladora. Sem ministro há 60 dias, entregue a um general intendente da ativa e entupida de militares que nunca viram uma curva epidemiológica, a Saúde foi jogada na mesma vala do MEC e da Cultura.
A tática de Bolsonaro é clara: anular o ministério, usar um cumpridor de ordens e uma legião de batedores de continência para impor suas decisões mais estapafúrdias e fazê-los lutar contra a ciência, isolamento social, máscaras e bom senso, enquanto faz propaganda da cloroquina, que não é comprovadamente eficaz para a covid-19, mas tem efeitos colaterais que podem ser graves. O próprio paciente Bolsonaro se submete a eletrocardiogramas duas vezes ao dia. Se não é perigoso, por que essa “histeria”?
Para Gilmar Mendes, tudo isso é parte da estratégia de Bolsonaro: esperar o fundo do poço, com quase dois milhões de contaminados, mais de 70 mil mortos, economia esfacelada, empresas quebradas e alguns milhões de desempregados a mais, para jogar a culpa em governadores, prefeitos e no Supremo – que determinou que Estados e municípios não são obrigados a cumprir o que o governo federal manda.
Assim, o termo “genocídio” foi agressivo e apelativo, mas Gilmar Mendes alertou para a manobra de Bolsonaro de usar militares para jogar seus erros e a própria culpa nos outros. Tanto é verdadeiro que a Defesa aumentou a pressão para o general Eduardo Pazuello, interino da Saúde, para passar para a reserva. Ele prefere ficar na ativa e sair da Saúde. A ver.
O ex-ministro Henrique Meirelles, atual secretário de Economia de São Paulo, destrói a manobra de Bolsonaro com uma única frase impecável: “O que afeta a economia é a pandemia, não as medidas para combater pandemia”. Bolsonaro deixou a pandemia correr solta, sem coordenação nacional, sem dar exemplo. A história poderia ser outra, com menos mortes e saída mais rápida. A economia não sofreria tanto. Só falta agora Bolsonaro dizer que não tem nada a ver com isso. Tem tudo a ver e, quanto antes o Exército se descolar do fracasso, melhor.
Carlos Pereira: Um MP banguela?
Ao privilegiar sua unidade e hierarquia, Toffoli enfraquece o Ministério Público
O Brasil foi surpreendido com a decisão monocrática do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, proferida durante seu recesso, que concedeu liminar para que as forças-tarefa da Lava Jato de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro compartilhassem informações e dados sigilosos de suas investigações com a Procuradoria Geral da República (PGR). Os procuradores da Lava Jato haviam se negado a enviar os dados e acusaram a PGR de fazer diligência para recolher, sem autorização judicial, tais informações em Curitiba.
Em sua decisão, Toffoli afirmou que o Ministério Público (MP) “é instituição una, nacional e de essência indivisível e, como tal, conta com órgão central”, que é a PGR, e que “a direção única pertence ao procurador-geral, que hierarquicamente, detém competência administrativa para requisitar o intercâmbio institucional de informações, para bem e fielmente cumprir suas atribuições finalísticas”. Toffoli disse ainda que os procuradores da Lava Jato, ao negar repassar informações ao PGR, cometeram “evidente transgressão”.
Após a liminar de Toffoli, o PGR Augusto Aras declarou que a decisão do presidente do Supremo “reafirma a estrutura e a organização do MP Federal, garantindo a união e as relações que devem nortear os órgãos inferiores em relação aos superiores”.
Esta compreensão de um MP centralizado e hierarquizado, externada tanto na decisão de Toffoli como no pronunciamento de Aras, é radicalmente antagônica à tese largamente aceita de que a Constituição de 1988 constituiu um MP descentralizado, não hierarquizado e com autonomia funcional e administrativa. Esse novo MP teria nascido ancorado na figura do promotor natural, que teria independência de iniciar investigações sem a necessidade de autorizações prévias de superiores hierárquicos.
Na medida em que o PGR é indicado pelo Presidente, a descentralização e a independência constituiriam garantias institucionais de que as ações do MP não fossem instrumentalizadas ou politizadas em favor dos interesses de qualquer governo de plantão.
A escolha do legislador constituinte por um MP descentralizado e independente foi fruto da necessidade de se estabelecer um conjunto vigoroso de organizações capazes de controlar o executivo federal.
Como é sabido, o legislador constituinte também delegou uma ampla gama de poderes constitucionais, orçamentários e de agenda para que o Presidente da República alcançasse condições de governabilidade e de formação de maiorias em ambiente multipartidário. Diante dos riscos de que as organizações legislativas, tais como as Comissões Parlamentares de Inquérito, não fossem capazes de restringir potenciais excessos ou comportamentos desviantes do Presidente, as organizações de controle “externas” à política, dentre elas o MP, seriam fundamentais para proporcionar equilíbrio ao presidencialismo multipartidário.
Ao privilegiar a unidade e a hierarquia do MP enquanto instituição, Toffoli negligenciou a independência funcional do procurador natural, um dos seus pilares constitutivos.
Seria natural esperar dos possíveis prejudicados pelas ações do MP reações negativas em relação a sua suposta “exagerada” autonomia ou potenciais excessos. Entretanto, o que se tem visto é a derrota sistemática de todas as iniciativas legislativas de restrição do MP. Um bom exemplo foi a derrota acachapante da PEC 37, que restringia a competência de investigação criminal do MP.
Se nem os políticos conseguiram ou quiseram arrancar os dentes do MP, como interpretar a decisão do presidente do STF?
Felipe Salto: Dívida pública a 100% do PIB. E agora?
É hora de ter um plano para depois da tempestade e desenhar um novo futuro
A dívida pública deve atingir 96,1% do produto interno bruto (PIB) em 2020, crescendo a 100%, até 2022, de acordo com o cenário atual da Instituição Fiscal Independente (IFI). A capacidade do País de contrair déficits públicos (gastos não cobertos por receitas tributárias) e de financiá-los não é ilimitada. É hora de ter um plano para depois da tempestade.
Quando o assunto é dívida, não existe um número mágico a partir do qual se deva acender o sinal vermelho. O essencial, nessa matéria, é garantir a chamada sustentabilidade da dívida/PIB. A ideia é que a dívida pública caminhe pari passu ao avanço da capacidade de geração de renda e riqueza do País. No cenário da IFI, a ausência de ações estruturais que amainem o gasto público e/ou turbinem as receitas tributárias leva a uma trajetória de alta da dívida/PIB até 2030.
A dívida existe para cobrir necessidades de financiamento de políticas públicas que não sejam pagas por tributos. O governo toma emprestado do mercado, por determinado prazo, entregando títulos que pagam juros. Se há confiança de que os títulos serão honrados, o mercado aceita o negócio a juros módicos. Assim se forma uma dívida sustentável.
Em momentos de maior apreensão e risco, os compradores de títulos acabam preferindo papéis do governo que tenham prazos menores e retorno “garantido”, a exemplo dos títulos do Tesouro atrelados à Selic (juro básico da economia). Por isso, em crises como a atual, há certa tendência de encurtamento dos prazos da dívida. Vale dizer: prazos mais curtos embutem menor incerteza.
A equação que modela matematicamente a sustentabilidade fiscal relaciona a variação da dívida ao déficit público e a duas taxas fundamentais: os juros e o crescimento do PIB. Quanto maior o juro, maior o crescimento da dívida/PIB. Quanto maior o crescimento do PIB, menor o avanço da dívida/PIB. Ainda, eventuais déficits alimentam a dívida, ao passo que superávits a abatem.
Atualmente, os juros estão em níveis historicamente baixos. Esse custo médio da dívida é obtido pela razão entre o pagamento de juros e o estoque da dívida. Chama-se taxa implícita. No caso da dívida bruta, a taxa implícita de juros estava em 4,3% ao ano, em maio, em termos anualizados, ante 12,3% ao término de 2016. A queda dos juros é um dado que diferencia a crise atual das anteriores. Contudo não é uma condição imutável. Na expressão da moda, não é o “novo normal”.
Nessa avaliação, é crucial sopesar o risco externo. O professor Affonso Celso Pastore fez o alerta em artigo recente no Estado. Uma situação de fragilidade no balanço de pagamentos, isto é, nos saldos das transações entre residentes e não residentes, incluindo entradas e saídas de capitais financeiros, poderia implicar pressões excessivas sobre a taxa de câmbio – e sobre a inflação. Nessa hipótese, o Banco Central teria de subir os juros para atrair capitais e conter a inflação. O presságio não é bom, sobretudo se imaginarmos esse quadro temperado com uma dívida pública agigantada.
Se, de um lado, os juros baixos não são para sempre, o crescimento do PIB, de outro, não será extraordinário a partir de 2021. A IFI projeta tombo de 6,5% no PIB em 2020. A recuperação para 2021 é calculada em 2,5%. Isso significa que, após uma queda profunda, a economia não retornará, de imediato, ao nível projetado no pré-crise. Haverá, provavelmente, uma perda permanente de PIB, com reflexo sobre as receitas públicas e a dinâmica da dívida.
O aumento do déficit, em meio à crise, era esperado e está ocorrendo no mundo todo. O desafio é ter um programa de contenção de gastos e/ou aumento de receitas que permita reduzir os déficits públicos e conter o avanço da dívida/PIB nos próximos anos. Atingir 100% não é o que mais preocupa, mas, sim, a tendência de alta contínua.
