o estado de s paulo

William Waack: O vírus e a loucura

Filósofos andam céticos quanto ao mundo político pós-pandemia O mundo pós-pandemia não vai ser muito diferente do que era até o começo deste ano, talvez só um pouco pior. Do ponto de vista da ordem internacional, a China vai registrando importante vitória tecnológica e política. Ajudada pelos Estados Unidos, que se isolam cada vez mais e despertam no resto do mundo, pela primeira vez, um sentimento de pena em relação aos americanos, no lugar de admiração, respeito ou raiva – como costumava acontecer antes do vírus.

Do ponto de vista das sociedades ricas, acentua-se o egoísmo típico trazido pelo crescimento de desigualdades e concentração de renda em escala global. Da perspectiva dos mais pobres, o fim da esperança de que miséria fosse algo a ser liquidado ali na próxima esquina da história. No geral, morre a ideia de que “valores universais” (como direitos humanos, ou sociedades abertas, ou democracia liberal) fossem se impor de maneira mais ou menos “automática” na linha do tempo.

É a hora de os filósofos falarem da pandemia, e as ideias acima são do pensador-celebridade francês Bernard-Henri Lévy. Ele acaba de publicar já em inglês The Virus in The Age of Madness (em tradução livre: O Vírus na Era da Loucura), lançado no circuito internacional da propagação de ideias por meio de debates e conversas com outras celebridades como Fareed Zakaria (GPS), Thomas Friedman (New York Times) e Francis Fukuyama (American Interest). Está no YouTube para quem prefere assistir em vez de ler.

É difícil resumir em poucas palavras a sofisticação profissional de um Bernard-Henri (defensor de ideias liberais), mas algumas de suas frases são contundentes: “A epidemia veio da China, a resposta do Partido Comunista chinês foi eficiente e eles estão conseguindo vender para o resto do mundo o seu padrão de comportamento”. O título do livro não é só uma provocação. Um dos mais conhecidos “intelectuais públicos” está mesmo convencido de que vivemos uma “competição de loucuras” como resposta ao vírus.

Fala da “sombria alegria” com a qual se abraçou o vírus enxergado como não só mais uma pandemia (disso já tratavam os filósofos gregos uns quatro séculos antes de Cristo), mas como uma expressão de “coisa real”, de “história real”, de “tragédia verdadeira”, ao contrário do mundo das notícias, que se parecem nos tempos “pós-históricos” (Levy) em que vivemos como “eventos irreais”, como “eventos fake”. “Um vento de loucura está varrendo o mundo”, afirma.

O vírus não introduziu nada excepcionalmente novo, apenas acentuou ou escancarou tendências, problemas e dilemas já existentes, tanto na política quanto na economia. E tem até um lado que se diria vantajoso, segundo o filósofo: “Tornou evidentes a duplicidade e a inadequação”, além do oportunismo, de alguns dos personagens políticos citados por ele (nesta categoria negativa são Trump, Putin, Maduro e Bolsonaro).

Eles se esmeram na postura da “negação da realidade”, diz Levy, que dedica menções pouco simpáticas também aos que ele chama de “profilatocratas, vegetocratas e ecolocratas” (não só em alemão se inventam palavras no discurso filosófico), além dos defensores de políticas identitárias. Nesse sentido, tomando todos os “ismos” em curso, registra-se uma “competição de loucura” como resposta à pandemia, que nada tem de inédito, o mundo já lidou com isso muitas vezes antes, “e nem é tão ruim quanto parece”.

Mas não se pense que só o grande circuito intelectual global está dando atenção a filósofos. O recente congresso anual da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), no começo desta semana, trouxe um filósofo para examinar com produtores rurais, economistas e técnicos do setor o que se imagina que venha a ser o mundo pós-pandemia. “Daqui uns três anos ninguém vai se lembrar que teve a pandemia”, vaticinou Luiz Felipe Pondé, o filósofo convidado.


Vera Magalhães: Passando a boiada

Bolsonaro e seus soldados estão fazendo de bico fechado aquilo que alardearam com gravadores ligados na reunião dos círculos do inferno

Não se pode dizer que quem permaneceu no governo depois da dantesca reunião ministerial de 22 de abril não seguiu as ordens do chefe.

Escancarar a questão das armas, dar acesso a Jair Bolsonaro a relatórios de inteligência, criar um serviço de arapongagem paralelo e “passar a boiada” na desregulamentação ambiental prescindindo do Congresso. Foi tudo dito, sem medir as palavras. Está tudo sendo feito.

André Mendonça ganhou o lugar de Sérgio Moro pela sua lealdade ao presidente e agora terá de explicar ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso se e com que intenção mandou produzir dossiês sobre funcionários públicos, acadêmicos e sabe-se lá mais que supostos “adversários” do presidente.

Parlamentares como Alessandro Molon (PSB) e Randolfe Rodrigues (Rede) também acionam o STF e apresentam projetos de decreto legislativo para que Bolsonaro explique um decreto que mexe na estrutura da Abin e cria um Comitê de Inteligência Nacional destinado a planejar, coordenar e implementar ações de “enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”. Vago e amplo o suficiente para virar um SNI bolsonaresco.

O silêncio de Bolsonaro e seus malabarismos com emas e caixas de cloroquina deram a alguns incautos a impressão de que ele teria se moderado. O capitão e seus soldados, no entanto, estão apenas fazendo de bico fechado aquilo que alardearam com gravadores ligados na reunião dos círculos do inferno.

CONGRESSO
Sem Maia, plano de reeleição de Alcolumbre perde força

Rodrigo Maia (DEM-RJ) pode esperar a insistência de Davi Alcolumbre, seu correligionário e presidente do Congresso, para que embarquem juntos na tentativa de aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição para que possam se reeleger em fevereiro do ano que vem. Maia repetiu que não quer novo mandato (o quarto consecutivo) na segunda-feira no Roda Viva. Mas, diante de um pedido de Alcolumbre e diante de um apelo de que seria o único nome de “consenso” em partidos agora fragmentados, não faria esse “sacrifício”? Dividir o blocão pode ter sido uma jogada de mestre para não deixar nenhum nome ganhar musculatura.

NO PALANQUE
Eleição municipal será 'teste' do poder de voto do auxílio emergencial

Ninguém no Congresso ou mesmo no governo tem ilusões de que será possível simplesmente interromper o auxílio emergencial quando se encerrar a sua prorrogação, neste mês. Já se discutem novos valores e novas regras para a concessão de um valor decrescente, que ajude as famílias num momento em que a pandemia ainda come solta e a economia está longe de se recuperar.

Mas a principal razão a ditar a sobrevida da transferência de renda é político-eleitoral. Vitaminado após o “banho de povo” da ida ao Nordeste, Jair Bolsonaro não vai desmamar de uma vez esse novo eleitor potencial.

Quer testar o efeito do auxílio nas eleições municipais e seu potencial de beneficiar candidatos aliados do Planalto, para projetar o efeito que uma turbinada na transferência direta de recursos, seja pelo tal Renda Brasil ou como venha a se chamar o programa, pode ter em 2022, quando precisará de todo combustível que puder estocar para se reeleger.


Monica de Bolle: Imunidade 'natural' e falácia

Tratemos de cuidar das vidas, pois só assim teremos chance de cuidar, também, da economia

Com Denise Garrett **

Há vários artigos científicos recentes usando modelos epidemiológicos para estudar os limiares a partir dos quais a suposta imunidade coletiva “natural”, isto é, a alcançada pela exposição ao vírus e não por uma vacina, seria observada. Todos esses estudos, sem exceção, qualificam suas premissas e advertem sobre o uso indevido de suas análises para orientar as políticas de reabertura em países distintos. O artigo de Tom Britton, Frank Ball, e Pieter Trapman, publicado na Science no fim de junho, adverte explicitamente: “Nossas estimativas devem ser interpretadas como uma ilustração a respeito de como a heterogeneidade populacional afeta a imunidade coletiva, e não como um valor exato ou mesmo a melhor estimativa” (ver “A mathematical model reveals the influence of population heterogeneity on herd immunity to SARS-CoV-2”). Outros estudos com modelagens distintas de heterogeneidade populacional fazem advertências muito semelhantes.

O estudo de Britton et al. faz dois cortes de heterogeneidade populacional: idade e interação social. Idade é importante pois sabemos que, ainda que muitos jovens possam ser acometidos por casos graves da doença, os mais velhos são os que apresentam maior suscetibilidade ao SARS-CoV-2. Interação social pois sabemos que os chamados “supertransmissores” da doença são pessoas que interagem com muitas outras, frequentemente desencadeando surtos em suas comunidades. No modelo usado os autores calculam a imunidade coletiva entre 43% e 60%. O artigo explicita o problema de suas premissas: não se sabe o verdadeiro fator de reprodução do vírus, menos ainda qual o grau de imunidade conferido ou sua duração após a recuperação do paciente. Todos os estudos científicos publicados, seja após revisão por pares ou em estágio de preprint (sem revisão de pares) apresentam as mesmas fragilidades, sempre amplamente reconhecidas.

Ainda assim, o economista Samuel Pessôa escreveu artigo para a Folha de S. Paulo no qual considera a possibilidade de imunidade coletiva “natural” ao redor de 20% de infectados na população, sem levar em conta as premissas não comprovadas cientificamente em que se ancoram todos os estudos desse tipo. Estudos também mostram que mesmo que se atinja a imunidade coletiva, casos continuam se acumulando. Trata-se de efeito que infectologistas chamam de overshooting, onde o número final de pessoas infectadas ultrapassa o ponto de corte para a imunidade coletiva. Análises como a de Samuel são perigosas, sobretudo nesse momento em que o debate sobre reabertura de escolas e da economia de forma mais geral se apresenta no Brasil em meio a uma epidemia descontrolada que brevemente alcançará os 100 mil óbitos – esse número não incorpora os muitos casos de síndrome respiratória aguda (SRAG) sob investigação país afora.

Mesmo que o ponto de corte para a desconhecida imunidade coletiva estivesse ao redor de 20%, considerando os dados até o momento, estamos longe de atingir esse patamar. Na Itália, país devastado pela doença no início do ano, a prevalência de covid de acordo com os inquéritos epidemiológicos foi relativamente baixa. Na região mais atingida, a Lombardia, a prevalência foi de apenas 7,5%. Na Espanha a prevalência foi de 5%, e de 11% em Madrid. Na cidade de São Paulo, a prevalência geral estava em 11% no mês de julho, sendo que os mais pobres que vivem na periferia são desproporcionalmente mais afetados pela doença. Em alguns bairros da cidade de Nova York, a prevalência pode ter alcançado 20%. Estas estimativas são importantes, mas devem ser interpretadas com cautela pois muitas vezes os testes usados nos inquéritos de soroprevalência têm sensibilidade e especificidade distintas, tornando difíceis as comparações – esse, alias, é o caso no Brasil. Além disso, não sabemos quanto tempo a imunidade natural dura e nem sua consistência – ela pode ser bastante variável uma vez que é determinada por fatores diversos como idade, comorbidades, marcadores genéticos, carga viral de exposição, entre outros. Ainda mais importante, é o número de pessoas que morreriam desnecessariamente até que essa imunidade coletiva indefinida fosse alcançada. Por fim, há o problema das sequelas. Ainda que pacientes recuperados tenham alguma imunidade variável, os relatos sobre sequelas respiratórias, cardíacas, vasculares, renais, hematológicas, neurológicas, são cada vez mais frequentes.

É inestimável o estrago social e econômico que pode ser causado por políticas de reabertura sustentadas por artigos e cálculos sobre uma imunidade natural ainda incerta. Estamos diante de um agente infeccioso não apenas novo e letal, mas que causa doença sistêmica em muitas pessoas, tornando-as dependentes do sistema de saúde por longos períodos, quiçá permanentemente. Tratemos de cuidar das vidas, pois só assim teremos chance de cuidar, também, da economia

*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY 

**MÉDICA, EPIDEMIOLOGISTA, E VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO SABIN, EM WASHINGTON


Mario Vargas Llosa: A função da crítica

É também seu papel detectar as relações entre as fabulações literárias e a realidade social

Descobri Edmund Wilson em 1966, quando deixei Paris e fui morar em Londres. As aulas, primeiro na Queen Mary College e, depois, na King’s College, não tomavam muito do meu tempo, e podia passar várias tardes por semana lendo no belíssimo Reading Room da British Library, na época ainda situada dentro do Museu Britânico. Havia dois críticos de leitura indispensável aos domingos: Cyril Connolly, autor de Enemies of Promise e The Unquiet Grave, cuja coluna versava às vezes a respeito da literatura, mas mais frequentemente a respeito da pintura e da política, e as críticas teatrais de Kenneth Tynan, uma maravilha repleta de graça, ideias, insolências e cultura em geral.

O caso de Tynan é muito apropriado para denunciar a hipocrisia da Grã-Bretanha da época (que desapareceu naqueles mesmos anos). Tynan era imensamente popular até circular a suposição de que seria masoquista e que, de acordo com uma sádica, tinha alugado com ela um quarto no centro de Londres, onde ela o chicoteava uma ou duas vezes por semana (e aplicava também a arnica, imagino). O que faziam não importa tanto; mas o fato de isso chegar a conhecimento público já é outra história. Tynan desapareceu dos jornais após o sucesso de Oh! Calcutta! (ele dizia que se tratava de uma tradução inglesa do francês: Oh! Quel cul tu as! (Oh! Que bunda você tem) e deixou-se de falar nele. Partiu rumo aos Estados Unidos, onde morreu, esquecido por todos. Mas suas inesquecíveis críticas teatrais ainda estão por aí, à espera de um editor corajoso que as publique.

Edmund Wilson continua famoso, e espero que ainda seja lido, pois foi o maior crítico literário de antes e depois da Segunda Guerra Mundial, não apenas nos EUA. Acabo de reler pela terceira vez seu Rumo à Estação Finlândia (Companhia das Letras) e voltei a ficar maravilhado com a elegância da sua prosa e sua enorme cultura e inteligência nesse livro que relata as origens da ideia socialista e das loucuras engendradas por esta, desde o momento em que Michelet descobre Vico em uma nota de rodapé e decide aprender italiano, até a chegada de Lenin à Estação Finlândia, em Petrogrado, para comandar a Revolução Russa.

Há dois tipos de crítica. Uma universitária, que está mais próxima da filologia, e trata, entre outras coisas, do indispensável estabelecimento das obras originais tal como foram escritas, e a crítica dos jornais e revistas, a respeito da produção editorial recente, que ordena e elucida esse bosque confuso e múltiplo que é a oferta editorial, no qual nós, leitores, andamos sempre um pouco perdidos. Ambas estão em baixa nos nossos tempos, e não por falta de críticos, e sim de leitores, que assistem à muita televisão e leem poucos livros, e sentem-se assim muito confusos nessa época em que o entretenimento está matando as ideias, e portanto os livros, e destacam-se tanto os filmes, as séries e as redes sociais, onde prevalecem as imagens.

Edmund Wilson, que nasceu em 1895 e morreu em 1972, estudou em Princeton, onde foi colega e amigo de Scott Fitzgerald, mas sempre se negou a ser professor universitário e fazer esse tipo de crítica erudita que só é lida pelos colegas, e às vezes nem mesmo por eles. Seu estilo se destinava ao grande público, que ele alcançava com suas extraordinárias crônicas semanais, primeiro na New Republic, em seguida na New Yorker e, finalmente, na New York Review of Books.

Depois as reunia em livros que nunca perdiam a atualidade. E não escrevia apenas a respeito de autores modernos. Lembro como um de seus melhores ensaios o grande estudo que dedicou a Dickens. Sua prodigiosa capacidade de aprender idiomas, vivos e mortos, era tal que, dizia-se, quando a New Yorker o incumbiu de escrever a respeito dos manuscritos do Mar Morto, ele pediu um prazo de algumas semanas para aprender antes o hebreu clássico. E lembro de ter lido nas páginas do extinto Evergreen sua polêmica com Nabokov a respeito da tradução que este tinha feito de Eugene Onegin, o romance em versos de Pushkin, comentando cada aspecto das quimeras e segredos da língua russa.

Quem descobriu a chamada “geração perdida” de grandes romancistas americanos entre os quais figuravam Dos Passos, Hemingway, o soberbo Faulkner e Scott Fitzgerald? Foi Edmund Wilson que, em seus artigos e ensaios, foi promovendo e decifrando os grandes achados e as novas técnicas e maneiras de narrar do gênio literário americano, sem deixar de mencionar que tinham sido eles que aproveitaram melhor do que ninguém os ensinamentos do Ulisses de Joyce.

Os grandes críticos sempre acompanharam as grandes revoluções literárias e, por exemplo, na América Latina, o chamado “boom” do romance não teria existido sem críticos como os uruguaios Ángel Rama e Emir Rodríguez Monegal, o peruano José Miguel Oviedo e muitos outros. Não surpreende, portanto, que, na França, Sainte-Beuve, e na Rússia, Visarión Belinski, tenham acompanhado o período mais criativo e ambicioso de suas revoluções literárias, dando-lhes alguma ordem e hierarquia. A função da crítica não é somente descobrir o talento individual de certos poetas, romancistas e dramaturgos; é também detectar as relações entre essas fabulações literárias e a realidade social e política que expressam ao transformá-la, o que há nelas de revelação e descoberta, e, portanto, de queixa e protesto.

Estou convencido de que a boa literatura é sempre subversiva, como estavam os inquisidores e censores que proibiram durante os três séculos coloniais a publicação de romances nas colônias da América Espanhola, sob o pretexto de que esses livros disparatados – sua referência era o romance de cavalaria – poderiam levar os índios a acreditar que assim era a vida, a realidade e, com isso, desorganizar e arruinar a evangelização. É claro que houve muito contrabando de romances, e devia ser formidável, naquela época, ler esses romances proibidos. Mas se o contrabando permitiu a leitura dos romances, a proibição se aplicava rigorosamente no que tange a sua edição. Durante os três séculos coloniais não foram publicados romances na América Latina. O primeiro, El Periquillo Sarniento, só foi publicado no México em 1816, após a independência.

Aqueles inquisidores e censores que acreditavam que os romances eram subversivos estavam corretos, mas não ao decretar sua proibição. Eles sempre expressam um descontentamento, a ilusão de uma realidade diferente, seja por bons ou maus motivos. O Marquês de Sade, por exemplo, detestava o mundo de sua época porque não era permitido aos pervertidos que saciassem seus desejos, e seus longos discursos, tão enfadonhos, pedem uma liberdade irrestrita para a luxúria e a violência contra o próximo.

O que os bons romances não aceitam é a realidade como ela é. E, nesse sentido, são motores permanentes da transformação social. Uma sociedade de bons leitores é, portanto, mais difícil de ser manipulada e enganada pelos poderes deste mundo. Isso não fica claro nas democracias, porque a liberdade parece diminuir ou anular o poder subversivo dos romances; mas, quando a liberdade desaparece, os romances se convertem em uma arma de combate, uma força clandestina que contraria o status quo, erodindo-o, de forma discreta e múltipla, apesar dos sistemas de censura, muito rigorosos, que tentam impedi-la. A poesia e o teatro nem sempre são veículos daquele descontentamento secreto que sempre encontra uma válvula de escape no romance, ou seja, são mais passíveis de uma adaptação ao seu meio, ao conformismo e à resignação. Tudo isso deve ser apontado e explicado pelos bons críticos, como fez Edmund Wilson ao longo de toda a sua vida. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


Paulo Hartung: Visões, possibilidades e tendências do pós-pandemia

Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez

O amanhã sempre ocupa a mente humana, ainda mais em tempos de crises angustiantes e desestabilizadoras. Nesse sentido, mesmo que ainda envolvidos numa longa travessia dramática, o cenário atual da pandemia pauta cada vez mais os nossos olhares e pensamentos para o que virá.

O nevoeiro das dúvidas ainda é denso, mas pelo que já se vivia antes da covid-19, e também em função dos comportamentos que estamos experimentando ou incrementando neste momento absolutamente desafiante, já se pode vislumbrar um quadro de possibilidades e tendências para o pós-crise.

A pandemia acabou por evidenciar nossas mazelas e fragilidades socioeconômicas, adicionando ainda mais dor e desamparo a este tempo horrendo. Assim, mais que uma tendência, as reformas estruturantes colocam-se como um dever de casa cívico e institucional do qual não podemos abrir mão se quisermos constituir um Brasil verdadeiramente civilizado.

O Estado precisa se digitalizar, modernizar seu arcabouço legal e se libertar do sequestro secular operado por grupos de interesse instalados dentro e ao redor das máquinas governativas. É urgente melhorar o sistema tributário, atualmente um obstáculo ao crescimento do País.

A educação básica demanda um esforço prioritário de qualificação do processo de ensino-aprendizagem, fundamental para promover a autonomia cidadã e tornar viável a inclusão produtiva. Ciência e tecnologia devem ser vistas como uma fronteira para avançarmos rumo um desenvolvimento amplo e consistente.

A corrosão da globalização, patrocinada por populistas de diferentes estaturas, ganhou novos fatos e argumentos. Para uns, a crise expôs a vulnerabilidade do modelo, principalmente a interdependência das cadeias produtivas e a divisão internacional do trabalho segmentado. O fechamento de fronteiras e a “guerra” entre países por insumos e equipamentos para enfrentar a pandemia adicionaram calor às discussões.

Mas fatos da geopolítica abalam qualquer certeza sobre o enfraquecimento da globalização. O acordo de recuperação econômica da União Europeia reforça parâmetros de integração, assim como as parcerias globais que se firmam para a vacina contra o novo coronavírus.

E temos ainda a disputa eleitoral nos Estados Unidos, que contrapõe projetos antagônicos quanto a temas cruciais – clima, sustentabilidade, acordos comerciais etc. –, estando na dianteira Joe Biden, defensor de soluções articuladas planetariamente. Ou seja, sobre a globalização, a tendência é o acirramento dos debates acerca de seus fundamentos e alcance.

O eco planetário de acontecimentos locais, regionais e nacionais ganhou vigor extraordinário e a pandemia amplifica a agenda do respeito às diferenças e da busca da igualdade social.

A digitalização da vida expandiu-se de modo inédito, colocando-se como alternativa de conexões as mais diversas. Tornou-se importante para questões que vão do universo das afetividades, passando por soluções comerciais, até a viabilização do trabalho remoto nos mais variados segmentos. A digitalidade cria efeito em cadeia em outros segmentos, como o mercado imobiliário, afetando desde o desenho dos centros urbanos, passando por questões de mobilidade, até o design das residências, que estão virando o local de trabalho.

Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez. O interesse por processos sustentáveis, que põe os olhos do mundo sobre a tragédia amazônica, por exemplo, deve firmar parceria com outros fatores de vida saudável, como cuidados com a saúde física e emocional e preocupações com questões sanitárias, especialmente a conexão entre zoonoses e segurança alimentar.

As múltiplas carências do País, que já havia entrado na pandemia com fragilidades, ensejaram a dinamização da sociedade civil, fenômeno que se deve consolidar. Um exemplo é o movimento de líderes empresariais, investidores e grupos econômicos junto ao governo em defesa da Amazônia.

A humanidade ocupa-se de pensar o amanhã não por mero exercício de futurologia, mas porque, como observa Santo Agostinho, o futuro – “a esperança presente das coisas futuras” – é uma das marcas cruciais do presente, a única dimensão temporal que verdadeiramente usufruímos para existir.

Além das expectativas do hoje, inspiram o olhar em perspectiva “a lembrança presente das coisas passadas e a visão presente das coisas presentes”. É assim, pois, que seguimos, com a colheita de impressões fortes do que se passou e se passa, a pensar os dias que virão. Afinal, o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas o que estamos construindo hoje, em memórias, sonhos, desejos, palavras, projetos e ações.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Eliane Cantanhêde: ‘Democratice’ e democracia

Armas não podem ficar em mãos de pessoas perigosas e as redes de fake news são isso: armas

Levante a mão quem nunca teve de desmentir as fake news mais absurdas, até grotescas, em grupos de família, amigos, às vezes até de trabalho? De repente, do nada, aquela pessoa que convive com você há anos, que parece (ou parecia) razoável, antenada e inteligente, passa a compartilhar mentiras tão primárias e sem nexo que qualquer um deveria jogar automaticamente no lixo. É como lavagem cerebral, crença religiosa, negação da verdade. A pessoa perde a racionalidade e entra no vale-tudo a favor do seu mito e contra os adversários desse mito.

As redes de fake news atingiram uma audácia inaceitável, apesar de não terem começado com os Bolsonaros – porque o PT também era craque nisso no poder – nem serem exclusivas do Brasil – porque a eleição de Donald Trump nos EUA e a vitória do Brexit no Reino Unido são exemplos de como a internet é usada para transformar mentira em verdade. Se impacta tão decisivamente a vida, o voto e as eleições, pode mudar o mundo. E para pior. Depende de quem tenha mais dinheiro, recursos tecnológicos e falta de escrúpulos.

Assim como é fundamental distinguir “democratice” de democracia, é preciso evitar a confusão entre liberdade de expressão e de opinião, de um lado, e agressão e mentira, de outro. Não uma mentirinha inocente, mas uma arma feroz contra a verdade e a realidade, para propaganda enganosa, destruição de biografias e até ameaça à segurança física de cidadãos e autoridades. Armas, de qualquer espécie, não podem ficar em mãos de pessoas perigosas, de instinto criminoso.

Uma coisa é censura, proibir a opinião, a livre manifestação. Outra é o ministro do Supremo Alexandre de Moraes bloquear contas usadas como armas para espalhar o ódio, criar realidades paralelas, confundir incautos, destruir reputações, disparar injúria, calúnia, difamação e até convocação para estuprarem filhas de ministros do Supremo. Moraes não concluiu nada disso da cabeça dele, mas, sim, com provas concretas, cópias de mensagens e dados sobre contas reais e inventadas, inclusive levantados pelo próprio Facebook.

Alvo de um furioso ataque em massa e acusado criminosamente até de pedófilo pelas redes que são alvo de Alexandre de Moraes, o youtuber Felipe Neto deu uma entrevista à GloboNews, no domingo, condenando o “momento de validação do negacionismo e do obscurantismo” e comparando os autores desse tipo de ataque a “ratos que saíram do esgoto, de forma violenta e grotesca”. E ele também fez questão de destacar: “Não estou falando de opiniões divergentes, sim de negacionistas científicos, péssimos revisionistas históricos, pessoas que intencionalmente deturpam, manipulam e negam o que a ciência diz”.

O bom da história é que, como no mundo todo, o Brasil também debate intensamente a liberdade de expressão e a internet, na mídia, na sociedade, no Congresso e no Supremo, que, aliás, tem um segundo semestre bem animado pela frente. Um semestre que começou ontem, com o ministro Edson Fachin suspendendo o compartilhamento de dados da Lava Jato com a Procuradoria-Geral da República (PGR). A decisão confirma o que previmos aqui: os absurdos do governo Bolsonaro uniram o Supremo, os ataques à Lava Jato vão desunir.

E é assim, desunida e com pauta quente, que a Corte vai se posicionar quanto ao falso dilema entre fake news e liberdade de expressão, além de passar por uma dança de cadeiras. Em setembro, a presidência vai de Dias Toffoli, tido como ministro mais próximo de Bolsonaro, para Luiz Fux, considerado o mais suscetível às pressões da opinião pública. E, em novembro, sai o supertécnico Celso de Mello e entra o primeiro ministro da lavra de Bolsonaro. Só “terrivelmente evangélico” ou também terrivelmente bolsonarista?


Vinicius Müller: A Nova História do Capitalismo - Do algodão ao Black Lives Matter

Por qual lente devemos enxergar o capitalismo? Pelo empreendedorismo de Bill Gates ou pelo trabalho de crianças nas fábricas de camisetas em algum país asiático? Pelo aumento exponencial da riqueza nos últimos dois séculos ou pelas persistentes desigualdades?  Pela competição do mercado ou pela formação de monopólios? Pelo consumismo ambientalmente inconsequente ou pelos ganhos de produtividade?

Todas essas questões, e mais tantas outras, foram inúmeras vezes responsáveis por longas teses sobre os fundamentos e funcionamento da economia e suas implicações históricas e sociológicas. E, a depender de quem olha, servem como uma gangorra que justifica desde pesquisas muito sofisticadas como, em seu avesso, posicionamentos ideológicos nebulosos.

Estas variadas possibilidades também estão apresentadas em outras possíveis divisões. Por exemplo, a depender de sua formação, onde estudou, o que lê, ouve e assiste, estará convencido de que o capitalismo é a competição, riqueza, empreendedorismo e produtividade. Já se sua leitura tiver outra preferência quanto ao veículo de comunicação, ou sua formação acadêmica for feita em outra instituição, possivelmente não enxergará o capitalismo para além da exploração da mão-de-obra, desigualdade, monopólios e consumo inconsciente e predatório. E terá, em ambos, um arsenal secular de autores, autoras, teses, livros, escolas de pensamento e afins que podem confirmar sua posição. Cachorro correndo atrás do próprio rabo.

Outros exemplos podem ser pertinentes. Tenho um pessoal e, portanto, de curto alcance — mas, mesmo assim, simbólico: comecei minha graduação em História no longínquo ano de 1994. Pensava que meus interesses maiores estariam vinculados à História das Religiões, com interfase com a Antropologia e a Filosofia. Os cursos de História e Historiografia Medieval Europeia confirmavam o interesse. Mas, logo depois, apareceu a fascinante História da América lecionada por professores ainda mais brilhantes. No meio do caminho, História do Brasil Monárquico e História Política do Brasil. A dúvida começava a me incomodar. Até que apareceu a História Econômica, tímida em meio às tantas outras leituras. Anos depois, interessei-me por um programa de Pós-Graduação em Economia. Grupo docente de primeira grandeza, leituras do que de mais atualizado existia no mundo e muita microeconomia e métodos quantitativos. Em meios aos economistas, me agarrei à bibliografia de História Econômica e, principalmente, àquela ligada à Nova Economia Institucional. Dali, claro, li Douglass North. A partir disso, Deirdre McCloskey, Joel Mokyr, Stanley Engerman, Kenneth Sokoloff, Daren Acemoglu,  Phyllis Deane e Stephen Haber. E também outros, distantes da abordagem institucionalista, como os consagrados Robert Fogel e Richard Tilly. Descobri assim a força da obra de North, premiado pelo Nobel de Economia em 1993, um ano antes do inicio de minha graduação. E descobri também que, mesmo assim, na graduação de História, eu nunca tinha ouvido falar do economista que ganhara Nobel um ano antes e que cunhou a frase “A História Importa”. Imaginei, invertidamente, a quantidade de autores e obras importantes que havia lido e que os economistas ali comigo não tinham sequer ouvido falar: Edward Thompson, Christopher Hill, Perry Anderson, Fernand Braudel, John Galbraith, Charles Boxer, Paul Mantoux, Immanuel Wallerstein e, claro, o ‘já ouvi falar’ Eric Hobsbawm.

Douglass North

Ou seja, as dúvidas eram muito maiores do que as certezas e, sinteticamente, eram formuladas em duas ou três questões: O sucesso da indústria e do capitalismo britânico ocorreu devido à exploração, ao mercado externo e à acumulação primitiva de capitais ou pelas transformações institucionais, mentais e políticas que ocorreram internamente? O crescimento dos Estados Unidos no século XIX deveu-se às oportunidades geradas pelo território e pela forma de ocupação, pelas ferrovias, pelo empreendedorismo, pela imigração e pela formação dos belts ou pela exploração da mão de obra, pelo escravismo e suas consequências, pelo massacre de povos nativos, pela exploração dos mexicanos e pelo imperialismo? E, por fim, o capitalismo contemporâneo, tecnológico, industrial, financeiro e globalizado é incompatível com a escravidão ou, ao contrário, não só é compatível como foi forjado sobre o sangue dos escravos?

Não sei a resposta, mas desconfio que para todos os casos já existe um conhecimento acumulado suficientemente grande para confirmar qualquer opinião. Do mesmo modo que, em uma hipótese mais otimista, há respostas que podem nos surpreender exatamente pelo contrário: são tão boas que conseguem colocar em dúvida aquilo que até então tínhamos como certo e indubitável. Por isso, lamento quando noto, por exemplo, que muitos historiadores não dão a atenção que julgo necessária ao magistral texto de Engerman e Sokoloff e penso em como não ficar fascinado pelos dados sobre avanço da alfabetização nos EUA na passagem do século XIX ao XX que os autores apresentam.[*]

Contudo, esta gangorra não é só definida pelas escolhas determinadas pelas preferências pessoais ou pelos programas de graduação e pós-graduação. Também pende em função do contexto. E, depois de décadas de brisa soprando em favor da visão que enaltecia o capitalismo e suas relações com o aumento da riqueza, das oportunidades, da globalização e do empreendedorismo, a crise de 2008, a reviravolta no processo de globalização, a ascensão de governos iliberais, a ampliação da desigualdade e, principalmente, a persistência de formas variadas de racismo e discriminação de matizes diferentes, fazem com que o nosso atual contexto ofereça outras formas de se contar a história do capitalismo.

Foi nesse contexto, e ainda é, que ganha força, a princípio nas academias norte-americanas, mas também na brasileira, a corrente conhecida como “A Nova História do Capitalismo”, que teve recentemente uma de suas principais obras traduzidas no Brasil. Trata-se de A Metade que nunca foi contada, de Edward Baptist (Editora Paz e Terra, 2020; no original, The half has never been told). Baptist, professor de História na Universidade de Cornell, traça uma linha por onde reconstrói a história da escravidão nos EUA, suas particularidades e, fundamentalmente, como esteve ligada à formação do capitalismo norte-americano. Uma verdadeira barreira à reprodução ingênua, esquemática, e às vezes irresponsável, de certa visão que ilumina apenas os aspectos engrandecedores desta história.

Edward Baptist

A obra de Baptist, ao mesclar uma narrativa centrada na experiência pessoal de ex-escravizados e seu descendentes com análises sociológicas, busca e consegue mostrar que a suposta incompatibilidade entre o avanço do capitalismo e a escravidão é mentirosa. Ao menos parcialmente esta relação é não só visível como, principalmente, simbiótica. Ou seja, o capitalismo norte-americano foi construído a partir do resultado do trabalho escravo e do tráfico e também sobre o aumento da produtividade do trabalho escravo na produção do algodão. Sim, não está errado: aumento de produtividade. Desta forma, ataca diretamente a relação estabelecida por muitos entre capitalismo e produtividade, mas que não admite ganhos de produtividade pelo trabalho escravo. E, a partir disso, mostra como este aumento de produtividade do trabalho escravo na produção de algodão foi fundamental para a aceleração da indústria têxtil europeia no século XIX. Ou seja, como a escravidão esteve na base também do avanço do capitalismo fora dos EUA.

Mas, certamente, esta não é a novidade da obra de Baptist. O que mais convence pela originalidade é o apontamento que faz sobre questões sensíveis à História daquele país. Por exemplo, ao colocar em pauta que uma das causas centrais da Guerra Civil de 1861 não foi uma indisposição do norte do país com a escravidão do sul, mas sim porque a expansão da escravidão nos moldes sulistas daria um poder político aos estados escravistas que desequilibraria o delicado federalismo norte-americano. E que logo após o fim oficial da escravidão em 1863 e o fim da Guerra dois anos depois, as restrições ao avanço dos direitos civis aos libertados e seus descendentes foi uma engenhosa construção política que envolveu não só a persistência da mentalidade racista, mas também a deliberada ação das lideranças tanto do sul quanto do norte. Neste sentido, há um fio que liga a presidência do ‘racista e alcoólatra’ (nas palavras de Baptist) Andrew Johnson (1865-1869) ao declaradamente racista Woodrow Wilson (1913-1921). E, indispensável dizer, entre os anos posteriores à guerra de Lincoln e os movimentos pelos direitos civis ligados à Rosa Parks, aos nove de Little Rock, Martin Luther King e Malcolm X. E se o livro não tivesse sido publicado originalmente em 2014, ao Black Lives Matter e a George Floyd.

Manifestação após a morte de George Floyd nos EUA (Foto: Reuters/Yuri Gripas)

Contudo, certamente, a força maior da obra de Baptist está na narrativa que constrói, na qual histórias pessoais, dados, análises de discursos, política, economia e mentalidades se misturam em nome da luz que pretende lançar sobre a ‘metade que não foi contada’. Portanto, uma história que por mais que seja, ao menos em partes, conhecida, ficou eclipsada por outra mais simpática ao modo como os EUA construíram sua riqueza e sobre quais seriam os fundamentos do capitalismo; em outras palavras, que o trabalho escravo também gerava ganhos de produtividade, que o capitalismo não é incompatível com a escravidão e que foi sim determinado e beneficiado pelas relações estabelecidas internacionalmente e não só pelas instituições internas. E, no caso dos EUA, que a ‘terra das oportunidades’ dos empreendedores, da liberdade e de ‘gigantes’ como Rockefeller, Carnegie e Vanderbilt não devem ser vistos como fundamentos do crescimento econômico e do funcionamento do capitalismo dominante nos últimos 150 anos. Em seus lugares, diz Baptist, está o sangue dos escravos.

John D. Rockefeller por John Singer Sargent, 1917

Embora ambas trajetórias sejam corretas, o contexto sinaliza para a recuperação, aprofundamento e importância da história contada por Baptist. O que significa dizer que, se concordamos com a versão de que o capitalismo é exploração de mão de obra, monopólio, desigualdade e consumismo, ler os autores da chamada “Nova História do Capitalismo”, entre eles Baptist, pode ser um conforto e uma confirmação da pertinência de nosso modo de entender a história e a sociedade capitalista. O risco, como sempre, é esquecer que Douglass North ganhou Nobel e que Stanley Engerman é genial. Baptist corre este risco e nele, ao flertar com certo ativismo, expõe o pior de sua obra.

Se, diferentemente, formos do grupo que entende o capitalismo como o sistema do empreendedorismo, da competição, da ampliação de riqueza e da produtividade, ler a obra de Baptist pode ser revelador da limitação de nossas narrativas e formações, mesmo que não haja a menor chance de esquecermos que McCloskey e Mokyr são imprescindíveis e, assim como Engerman, geniais.

Porém, se formos ‘tipos ideais’ de economistas ortodoxos, mas tivermos o mínimo de responsabilidade para entendermos por que o capitalismo e a sociedade que o comporta não funcionam como nossos coerentes modelos preveem e supostamente comprovam, ler Baptist é um imperativo que, diria, é de ordem moral.

A Ride for Liberty, Eastman Johnson, c. 1862

Nota:[*] Engerman e Sokoloff escreveram um artigo sobre os diferentes processos de colonização na América. No artigo History Lessons: Institutions, Factor Endowments, and Paths of Development in the New World (2000) defendem que condições iniciais na colonização de diversas regiões do continente americano determinaram parte das instituições que se reproduziram e se adaptaram ao longo do tempo. Desta forma, indicam quais seriam as diferenças entre a  América do Norte (Canadá e EUA) e o restante do continente quanto à concentração da propriedade sobre a  terra, a expansão do sufrágio e a educação básica. Artigo disponível em <https://www.econ.nyu.edu/user/debraj/Courses/Readings/SokoloffEngerman.pdf>

*Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.


Eliane Cantanhêde: Lavação de roupa suja

Com Bolsonaro em campanha e jogando o governo no colo dos ministros, foco é no MP e no STF

Com o presidente Jair Bolsonaro em campanha para 2022, sem máscara e promovendo cloroquina e aglomerações, o foco vai para os órgãos de investigação do País. A bola da vez é o Ministério Público, depois do escanteio do Coaf, das tentativas de domar o leão da Receita e de investigações sobre interferência política na Polícia Federal. Pairando sobre isso, a suspeita de que o Ministério da Justiça ressuscita o SNI da ditadura.

O clima está animado, como se viu no bate-boca virtual entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o braço-direito do seu antecessor Rodrigo Janot, o subprocurador Nicolao Dino. A reunião era sobre orçamento, mas Dino subiu o tom contra Aras por seus ataques à Lava Jato. A defesa da Lava Jato virou uma lavação de roupa suja. Ao vivo!

A bem de Aras, diga-se que a guerra interna no Ministério Público vem de longe e teve momentos agudos na gestão polêmica e até hoje mal explicada de Rodrigo Janot, cuja marca é a delação premiada de Joesley e Wesley Batista. O resultado foi tenebroso para o País e espetacular para os irmãos da J&F, que, como nos filmes de mafiosos, acabaram com seus aviões, lanchas e apartamentos maravilhosos em Miami e Nova York.

Até hoje, três anos depois, a delação continua válida, nas mãos do relator no Supremo, Edson Fachin. O próprio Janot pediu a revisão, Raquel Dodge foi na mesma linha e aqui vai uma informação: Aras também articula com o STF o fim da delação e dos prêmios fantásticos para os Batistas. Pelas regras, eles perdem a mamata, mas as provas que entregaram continuam válidas.

Na guerra entre os grupos de Janot e de Aras, a mais grave no MPF desde 1988, incluem-se a pressa para estabelecer quarentena aos juízes candidatos (a “Lei Moro”) e o debate, que vai crescer nesta semana, sobre os acordos de leniência (delações premiadas são com pessoas, acordos de leniência, com empresas). O MP investiga, negocia, julga e fecha os acordos. E isso vai mudar. A intenção é juntar o “sistema U” nos acordos de leniência, ou seja: AGU, CGU, TCU e MPU. Sob o comando da AGU.

A crise no MP, porém, é apenas mais uma nos órgãos de investigação. Bolsonaro interveio no Coaf, quando o órgão de fiscalização financeira detectou as “movimentações atípicas” das contas de um tal de Fabrício Queiroz. Depois, o presidente foi flagrado intercedendo a favor de igrejas evangélicas multadas pela Receita. E, por último, ele é investigado pelo Supremo por acusações de intervenção política na PF.

Nesse enrosco todo, só faltava um ataque sistêmico à Lava Jato justamente quando o presidente deflagra sua campanha à reeleição em 2022, com a velha política e o velho Centrão. Às ovelhas do PSL, carinhos, fotos, lábia. Aos lobos do Centrão, cargos, favores e destaque nos palanques. O anfitrião de Bolsonaro no Piauí, aliás, foi o senador Ciro Nogueira (Centrão).

E o governo não descuida dos adversários. O Ministério da Justiça criou um novo SNI para produzir dossiês com perfis, ações, declarações e até fotos de pessoas da área de segurança e das universidades que ousem falar mal de Bolsonaro. Não é uma operação contra fascistas, mas contra antifascistas. Dá para entender? Até agora, já são 579 alvos. Amanhã, pode ser… você!

Assim, as manchetes mudaram, com Bolsonaro deixando o presidente de lado e assumindo o candidato, mas a vida continua: o presidente empurra as políticas (e as culpas) da economia, saúde, meio ambiente, educação e cultura para seus ministros, enquanto protege aliados e “ficha” adversários. O Supremo entra no foco engalfinhando-se com redes de golpistas e de fake news e o Ministério Público racha pela Lava Jato. Calma na superfície, ebulição nas profundezas.


Vera Magalhães: Uma moda que passou

Tão em voga nos palanques em 2018, combate à corrupção vira estorvo

“Fim ‘do’ Lava Jato! Fim ‘do’ Lava Jato!”. Com uma pandemia que já matou mais de 95 mil brasileiros ainda no auge, empregos minguando e economia à deriva, foi esse o coro com que Jair Bolsonaro, eleito, entre outros fatores, de carona no lavajatismo, foi recebido no interior do Piauí, escoltado justamente por um réu na Lava Jato, o senador e presidente do PP, Ciro Nogueira.

A nova onda de críticas, reações e ofensivas contra a mais notória força-tarefa de combate à corrupção já montada no Brasil une o presidente, o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, e o procurador-geral da República, Augusto Aras.

Bolsonaro iniciou seu divórcio do lavajatismo com a saída de Sérgio Moro do governo. O deputado que nunca deu a mínima para combater a corrupção, enfiou a família toda na política, enriqueceu graças a ela, praticou toda sorte de petecagem miúda e já esteve em todos os partidos fisiológicos do abecedário, de repente virou o “capitão” que ia banir os malfeitores. Um enredo pobre e falso como uma nota de R$ 200 com a estampa da ema do Alvorada, mas muita gente embarcou na fantasia.

Com Moro fora do barco, o lavajatismo virou criptonita capaz de enfraquecer o “Mito” e criar um adversário poderoso. De quebra, a saída de Moro coincidiu com a chegada dos novos amigos de infância do Capitão, aquelas figuras mais carimbadas do antes demonizado Centrão, o seguro anti-impeachment tão sonhado. Réus, condenados, ex-presos, cabe todo mundo no barco.

O coro que recepcionou Bolsonaro não tinha nada de espontâneo. Para ajudar o governo, réus como Nogueira deixam claro que aguardam um acordão “com o Supremo, com tudo” para que as ações que lá tramitam dormitem, se possível para sempre.

Um Bolsonaro sem os arroubos de outrora contra o STF ajuda. Basta ver que o presidente não deu um “pio” de solidariedade aos fanáticos banidos das redes sociais por ordem de Alexandre de Moraes. Os novos amigos do Centrão ocupam aos poucos o lugar vago do olavismo tresloucado à mesa do bolsonarismo. Até Carluxo anda quietinho, quietinho.

Aí temos o plantão de Toffoli no recesso do STF. Num ímpeto produtivo, o presidente respondeu sozinho pelo plantão, contrariando a prática de dividi-lo com o vice (o lavajatista Luiz Fux). E que produtividade! Em quatro semanas, ele mandou a Lava Jato compartilhar informações com Augusto Aras, suspendeu buscas e duas investigações contra o senador tucano José Serra, arquivou três inquéritos contra ministros do STJ e do TCU abertos a partir da delação de Sérgio Cabral, suspendeu depoimento de Aécio Neves e dissolveu a comissão do impeachment de Wilson Witzel no Rio. Ufa!

Outro bastante ativo no recesso, e pra lá de destemperado, foi Aras, que se lançou na cruzada contra a Lava Jato e ainda assumiu ares de ditador no Ministério Público Federal, investindo com grosserias contra colegas na reunião do Conselho Superior do MPF.

É certo que o combate à corrupção tem de se dar dentro de balizas e marcos de legalidade e institucionalidade, e que operações como a Lava Jato muitas vezes se arvoraram poderes acima desses limites, e têm de ser controladas e fiscalizadas.

Outra coisa bem diferente, porém, é um ataque orquestrado para fazer letra morta de tudo que se avançou na revelação de crimes e para mitigar o poder de órgãos independentes como o Ministério Público.

Esse tipo de iniciativa combinada mostra que o figurino do arauto do combate à roubalheira foi só uma das muitas lorotas que Bolsonaro enfiou goela abaixo dos eleitores. Assim como mostra dia a dia não ser um liberal, não ter compromisso com a democracia nem a menor condição de governar o Brasil, também essa fantasia do capitão decente foi rasgada, saiu de moda.


Fernando Henrique Cardoso: Dois centenários

O Brasil precisa de intelectuais da têmpera de Celso Furtado e Florestan Fernandes

O ser humano é dotado de memória. Mas também se esquece. Há, contudo, pessoas que se transformam em ícones: essas não há como esquecer. Este ano, 2020, se vivos estivessem, e não só em nossa memória, fariam 100 anos Celso Furtado e Florestan Fernandes. Um deixou marcas na economia, o outro na sociologia. Ambos, em nossa história intelectual.

Conheci bem os dois. Fui formado na Faculdade de Filosofia da USP por muitos “mestres”. No meu caso, nenhum foi mais importante do que Florestan, desde que me deu um curso introdutório, em 1949. Celso conheci quando eu fazia, em 1962, uma pesquisa sobre o papel dos empresários no desenvolvimento econômico e fui ao Recife, com Leôncio Martins Rodrigues, para entrevistar alguns deles. Celso, então, já era diretor-superintendente da Sudene. Posso tê-lo visto antes em alguma conferência em São Paulo – também minha memória, aos poucos, está repleta de esquecimentos…

Não me esqueço, porém, de dois episódios. Fomos procurá-lo em seu apartamento, modesto, na Praia de Boa Viagem. Emprestou-nos um jipe da Sudene, com um motorista. Aproveitamos a visita que um casal de jornalistas iugoslavos faria ao Engenho da Galileia, famoso pelas ocupações de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para conhecermos a Zona da Mata. Anos mais tarde, eu detido na Oban, fui minuciosamente inquirido sobre os dois “comunistas” que haviam ido comigo àquelas plagas. Não os conhecia, foram apenas companheiros de viagem. O motorista era também informante da polícia…

Quando Celso e eu já éramos amigos, estava em Barcelona, no inverno de 1986, visitando minha filha Beatriz, que estudava lá. Uma bela manhã tocou o telefone. Era Celso, queria saber se eu também seria nomeado ministro, pois ele fora convidado por José Sarney para ocupar a pasta da Cultura. Teria de deixar a Embaixada do Brasil junto à Comunidade Europeia, em Bruxelas, para onde fora nomeado. Celso, servidor público por excelência, além de grande intelectual, era falado para outros ministérios, como o da Fazenda ou do Planejamento. Coube-lhe o da Cultura, que organizou e ao qual emprestou o prestígio de seu nome.

Disse-lhe que eu não poderia sequer ser cogitado para uma função ministerial porque era senador exercendo a suplência e quem ocuparia minha função no Senado seria o segundo suplente, que era prefeito de Campinas. Teria de renunciar à prefeitura para assumir o Senado. Aconselhei-o a aceitar o ministério, sem que me houvesse perguntado.

Quiseram os fatos que fôssemos amigos. Em Paris, mais de uma vez fiquei no seu apartamento. Da mesma maneira, inúmeras vezes Celso ficou em meu apartamento em Brasília quando eu era senador.
Também frequentes foram nossos encontros quando morávamos na França. Ao longo de 1961, Celso, Luciano Martins, de quem ele era muito chegado, eu, e, eventualmente, Waldir Pires almoçávamos juntos.

A amizade, que se manteve, nunca me fez esquecer que foi com seus livros, especialmente A Formação Econômica do Brasil, que comecei a entender as mudanças que ocorreram no País.

Quando, em 1964, estivemos (Celso por alguns meses antes de ir para Yale) a viver em Santiago, moramos juntos. E conosco Francisco Weffort e Wilson Cantoni. Celso havia trabalhado antes na Cepal e, além de ser amigo dos economistas chilenos, era admirado por Prebisch, nosso inspirador e chefe do Ilpes e do BID.

Não sei de outro economista (mais do que isso: cientista social) que tenha influenciado tanto a minha geração como Celso. E muitas outras mais. Não só pelo que renovou na visão sobre a economia (somando Keynes a Prebisch e Kaldor), mas como homem público exemplar.

Inteligente, culto e modesto. Dele as gerações futuras não apenas se recordarão, como lhe serão agradecidas. Celso mostrou-nos o quanto a economia brasileira se integrava à economia mundial e como sem uma ação do Estado teria sido impossível (ou muito mais difícil) avançar tanto quanto avançou. Além do mais, sabia escrever: iniciara a vida na literatura.

O mesmo digo sobre Florestan Fernandes: homem de cultura enciclopédica, conhecia tanto sociologia como antropologia e os escritos dos economistas clássicos não eram misteriosos para ele. De Marx a François Simiand, conhecia-os bem. Mais do que isso: desvendou não só os males da escravidão e dos preconceitos de cor, como também mostrou as bases burguesas em que se assentava o poder no Brasil. Amava as pesquisas, tanto as sociológicas como as antropológicas, mas sabia que sem hipóteses os dados não falam. Sabia interpretar o que conhecia pelas pesquisas. A ele devo o ter-me dedicado à sociologia, que era sua paixão.

Do mesmo modo que no caso de Celso, os escritos de Florestan vieram para ficar. Tanto os sobre A Organização Social dos Tupinambá e A Função Social Da Guerra Na Sociedade Tupinambá, como os estudos sobre os negros no Brasil e sobre o caráter pouco democrático da nossa forma de viver e, sobretudo, de mandar. É de intelectuais dessa têmpera que o Brasil precisa. Que pesquisem e saibam antever o que pode acontecer. Sem medos nem arrogâncias. Com sabedoria.

*Sociólogo, foi presidente da República


Adriana Fernandes: Chaminé no teto

Gogó em torno da defesa do teto de gastos não está mais adiantando no Congresso

No seu quarto ano de aniversário, o teto de gastos está sob pressão porque falhou em um dos principais argumentos vendidos pelo governo Michel Temer para a sua aprovação.

Até agora, não deu certo a premissa de que a regra fiscal que trava o controle das despesas comprimiria o Orçamento e levaria o Congresso e o Executivo a terem de escolher as mais urgentes prioridades da população, como saúde e educação, para irrigar os recursos.

Ao longo desses anos, também não prosperou a tão propalada revisão dos chamados gastos tributários com incentivos fiscais, que no Brasil consomem 4,2% do PIB. O corte desses benefícios foi engavetado pelo governo e pelo Congresso.

A tal escolha das prioridades não funcionou e tem encorajado de forma legítima a sociedade, por meio de organizações que representam essas áreas, a buscar o seu quinhão para que os seus recursos não sejam contraídos num ambiente de recessão econômica e de vigência de uma regra fiscal muito restritiva, como o teto.

Na disputa pelo espaço apertado do Orçamento, o limite do teto foi ao longo do tempo sendo capturado por setores da sociedade apadrinhados pelos grupos de poder instalados no Palácio do Planalto. Quem grita mais leva.

É disso que se trata a reação recente dos movimentos sociais em defesa da educação, saúde e dos programas sociais, que pedem mudanças na regra do teto.

Independentemente de quem vença a guerra de números que tem sido travada em torno de quanto se perdeu ou ganhou com o teto, a verdade é que os representantes dessas áreas não querem ficar amarrados pelas restrições da regra fiscal enquanto buracos no Orçamento são abertos para despesas muito menos prioritárias.

O exemplo mais gritante pode ser visto nas concessões para os militares, Ministério Público e Judiciário. Só com um penduricalho no salário dos militares, o Brasil vai gastar R$ 26 bilhões em cinco anos.

A reação desse movimento social é de natureza bem diferente daquela que move integrantes do governo a tentar burlar o teto de gastos a todo custo para expandir investimentos numa lista de obras arquitetada sem transparência e com destino certo: a reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

Ficou tudo mais embolado com a pandemia da covid-19. Reportagem do Estadão desta semana revelou com detalhes as forças dentro do governo (e dentro da própria equipe econômica) para fazer gambiarras com o teto. Propostas não faltam, até mesmo com o uso do dinheiro que deveria estar sendo aplicado com a urgência necessária para o combate dos efeitos do novo coronavírus.

O governo, que até a pandemia comprimia os gastos sociais a ponto de acumular uma fila de dois milhões de pedidos de benefícios, agora quer turbinar o programa Renda Brasil, a sua versão repaginada do Bolsa Família, para dar porta de saída ao auxílio emergencial de R$ 600. E, é claro, impedir que a popularidade do presidente caia.

Do ponto de vista do Ministério da Economia, foram quatro anos de verdadeira “guerrilha” dos técnicos para impedir que as forças destruidoras do teto avançassem sobre o pouco de espaço que existe no Orçamento.

Sucessivas investidas ocorreram para aprovar despesas que nada têm a ver com as prioridades mencionadas acima. Bombas foram desarmadas. Outras prosperaram. Quanta energia empregada nesse trabalho! Em pelo menos duas vezes, a máquina administrativa ficou em situação de quase shutdown (paralisação) para atender às restrições legais do teto.

Em muitas dessas batalhas, a equipe econômica foi buscar guarida no Tribunal de Contas da União (TCU) para que a Corte arbitrasse decisões que deveriam ser resolvidas pelo próprio Executivo. Disputas essas, muitas vezes travadas entre o Ministério da Economia e o Palácio. A favor da equipe econômica, está o medo dos presidentes da República de ter o mesmo destino da ex-presidente Dilma Rousseff: a condenação por irresponsabilidade fiscal.

Como esse não é o papel do TCU, a tática de terceirização de responsabilidade decisória está se exaurindo. Funcionou no governo Temer e no primeiro ano do governo Bolsonaro, mas agora não está colando mais.

Mal desenhado por não permitir acionar os gatilhos automáticos de corte de despesas para evitar o seu estouro, o teto agora vive o seu momento mais difícil. Os seus defensores dentro da equipe econômica, que acreditam ser ele a principal âncora da política fiscal, estão atordoados com a velocidade e a força do processo dentro do governo pela sua mudança.

Perguntam eles ao ministro Paulo Guedes: por quanto tempo o senhor acha que vai conseguir convencer o mercado a financiar o governo indo para o décimo ano com déficit, em 2023, e sem nenhuma expectativa de voltar ao superávit, além de uma dívida pública caminhando para 100% do PIB?

Fora da área econômica, o drama é outro: garantir dinheiro para a retomada do crescimento.

O que não está certo é que esse debate seja feito às escuras. Basta de dribles! Que a discussão seja aberta e transparente para evitar que se acabe colocando uma “chaminé” no teto a serviço, novamente, de interesses menores.

Gogó em torno da defesa do teto não mais está adiantando. É preciso um plano organizado de saída desse impasse fiscal com o Congresso.


Miguel Reale Júnior: Os súditos do presidente

Há nexo de causalidade entre o mau exemplo de cima e a prepotência sobre o uso de máscara

A pandemia faz aflorar a sensação plena de nossas contingências e fragilidades. Integramos agora, independentemente de nossa origem, cor, condição social, sexo, religião ou time de futebol, uma mesma categoria: potenciais vítimas da covid-19.

Tal importa em visitar e praticar o valor solidariedade social, fruto da consciência viva de dependermos cada qual do outro. Assim, cooperamos com o nosso próximo, esperando que ele também colabore conosco, para, em irmandade, juntos, superarmos o inimigo comum.

A noção de planetário pertencimento à nova categoria de potenciais vítimas do vírus desfaz eventual sensação de ser o outro um inimigo, uma fonte de desgraça, pois todos somos, sem o querer, concomitantemente, destinatários ou transmissores do mal. Esta recém-experimentada condição, que nos retira de nossas atividades habituais, impõe a humildade de reconhecer que se deve aos demais a atenção de cuidados para protegê-los.

O pertencimento a uma situação geral perigosa deve unir, e não confrontar, fazendo surgir espírito comunitário, a ser vivido na rua, no prédio de moradia, no supermercado, nos ônibus, consistente no respeito à vida de todos, mesmo porque a proteção dos circunstantes também significa a defesa de si mesmo.

Todavia não é o que se está a verificar em parcela da nossa sociedade, ao negar o valor da solidariedade e se arvorar imune à peste, para por comodidade ou arrogância desrespeitar a vida alheia e não colaborar com o bem comum.

Já Oliveira Vianna (Instituições Políticas Brasileiras, José Olympio editor, 1949, pág. 132 e seguinte), estudando a formação cultural do Brasil, anotava ser absolutamente nula a solidariedade social entre nós, havendo apenas pequenos traços de solidarismo local sem nenhuma significação geral, concluindo: “O brasileiro é fundamentalmente individualista”.

Há na rejeição ao uso da máscara recusa a se submeter a qualquer regulamentação, configurando uma regressão ao estado da natureza, em termos de Hobbes, ao se impor a própria vontade sem responsabilidade social e sem controle de si mesmo, a ponto de se permitir lesionar quem exige respeito às normas sanitárias.

Causa indignação um ex-presidente do Tribunal de Justiça e outro desembargador, do alto de sua prepotência, afrontarem a legítima regulamentação por decreto autorizado por lei federal, para se negar a usar máscara como o comum dos mortais. O que mais espanta, todavia, é a violência da reação ao se ser cobrado a cumprir a regulamentação e a regra moral da solidariedade. O desembargador, ao rasgar e jogar no chão a multa, ultrapassou a linha da contestação para atuar com agressividade.

Esta violência assusta ainda mais quando se verifica que pessoas comuns, sem nenhum desvio pregresso de conduta, reagem violentamente quando questionadas por estar sem máscara.

Podem ser colhidos diversos exemplos de norte a sul do País. Em Belo Horizonte, motorista de ônibus negou-se a transportar três pessoas sem máscara, que é obrigatória na capital mineira. Ainda tentou explicar não dever pôr em risco a vida de todos os passageiros, mas foi inútil: a mulher, ao descer, o estapeou-o no rosto (www.g1.globo.com/minas-gerais/noticia/20/07/20). .

Em Alagoas um cidadão repreendeu policial militar aposentado por não usar máscara. O policial derrubou-o, chutou-o e agrediu-o, mesmo deitado, gritando: “Usa máscara quem quer!”
(diariodopoder.com.br.brasil-e-regioes/alagoas/policial). Na cidade de Catalão, em Goiás, dono de bar idoso foi agredido e teve a perna quebrada por um cliente ao ser-lhe pedido que usasse máscara (www.noticias.uol.com.br/cotidiano/2020/06/29).

Mais outra: homem entrou sem máscara em supermercado em Vacaria (RS) e ao ser advertido pelo gerente, na discussão, esfaqueou-o (Estado, 21/6). Também na cidade de Registro, sul do Estado de São Paulo, policial foi agredido por empregados de loja após solicitar que usassem máscara. O policial lesionado disse ter sido “degradante a situação, pois queria a proteção deles e dos demais e por cobrar essa preocupação” foi agredido” (www.jornaldebrasilia.com.br/nahorah/policial). .

O que desencadeia essa violência de pessoas normais em face de simples pedido de respeito às normas sanitárias durante uma pandemia, obrigação óbvia como medida de solidariedade social?

Além do insolidarismo vigente em nossa cultura, “se farinha pouca, meu pirão primeiro” (Bezerra da Silva), há evidente nexo de causalidade entre o mau exemplo que vem de cima e o exercício prepotente e agressivo da população ao ser cobrada pelo não uso de máscara (oglobo//globo.com/sociedade/especialistas-explicam). Se o presidente da República profere o insolidário “E daí?” e vai a bar, barraca de cachorro quente, aglomeração contra o Congresso e o Supremo, sem máscara, cujo uso ridiculariza, com que autoridade se exige esse uso com ares de reprovação?

É uma vertente do “sabe com quem está falando?”. Está falando com um súdito do presidente.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça