o estado de s paulo
Celso Lafer: Meio ambiente e desenvolvimento sustentável
Defesa ambiental é um princípio imperativo que não pode ser ignorado num Estado Democrático de Direito
O século 20 foi um século de rupturas. Caracterizou-se pelo ineditismo da transposição de barreiras antes tidas como usuais. Nessa linha, a partir da década de 1970 foi ficando evidente que a natureza deixou de ser um dado da permanência da ordem cósmica e passou a ter o componente de um construído/destruído pela ação humana.
Hoje é inequívoca a vulnerabilidade da natureza por obra da atuação dos seres humanos. Ela deixou de ser concebida como um horizonte quase infinito, aberto à exploração humana. Tornou-se um horizonte de vulnerabilidade, comprometedora da rede global dos ecossistemas que sustentam a vida na Terra.
Responsabilidade provém do verbo latino respondere, responder. No campo jurídico, o termo foi sendo elaborado como resposta do Direito a fatos e situações provenientes de desordens e injustiças causadoras de dano. No caso das situações oriundas da vulnerabilidade da natureza, o assumir de responsabilidades políticas e jurídicas coloca o problema não só do dano causado no passado e no presente, mas também do dano no presente que se projeta no futuro.
O novo contexto passou a exigir novos conceitos. O aprofundamento crescente do conhecimento científico permitiu desvendar os riscos para o meio ambiente. Ampliou-se o escopo operativo da gestão de riscos necessária para analisar o impacto ambiental da ação humana. Daí novos conceitos como o princípio da precaução. Ciência e conhecimento se tornaram fonte material das normas do direito ambiental.
A dinâmica das mudanças econômicas, políticas e intelectuais adensadas no século 20 tornou o mundo finito e interdependente. Aprofundou a porosidade das fronteiras, particularmente relevante em matéria ambiental, pois se a maioria dos ecossistemas se situa em territórios nacionais, o impacto do seu uso tem efeitos transfronteiras. Basta pensar nas múltiplas dimensões da mudança climática. Isso faz do meio ambiente um tema global.
A Conferência da ONU de 1972 em Estocolmo foi a primeira tomada de consciência no plano diplomático mundial da vulnerabilidade da natureza. Abriu caminho para a inserção do meio ambiente na agenda internacional. Identificou o potencial de preocupações compartilháveis, desvendadas pelo conhecimento gerado de maneira crescente pela ciência. Enfrentou as dificuldades de encontrar conceitos e meios para operacionalizá-las num mundo estratificado pela polaridade Norte-Sul, como a de compatibilizar as legítimas aspirações ao desenvolvimento e à preservação do meio ambiente.
O caminho para equacionar essa dificuldade foi a “ideia a realizar” do desenvolvimento sustentável. O conceito, que é heurístico, proposto pelo Relatório Bruntland, de 1987, contribuiu para a vis directiva da Conferência da ONU no Rio de Janeiro, em 1992, na qual foi consagrado. Sob a égide da Declaração da Rio-92, adquiriu notável irradiação, que permeia o contemporâneo direito do meio ambiente na interpenetração do interno e do internacional.
O paradigma de desenvolvimento sustentável trouxe profunda mudança no entendimento do como lidar com o inter-relacionamento de atividades econômicas, sociais e meio ambiente. Este não é uma “externalidade”. Daí o imperativo da “internalização” da avaliação dos custos da sustentabilidade ambiental – que tem efeitos erga omnes em função da vulnerabilidade da natureza – nos processos decisórios públicos e privados, locais, nacionais e internacionais. O desenvolvimento sustentável contrapõe-se a padrões insustentáveis de produção e consumo, como o desmatamento predatório. Alcança a mudança da lógica das matrizes energéticas. Vem levando à busca da economia de baixo carbono e à generalizada validade de padrões de ecoeficiência, exigíveis na certificação da atuação de empresas. É critério de atração de investimentos.
O desenvolvimento sustentável aponta para a responsabilidade coletiva – global, nacional e local – consolidar os seus pilares mutuamente interdependentes e, nesse âmbito, os imperativos solidários de cooperação internacional. Dá realce à obrigação das normas nacionais e internacionais de tutelar o escopo da responsabilidade jurídica por dano ambiental, incluída a que provém do seu impacto transfronteiras. Destaca o direito de acesso adequado às informações relevantes ao meio ambiente, que é hoje um componente de transparência democrática do poder.
O desenvolvimento sustentável não é uma preferência entre outras preferências, como as do “achismo irresponsável” e da cobiça sem freios. Possui a força legitimadora da tutela do direito à vida das gerações presentes e futuras, como estipula o artigo 225 da Constituição federal. É uma obrigação de todos. Por isso a Constituição, ao listar os princípios gerais da atividade econômica em nosso país, estabelece no artigo 170, VI, a defesa do meio ambiente. É um princípio imperativo de alcance geral, que não pode ser ignorado e desconsiderado num Estado Democrático de Direito.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Luiz Sérgio Henriques: Além dos pequenos nacionalismos
É preciso considerar os conservadores clássicos para manter viva a corrente da democracia
Até certo ponto inesperada, e por isso ainda vista por alguns como ponto fora da curva ou raio em céu sereno, a pandemia de covid-19 acabou por se impor como o elo que, uma vez bem apreendido, permite lançar luz nova sobre toda uma corrente de fatos e acontecimentos que moldam nosso tempo, particularmente conturbado. Signo ao mesmo tempo da globalização e de suas fragilidades, a faísca que se acendeu há menos de um ano no imprudente “mercado molhado” de Wuhan, espalhando-se por toda parte e praticamente emperrando a máquina do mundo, logo gerou percepções anacrônicas, alimentou negacionismos e confirmou a sensação de que a unificação do gênero humano não é um processo inscrito nas próprias coisas e, portanto, uma marcha triunfal previamente garantida.
A consciência humana, não raramente, costuma correr atrás das mudanças sociais e dos eventos da História, e não há de ser muito diferente desta vez, quando a interdependência de povos e nações, objetivamente estabelecida, convive com instituições políticas em sua maioria restritas ao plano nacional. Somos cidadãos de uma nação, nela votamos e pagamos impostos, sentimo-nos próximos dos governantes que, nos momentos felizes de vida plenamente democrática, podemos eleger ou destituir. Muito mais longe estão os organismos multilaterais, a começar pela ONU; relativamente débeis, com exceção da União Europeia, as tentativas de coordenação supranacional; e ainda fumosa a ideia de uma sociedade civil internacional, em cujo âmbito, mesmo assim e apesar de tudo, já transcorrem manifestações globais antirracistas ou em defesa do meio ambiente, indicativas de que uma cultura de direitos só tem sentido se tender à universalização, como nos ensinaram as grandes revoluções da modernidade.
A consciência estreita, ideológica, no mau sentido da palavra, com que se percebem processos dessa magnitude é uma âncora pesada a nos amarrar ao passado. O internacionalismo dos antigos comunistas, com todas as suas limitações, dava uma chave de leitura do mundo, mas ai de quem o lamentar nostalgicamente. Proclamar mecanicamente a palavra de ordem “socialismo ou barbárie” é pregar para convertidos, antes de mais nada por ignorar que as formas do socialismo de Estado foram também bárbaras ou, na hipótese melhor, autoritárias. O americanismo, a outra forma de universalismo que terminou por assinalar todo o século passado, hoje recua para sua dimensão mais egoísta e rudimentar, renunciando a dirigir os acontecimentos e proclamando canhestramente “America first”. Trump é o interesse bruto, imediato, na contramão do sonho americano de Roosevelt, da Grande Sociedade de Johnson, dos direitos humanos de Carter, das inovações em saúde pública de Obama.
Perigoso internamente, Trump ainda irradia pelo mundo força e inspiração para nacionalismos sem grandeza, como os que caracterizam a experiência dos chamados populismos contemporâneos. O autoritarismo de todos eles – na Hungria, na Polônia, no Brasil ou, ainda, na Venezuela, em sua versão de esquerda – deixa cicatrizes nas instituições democráticas, ferindo-as mais ou menos de acordo com a resistência que encontra.
As lideranças populistas, na versão de extrema direita, enchem a boca para apregoar um conservadorismo que, estranhamente, não conserva instituições, antes as depreda, e para impingir uma religião que, mais estranhamente ainda, se degrada a mero instrumento de poder e de regressão medievalesca. Conservadores “revolucionários” difundem homogeneamente, por onde se instalam, não só a concepção do “inimigo interno”, com o qual não seria possível conviver, como também a do “inimigo externo”, que estaríamos fadados a combater numa reedição extemporânea da guerra fria. O vírus da covid, afinal, é um comunavírus, um vírus chinês, desenhado para abater o “Ocidente judaico-cristão” e implantar o comunismo, esse dragão da maldade a requerer um santo guerreiro sempre mais virulento e implacável.
O paradoxo é que esses pequenos nacionalismos compõem, peça a peça, um singular internacionalismo de extrema direita que hoje desafia as formas da democracia tal como a conhecemos. Reivindicam a estreiteza nacional como destino e âmbito existencial, mas globalmente ajudam-se, reconhecem-se, trocam experiências. Sempre que podem, reúnem-se para demolir ou deslegitimar irresponsavelmente instâncias multilaterais, tornando mais difícil a construção de mecanismos capazes de governar democraticamente processos que afetam todos, como as crises financeiras, o aquecimento da Terra ou as pandemias que decerto nos esperam mais adiante.
Curiosamente, ou nem tanto, para a construção desses mecanismos é imprescindível a presença ativa dos conservadores clássicos. Eis um elo – a contribuição dos conservadores – que é preciso considerar para manter viva a corrente da democracia. Há muito que conservar nas nossas sociedades, mesmo que a História não tenha acabado e se vislumbre um longo e indefinido caminho de mudanças que só descobriremos à medida que o palmilharmos em liberdade.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Sergio Fausto: Trump e Bolsonaro, semelhanças inquietantes
Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, claro, mas…
No início de maio um grupo de manifestantes ostensiva e fortemente armados irrompeu na Assembleia Legislativa de Michigan para protestar contra a quarentena decretada pela governadora democrata para deter o crescimento da pandemia. Donald Trump não demorou a disparar um tuíte em apoio aos manifestantes. O fato de o grupo de brutamontes (todos homens, todos brancos) estar portando rifles não pareceu digno de nota ao presidente americano. Jair Bolsonaro teria vibrado, a julgar pelo que disse na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, em que defendeu armar o povo para enfrentar prefeitos e governadores.
Em julho, a retórica incendiária do presidente americano inflamou-se ainda mais. Prefeitos democratas de cidades onde eram realizadas manifestações, em geral pacíficas, do movimento Black Lives Matter foram acusados de nada fazerem para evitar a “anarquia social”. Da retórica Trump passou à ação, enviando agentes policiais da União para reprimir os protestos, em decisão que pode configurar abuso do poder presidencial. Os agentes federais, camuflados como militares em guerra, têm agido com violência injustificável, enquanto Trump chama os manifestantes de “marginais”. Bolsonaro os teria chamado de “terroristas e maconheiros”. Ao menos foi o que disse a respeito de quem saiu às ruas no começo de junho para protestar contra o seu governo.
Atrás em todas as pesquisas de opinião, sem controle sobre a pandemia, Trump está na busca desesperada por uma narrativa que o mantenha no páreo para as eleições de novembro. Quer ser o candidato da lei e da ordem.
Parece uma reedição da estratégia de Richard Nixon, que se elegeu em 1968 prometendo pulso firme contra protestos de jovens universitários e negros. A semelhança, porém, é apenas aparente. Trump não busca mobilizar o conservadorismo tradicional. Sua aposta é a de um extremista, disposto a conflagrar o país e testar, ao máximo, os limites da institucionalidade. Mais do que o candidato da “lei e da ordem”, ele flerta com a ideia de ser o líder de um povo pronto a empunhar armas para defender a América contra “terríveis ameaças”.
A incitação de Trump à violência e a desfaçatez de suas teorias conspiratórias vêm se agravando. Ainda nas primárias republicanas para a eleição de 2016, ele disse que pagaria do próprio bolso a fiança de seus apoiadores que “descessem o cacete” em quem perturbasse os seus comícios. Na campanha para as eleições daquele ano, afirmou que se perdesse seria sinal de fraude, e se recusou a dizer se aceitaria o resultado. Em 2017 disse haver “gente boa” entre supremacistas brancos que brutalizaram manifestantes contrários. Em 2019 perguntou à multidão que o ouvia na Flórida como deveriam ser recebidos os imigrantes que tentassem cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos. Sorriso no rosto, escutou a resposta em coro: “Com tiros, com tiros”. No mesmo ano, acusado na Câmara por crimes de responsabilidade, brandiu a ameaça de uma guerra civil se o Congresso o impedisse de seguir na Presidência.
Com a aproximação das eleições de novembro, a retórica incendiária de Trump está chegando ao paroxismo: além de defender, semanas atrás, que a polícia atirasse em quem promovesse saques, desatou a repetir que há uma grande fraude em preparação, até mesmo com interferência de governos estrangeiros, nos votos que serão enviados pelo correio, uma prática antiga e segura em vários Estados americanos. Bolsonaro há muito propaga a lenda de ser a urna eletrônica um convite à manipulação dos resultados eleitorais.
Refletindo sobre o cenário político americano, Fareed Zakaria, em recente artigo no jornal The Washington Post, advertiu para o perigo que Trump hoje representa para a alternância pacífica de poder nos Estados Unidos. Zakaria tem razão em se preocupar: se o resultado for apertado, é provável que o presidente americano de tudo faça para “melar o jogo”. Felizmente, no Brasil existe segundo turno, inexiste o colégio eleitoral e não há contagem manual de votos.
Talvez mais preocupante seja o fato de que, mesmo com o eventual despejo de seu líder da Casa Branca, o trumpismo siga vivo ou mesmo se torne mais virulento. Não deve passar despercebida a desenvoltura crescente de grupos paramilitares imbuídos da missão de proteger a “verdadeira América”, onde os brancos mandam, os pretos obedecem e os imigrantes não entram. Mutatis mutandis, o mesmo “patriotismo” sectário, excludente e truculento se encontra nos bolsões mais radicais do bolsonarismo.
Estimulada pela retórica anti-imigrante de Trump, cresce a atuação de grupos de vigilantes que assumem funções de polícia de fronteira na divisa com o México. Atiçados pelo presidente, outros grupos de cidadãos armados se somam à intimidação e repressão contra os protestos antirracistas. Em nível local, não são raras as alianças implícitas entre esses grupos e forças policiais.
Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, é claro, mas também semelhanças inquietantes.
*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Adriana Fernandes: É o dinheiro das eleições!
O comando do Ministério da Economia não ofereceu resistências à MP e não viu problemas no uso de créditos extras
É a pressa do calendário político que move o acordo do presidente Jair Bolsonaro com lideranças partidárias do bloco do Centrão para enviar ao Congresso uma Medida Provisória (MP) que abre um crédito extraordinário de cerca de R$ 5 bilhões para custear investimentos em infraestrutura e ações indicadas por parlamentares.
Esse tipo de crédito é uma das poucas exceções possíveis para que despesas fiquem livres de qualquer limitação imposta pelo teto de gastos e pode ser feito por meio de MP. É com esses créditos que o governo tem liberado recursos para o enfrentamento da covid-19 no chamado orçamento de guerra.
Em ano eleitoral, os parlamentares querem mesmo é ver recursos na mão e bem rápido. Simples assim. A pandemia do coronavírus é só o pano de fundo. Não há uma política coordenada, bem desenhada e planejada de investimentos públicos para estimular a retomada econômica, como defendem muito economistas de dentro e fora do governo.
Como o Palácio do Planalto argumenta que a quantia de R$ 5 bilhões não é tanto dinheiro assim e que há espaço fiscal, Bolsonaro bem que podia tentar um remanejamento de recursos do Orçamento via crédito suplementar.
O problema técnico e político do crédito suplementar é que ele tem que ficar dentro do teto e só pode ser aberto se cancelar outra dotação orçamentária. Pelo valor proposto, o mais provável é que a liberação dos recursos exigisse, ao final, projeto de lei e não a edição de um decreto. Levaria, portanto, mais tempo, o que os políticos não têm.
Bolsonaro teria que mandar o projeto pelo Congresso e, dessa forma, enfrentar mais negociações por causa do controle da pauta de votação. Mas há urgência para gastar tudo até dezembro, e não deixar restos a pagar para 2021, que são aquelas despesas transferidas de um ano para o outro.
O comando do Ministério da Economia não ofereceu resistências à MP e não viu problemas jurídicos no uso de créditos extraordinários embasado nas regras do orçamento de guerra. Pelo contrário, divulgou nota apontando sua posição de que a medida está em consonância com a legislação.
Segundo o ministério, o orçamento de guerra permite a ampliação de gasto sem 2020 desde que respeitado o “princípio exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências econômicas e sociais”. Técnicos especialistas em Orçamento questionam, no entanto, o fato de a Constituição restringir o uso a “despesas imprevisíveis e urgentes”.
Aliás, é bom lembrar que o acordo da MP foi acertado no encontro “histórico” desta semana entre Bolsonaro, ministros, lideranças políticas e os presidentes do Senado e da Câmara. Na reunião, o ministro Paulo Guedes conseguiu o apoio que queria depois da “debandada” da equipe que fragilizou a sua agenda liberal. No encontro, todos reafirmaram o compromisso com o teto e a tal responsabilidade fiscal.
Mas só que não.
O que está em curso é uma negociação para gastar mais em 2021. Os lados estão fazendo os seus acertos e a forma de fazê-lo. Para muitos observadores da cena política em Brasília, está cada vez mais claro que essa mudança acontecerá mais cedo (2020) ou mais tarde (2021), com ou sem Paulo Guedes.
Será com ou sem dor. Sem dor: mudando o teto logo por meio de tampão. Com dor: como tenta o ministro da Economia, acionando gatilhos de medidas automáticas de corte de despesas, como proibição de criação de despesas obrigatórias, eliminação de renúncias e gastos com pessoal e programas com o abono salarial.
Os gatilhos são tão duros e demandará muita articulação política para aprová-los. Os líderes vão querer enfrentar esse desgaste ou farão corpo mole? Nada mais urgente do que construir essa saída e com planejamento até para não faltar dinheiro para saúde e programas sociais em 2021 – esse, sim, os problemas mais urgentes.
O tamanho do ajuste de rota veremos mais à frente. Vai depender da empolgação do presidente com o aumento da popularidade e dos compromissos que estão acertados com os parlamentares do Centrão.
Bolsonaro quer chegar vivo em 2022 e com gás para sair vencedor nas eleições. Depois é que são elas.
Eliane Cantanhêde: Mais Brasília, menos Brasil
Bolsonaro entre Guedes e gastança, liberalismo e grotões, ‘zona de impeachment’ e risco à reeleição
É falso o dilema sobre Jair Bolsonaro ser ou não ser liberal. Ele nunca foi, não é e nunca será liberal, aliás, em nenhum sentido. Ao contrário, é um típico populista, além de corporativista e estatizante como os filhos, a grande maioria dos ministros e os militares do governo. Quanto mais 2022 vai chegando, mais essa essência vai se evidenciando e menos o governo se preocupa em dissimular.
Na atribulada travessia entre 2018 e 2022, Bolsonaro joga ao mar Sérgio Moro e o combate à corrupção; o PSL, os aliados neófitos e o discurso contra a “velha política”; as manifestações golpistas contra Supremo e Congresso; as funções maçantes de presidente da República. Por que não jogar ao mar também Paulo Guedes, o teto de gastos e a promessa de enxugamento do Estado?
O candidato de 2018 foi um, o de 2022 é outro e vai saindo do armário em 2019, 2020, 2021, mas, às vezes, é preciso disfarçar. Foi o que ocorreu na quarta-feira, quando, reencarnando temporariamente a persona presidente, Bolsonaro reuniu presidentes da Câmara e do Senado, ministros, líderes e, tal qual Dom Pedro I, avisou: “Digam ao povo que fico, fico liberal”. Faltou acrescentar: “Por enquanto”.
Bolsonaro e Guedes são como água e azeite. Um nacionalista às antigas, outro globalista. Um pró-Estado gastador e empregador, outro desestatizante, pró-iniciativa privada azeitada; um na linha de frente de salários, vantagens e privilégios de militares, policiais e funcionários, outro guerreando por uma administração que gaste menos e produza mais. O casamento foi por interesse. Para Bolsonaro, o objetivo era vencer as eleições. Guedes tinha o sonho genuíno de mudar o País, à sua maneira. A massificação de que era preciso erradicar o PT da face da Terra selou o contrato.
Já no primeiro ano, Bolsonaro falhou com Moro ao atacar Coaf, Receita e Polícia Federal, lavar as mãos para o pacote anticrime e defender armas para todos, excludente de ilicitude, juiz de garantias. Mas o presidente se manteve firme com Guedes até… passar a priorizar a reeleição. O alerta piscou na segunda fase das reformas. Se não ajudou, Bolsonaro se esforçou para atrapalhar o mínimo possível a da Previdência. Mas, na hora da tributária, balançou. E, na administrativa, empacou. Ficou claro, para Guedes e equipe, que o liberalismo de Bolsonaro tinha limite: as próximas urnas. Mexeu nos votos dos servidores, mexeu comigo.
O momento crítico da “debandada” da Economia foi justamente com a saída dos secretários de Privatização e de Desburocratização e Gestão, duas áreas emblemáticas, mas freadas no Planalto. O grito de guerra de Guedes foi ouvido longe: se Bolsonaro optar pelo populismo barato, implodir o teto de gastos e sair comprando votos à custa da estabilidade fiscal, vai entrar numa “zona sombria, numa zona do impeachment”.
Bolsonaro não entende que implodir as contas públicas atinge ainda mais a economia e ameaça a própria reeleição. Ele tem seu exército (com minúscula e com maiúscula) contra a política liberal, mas Guedes também tem o seu: o setor privado e a cúpula do Congresso. Pelo menos até fevereiro, quando mudam os presidentes.
A situação está no seguinte pé: Bolsonaro reafirmou seus votos liberais e a crença no Posto Ipiranga, mas o passado condena e seu senso de sobrevivência vai na direção oposta. O presidente se soma ao candidato para fazer os cálculos entre a “zona do impeachment” e os riscos à reeleição, entre manter o grande capital com Guedes ou atrair os grotões com o Centrão. É questão de tempo ele optar ao tudo pela reeleição. O que significa jogar Guedes ao mar, em companhia de Sérgio Moro. Será o fim do Jair Bolsonaro de 2018 e a consolidação do Jair Bolsonaro de 2022.
William Waack: Bolsonaro é o Brasil de sempre
A debandada da equipe econômica sinaliza a perda de ênfase em reformas
A derrota do projeto eleitoral de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para a economia brasileira é um fato que se pode aplaudir ou lamentar, mas é incontestável. Definido em linhas gerais como uma ampla e profunda transformação do Estado brasileiro, e a consequente “libertação” da economia para gerar aumento de produtividade e crescimento, era um conjunto de intenções aplaudidas por boa parte da sociedade, antes de ser um plano.
Ficou até aqui muito aquém do pretendido (de novo, pode-se saudar ou lamentar essa constatação) e agora não há mais condições políticas, tempo e, ao que parece, intenção de realizá-lo. Grosso modo, a derrota deve ser atribuída a dois grandes fatores. O primeiro é o fato de que não havia uma estratégia, entendida como adequação dos meios (sobretudo políticos) aos fins (reforma do Estado) dentro de um período de tempo. Perdeu-se tempo precioso elaborando o que seria “nova” política, além da dedicação de Bolsonaro ao que se chama na linguagem militar de “teatros secundários”.
Como consequência, para o “projeto” acabou sendo ainda mais violenta a devastação trazida pelo segundo grande fator: o imponderável da pandemia da covid-19, que destruiu qualquer outro cálculo que não fosse o da sobrevivência política. A brutal crise de saúde pública agravou os males que já existiam: escancarou a incompetência do governo central, aprofundou a miséria, a crise fiscal e abalou uma economia que ensaiava uma recuperação apenas tímida, presa aos limites estruturais de sempre.
Para todos os efeitos o presidente é hoje um personagem político diminuído em seus poderes e com escassa capacidade de liderança, obcecado com a situação pessoal, gradativamente abandonado pelas elites econômicas que apostaram nele e agora fascinado pelas recompensas político-eleitoreiras trazidas pelo assistencialismo emergencial. Como se antecipava, a economia definiria os rumos de Bolsonaro, que agora precisa gastar o que não tem.
Surge com razoável nitidez o caminho após a derrota do “projeto”, e é bem a cara do Brasil “velho” (aquele que nunca deixou de ser). A premente ampla reforma tributária esbarra na incapacidade política de se proceder à eliminação de distorções tais como renúncias fiscais que atendem a vários interesses setoriais antagônicos, além da dificuldade política de coordenar os vários entes da Federação. O Brasilzão de sempre, esse que continua aí, indica que o caminho do menor esforço político nos levará a mais e não menos impostos.
A pretendida reforma do Estado dependia de uma reforma administrativa que atacasse gastos públicos – aumentá-los muito além da capacidade de financiá-los foi um claro consenso da nossa sociedade, como assinalou o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Reforma que sumiu no horizonte. Há um compromisso verbal com a manutenção da âncora fiscal além do período de emergência, mas as nuvens da política sugerem que esse período será estendido para o ano que vem.
Furar o teto de gastos é uma contingência política criada no plano imediato pela convergência entre os “desenvolvimentistas” no Planalto, entre eles os saudosistas do período militar (que convenientemente se esquecem de como aquilo acabou), e a massa do Centrão que enxerga uma oportunidade nos cofres públicos sem fundos. Juros baixos e inflação bem comportada permitirão que essa “estratégia” se mantenha por um tempo razoável, que é o tempo para se programar para uma reeleição. As ambiciosas privatizações e a propalada diminuição do Estado ficam para depois.
Bolsonaro deve ser ajudado por um conjunto de concessões e obras de infraestrutura que movimentarão setores como construção e atrairão investidores, ainda que preocupados com a eterna insegurança jurídica que paira como sempre sobre os negócios. Vai ser indiretamente ajudado também pelos setores modernos do agro negócio que desprezam como o governo fala sobre questões ambientais, mas acham que bem ou mal sobreviverão às pressões internacionais, e seguirão crescendo.
Com a perspectiva real de vacinas que ajudem a controlar o vírus, a tragédia dos milhares e milhares de mortos vagarosamente se acomoda na psicologia coletiva. No jeitão do Brasil de sempre, aquele que Bolsonaro prometeu mudar, sonhando com o que poderia vir a ser, sem conseguir deixar de ser o que é.
Eugênio Bucci: Cinco trilhões de dólares
O que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?
Em janeiro foi noticiado que as empresas Apple, Amazon, Alphabet (dona do Google), Microsoft e Facebook valiam, juntas, cinco trilhões de dólares. Em junho, quando a Apple sozinha atingiu o valor de US$ 1,5 trilhão, apenas quatro delas dariam conta de bater a marca dos US$ 5 trilhões (o Facebook ficava um pouquinho para trás).
Cinco trilhões de dólares!
Essa cifra é três vezes maior que o PIB brasileiro. Três vezes. Quer dizer: se nós, os 210 milhões de habitantes destas terras convertidas em jazigos, quiséssemos comprar a Apple, a Amazon, a Alphabet e a Microsoft, pelos preços de junho, teríamos de trabalhar por três anos sem descanso e não nos sobraria troco para o pão, para o aluguel e para os impostos. E mesmo assim poderíamos chegar no fim da jornada sem caixa para saldar a fatura, pois, enquanto as ações dessas companhias sobem sem parar, o PIB brasileiro afunda, junto com o PIB mundial. Lá de cima, incólumes e luminescentes, as big techs contemplam a peste, a fome, a violência, a miséria e a ruína.
Só o PIB da China e dos Estados Unidos superam a casa dos US$ 5 trilhões. Pense bem: o que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?
Se formos contentar-nos com as respostas oficiais, acreditaremos que o segredo de tamanha fortuna está na inovação tecnológica dessas marcas, na genialidade dos seus criadores e na pertinácia de seus CEOs. Acreditaremos que, graças a chips, bits e bytes, as big techs dominaram o e-mail, o e-commerce, o e-government e o e-scambau, deixando seus donos biliardários. Acreditaremos, enfim, que dinheiro não nasce em árvore, mas bem que brota em máquina.
Agora, se quisermos ir além das quimeras da carochinha, buscaremos explicações em teorias menos rasas, como aquela da “economia da atenção”. A tal “economia da atenção” consiste em mercadejar com os olhos dos consumidores. Primeiro, o negociante atrai a “atenção” alheia e, ato contínuo, vai vendê-la por aí – mas vai vendê-la (detalhe crucial) com zilhões de dados individualizados sobre cada um e cada uma que, no meio da massa, deposita seu olhar ansioso sobre as telas eletrônicas. Em resumo, os conglomerados da era digital elevaram o velho negócio do database marketing à enésima potência, com informações ultraprecisas sobre as pessoas, e desenvolveram técnicas neuronais que magnetizam os sentidos da plateia. O negócio deles é o extrativismo dos dados pessoais.
Isso aí: extrativismo virtual.
Na primeira semana de maio de 2017, a capa da revista The Economist anunciou que os dados pessoais eram o novo petróleo. Em plena era do Big Data, algoritmos e fórmulas insondáveis cruzam os dados e antecipam as partículas infinitesimais do humor e do destino dos bilhões de fregueses. Os dados não mentem jamais. Sabem se o cidadão vai desenvolver Alzheimer, e quando, sabem que ele relaxa com a voz de Morgan Freeman, sabem que massageia o lóbulo da orelha direita quando pensa em queijo do tipo Pont l’Évêque.
O “novo petróleo” teria sido o responsável pelos cinco trilhões e pela enorme reviravolta do mercado global, que fez o dinheiro mudar de mãos em duas décadas. Em 1998 as cinco empresas mais caras do mundo eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola. No grupo, quatro companhias eram fabricantes de coisas palpáveis (motores, eletrodomésticos, gasolina, fármacos, bebidas gasosas); só uma era uma empresa “de tecnologia”. Hoje, no pelotão dos conglomerados mais caros do mundo, todos se valem da tecnologia (um notebook ou um site de busca) para extrair e comercializar nossos dados pessoais.
Isto posto, e com todo o respeito à Economist, é preciso dizer que também essa explicação é insuficiente. Para entender de fato por que o valor de mercado das big techs subiu tanto é preciso levar em conta algo que as teorias correntes não costumam registrar. De meados do século 20 para cá, o capitalismo passa por uma estonteante mutação: as mercadorias corpóreas (coisas úteis) ficaram em segundo plano, enquanto a fabricação industrial de signos assumiu o centro da geração de valor. O capital virou um narrador, um contador de histórias, tanto que uma famosa marca de produtos esportivos pode muito bem terceirizar a fabricação de tênis de maratona, mas não pode abrir mão de controlar obsessivamente a gestão da marca e a publicidade.
Em sua mutação, o capitalismo aprendeu a confeccionar e a entregar, com imagens e palavras sintetizadas industrialmente, os dispositivos imaginários de que o sujeito precisa para aplacar o desejo. Isso é uma novidade. Por trás do negócio da extração dos dados existe outro negócio, mais determinante, que é a industrialização da linguagem. Hoje o capital trabalha para o desejo, não mais para a necessidade. Os conglomerados digitais dominaram a industrialização da linguagem (voltada para o desejo), monopolizaram o olhar do planeta e puseram o olhar do planeta para trabalhar a seu favor.
Nesse meio tempo, o mundo distanciou-se da razão e do espírito. Mas essa é outra conversa.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Vera Magalhães: Só faltam as penas
Guinada do governo afeta projeto liberal do ministro Paulo Guedes
Minha mãe era a rainha dos adágios. Um dos que ela achava mais divertidos (e politicamente incorretíssimo) era, se referindo a qualquer pessoa de que não gostasse: “Fulano para idiota só faltam as penas”. Ao incauto que objetasse que idiota não tem penas, ela completava, triunfante: “Então não falta nada”. Para o governo Jair Bolsonaro descambar para o nacional-desenvolvimentismo, só faltam as penas.
Neste caso, as penas são a saída de Paulo Guedes. O ministro da Economia vem resistindo. Haja Karl Popper para justificar, talvez para si próprio, como continuar acreditando que um governo que colocou as reformas em banho-maria para comprar um plano do governo Médici recauchutado, ainda pode ser chamado de liberal.
Na verdade, há algum tempo já, os bolsonaristas raiz passaram a incluir os liberais no mesmo saco de pancadas em que colocam comunistas, isentões e outros inimigos imaginários. Os próprios filhos do presidente entoam a cantilena de que os liberais querem destruir Bolsonaro.
O pai, revigorado depois de dar umas trotadas no lombo de uma égua com chapéu de vaqueiro e tomar cloroquina, só quer saber de Rogério Marinho. O mais político dos ministros chegou a Guedes embalado em presente e como passaporte para as reformas. E assim foi: como já tinha entregado a trabalhista para Temer, Marinho trabalhou à exaustão para aprovar a Previdência.
A partir daí, no entanto, chefe e chefiado passaram a se estranhar, e o ex-deputado, agora ex-tucano, passou a pavimentar um caminho próprio dentro do governo, de olho nas eleições de 2022. Uma aliança com os militares e o “rei do asfalto” Tarcísio Gomes de Freitas surpreendeu Guedes com um PAC redivivo.
Qualquer um que olhe para as contas públicas brasileiras, ainda mais agora que tiveram de ser justificadamente acessadas para conter os efeitos nefastos da pandemia na vida dos mais desassistidos, de Estados e municípios, sabe que não aguentam uma reedição do slogan “Ninguém segura este país”.
A não ser no sentido literal: investir na gastança, com a tentação de pedaladas variadas que estão em gestação, é ir para o buraco sem que ninguém segure.
Guedes não acha que Bolsonaro represente perigo autoritário. Ou, talvez, sua noção de democracia, em que costuma conjugar a ordem dos militares e o progresso dos liberais, tenha sido moldada para tentar validar o ingresso nessa canoa furada.
Mas ele sabe que uma guinada na agenda econômica deixará pouco ou nada a que ele se agarrar. Agora, o ministro perde mais duas peças importantes em seu projeto, Salim Mattar (privatizações) e Paulo Uebel (reforma administrativa). Antes já haviam saído o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, e o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes. O “PG” não escondeu a frustração.
Seu mantra “mais Brasil e menos Brasília”, passaporte para reduzir o tamanho do Estado, privatizar o que fosse possível e fazer as reformas liberais, algumas das quais nem saíram ainda do papel, foi subvertido, e Brasília voltou a sonhar com um tempo de bonança que não existe mais.
Até o chamado Orçamento de Guerra, um engenho construído para permitir gastos urgentes, está sendo olhado com avidez pelos neodesenvolvimentistas como fonte futura de verba para obras eleitoreiras. O teto de gastos virou teto solar.
Bolsonaro perdeu as classes média e alta com seus desvarios negacionistas e seus arreganhos golpistas. Mas está ganhando força entre os pobres com auxílio emergencial na veia.
É essa mutação que Marinho e o Centrão enxergaram ainda no início e querem alimentar, sem pensar no amanhã. A receita é velha. Foi seguida pelos militares, de quem o capitão é fã, e por Dilma, a quem ele critica, mas com quem está cada dia mais parecido.
Rubens Barbosa: As eleições presidenciais nos EUA e o Brasil
Bom senso recomenda menos ideologia e geopolítica e mais interesse nacional
Em 90 dias o mundo conhecerá o futuro presidente dos EUA. As pesquisas de opinião pública indicam hoje uma vitória de Joe Biden sobre Donald Trump, com margem de cerca de 10 pontos porcentuais. Esse número daria a vitória a Biden caso a eleição fosse majoritária. Cabe, porém, um elemento de cautela, visto que nos EUA a eleição para presidente é decidida em colégio eleitoral, composto por delegados de todos os Estados, eleitos a partir dos resultados nas votações locais. Refletindo a profunda divisão da sociedade americana, a eleição deverá ser decidida nos Estados que oscilam entre conservadores e democratas, (Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Flórida, Idaho) e Trump ameaça contestá-la.
A mudança do cenário eleitoral nos últimos três meses deveu-se à percepção negativa sobre a forma como Donald Trump vem conduzindo as medidas contra a pandemia, a queda no crescimento econômico, o aumento do desemprego e sua reação aos movimentos raciais que se espalharam por todo o país. Passou a haver, assim, uma chance de Joe Biden vencer as eleições de novembro, com mudanças significativas nas políticas econômica, ambiental e externa.
O Partido Democrata, no governo, tentará uma política econômica que recupere o dinamismo da economia e reduza o desemprego. Deverá prevalecer viés nacionalista, que incluirá forte componente ambiental (Green New Deal), modificações no sistema de saúde e busca de liderança no combate à pandemia. Os EUA voltarão a dar prioridade aos organismos multilaterais, com o retorno à Organização Mundial de Saúde, o fortalecimento da OMC e a adesão ao Acordo de Paris. As crescentes tensões geopolíticas entre EUA e China, no governo democrata, deverão continuar e mesmo ampliar-se. Nesse contexto, deverão aumentar a pressão sobre governos autoritários e a defesa da democracia, agravando as tensões nas áreas comercial, tecnológica e militar, pois Beijing é tratada hoje como adversário pelo establishment norte-americano.
Como ficariam as relações Brasil-EUA com um presidente democrata?
Numa de suas lives semanais, o presidente Jair Bolsonaro, ao comentar o cenário da eleição presidencial americana, confirmou que torce por Trump, mas vai tentar aproximação caso Biden seja o vencedor. “Se não quiserem, paciência”, simplificou. Bolsonaro ouviu e está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, de buscar fazer pontes com o candidato democrata.
Costumo fazer distinção entre a relação pessoal Bolsonaro-Trump e a relação institucional entre as burocracias brasileira e norte-americana.
Caso Biden seja eleito, vai terminar a relação pessoal estabelecida com Trump por influência ideológica. Manifestação de Eduardo Bolsonaro a favor de Trump recebeu imediata resposta de deputado democrata, presidente da Comissão de Relações Exteriores: “A família Bolsonaro precisa ficar fora da eleição dos EUA”.
Em termos institucionais, o relacionamento bilateral continuará a ter baixa prioridade e o novo presidente poderá até fazer alguns gestos para afastar o Brasil da China. As críticas continuarão, como vimos recentemente, quando, por conta da política ambiental e de direitos humanos em relação aos índios, Comitê de Orçamento da Câmara, relatório do Departamento de Estado e carta de deputada democrata criticaram o governo brasileiro e pediram que não seja negociado nenhum acordo comercial com o Brasil, haja sanções contra Brasília e seja vetada ajuda na área de defesa ao Brasil como aliado da Otan. O alinhamento com os EUA, nem sempre concretizado nas relações bilaterais, tornou-se automático nas votações de resoluções sobre costumes, mulheres, direitos humanos, saúde e sobre o Oriente Médio nos organismos multilaterais (ONU, OMS, OMC). Em muitos casos o Brasil fica isolado com EUA e Israel e nas questões de costumes fica acompanhado de países conservadores, como Arábia Saudita, Líbia, Congo e Egito. Com a mudança na política de Biden nos organismos multilaterais, o Brasil tenderá a ficar ainda mais isolado, sem a companhia dos EUA.
A geopolítica será o dilema mais sério para o governo brasileiro caso Biden vença a eleição. A crescente presença da China na América do Sul está na raiz da decisão de Washington de apresentar candidato a presidência do BID contra um representante brasileiro, e pode ser indício de um renovado interesse político dos EUA para conter Beijing com pressão financeira sobre os países da região. Seria a volta da Doutrina Monroe. O apoio brasileiro à proposta dos EUA para discutir se países que não são economia de mercado podem ser membros da OMC – o que, na prática, excluiria a China – e uma eventual decisão contra a empresa chinesa na licitação do 5G indicariam que o Brasil teria escolhido seu lado no confronto. Será que os EUA levarão o governo brasileiro a se chocar com a China? Não convém ao Brasil ajudar a trazer a disputa geopolítica para a região, nem tomar partido por um dos lados numa longa disputa que está apenas começando. Permanecer equidistante é o que defende o vice-presidente Hamilton Mourão.
Menos ideologia e geopolítica e mais interesse nacional é o que o bom senso recomenda nesse momento de incerteza nos rumos da relação Brasil-EUA.
*Presidente do IRICE
Eliane Cantanhêde: Cavalo de pau
O presidente é um, o candidato é outro, mas Bolsonaro será sempre Bolsonaro
Se dá de ombros para 100 mil mortos pelo coronavírus, passou décadas defendendo torturadores como Pinochet, Stroessner e Brilhante Ustra, criou atritos em série com parceiros tradicionais do Brasil e nunca deu bola para inclusão social e combate ao racismo, à homofobia e ao machismo, o agora nova e prematuramente candidato Jair Bolsonaro deu um cavalo de pau e mudou tudo em favor da reeleição em 2022.
Os dois novos exemplos são a surpreendente manifestação do presidente em defesa do entregador de aplicativo ofendido por um grandalhão racista e, também, sua decisão de enviar uma missão humanitária em grande estilo para o Líbano. Decisão tão acertada, principalmente do ponto de vista do marketing, que ele vai a São Paulo amanhã para o embarque da missão – ao vivo, em cores e pronto para fotos.
Em 2017, Bolsonaro prometeu que, se eleito, “não teria um centímetro demarcado para reserva indígena e quilombola”. E explicou: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais (…) Se eu chegar lá (à Presidência), não vai ter dinheiro pra ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar”.
Com Bolsonaro de volta ao palanque, o papo é outro. Foi por isso, e porque seus assessores lhe deram o texto mastigadinho, que ele saiu em defesa do motoboy Matheus Pires, negro, 19 anos, alvo de Mateus Prado Couto, que, mostrando a própria pele, muito branca, atacou: “Você tem inveja disso aqui”.
Se Bolsonaro fosse falar de improviso, não ia dar certo. Então, ele assumiu o texto do Planalto: “Atitudes como esta devem ser totalmente repudiadas. A miscigenação é uma marca no Brasil. Ninguém é melhor do que ninguém por conta de sua cor, crença, classe social ou opção sexual”. Nem parecia Bolsonaro. E não era mesmo. Era o assessor.
Na campanha de 2018, Bolsonaro também criou dificuldades diplomáticas para o então presidente Michel Temer e uma confusão dos diabos com o mundo árabe ao anunciar que acompanharia Donald Trump e trocaria a embaixada brasileira em Israel, de Tel-Aviv para Jerusalém – o centro da disputa entre judeus e palestinos.
O Egito cancelou uma visita do chanceler de Temer, a Liga Árabe se rebelou, mas, apesar disso, e da ameaça às exportações de U$ 5 bilhões em carnes para os países árabes por ano, Bolsonaro manteve a ameaça após a posse. Até os generais brasileiros entraram em ação para explicar ao presidente algo de geopolítica, diplomacia, interesse nacional, questões de Estado e importância das exportações. A ideia foi adiada.
Hoje, com a embaixada mantida em Tel-Aviv e após viagens e salamaleques para os árabes, Bolsonaro tem um gesto de grandeza – ou de oportunismo – e envia uma missão humanitária para Beirute. Um avião da FAB levará medicamentos e equipamentos médicos, sob comando do próprio Temer, filho de libaneses. Só para lembrar, há mais libaneses no Brasil do que no próprio país. Um oceano de votos.
Bolsonaro vai trocando a indumentária incômoda de presidente pela fantasia agradável de candidato. Em vez de tortura e crises diplomáticas, missão humanitária; em vez de arroubos racistas, machistas e homofóbicos, discurso inclusivo; em vez de tudo para ricos e grileiros, ajuda emergencial e um novo Bolsa Família para chamar de seu. E, em vez de bater na “velha política”, um abraço no Centrão.
Só não peçam para Bolsonaro voltar atrás na negação da pandemia. Aí, já seria demais. No sábado, dia em que o Brasil chorava mais de 100 mil mortos e de 3 milhões de contaminados, Bolsonaro estava em outra galáxia, comemorando na redes: “Parabéns Palmeiras, campeão paulista 2020!” O presidente é um, o candidato é outro, mas Bolsonaro será sempre Bolsonaro.
Carlos Alberto Di Franco: Jornalismo, iluminar a história
Isolamento de algumas redações pode explicar em boa parte a crise que castiga a mídia
A história do jornalismo registra momentos fascinantes. Destaco aqui um deles. Um exemplo de profissionalismo, independência e consciência da essência do nosso papel na sociedade.
O veterano jornalista Carl Bernstein – famoso no mundo inteiro depois da série de reportagens, escrita com Bob Woodward, que revelou o famoso escândalo Watergate e derrubou o presidente Richard Nixon – não forma com o time dos corporativistas de carteirinha. Sua crítica, aberta, sincera e direta, aos eventuais desvios das reportagens representa excelente contribuição ao jornalismo. Suas palavras parecem ter sido escritas para os dias de hoje.
“O importante”, diz Bernstein, “é saber escutar. As respostas são sempre mais importantes que as perguntas que você faz. A grande surpresa no jornalismo é descobrir que quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos.” O comentário é uma estocada nas atitudes de engajamento, arrogância e prejulgamento que corroem e desfiguram a reportagem e minam a credibilidade das marcas.
“Os jornalistas, hoje”, sublinha, “trabalham com um monte de preconceitos. Fazem quatro ou cinco perguntas para provocar alguma polemicazinha de nada, mas evitam iluminar a cena, fazer compreender.” Com a autoridade de quem sabe das coisas, Bernstein dá uma aula de maturidade profissional.
O bom repórter ilumina a cena, o jornalista manipulador constrói a história. A distorção, no entanto, nem sempre é clara. Escapa frequentemente à perspicácia do leitor médio. Tem aparência de informação, mas não é. Daí a gravidade do dolo. Na verdade, a batalha da isenção, forte demanda da sociedade atual, enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência atrevida. Todos os manuais de redação consagram a necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimentos próprios de certa delinquência editorial transformam um princípio ético irretocável numa grande farsa.
A apuração de faz de conta representa uma das maiores agressões à imprensa de qualidade. Matérias previamente decididas em guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade. É um artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparcialidade. O assalto à verdade factual culmina com uma estratégia exemplar: a repercussão seletiva. O pluralismo de fachada convoca pretensos especialistas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a reportagem. Cria-se a versão.
A imprensa tem caído nessa armadilha antijornalística. Trata-se de uma prática que, certamente, acaba arranhando sua credibilidade. Ainda não conseguimos superar a síndrome dos rótulos. Alguns colegas não perceberam que o mundo mudou. Insistem, teimosamente, em reduzir a vida à pobreza de quatro qualificativos: direita, esquerda, conservador, progressista. Tais epítetos, estrategicamente pendurados, têm dupla finalidade: exaltar ou afundar, criar simpatias exemplares ou antipatias gratuitas. A reportagem é, ou deveria ser, sempre substantiva. O adjetivo é o enfeite da desinformação, o farrapo que tenta cobrir a nudez da falta de apuração. É, frequentemente, uma mentira.
É importante que os repórteres e responsáveis pelas redações tomem consciência desta verdade redonda: a isenção (que não é neutralidade) é o melhor investimento. O leitor quer informação clara, corajosa, bem apurada. E hoje em dia pode buscá-la em muitos espaços do imenso mundo digital. Ficará conosco se soubermos apresentar um produto de qualidade.
Outro problema: o negativismo e a falta de um jornalismo propositivo. Alguns setores da mídia, em nome da independência, castigam diariamente o fígado dos consumidores. Dominados pelo vírus do negativismo, perdem conexão com a vida real. O jornalismo não existe para elogiar, argumentam os defensores de uma imprensa que se transforma em exercício permanente de contrapoder. Tem uma missão de denúncia, de contraponto. Até aí, estou de acordo. A impunidade, embora resistente, está se enfrentando com o aparecimento de uma profunda mudança cultural: o ocaso do conformismo e o despertar da cidadania. Por isso a imprensa investigativa, apoiada em denúncias bem apuradas, produz o autêntico jornalismo da boa notícia. Denunciar o mal é um dever ético.
A deformação, portanto, não está apenas no noticiário negativo, mas na miopia, na obsessão pelo underground da vida. O que critico não é o jornalismo de denúncia, mas o culto ao denuncismo e a ausência de um jornalismo propositivo. Estou convencido de que boa parte da crise que castiga a mídia pode ser explicada pelo isolamento de algumas redações, por sua orgulhosa incapacidade de ouvir suas audiências.
O jornalista de talento sabe descobrir a grande matéria que se esconde no aparente lusco-fusco do dia a dia. No fundo, a normalidade é um grande desafio e, sem dúvida, o melhor termômetro da qualidade.
Tem razão Carl Bernstein: não devemos sucumbir à tentação do protagonismo. Nosso ofício, humilde e grandioso, é o de iluminar a história.
*JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR
Carlos Pereira: Quem está falhando? Governo ou instituições?
Com um governo melhor, o Brasil enfrentaria também melhor o desastre sanitário
Nesse final de semana o noticiário dá conta de que o Brasil ultrapassou a trágica marca de cem mil mortes pelo novo coronavírus. O maior impacto dessa tragédia humanitária tem sido os mais vulneráveis, tanto do ponto de vista das condições de saúde, como socioeconômicas. São pessoas idosas, de classes sociais mais baixas, negros e pardos e portadoras de doenças pré-existentes. A covid-19 expôs de forma cristalina e seletiva a enorme desigualdade social e de renda do país.
Para muitos essa hecatombe sanitária seria evidência de que as instituições brasileiras não apenas não estariam funcionando, mas também de que estariam completamente falidas. Esse diagnóstico, entretanto, peca por atribuir às instituições o que seria consequência das políticas governamentais escolhidas.
Daren Acemoglu e James Robinson argumentam em seu último livro Narrow Corridor: State, Societies, and the Fate of Liberty que desenvolvimento com preservação de liberdades requer equilíbrio entre Estado e a sociedade. O Estado precisa ser forte e poderoso para proteger as pessoas, garantir direitos e proporcionar serviços para seus cidadãos. Mas a sociedade também precisa ser forte, vigilante e atuante, para impedir que o Estado faça mal uso de seus poderes. Para os autores, o “corredor estreito”, gerado pelo equilíbrio dinâmico entre sociedade e Estado, proporcionaria as condições para a emergência virtuosa de uma espécie de “Leviatã algemado”.
O desenho institucional brasileiro que emergiu na Constituição de 1988 criou um Estado forte, dotado de um executivo poderoso, com uma burocracia profissionalizada e meritocrática e organizações de controle (i.e., judiciário, ministério público etc.) independentes. Ao mesmo tempo, preservou um sistema político inclusivo e representativo, capaz de acomodar praticamente todos os interesses da sociedade. Ninguém fica de fora do jogo político no Brasil. Ainda por cima, estimulou o desenvolvimento de uma sociedade livre, complexa e, acima de tudo, vigilante para conter potenciais desvios ou arroubos iliberais de governos de plantão.
O resultante dessa combinação tem sido o desenvolvimento de instituições nitidamente inclusivas, mas não necessariamente eficientes. No livro Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change eu e meus coautores argumentamos que o perfil de inclusão, na realidade, tem sido dissipativo, em que a estabilidade democrática seguida de redistribuição e inclusão social são efetivamente alcançadas, mas também esse processo é acompanhado por distorções e ineficiências. É importante lembrar que esse perfil é o comum em países em desenvolvimento, e não apenas no Brasil.
Mas a existência de dissipação não cancela a natureza transformadora das mudanças que o Brasil tem vivido com o desenho institucional atual. Ou seja, dissipação não significa necessariamente ausência de funcionalidade institucional. Como esse processo ainda está em curso, é muito difícil identificar a parcela que é inclusão efetiva daquela que é dissipação. Depende, essencialmente, do viés da lente do observador. Se favorável ao governo de plantão, enfatizará aspectos que confirmem a inclusão. Já observadores de oposição tenderão a encontrar mais dissipação.
O arcabouço institucional não é uma “camisa de força” que aprisiona os atores políticos. Mas dá os limites. Existe espaço para escolhas de como governar e das políticas que serão implementadas. As dissipações podem ser minoradas ou maximizadas a partir dessas escolhas.
Dizer que as instituições não funcionam é tão ingênuo quanto o seu oposto, ou seja, que as instituições funcionam perfeitamente. As mazelas que o Brasil tem vivido são decorrências de falhas de governo, mas não necessariamente evidenciam uma falha institucional.