A literatura especializada de orçamento público tem indicado a adoção de mecanismos como o medium-term expenditure framework ou plano fiscal de médio prazo para a realização de uma consolidação fiscal mais robusta. Não se trata de cortar despesas, apenas, mas de fazê-lo com base em avaliações técnicas periódicas do gasto público.
Por exemplo, por que carregar desonerações tributárias, anos a fio, sem saber se estão surtindo o efeito preconizado sobre a renda e o emprego? Será que permitir abatimentos de gastos com saúde, no Imposto de Renda, é uma boa política? Por que manter a chamada progressão automática nas carreiras do serviço público? Se os subsídios creditícios fossem avaliados, encontraríamos programas ineficientes, isto é, identificaríamos desperdício?
É fundamental responder a essas questões. E dar consequência prática às respostas, formulando um plano fiscal de médio prazo e uma estratégia para a dívida. Cortes em programas ineficientes renderiam pelo menos R$ 30 bilhões ao ano ao erário.
É hora de acender o farol alto no planejamento das contas do governo e de desenhar um novo futuro para o País, que contemple o uso responsável do dinheiro público e a solvência do Estado brasileiro. Dívida em 100% preocupa, mas a falta de rumo é o mal maior.
DIRETOR EXECUTIVO DA IFI
O Estado de S. Paulo: Ministro da Defesa avalia reação a fala de Gilmar sobre 'genocídio'
Ministro da Defesa diz que estuda medidas contra o magistrado, que afirmou, sábado, que o Exército está associado a ‘genocídio’ na Saúde
Tânia Monteiro e Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, disse ao Estadão que avalia junto aos comandantes das Forças Armadas e à Advocacia-Geral da União (AGU) medidas que podem ser tomadas em reação ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Anteontem, Gilmar disse que o Exército está se associando a um “genocídio”, em referência à crise sanitária instalada no País em meio à pandemia de covid-19, agravada pela falta de um titular no Ministério da Saúde.
Azevedo afirmou estar “indignado” com o que ele considera serem “acusações levianas” do ministro do Supremo.
Há 59 dias sem um titular na Saúde, o País já acumula mais de 71,5 mil óbitos e 1,8 milhão de contaminados. Depois das saídas dos médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, o general Eduardo Pazuello – militar da ativa especializado em questões logísticas – assumiu interinamente o ministério.
Foi na gestão de Pazuello que o Ministério da Saúde mudou a orientação sobre o uso da cloroquina, passando a recomendar o medicamento desde o início dos sintomas do novo coronavírus. A droga, no entanto, não tem a eficácia comprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Atualmente, ao menos 20 militares, sendo 14 da ativa, ocupam cargos estratégicos no Ministério da Saúde.
Azevedo afirmou que “está avaliando junto com os comandantes de força a situação, considerando todos os aspectos”. Os comandantes e Azevedo passaram o domingo conversando por telefone para traçar uma estratégia de reação à fala de Gilmar. Não está descartada a possibilidade de o governo acionar a própria Justiça para cobrar uma retratação de Gilmar.
O ministro da Defesa já trabalhou no STF como assessor especial do presidente da Corte, Dias Toffoli. A primeira reação a Gilmar veio no próprio sábado, com a divulgação de uma nota em que o Ministério da Defesa afirma que as Forças vêm “atuando sempre para o bem-estar de todos os brasileiros” e elenca uma série de medidas que têm mobilizado militares, como barreiras sanitárias e ações de descontaminação.
Gilmar não quis se manifestar ontem sobre a reação dos militares. Em sua conta pessoal no Twitter, o ministro disse que não se furta a “criticar a opção de ocupar o Ministério da Saúde predominantemente com militares”. “A política pública de saúde deve ser pensada e planejada por especialistas, dentro dos marcos constitucionais. Que isso seja revisto, para o bem das FAs (Forças Armadas) e da saúde do Brasil”, escreveu.
O ministro também aproveitou as redes sociais para elogiar a figura do Marechal Rondon (1865-1958), conhecido por ter defendido a criação do Parque Nacional do Xingu. “No aniversário do projeto que leva o nome de Rondon, grande brasileiro notabilizado pela defesa dos povos indígenas, registro meu absoluto respeito e admiração pelas Forças Armadas Brasileiras e a sua fidelidade aos princípios democráticos da Carta de 88”, escreveu.
Gilmar tem pontes com as Forças Armadas. Em junho, se encontrou com o general Edson Leal Pujol, comandante do Exército, em plena crise entre o Planalto e o Judiciário.
Bolívar Lamounier: Entre dois vazios
O presidente quer extravasar impulsos narcisistas que não consegue controlar?
Na tradição liberal, a atividade política é entendida como a arte de equacionar os problemas da sociedade com o mínimo possível de confronto e violência. Uma arte que pressupõe o uso do poder do Estado, mas de forma comedida, guiada por um sentimento de proporção.
Em seu primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro ignorou solenemente esse ensinamento fundamental da história política ocidental. Orientado, segundo se diz, pelo sábio da Virgínia, ele adotou uma linguagem radical, como se as urnas lhe houvessem conferido autoridade para mudar as próprias bases da sociedade e do sistema político. Como se a maioria eleitoral lhe tivesse outorgado autoridade para fazer o que lhe aprouvesse. Para refazer os fundamentos da economia e liquidar o que denominou “velha política”. Não hesitaria sequer em intervir no campo dos valores e comportamentos, implantando uma nova moralidade.
Por mais críticos que sejamos das estruturas e práticas públicas vigentes em nosso país, salta aos olhos que o bolsonarismo da primeira fase não se deixava pautar por uma perspectiva de comedimento e proporção. Em vez de se acomodar à distribuição de forças e objetivos corporificada na Constituição e nas leis, não disfarçava sua preferência por uma linha de terra arrasada, bem próxima do que o filósofo Bernard Yack denominou o mito da revolução total.
Nem de longe advogo uma opção pelo status quo. Sabemos todos que o Estado brasileiro está desde há muito corroído por interesses patrimonialistas e corporativistas, e pela corrupção sistêmica. Que nossa economia está travada, desprovida de dinamismo, excessivamente fechada e, portanto, incapaz de superar a chamada “armadilha do crescimento médio”. Que nossas desigualdades sociais, em si inaceitáveis, são diariamente reforçadas por um sistema educacional calamitoso. Que nosso sistema político é manifestamente disfuncional. Não há como ignorar ou subestimar a gravidade de tais desafios, mas o imperativo de superá-los terá de ser compatibilizado com o regime democrático, cujos pilares são, como antes argumentei, o comedimento e um sentimento de proporção.
É óbvio que o projeto inicial do bolsonarismo – se assim pode ser denominado – não poderia dar certo. Nenhuma sociedade, e em particular as regidas por regimes democráticos, se deixa dobrar com a facilidade que ele pressuponha. Ele haveria de esbarrar, como esbarrou, na diversidade corporificada nas instituições do Estado e na miríade de grupos e associações existentes no País. Se tais restrições em alguma medida sempre se impõem, mais dramaticamente ainda se impuseram a partir do momento em que o Brasil e o mundo inteiro sofreram o tremendo impacto da covid-19. Incapaz de levar avante o esforço (sem dúvida, louvável) de ajuste nas contas públicas, o governo viu-se forçado a trilhar o caminho inverso, destinando cifras consideráveis ao combate à doença.
Foi assim, forçado pelos equívocos intrínsecos de sua fantasia inicial e pela chegada da pandemia, que o presidente Bolsonaro se viu obrigado a retroceder. Obrigado não só a desistir do combate ao que vagamente denominava “velha política”, mas a trazer uma parte concreta dela – o chamado Centrão – para dentro do Estado. Não só a desistir do combate à corrupção, mas a aliar-se aos que se empenhavam em deter seu ímpeto, levando de roldão os avanços logrados pela Lava Jato. A opção que lhe restou para conservar certa similitude com o personagem fantasioso que inicialmente quis encarnar foi assumir uma conduta irresponsável em relação à pandemia, solapando abertamente a ação dos agentes médicos que lhe fazem frente nos níveis estadual e municipal.
Quanto ao projeto inicial, o passar do tempo não deixa dúvidas. Era um vazio, um oco total. Um buraco negro que só poderia perdurar engolindo toda a luz que em volta dele restasse. Seu fracasso nos arremessou de volta não ao ponto onde nos encontrávamos, uma vez que, bem ou mal, tínhamos uma agenda de reformas razoavelmente bem delineada. Arremessou-nos a um ponto anterior, a uma molécula nefasta na qual o populismo e a irresponsabilidade do presidente se sobrepuseram ao desafio das reformas que cedo ou tarde teremos de enfrentar.
Sabemos todos que, enquanto não dispusermos de um remédio ou de uma vacina eficaz, milhares de vidas continuarão a ser diariamente ceifadas. Que, por ora, o que podemos fazer é observar estritamente o distanciamento e o uso de máscaras. Isolado em suas crenças, na contramão do resto do mundo, Bolsonaro insiste em fazer o oposto: sai à rua sem máscara, aglomera-se com correligionários e chega mesmo a abraçar crianças e bebês. Cria esse espetáculo para propagandear o remédio milagroso que julga ter descoberto. Com que objetivo? Essa pergunta não parece comportar uma resposta racional. Pretende manter-se na crista da onda, de olhos fitos na eleição de 2022? Despreparado para a vida pública e para o cargo que ocupa, quer extravasar impulsos narcisistas que não consegue controlar?
Só Deus sabe.
*Cientista político, é sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências