o estado de s paulo
Roberto Freire: projeto Luciano Huck continua a todo vapor e pode dar protagonismo ao Cidadania em 2022
Para o presidente do partido, viabilidade eleitoral do apresentador incomoda lulistas e bolsonaristas e candidatura pode vingar com apoio de MDB, DEM e PSDB
Em reunião da Executiva Nacional do Cidadania, nesta quinta-feira (30), o presidente Roberto Freire afirmou que o projeto Luciano Huck continua a todo vapor, apesar de a discussão sobre a candidatura ter arrefecido em razão da pandemia, com o apresentador se dedicando mais a articulações em solidariedade aos mais afetados e vulneráveis à doença. Isso, embora, segundo ele, o próprio presidente Jair Bolsonaro já tenha colocado a sucessão na agenda política nacional e nas redes sociais.
“Houve um ataque nas redes sociais em volume muito grande contra Huck, porque ele aparece nas pesquisas como perspectiva e isso gera receio de ambos os lados da polarização. Estamos vendo sua capacidade de articulação. Temos que ter afirmação nacional de que a nossa candidatura não é uma candidatura que admita o lulismo no seu retorno ou a ideia de bolsonarismo na sua continuidade. Isso tem de ser afirmado inclusive nesta campanha”, avaliou.
Freire viu nos duros ataques contra Huck, partindo de bolsonaristas e lulistas no Twitter, uma afirmação de força do apresentador, dando perspectivas cada vez melhores a uma eventual candidatura. Ele considerou um movimento importante, nesse contexto, a saída de MDB e DEM do centrão e apontou uma “oportunidade histórica” de que o Cidadania protagonize o processo eleitoral de 2022, buscando apoio, ainda, de outros setores e partidos da centro-esquerda e da esquerda democrática.
“Junto com o PSDB, forma-se um bloco importante para discutir uma candidatura do polo democrático. Nós podemos ser protagonistas nesse cenário. É importante ter nessa campanha essa persectiva. [Luciano Huck] Pode vir a ser nossa alternativa, o que é um processo em construção, no campo correto, como candidato de centro-esquerda. Não vamos ganhar com candidatos da direita. Moro, Mandetta e Bolsonaro, se candidatos, ocuparão o campo da direita”, argumentou.
Autonomia nas alianças regionais
Na reunião, chamada para apresentar um balanço das perspectivas eleitorais para novembro, Freire ponderou que, apesar de cada estado trabalhar questões políticas com foco na realidade local, o partido tem uma posição nacional e deve reafirmá-la.
“Não somos um partido regional ou de um local. Estamos com boa capilaridade nacional e cada um dos estados tem suas especificidades, particularmente nas questões políticas. Suas tradições, alianças, questões que mais atraem a preocupação da população, com diversidade em cada um dos municípios, e isso dá, nessas eleições, a realidade local como fundamental para o debate político. Mas é importante saber que o partido existe por uma posição nacional”, destacou.
Ainda segundo Freire, mesmo que aspectos da conjuntura política nacional sejam tratados de forma diferente nos estados, o partido mantém a continuidade do seu projeto.
“Não há um hiato de dizer que o partido tem uma posição nacional e que para neste momento para depois ser retomada. Hoje, o prioritário são as eleições municipais e cada um tem que saber como conduzir suas campanhas, especialmente do ponto de vista político. São autônomos em fazer suas alianças, o partido não tem veto. Mas o partido não vai parar de ter suas posições e sua intervenção no processo político nacional”, sustentou.
Eugênio Bucci: A liberdade e a Justiça
A indústria ilegal da desinformação é um fenômeno sobre o qual não há jurisprudência
A determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de bloquear páginas de bolsonaristas em redes sociais provocou um bom debate. Desta vez não se trata de uma daquelas batalhas estéreis entre claques que se ofendem e não se escutam. Estamos em meio a uma discussão que mobiliza conceitos sérios, com fundamento ético e legal, sobre os limites da Justiça e os alcances da liberdade de cada um. Há argumentos legítimos e inteligentes de um lado e de outro. A hora pede reflexão. Mais do que embarcar no Fla-Flu jurídico, devemo-nos dedicar a entender com calma o que está em jogo.
Comecemos pela pergunta incômoda: a autoridade judicial pode, no âmbito de um inquérito (no caso, o Inquérito 4.781, mais conhecido como o “inquérito das fake news”), impedir preventivamente a manifestação das pessoas investigadas? Pode o juiz impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não foram julgados?
Os que respondem “sim” a essa pergunta argumentam que os trâmites da Justiça e das investigações policiais normalmente restringem direitos fundamentais. Nada de novo sob o sol, portanto. Na terça-feira, em webinar no site Poder 360, ninguém menos que o presidente do Supremo, Dias Toffoli, seguiu essa linha de raciocínio. Lembrando que até mesmo o direito de ir e vir pode ser suspenso pela autoridade judicial no curso de uma investigação (é o que acontece quando o suspeito vai para a cadeia, em regime de prisão preventiva, mesmo antes de seu suposto crime ter sido julgado pela Justiça), Toffoli sustentou a tese de que a supressão preventiva de páginas de pessoas investigadas nas redes sociais constitui um expediente análogo, igualmente aceitável e legítimo, além de legal.
O argumento, bem construído, soa ainda mais convincente quando observamos que aqueles que tiveram suas contas derrubadas nas redes não foram cassados em sua liberdade de expressão, pois seguem se manifestando com alta estridência em outros canais – apenas aquelas contas específicas, nas quais foram identificadas condutas e postagens suspeitas, foram bloqueadas. Além disso, o bloqueio das contas desses bolsonaristas seria indispensável para o bom curso das investigações. Por tudo isso, o argumento procede.
Há, porém, outro ponto de vista. Quando perguntados se um juiz teria poderes para impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não tivessem sido julgados, não são poucos os que respondem “não”. Nesse grupo não figuram apenas os sabujos do presidente da República, empenhados em rebaixar a União ao papel de despachante de blogueiros fascistas. Nesse grupo estão também aqueles que não apoiam em nada o governo e se preocupam com precedentes que, no bojo do inquérito das fake news, venham a enfraquecer no futuro o respeito à liberdade de expressão. Estes (os que prezam a democracia) consideram que um inquérito policial não deveria ter a prerrogativa de atropelar o livre curso do debate público. Admitem, por certo, que todos devem ser responsabilizados (julgados e punidos) pelos abusos que cometerem no uso da liberdade, mas não aceitam a supressão preventiva de um milímetro que seja dessa liberdade.
É fato que hoje estamos falando de um inquérito que apura o comportamento de milícias virtuais abjetas, que disseminam o ódio, o preconceito, o fanatismo e a desinformação mais delirante, atentando diariamente contra os mais preciosos alicerces da República e da democracia. As contas bloqueadas, todo mundo sabe, reúnem um festival de ultrajes e baixezas inomináveis, com pregações contra os direitos fundamentais e as liberdades democráticas. Portanto, para um democrata, é confortável dar de ombros a uma ação da Justiça que limite, ao menos um pouco, as violências virtuais perpetradas por esses terroristas do simbólico. Mas o que acontecerá se, amanhã, outro inquérito, com outras motivações, vier a interditar páginas que não primem pela mesma vileza? A cargo de quem ficaria o critério de arbitrar sobre o que deve e o que não deve ser proibido?
A muitos democratas preocupa a hipótese de que o inquérito das fake news hoje abrigue um componente de censura que venha a produzir estragos amanhã. Para estes, não dá para apoiar o bloqueio das páginas desta vez só porque nos enoja o conteúdo bloqueado. E se gostássemos desse conteúdo, qual seria a nossa reação? Será mesmo essencial, para o êxito das investigações, que essas páginas sejam suprimidas das plataformas sociais?
Os dilemas implicados aí nada têm de corriqueiros. São dilemas ameaçadores e desconhecidos – a indústria ilegal da desinformação, cujos estragos estão apenas começando a se mostrar, é um fenômeno recente, sobre o qual não há jurisprudência em nenhum lugar do mundo. No Brasil é ainda pior, porque aqui o Poder Executivo age como um gabinete do ódio contra as liberdades. Diante disso, a responsabilidade que pesa sobre o STF é quase sobre-humana. Que nossos ministros saibam honrar a melhor tradição da Suprema Corte, de consolidação das liberdades e fortalecimento da democracia, e trilhem o melhor caminho.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Monica De Bolle: O alcance do pensamento
Momento atual requer abertura para o questionamento de princípios que deixaram de valer
“A noite cai apenas para aqueles que por ela se deixam encobrir.”
Cornelius Castoriadis, The End of Philosophy?
Quis o tempo que eu escrevesse esse artigo para ser publicado na data em que se completam dez anos da morte de Dionisio Dias Carneiro, meu mentor, professor e uma cabeça privilegiada. Dionisio nunca aceitou dogmas de qualquer natureza: ao contrário, sempre questionou princípios da economia. Era um professor sensacional, um grande intelectual público e alguém que tinha a capacidade de incomodar no bom sentido, forçando seus pares a pensar. A noite na epígrafe acima não é, assim, uma metáfora para a morte – ao menos não nesse artigo –, mas uma metáfora para a preguiça de pensar. Deixa-se encobrir pela noite quem perde a curiosidade. Já a curiosidade nos desacomoda da poltrona em que podemos permanecer a contemplar o passado. O espírito dionisíaco, que desacomoda e convida ao prazer de pensar, continua vivo em muitos que conviveram com Dionisio. Não em todos.
Algumas pessoas acomodaram-se no passado. O momento atual requer que o passado passe e dê abertura para o questionamento de princípios que deixaram de valer. A economia não é como as ciências naturais, em que mecanismos metabólicos, ainda que complexos, são governados por estruturas e leis inabaláveis. A glicólise é a glicólise, as diversas vias de sinalização celular dependem da ação inibidora ou ativadora das enzimas. Se algo para de funcionar como deveria, o corpo adoece. A economia é uma construção social, como a política. Suas estruturas têm traços de longa duração, mas também se moldam ao momento.
Uma das consequências desse caráter ao mesmo tempo resistente e plástico é a necessidade de economistas buscarem um ajuste mais fino entre conhecimento e sensibilidade, pois é fácil ceder à falsa impressão de que há leis imutáveis na economia e não perceber as mudanças. Elas são raras, porém, acontecem, como na crise de 2008 e, mais ainda, nessa proveniente da pandemia. Nesses momentos o chão se move sob os nossos pés, abalando bases em que se assentavam antigas regras econômicas.
Considerem a segunda metade dos anos 1990. Naquela época, o Brasil tinha acabado de estabilizar a inflação – diga-se – às custas de juros muitos elevados, crítica que Dionisio sempre encabeçou. Países emergentes viviam de crise em crise, enquanto as economias maduras se escoravam em políticas monetárias de sintonia fina. Foi uma era de juros internacionais mais elevados, por certo muito mais elevados do que os vistos no mundo pós-2008. A crise de 2008 acabou com a sintonia fina das taxas de juros como modo de calibragem da política monetária nos países maduros. As políticas “não convencionais”, hoje mais do que convencionais, deslocaram aquele mecanismo sem que muitos macroeconomistas tivessem sido capazes de antever suas consequências. Uma teoria enrijecida e mecânica perdeu para a prática, que responde rapidamente aos desafios do mundo. E a história se repete hoje, com a nova crise que enfrentamos.
No novo ambiente que surgiu 20 anos após a crise asiática de 1997/98, a compreensão sobre os países emergentes também mudou. Ao contrário do passado, esses países já não viviam mais de crise em crise – à exceção da Argentina, é claro, por razões muito particulares ao país. No contexto internacional de juros muito baixos, a capacidade de endividamento dos emergentes se alterou, bem como se alteraram as suas estruturas, que antes desancoravam rapidamente os preços, levando aos processos inflacionários de outrora. Isso não é dizer que emergentes como o Brasil tenham a mesma capacidade de endividamento dos países maduros, uma incompreensão frequente de fiscalistas que insistem nessa comparação. Países como o Brasil ainda precisam ser bastante cautelosos, mas a natureza da cautela mudou.
Em ambiente de juros próximos de zero nos países emissores das principais moedas de reserva, o tempo para corrigir dívidas muito elevadas foi dilatado. As relações entre câmbio e inflação se alteraram. Já não se sabe ao certo quais são os principais determinantes da inflação. Vejam o Brasil: há tempos a dívida é alta, o gasto é elevado, e a volatilidade cambial perdura. Mas a inflação? Mesmo antes da pandemia, a inflação já não reagia a essas variáveis como há 30 anos. Por que? Não tenho a resposta, assim como não tenho resposta para a dilatação do tempo da dívida. As respostas que têm circulado só me lembram de reaprender com Dionisio a cultivar as perguntas, que costumam ser mais importantes. São elas que determinam o alcance do pensamento.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Vera Magalhães: Antes de 22 vem 21
Sucessão no Congresso é lance vital para a eleição presidencial
Não adianta nada nomes como Luiz Henrique Mandetta queimarem a largada especulando sobre candidatura presidencial a essa altura do campeonato. Não bastasse haver um vírus à solta que terá matado 100 mil brasileiros até o início de agosto, ceifado milhões de empregos, virado o programa econômico de Paulo Guedes de cabeça para baixo e transformado as eleições municipais em nota de rodapé, isso para ficar só nos efeitos domésticos, outros acontecimentos em Brasília são pressupostos fundamentais para posicionar os corredores na linha de largada.
Eles começam agora, nesse segundo semestre que inicia oficialmente em agosto. Não à toa Rodrigo Maia saiu do silêncio que vinha mantendo para comandar uma dissidência no “blocão” de partidos da Câmara que deu suporte à sua presidência nesses quatro anos. Maia sabe que é vital não apenas para sua sobrevivência como líder político relevante, mas para a construção de qualquer projeto de centro dissociado do bolsonarismo e minimamente competitivo, manter o comando da Câmara no último biênio do governo.
Não que o Congresso tenha sido o protagonista nos atos de contenção a Bolsonaro nesse 2020 em que o presidente resolveu rasgar a fantasia. Esse papel, como se sabe, tem sido exercido pelo Supremo Tribunal Federal.
Mas é ali, na Câmara, que pode nascer um dos temores maiores da existência do presidente, maior que acabar a cloroquina no meio da noite: a abertura de um processo de impeachment, algo que Maia evitou alimentar nesses dois anos de convivência tensa, mas que é um trunfo à mão de qualquer presidente da Casa, a depender do impulso das ruas, de um motivo jurídico e de combustível dos setores econômicos.
Por ora nenhum desses fundamentos está dado. A pandemia tira a possibilidade de grandes manifestações de rua, Bolsonaro se segura ali no limiar dos 30% de aprovação, com um público que está trocando de pele da elite agora horrorizada com seus descalabros para as classes D e E conquistadas à base de auxílio emergencial. E o ainda bagunçado apoio do que restou do Centrão ao presidente pode lhe dar os votos necessários para evitar ter o mesmo destino de Dilma Rousseff.
Mas não é esse o único poder que emana dos comandantes da Câmara e do Senado. Bolsonaro não teve êxito até aqui em avançar com sua pauta reacionária no Legislativo. O que conseguiu para “escancarar a questão das armas”, por exemplo, fez via decreto. Alguns foram, inclusive, derrubados pelos parlamentares. A tentativa de aprovar pautas obscurantistas como a tal Escola sem Partido nunca foi adiante, e os vetos do presidente a projetos aprovados ou alterados pelos deputados e senadores podem ser derrubados a qualquer momento.
Sem o controle da pauta dificilmente o presidente terá mais sorte nos dois últimos anos de seu mandato. Isso além dos obstáculos institucionais que enfrentará em outras searas, como o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral.
Por tudo isso, para chegar competitivo a 2022 Bolsonaro tem de sobreviver não só ao 2020 do vírus e do desastre econômico como a dois últimos anos com atores no comando que ainda não estão em cena. Dois deles são escolhas de deputados e senadores, mas outros dependem da caneta do próprio Bolsonaro, que vai indicar, entre outros postos, um ministro do STF, Corte hoje hostil a ele e unida como poucas vezes, em novembro.
Ignorar essas variáveis e como a economia vai se comportar só fará com que eventuais postulantes à Presidência se exponham ao sol sem protetor. Mandetta não é o único a se arriscar a uma queimadura. Deveriam ficar mais embaixo do guarda-sol organizando os exércitos, como Maia está fazendo, e procurar algum grau mínimo de coesão.
Bolívar Lamounier : Anatomia de um fiasco
O retrospecto dos primeiros 19 meses de Bolsonaro é deveras lamentável
“Não se pode julgar um homem, decidir de sua alma e do que sente, enquanto ele não mostrar quem é, ditando leis”
Sófocles, pela boca de Creonte, rei de Tebas
Decorrido um ano e meio de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro já “ditou” muitas leis, mas não deu mostras de haver compreendido os enormes desafios que o Brasil enfrentará no curto e no médio prazos.
A pandemia que nos atingiu em cheio explica somente uma parte dos desacertos a que temos assistido. O retrospecto dos primeiros 19 meses de Bolsonaro é deveras lamentável. Ele começou mal, abraçando uma agenda megalomaníaca - acabar com a “velha política”, mudar profundamente os valores e comportamentos da sociedade, e por aí afora. E não parece ter consciência dos graves problemas que teremos de enfrentar na pós-pandemia; a julgar pelo cenário de hoje, chegaremos ao fim desta crise estrategicamente enfraquecidos e despreparados para o que virá depois.
Mesmo no que concerne à pandemia, o fato é que Jair Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda o esforço dos Estados e municípios no combate à doença. O artigo 30, inciso VII, da Constituição de 1988 determina, cristalinamente, que compete aos municípios “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados, serviços de atendimento à saúde da população”. Será que, para o presidente, “cooperação técnica” significa tentar induzir os agentes de saúde e uma parcela importante da sociedade a se defender da covid-19 com remédios comprovadamente ineficazes? Ou debochar do uso da máscara, não observar o distanciamento social, abraçar correligionários (e até bebês) e fomentar aglomerações? Qualquer pessoa capaz de interpretar o citado inciso VII concluirá que tais condutas são formas de sabotar, não de prestar assistência técnica. Por sorte, a missão dos agentes de saúde convocados a enfrentar a doença vem sendo cumprida a contento.
O preenchimento de altos postos da administração pública também evidencia - com as exceções de praxe - o despreparo de Jair Bolsonaro para o cargo que ocupa e, pior que isso, sua tendência a se deixar pautar por orientações ideológicas, no mínimo, patéticas. Os estragos já feitos pelos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores tão cedo não serão sanados. Somados às idiossincrasias do próprio presidente, Ricardo Salles e Ernesto Araújo são diretamente responsáveis pelo isolamento do Brasil e pela vertiginosa queda de nosso país no exterior. O elevado número de militares no governo também preocupa, não tanto como uma premonição autoritária, mas pelo risco de debilitação das Forças Armadas como organização nacional.
Descabe completamente, e ainda mais nos limites de um artigo, tentar prever o que vai acontecer com a economia mundial e, dentro dela, nossas chances de recuperação. Há quem acredite numa recuperação rápida e quem, com fundamentos igualmente sólidos, descarte inteiramente tal hipótese. Num ponto, porém, não podemos escorregar. Instigados pelo tombo que a economia vai levar, os nacional-estatistas já começam a se manifestar de forma audível. A inutilidade da discussão liberalismo versus antiliberalismo em abstrato já deveria estar mais que clara, mas já há quem apregoe as vantagens e até mesmo nosso “inexorável retorno” ao modelo estatizante que praticamos durante a maior parte do século 20. Isso como se em algum momento tivéssemos de fato implementado uma reforma liberal!
Salta aos olhos que, ainda se fosse desejável, ressuscitar a esta altura um modelo de forte predomínio do setor público na economia equivale a ignorar a realidade imediata com que nos deparamos. Antes da pandemia, fechar o Orçamento federal já exigia do governo um contorcionismo patético. Sabíamos - e sabemos - todos que um ajuste rigoroso das contas públicas e uma expressiva atração de investimentos estrangeiros eram - e são - condições essenciais para uma retomada saudável do crescimento. E sabemos, agora, que a pandemia destruiu um montante colossal de riqueza. Centenas e centenas de empresas faliram, muitas delas sem chance de recuperação. O impacto de tudo isso na arrecadação será medonho. Como, então, ressuscitar nosso antigo modelo de crescimento, torcendo mais uma vez o nariz para o capital privado?
Sobre a educação, não há muito a acrescentar. Nosso sistema de ensino, como ninguém ignora, é pior que ruim: é péssimo, calamitoso.
Algo em torno de 70% dos indivíduos com idade igual ou superior a 15 anos não atingem o nível internacionalmente tido como aceitável em Matemática, 60% não atingem tal nível em Ciências e 50% ficam aquém dele em Português. Nessa área, o atual governo já está no terceiro ministro, tendo os dois primeiros - como diria um crítico de ópera - “passado pela cena sem dizer palavra”. Importante, direi mesmo histórica, foi a aprovação do Fundeb, emenda constitucional que destina mais recursos para a educação básica, obra muito mais do Congresso que do Executivo.
- Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
José Roberto Mendonça de Barros: Preocupante é o conjunto da obra
A falta de rumo e a baixa capacidade de gestão e de entregas do governo são motivos de atenção
Como já tratamos aqui mais de uma vez, vivemos algo inusitado: a maior recessão de décadas após a de 2015/2016.
Por volta de setembro, saberemos melhor o custo da pandemia, em termos de vidas humanas, perdas de emprego, quebras de empresas e redução da produção.
Neste momento, os próximos dois anos serão definidos através do que será consignado no Orçamento, da extensão das reformas e das mudanças dos marcos legais que definirão a existência ou não de investimento nas principais áreas de infraestrutura.
Saberemos como serão conciliados os novos gastos sociais com um nível mínimo de norte na questão fiscal e na trajetória da dívida pública. Poderemos, então, projetar com um pouco mais de base qual poderá ser o crescimento do País em 2021 e 2022.
Enquanto isso, tem sido um alívio (pelo menos temporário) a mudança na postura presidencial, pois parece que uma aventura extralegal foi deixada de lado, frente à firmeza das instituições.
Entretanto, permanecem preocupações com a falta de rumo e a baixa capacidade de gestão e de entregas do governo.
Assistimos a uma acirrada disputa entre várias alas que convivem no Executivo (ideológica, religiosa, militar e política), que ficou evidente no caso da sucessão do ministro da Educação. Por outro lado, a pauta presidencial está carregada de causas laterais, como armas e trânsito, assim como suporte a demandas corporativas.
O relacionamento com o Congresso permanece muito difícil, como ilustra o rompimento (um erro enorme) do acordo longamente negociado sobre o marco regulatório do saneamento e a tardia interferência na votação do Fundeb.
Mais do que tudo, temos tido uma gestão no combate à pandemia que se perdeu totalmente, elevando sua duração e o custo para o País. Nessa área, salta aos olhos a triste posição de disputar com os Estados Unidos o maior impacto negativo resultante do aparecimento do vírus.
Finalmente, três áreas fundamentais não poderão continuar como vêm vindo: a gestão da questão da Amazônia, a política externa do País e a gestão da educação. Na educação, temos um ministro novo e ainda desconhecido, mas não há como avançar na questão do meio ambiente e relações exteriores sem troca de ministros, já que os titulares perderam totalmente a condição de atuar, de forma minimamente construtiva.
Em consequência, não se vislumbra nenhuma organicidade no Executivo, que permita algo parecido com uma estratégia articulada.
Vemos um grupo ideológico com desempenho desastroso (Educação, Relações Exteriores, Meio Ambiente e Cultura), um grupo irrelevante em áreas importantes (Ciência e Tecnologia e Turismo), um grupo de grandes possibilidades, mas de baixíssimas taxas de entrega (Minas e Energia, Infraestrutura, Privatização).
Apenas na Agricultura, temos uma ação construtiva e bem-sucedida, embora aqui se pague um preço por incêndios ocorridos em outras áreas.
Finalmente, na área econômica, a maior promessa original não vai ocorrer: uma revolução liberal. Ao contrário, após a aprovação da reforma da Previdência, não houve uma sequência organizada de passos e ações, posteriormente atropelada pelo aparecimento da covid. As (não) propostas da reforma tributária bem o demonstram.
Enfim, o conjunto da obra é preocupante. Veremos onde vai dar quando setembro chegar.
Ainda estamos atolados na pandemia. Mas já se delineiam novas fronteiras das atividades produtivas. Aqui vai uma lista das que parecem mais relevantes:
- Digitalização, automação e otimização de processos via inteligência artificial, que levarão a grandes ganhos de produtividade;
- Bioeconomia: energia, novos alimentos e novos materiais;
- Sustentabilidade nos processos produtivos;
- Carros elétricos, que vão acelerar a transição energética já em curso;
- Novas possibilidades na nacionalização (competitiva) de certas linhas de produtos, especialmente mecânicos e químicos.
Temos de entender mais esses temas.
- Economista e sócio da MB Associados.
Eliane Cantanhêde: Bobos são os outros
Desastre de PT e PSDB elegeu e pode reeleger Bolsonaro, que faz pirueta de 2018 para 2022
Soa fora de propósito, da razão e do tempo o ex-presidente Lula continuar, ainda hoje, com tudo isso acontecendo, atirando contra o ex-presidente Fernando Henrique e o PSDB. Com toda sua decantada genialidade política, Lula não consegue ver e entender o óbvio: o PT e o PSDB estão no fundo do poço, não ameaçam mais ninguém e o inimigo comum é outro. Sim, ele, Jair Bolsonaro. Não “apesar”, mas exatamente por tudo o que representa.
O PT já afundava, com mensalão e Lava Jato, quando Joesley Batista detonou Aécio Neves e, com ele, o PSDB. Sem PT e PSDB, o que sobrou? Pois é. Sem a polarização que norteou a política brasileira desde 1994, surgiu “o novo”. E o “novo” é o que há de mais velho, corporativista, armamentista, inexperiente, ignorante e com o discurso oportunista do combate à corrupção.
O cenário é desolador. Lula envelhecido, sem discurso e sem horizonte, mirando nos alvos errados e imobilizando o PT e as esquerdas. Aécio, José Serra e Geraldo Alckmin, os três candidatos tucanos à Presidência ainda vivos (Mário Covas morreu em 2001), embolados com a Justiça, a polícia e a descrença da sociedade diante dos políticos e da política. Todos viraram passado.
A história, no seu tempo, vai recolocar as coisas nos devidos lugares: o PT, criado em 1980, no rastro da redemocratização, e o PSDB, que surgiu em 1988, junto com a nova Constituição, tiveram um papel fundamental, Lula e Fernando Henrique à frente, para modernizar o País, debelar a inflação infernal, criar programas de renda, elevar o Brasil no mundo, atiçar a cidadania e a inclusão.
Os dois projetos se esgotaram sem sanar as mazelas nacionais e seus líderes e foram tragados por guerras políticas, ganância, impunidade e um sistema político que engole até biografias respeitáveis. O desafio era resistir à tentação de extrapolar o caixa 2 de campanha para o enriquecimento pessoal. Como conviver com mais de 30 partidos? Desmascarar quem fala à alma, não à razão? Enfrentar a pressão das corporações em detrimento da população? Financiar campanhas hollywoodianas? E como vencer sem elas?
Assim o Brasil chegou a Jair Bolsonaro, que driblou todas essas questões. Já pulou em dez partidos, até tentar um para chamar de seu; usou templos, cultos e pastores como palanques; em vez de enfrentar, liderou as corporações policiais e militares; financiou suas campanhas com seus gabinetes, não com empresas privadas. E venceu os adversários na internet e para o W.O. Eles se derrotaram sozinhos.
O resultado é um espanto: o único foco do presidente é ele mesmo e os filhos, a economia parou, a ação na pandemia é acusada de criminosa, a visão de meio ambiente é destrutiva, a educação é inimiga, a diplomacia virou guerra, a cultura desapareceu e a imagem dos militares está em risco. O anormal virou normal: rachadinhas, funcionários fantasmas, Queiroz escondido da polícia na casa do advogado da família presidencial.
E daí?, como diria Bolsonaro. Assim como Maduro sobrevive à destruição da Venezuela, Bolsonaro supera seus erros com a falta de adversários, sustentação militar e da polícia e apoio popular dentro do limite. Continua sendo não só o mais forte, mas o único candidato na sucessão presidencial e faz uma pirueta entre a eleição e a reeleição: joga ao mar o discurso moralista, o PSL e os neófitos vindos do ambiente policial e jurídico e navega com o Centrão, os experientes e os espertos, parando de atacar Congresso e Supremo.
Conclusão: o triste fim da polaridade PT x PSDB, que elegeu o inacreditável Jair Bolsonaro em 2018, corre o risco de reeleger o absurdo Jair Bolsonaro em 2022. E ele continua dando um banho de marketing e estratégia eleitoral. Bobo? Bobos são os outros.
Marco Aurélio Nogueira: Crise e transformação da democracia
Um governo reacionário e negacionista agravou tragicamente o que já estava ruim
A mudança constante é companheira de viagem da democracia. Quanto mais complexas ficam as sociedades, mais se acentua a dinâmica democrática e aumentam suas tensões internas.
Isso dificulta a compreensão da “crise da democracia”, hoje proclamada mundo afora. Aquilo que sempre se transforma não estaria em crise permanente, reorganizando-se sem cessar? Se novos atores entram em cena e as instituições precisam se adaptar aos novos ambientes socioculturais, por que a democracia permaneceria “estável”?
Aquilo que se transforma não o faz necessariamente em sentido positivo. Crises não são produtos automáticos: podem derivar, por exemplo, de um golpe ditatorial, que silencia o que estava em mudança e altera o fluxo da vida. Os novos tempos podem ser sombrios, desorganizar mais que organizar, fazendo as “novidades” acentuarem o que não funciona a contento, implicando que as instituições e as práticas políticas não produzam bons resultados.
A democracia está hoje desafiada. Há uma crise no plano sistêmico, institucional, provocada pela disjunção entre a vida e os sistemas, pela “desconstrução” dos partidos e das lideranças políticas. As organizações políticas tradicionais e o modo usual de fazer política colidem com o modo como as pessoas vivem. O “sistema” não entrega o que dele se espera. As injustiças, a desigualdade, o racismo, o sexismo, que se evidenciam sem parar, fazem a cidadania entrar em atrito aberto com o que está instituído. Sempre foi assim, mas nos últimos anos, ao lado do aumento da insegurança e do medo paranoico, houve uma ampliação da insatisfação e da disposição de contestar.
Há também uma crise de valores: a ideia de representação perdeu atração e a política institucional se desvalorizou aos olhos dos cidadãos. O desejo de liberdade e participação faz vibrar a cultura democrática, mas não se compõe com o sistema político vigente. Ao contrário, os cidadãos veem nele uma importante causa dos males. Assentados quase sempre nos interesses econômico-sociais mais poderosos, os governos não conseguem agir em benefício dos interesses gerais.
O principal fator que explica essa crise tem que ver com a complexidade da sociedade atual, que problematizou os mecanismos de formação da vontade coletiva e de tomada de decisões. A globalização capitalista, por sua vez, reduziu a autonomia relativa dos Estados-nação e impôs uma pauta única para a gestão da economia, agravando as disfunções sistêmicas. Como a estrutura social se recompôs, embaralharam-se as identidades classistas, transferindo problemas de reconhecimento e estabilidade para os partidos, que sempre controlaram o jogo político. Não só a democracia, mas tudo o que está “organizado” (a família, a escola, a empresa) entrou em crise.
Líderes e movimentos “desgarrados” das tradições democráticas passaram a corroer o sistema político por dentro, pondo em curso uma degradação nominalmente democrática da democracia. Um veneno tóxico começou a ser injetado cotidianamente na cidadania e na opinião pública.
Num ambiente mais complexo e menos democrático, o Estado – como aparelho de intervenção, coordenação e regulação – perdeu eficácia. A atuação dos governos e dos serviços públicos fica com custos mais elevados, sem que com isso se obtenham melhores resultados.
Esse quadro foi dramatizado pela pandemia, que evidenciou a distância existente entre o Estado político-administrativo e a população. Os sistemas nacionais de saúde foram postos à prova e em muitos deles faltou coordenação, um problema de liderança política e visão estratégica.
É esse o caso brasileiro. A presença de um governo reacionário e negacionista agravou tragicamente o que já estava ruim. Filho da crise, explora o discurso antissistema, que ressoa socialmente, e se aproveita da desorganização política dos democratas. Desqualificado, sem base parlamentar nem plano de ação, viu-se diante da necessidade de fazer que o sistema funcione. Não está dando certo.
O clima criado pelos “iliberais” não é sem consequências. Favorece a expansão de uma zona contaminada no próprio campo democrático, dificultando sua autoconsciência e sua organização. Paralisados pelas dificuldades, os democratas giram em torno de si próprios, muitas vezes brigando com sua sombra e autoimagem. Dispersam-se, quando deveriam se unir.
Parte do descontentamento e da indignação que move os cidadãos tem que ver com o fato de o sistema existente não prover resultados que atendam às expectativas sociais. As pessoas sentem-se desprotegidas, inseguras, carregadas de expectativas que não são atendidas pela política. A exasperação social bate à porta.
O sistema político, com seus partidos e atores, não tem gás para formular um programa de ação e uma articulação que recomponha a governabilidade e reforme as instituições. A sociedade terá de se movimentar, o que a crise sanitária dificulta.
A democracia está em crise. Mas é o único caminho que temos para explorar.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
Fernando Gabeira: Os caminhos na tempestade
As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se com a visão de mundo de Bolsonaro
O foco de nossas discussões hoje no Brasil tem sido o governo: atacar ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou manter Bolsonaro de pé.
No entanto, há uma crise de grandes proporções no horizonte. Não importa quem estiver em Brasília, enfrentará um enorme desafio para simultaneamente amparar os mais vulneráveis e fazer o País andar.
Para o economista Armínio Fraga, é profundo o tamanho do buraco. Ele calcula que será necessário, em recursos, o equivalente a oito pontos do PIB para sairmos dessa.
Nesse ponto é que uma reflexão política pode ajudar. O governo segue dois caminhos perigosos. Ambos tornam a tarefa mais difícil.
A visão atrasada da política ambiental pode ser um obstáculo decisivo, pois consegue, ao mesmo tempo, afugentar investidores internacionais e desvalorizar os produtos brasileiros lá fora. Ou, no limite, até tornar alguns inviáveis.
A política sanitária negacionista completa esse quadro. O desempenho brasileiro no combate ao coronavírus também não ficará barato para a Nação. Pontualmente, o mercado da carne foi atingido. Mas o turismo dificilmente se recupera rápido. O fato de sermos uma região onde o vírus não é controlado significa inúmeros transtornos, que repercutem até na dificuldade do Flamengo de contratar um técnico de futebol no exterior.
A existência de um governo com essas características torna a tarefa de recuperação, com a demanda de recursos que implica, gigantesca, quase impossível.
O ponto central no momento é a reforma tributária. O pulo do gato é um imposto sobre transações eletrônicas, bastante aceleradas sobretudo depois que a pandemia se instalou no País. É uma CPMF adaptada às condições da nova situação criada pelo coronavírus e que, de certa maneira, já se verificava como consequência da revolução digital.
Aí reside outro nó político. Como convencer a sociedade, devastada pela crise sanitária, a pagar um novo imposto, ela que já o recusou em outras circunstâncias?
A única possibilidade de atenuar a resistência será um esforço visível do governo para reduzir os custos da máquina. Nos cálculos de Armínio Fraga, isso poderia representar três pontos do PIB, sem perda de eficácia da máquina.
A própria ordem dos fatores dificulta essa saída. O governo, primeiro, pensa em introduzir um novo imposto. Só depois, possivelmente, falará em reforma administrativa. Mesmo assim, não se conhece em detalhes o que ele pensa sobre isso. Haveria mesmo uma racionalização convincente da máquina, uma certeza cristalina de custos menores pela prestação dos serviços públicos?
A previsão é de que, mesmo sem orçamento de guerra em 2021, o governo seja pressionado a gastar. A dívida no longo prazo torna-se problemática e a tendência será buscar dinheiro com prazos cada vez mais curtos.
Tudo isso é um grande problema no médio prazo. Uma razão a mais para pedir uma verdadeira política ambiental, uma guinada no negacionismo sanitário, uma ampla reforma da máquina administrativa.
Mas que sucesso teriam essas demandas num governo que cultiva o isolacionismo e a negação?
Breve teremos eleições nos Estados Unidos. Existe uma possibilidade concreta de vitória de Joe Biden. Bolsonaro embarcou cegamente na canoa de Donald Trump.
Esse deslumbramento provinciano é inadequado para um presidente do Brasil. Mas agora já aconteceu. Existem quadros na diplomacia brasileira que poderiam atenuar o impacto negativo dessa política. Mas o atual ministro é o símbolo dessa política que vê em Trump a salvação dos valores ocidentais – embora quase todos saibamos que, se dependessem de Trump, os valores ocidentais já estavam destruídos.
Quando articulo todos esses elementos de análise, concluo que dificilmente este governo tem condições de superar a crise no horizonte.
Derrubá-lo num movimento traumático abalaria em muitos dos seus eleitores a confiança na democracia. Daí não vejo outro caminho senão abordar a crise com propostas positivas e, simultaneamente, mostrar aos eleitores bem-intencionados que não há solução com Bolsonaro. As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se diretamente com sua visão de mundo.
Quanto mais rápido se completar esse movimento, mais tempo teremos para abordar a crise de forma criativa, aplicando no futuro não só as lições do passado, mas, acima de tudo, aquelas que se tornaram evidentes durante a pandemia.
As diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a ideia de que é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe um consumo de qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público: saneamento, educação, sistema de saúde universal e bem equipado.
A enorme potencialidade do Brasil, popular, intelectual, científica, enfim, todos esse fatores que o governo despreza precisam estar juntos de novo não apenas para derrubá-lo, mas para enfrentar seu legado negativo no processo de reconstrução. São dois momentos diferentes, reconheço. Mas deveriam estar, dentro do possível, entrelaçados, pois nunca atravessamos uma tempestade tão perfeita.
Eliane Cantanhêde: Atrasado e na contramão
Virou rotina: atrasado em tudo, o governo ou é miragem ou é mais problema que solução
O governo parece estar sempre atrasado, correndo atrás do prejuízo e atrapalhado na formulação e condução das propostas. Os exemplos são muitos e o mais recente, e gritante, é o Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Nem é preciso dizer o quanto esse fundo é essencial para o Brasil e os brasileiros pobres, mas o governo chegou tarde e pela contramão, levou uma lavada histórica na Câmara e está para levar outra no Senado.
O Fundeb é apenas um caso, porque o governo Bolsonaro está atrasado na maioria das discussões e ações fundamentais para o País: reforma tributária, reforma administrativa, meio ambiente (Amazônia em particular) e, além de Fundeb e Educação como um todo, o que falar da Saúde e do combate a uma pandemia que parece não ter fim? Em todos, ou o governo federal é uma miragem ou é mais problema que solução.
O MEC nem sequer se deu ao trabalho de estudar, liderar a discussão ou mesmo apresentar uma proposta para tornar permanente o Fundeb, questão de vida ou morte para o ensino básico e a inclusão social. Não teve tempo, trocando um ministro atrás do outro e Abraham Weintraub, o mais longevo, ocupado em brincar de Gene Kelly, Cebolinha, balbúrdia, guerra contra a China e de mandar prender os “vagabundos” do Supremo.
Assim, a proposta do Executivo foi apresentada, ora vejam, pelo Ministério da Economia. E na véspera da votação na Câmara! Não bastasse, driblava o teto de gastos e tirava de um fundo da Educação para inflar a popularidade de Bolsonaro. A derrota foi acachapante, por 499 a 7 (todos bolsonaristas). Do outro lado, ficaram com o relatório da deputada Professora Dorinha (DEM-TO) todas as entidades de Educação e a opinião pública. Quando a sociedade quer, o Congresso vota.
Um ano e meio depois, o governo também só apresentou sua primeira proposta de reforma tributária nesta semana, prevendo a unificação de PIS e Cofins, uma ideia vaga, superficial, muito aquém das da Câmara e do Senado e sob tiroteio do setor de serviços. A reforma administrativa, o gato comeu. Leia-se: Bolsonaro engavetou.
E a Amazônia? Enquanto o desmatamento crescia “só” 13 meses seguidos e eram “só” França, Alemanha e Noruega gritando, o governo dava de ombros. Acordou ao ser encurralado por fundos internacionais e o grande capital nacional e, agora, tem de engolir o plano dos três maiores bancos do País, subitamente de esquerda (como ONGs e Igreja Católica) ou seriam também tubarões prontos a devorar as riquezas brasileiras (como os países desenvolvidos)?
Na pandemia, o TCU revela que, de março a 25 de junho, o Ministério da Saúde só aplicou 29% da verba emergencial. E lá se vão 83 mil mortos… O resultado é macabro, mas a explicação parece simples: sem ministro e sem médicos e especialistas em saúde pública e em SUS, a Saúde não sabe como, onde e com o que gastar os recursos que salvam vidas, famílias e o próprio sistema, além de reduzir as dores da Economia.
Os brasileiros estão espremidos entre um governo federal que não sabe aplicar os recursos contra a pandemia e governos estaduais e municipais que, aqui e ali, usam o dinheiro em proveito próprio. E o presidente faz escola. Assim como ele desdenhou dos documentos do Exército e da Abin defendendo o isolamento, o general Eduardo Pazuello ignorou o alerta do Comitê de Operações Emergenciais (COE), da Saúde, de que, sem isolamento, a crise pode durar dois anos e é pior, inclusive, para a Economia.
Fortão para trucidar a realidade da pandemia, o governo chega tarde, frágil, trôpego e atabalhoado no essencial, enquanto o Brasil caminha celeremente para contabilizar cem mil mortos. A cloroquina é uma quimera e a vacina é promissora, mas vai demorar.
Zeina Latif: Afundando na armadilha da renda média
A educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média
É mais fácil um país pobre tornar-se um país de renda média do que este se tornar rico. Os economistas Homi Kharas e Indermit Gill, do Banco Mundial, identificaram essa dificuldade e a denominaram como “armadilha da renda média” em 2007.
Muitos países conseguiram sair da pobreza por meio de políticas governamentais para elevar o estoque de capital da economia. Foi o caso do Brasil. No entanto, o mesmo receituário não seria suficiente para tornar o país rico, independentemente das restrições fiscais. No século 21 ainda menos, por conta do avanço tecnológico.
As dificuldades são de duas naturezas. A primeira é mais técnica: o investimento em infraestrutura e capital instalado gera crescimento do PIB, mas em intensidade decrescente ao longo do tempo. Ficar rico exige passos além: ganhos de produtividade, o que depende de muitas variáveis.
A segunda dificuldade é política. É necessário um arranjo institucional mais sofisticado – envolvendo a academia, imprensa, órgãos públicos e privados – para se construir consensos sobre políticas pró-crescimento. Boa vontade dos governantes é essencial, mas não basta.
Há um grande consenso entre economistas mundo afora de que a educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média. No entanto, em países de renda média não se nota mobilização de atores políticos nessa direção e tampouco envolvimento da sociedade. No Brasil não é diferente e, para piorar, o debate técnico ainda não está suficientemente maduro.
Nesses países, o setor produtivo é, grosso modo, pouco sofisticado, sendo menos penalizado com a falta de mão de obra qualificada em comparação ao que ocorre em países ricos, que produzem tecnologia e buscam inovação. O que o mobiliza não é a cobrança por educação de qualidade, mas sim benefícios diretos. É o que se vê agora no Brasil com a reação contrária de muitos ao fim da desoneração da folha e à reforma tributária. A elite, que não depende da escola pública, também pouco exerce pressão política.
Como resultado, o desenho de políticas públicas de educação acaba sendo mais influenciado por sindicatos e políticos de viés populista.
É nesse contexto, agravado pela omissão do governo, que foi a aprovado o novo Fundeb. O foco principal do expressivo aumento de recursos foram os gastos com a folha, deixando pouca flexibilidade para gestores escolherem a melhor forma para elevar a qualidade do ensino. Esse tema, por sua vez, ficou praticamente de fora.
Em países pobres, com baixo acesso à escola, é crucial elevar os gastos com educação. O Brasil percorreu esse primeiro percurso, mas não de forma eficaz. Há maior inclusão, mas temos o dobro de taxa de evasão escolar em relação a países parecidos. E não seria correto apontar os salários dos professores como explicação para esse resultado. Segundo o Banco Mundial, o piso salarial dos professores está em linha ao de países com renda per capita similar, havendo evolução bem mais rápida na carreira devido a promoções automáticas, além de a previdência ser mais generosa.
Direcionar mais recursos para abrir vagas e aumentar salários é tarefa fácil e traz resultados e dividendos políticos rapidamente. Difícil mesmo é pular para um segundo estágio de elevar a qualidade do ensino, como fizeram os países ricos, para manter os jovens motivados na escola e prepará-los para a vida. Especialistas apontam a necessidade de afastar professores pouco eficientes, enfrentar sindicatos, treinar professores, revisar currículos e adequar as escolas para a nova realidade tecnológica.
Perdemos a chance de um debate político amparado tecnicamente sobre como melhorar a educação, aprendendo com os casos de sucesso. Nos agarramos a fórmulas fáceis e que deveriam estar superadas.
Será que teremos de esperar o problema educacional começar a prejudicar investimentos de forma visível, como ocorre na questão ambiental, para o debate ficar mais maduro? Por ora, o que estamos fazendo é nos afundar na armadilha.
*Consultora e doutora em economia pela USP
José Serra: É urgente atualizar o regime do petróleo
Não podemos deixar o futuro das próximas gerações perdido no fundo do mar
A aprovação do novo marco legal do saneamento básico abriu caminho para uma agenda de recuperação econômica pós-pandemia, por meio de novos investimentos e de aumento da produtividade. Dentre as pautas prioritárias, destacam-se, além do novo marco legal das ferrovias, a reforma do setor elétrico e a do mercado de petróleo e gás natural.
Neste último caso, é crucial atualizar o marco regulatório do pré-sal, permitindo que os leilões a serem realizados em 2021 recuperem a competitividade em relação a outros países. Mudanças no marco legal do petróleo começaram em 1997, com a Lei do Petróleo, que criou o regime de concessão. A descoberta do pré-sal levou o governo Lula a criar, em 2010, o novo regime de partilha, que concedeu à Petrobrás o monopólio da operação e a participação de, no mínimo, 30% nos leilões de campos do pré-sal.
Em 2013 foi realizado o primeiro leilão do pré-sal, com a oferta do campo de Libra, com potencial estimado entre 8 bilhões e 12 bilhões de barris. O resultado ficou muito aquém das expectativas, sem a participação maciça de empresas estrangeiras. Sem concorrência, apenas um consórcio apresentou oferta e o governo recebeu o mínimo estipulado nas regras: um bônus de assinatura (BA) de R$ 15 bilhões e 41,65% do petróleo produzido, descontados os custos de produção. Ficou evidente que as regras criadas pelo novo regime anularam a atratividade da área em oferta.
Com a Lei 13.365/2016, que tem como objetivo principal atrair investidores e estimular a concorrência, a Petrobrás deixou de ser o operador único e de participar obrigatoriamente com 30% em todos os consórcios do pré-sal. A partir de então os leilões tiveram sucesso inegável. No final de 2017 e primeiro semestre de 2018, as três rodadas realizadas tiveram 75% dos blocos ofertados arrematados, proporcionando mais de R$ 9,3 bilhões de arrecadação em BA. Ainda em 2018, a quinta rodada tornou-se o primeiro certame sob o regime de partilha a ter, com mais de um bloco em oferta, 100% das áreas arrematas, com um BA total de R$ 6,82 bilhões.
Os resultados decepcionantes do Excedente da Cessão Onerosa e da 6.ª Rodada de Partilha evidenciaram a inevitabilidade de uma nova alteração na lei. O leilão da cessão onerosa realizado em 2019 não atraiu o interesse das grandes petroleiras: os R$ 69,96 bilhões arrecadados em BA restringiram-se à Petrobrás (90%) e às chinesas CNODC Brasil (5%) e CNOOC Petroleum (5%). Na sexta rodada, realizada no dia seguinte, apenas uma das cinco áreas ofertadas foi arrematada e, mais uma vez, pela Petrobrás e associados chineses. A Petrobrás havia exercido o direito de preferência sobre outras áreas, mas desistiu da operação. Esse resultado reforçou a tese de que os campos brasileiros com grandes reservas já tinham sido leiloados.
Com isso a alteração da lei se tornou mais pertinente e urgente. O surgimento da pandemia do novo coronavírus causou incertezas quanto ao futuro do mercado de petróleo. Sendo assim, a criação de um ambiente legal e regulatório que propicie, já em 2021, a volta bem-sucedida dos leilões passou a ser fundamental. A meu ver, alterações que flexibilizem o regime de exploração no pré-sal e em áreas estratégicas, associadas a medidas de aperfeiçoamento das regras vigentes, são fundamentais para o sucesso dos leilões do próximo ano.
Reconheço que a retirada do direito de preferência da Petrobrás é uma medida polêmica. A repulsa a esse tema provém de uma suposta defesa da Petrobrás. A crença imaginária de que “o petróleo é nosso” ainda permeia as decisões de alguns senadores. Mas é preciso entender que essa prerrogativa concedida à Petrobrás distorce o processo competitivo, permitindo-lhe optar por diminuir os porcentuais de excedente em óleo destinados à União. Ora, quanto menor a parcela desse excedente, menores serão os recursos dirigidos a programas sociais, sobretudo à educação. O fracasso dos leilões da cessão onerosa evidenciou essas distorções, pois arrecadaram apenas R$ 69 bilhões dos R$ 106 previstos.
O fortalecimento do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que deve deliberar sobre o melhor regime jurídico a ser adotado nos leilões do pré-sal, é crucial. Com a flexibilização do regime de licitação do pré-sal e das áreas estratégicas, o CNPE deve ficar livre para definir, antes de cada rodada, qual regime é mais vantajoso, do ponto de vista social e econômico, para licitar cada área/bloco ofertado: partilha de produção ou concessão. A maximização da arrecadação nos leilões, devida à maior competição entre as petroleiras, seria uma consequência adicional.
O setor de petróleo terá certamente papel fundamental na retomada da economia pós-covid-19, já a partir de 2021. Para tanto é indispensável que os leilões do pré-sal sejam realizados sob um novo regime legal o mais depressa possível. Caso contrário, corremos o risco de deixar inexplorada grande parcela de nossas reservas de óleo e gás.
O futuro das próximas gerações passa por investimentos maciços em educação. Não podemos deixar esse futuro perdido no fundo do mar.
*Senador (PSDB-SP)