o estado de s paulo

Eliane Cantanhêde: 115 mil ‘bundões’?

Bolsonaro: ‘tem de enfrentar o vírus como homem’ e ‘bundão’ tem mais chance de morrer

Tardou, mas não falhou. O Jairzinho Paz e Amor jogou a toalha e, no domingo, emblematicamente à entrada da Catedral de Brasília, foi o que ele nunca deixou e nunca deixará de ser: Jair Messias Bolsonaro, sempre no ataque, beligerante, grosseiro, despejando sua ira nos repórteres que deixam famílias e amores em casa e enfrentam a covid-19 para cobrir as atividades do presidente-candidato até aos domingos. E ele não deixou barato. Ontem, voltou à carga.

Um repórter fez uma pergunta não só válida, mas obrigatória, e Bolsonaro reagiu à la Bolsonaro: “Vontade de encher a tua boca de porrada”. Pior para ele. A pergunta viralizou, replicada em mais de um milhão de posts em português e outras línguas – “Presidente, por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil do Fabrício Queiroz?”. De boca calada, Bolsonaro some das manchetes e sua popularidade sobe. Quando fala, volta às manchetes, choca o País e passa vergonha no mundo.

Apoiadores registraram o golpe e, na tentativa de se contrapor ao tsunami da internet, editaram o vídeo, sem a pergunta do repórter e deturpando a fala de um feirante. Ele convidava Bolsonaro para visitar “a feirinha na catedral”, mas a legenda diz que é para visitar “a filha na cadeia”. Daí a reação do presidente. Feirante, filha, feira, cadeia… Uma lambança. Mas há quem acredite!

Bolsonaro continuou sem explicar os depósitos e não cogitou pedir desculpas ao jornalista, mas poderia ao menos ficar calado. Até ficaria, não fosse Bolsonaro. E, assim, um evento ontem no Planalto virou um festival de vexames. Começa pelo nome: “Vencendo a covid-19”. Vencendo o quê? Com mais de 115 mil mortos e 3,5 milhões contaminados, o Brasil é o segundo País mais atingido pela pandemia no mundo e virou referência de erros, descaso e falta de coordenação federal. Até o “amigão” Donald Trump já disse isso mais de uma vez.

Segundo: como fazer um evento sobre a pandemia sem dar uma palavra sobre os muitos milhares de mortos? Sem conforto para as famílias e amigos? Sem solidariedade aos que pegaram o vírus, muitos com sequelas graves? A quem o presidente pensa que está enganando ao esconder a realidade? Aliás, ele continua enganando e se enganando quando diz que “sempre foi um atleta das Forças Armadas”. “Sempre”? Como assim? Ele foi do Exército há bem mais de 30 anos e saiu pela porta dos fundos, depois de alucinações com bombas em quartéis.

Numa cerimônia de derrotados para comemorar uma vitória imaginária, não poderia faltar cloroquina. Catados a dedo, compareceram bolsonaristas dispostos a corroborar o constrangedor “Vencendo a covid-19”, badalar um medicamento que não tem comprovação contra esse vírus em lugar nenhum do mundo e dizer amém a qualquer outra barbaridade do presidente.

No triste espetáculo, Bolsonaro se vangloriou do “histórico de atleta” e de ter tido uma forma amena da covid-19, para provocar os jornalistas:

“Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”. Assim, ele atacou não só os jornalistas, a quem quer “encher de porrada”, mas os 115 mil que morreram e os que pegaram a forma mais grave – os fracotes, “bundões”. Como já ensinou Bolsonaro, “tem de enfrentar o vírus como homem, não como moleque”. Ou seja, cara a cara, sem isolamento, aglomerado, sem máscara, sem álcool em gel. Tudo frescura.

A ameaça de “dar porrada” foi diante da Catedral de Brasília e o título do vídeo deturpado, sem a pergunta do repórter sobre o “Queiroz”, é um versículo da Bíblia: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Nada mais apropriado ao momento que vive o Brasil. A verdade está aí, escancarada, à vista de todos. Pena que milhões se recusam a admiti-la e a se libertar.


Rubens Barbosa: Brasil atropelado

EUA lançam candidato à presidência do BID, quebrando uma tradição de 60 anos

Com sede em Washington, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi criado em 1959. Embora com participação acionaria majoritária dos EUA, ficou estabelecido que a presidência sempre caberia a um nacional da região e a vice-presidência, a um norte-americano. Nos últimos 60 anos essa regra não escrita (antigamente se dizia acordo de cavalheiros) foi mantida: o BID, um bem-sucedido banco de fomento econômico e social das Américas, foi presidido por chileno, mexicano, uruguaio e colombiano.

Na sucessão do atual presidente havia a expectativa de que Brasil ou Argentina pudessem apresentar candidatos, o que de fato foi feito. O Brasil lançou Ricardo Xavier, de pouco peso político, para a presidência do BID. O ministro da Economia, Paulo Guedes, havia avisado o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, da apresentação do nome brasileiro, na expectativa de que o Brasil pudesse pela primeira vez eleger o novo presidente. Mnuchin, contudo, com um telefonema acabou com a pretensão do Brasil ao informar que o governo de Washington havia decidido lançar para presidente do BID Mauricio Claver Carone, diretor para assuntos de América Latina no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, quebrando uma tradição de 60 anos. Na contramão do interesse brasileiro, em nota oficial conjunta Ministério da Economia e Itamaraty se alinharam aos EUA, ao afirmarem “ter recebido positivamente o anúncio do firme comprometimento do governo dos Estados Unidos com o futuro do BID por meio da candidatura norte-americana à presidência da instituição”. E completou a nota alinhada ao governo americano: “O Brasil e os Estados Unidos compartilham valores fundamentais, como a defesa da democracia, a liberdade econômica e o Estado de Direito. O Brasil defende uma nova gestão do BID condizente com esses valores”.

Os EUA sempre preservaram sua influência no BID pelo poder do voto, cerca de 30%, nas decisões, mais do dobro dos outros países latino-americanos maiores acionistas. O anúncio de Washington não causou nenhuma reação dos governos, pela ausência de lideranças afirmativas na região. Os principais países encontram-se vulneráveis e sem capacidade de reagir. A Argentina, pela delicada situação econômico-financeira e social, em meio a um processo de negociação de sua dívida externa para evitar mais um default; o México, por ter um passivo de atritos com os EUA nas áreas comercial, de imigração, da construção do muro separando os dois países; o Brasil, concentrado em seus problemas de saúde e políticos internos.

A reação política à medida de Washington veio inicialmente de cinco ex-presidentes latino-americanos, que lançaram uma declaração em que condenam a indicação de um norte-americano para a presidência do BID. “A proposta de nomeação não anuncia bons tempos para o futuro da entidade, o que nos leva a expressar nossa consternação com essa nova agressão do governo dos Estados Unidos ao sistema multilateral, com base nas regras acordadas pelos países-membros”, destaca o documento assinado pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Ricardo Lagos (Chile), Julio Maria Sanguinetti (Uruguai), Juan Manuel Santos (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México).

Além da declaração dos presidentes, há também a que foi assinada por todos os ex-chanceleres, ex-ministros da Fazenda e vários do Planejamento brasileiros. A reação dos países começou timidamente com manifestação do governo chileno pedindo que a eleição fosse adiada por seis meses, depois da eleição presidencial dos EUA. México, Peru e União Europeia, associada ao BID, passaram a apoiar a iniciativa chilena.

Em seguida, ampliando a articulação contra a escolha de um norte-americano para a presidência do BID, conhecidas personalidades politicas somente dos EUA, entre as quais ex-secretários do Tesouro e do USTR, divulgaram carta contra a indicação de Trump e pedindo o adiamento da eleição para março de 2021, argumentando que com a eventual vitória de Joe Biden a indicação seria anulada. Na semana passada, em nota conjunta do Ministério da Economia e do Itamaraty, o governo brasileiro associou-se à declaração de um grupo de países favoráveis à manutenção da eleição virtual nas datas previstas (12 e 13 de setembro), assim como instou todos os países-membros a cumprirem as resoluções aprovadas. Essa nota foi resultado da pressão de Washington e indica o temor de que os que propugnam pelo adiamento da eleição estejam ganhando força. O resultado até aqui é imprevisível.

A crescente presença da China na América do Sul está na raiz da decisão de Washington de apresentar candidato à presidência do BID, contra um representante brasileiro, e pode ser indício de um renovado interesse político dos EUA em conter Beijing pela pressão financeira sobre os países da região. Seria a volta da Doutrina Monroe (América para os americanos) e do corolário Roosevelt (speak softly and carry a big stick).

Não é do interesse brasileiro apoiar medidas que tragam para nosso entorno geográfico preocupações geopolíticas globais com a volta da confrontação entre superpotências e a pressão por alinhamentos absolutos, deixando de lado o interesse da Nação, e não apenas do governo da vez.

*Presidente do IRICE


Carlos Pereira: Só, com o povo ou com os partidos

Pesquisa identifica três estratégias para governos presidencialistas minoritários

Jair Bolsonaro tem sido acusado de trair seus eleitores em função de escolhas inconsistentes na forma de lidar com a condição de governo dividido, situação na qual o partido do presidente não controla a maioria de cadeiras em uma ou nas duas casas legislativas.

O livro The Politics of Divided Government, editado por Gary Cox e Samuel Kernell, é um dos poucos que estudam como governos presidencialistas minoritários se comportam e delineiam os vários caminhos que o presidente pode seguir para lidar com esse desconforto. Os autores identificam três estratégias para presidentes que se deparam com governos divididos.

A primeira é a do “go it alone”; ou seja, quando o Executivo decide não barganhar com os legisladores. Em vez disso, decide usar os recursos constitucionais e legais disponíveis de forma unilateral. A vantagem dessa estratégia é colocar o Legislativo numa posição reativa à iniciativa do presidente como se fosse um fait accompli, o que diminuiria as chances de reversão pelo Legislativo. O perigo associado à estratégia do “eu sozinho” são potenciais impasses e crises políticas com disputas abertas, podendo levar até a conflitos institucionais.

A segunda opção é a do “go public”, quando o presidente faz compromissos diretamente com os eleitores, sem a mediação das instituições e partidos. Nesse caso, o público age como intermediário entre o Executivo e o Legislativo. O objetivo é aumentar os custos de defecção dos legisladores e, assim, fortalecer a sua posição nas negociações com o Legislativo. Essa estratégia, entretanto, produz resultados positivos para o Executivo apenas no curto prazo, pois gera animosidades crescentes entre legisladores que se sentem pressionados e expostos à opinião pública. A qualquer sinal de vulnerabilidade do presidente, os legisladores podem querer dar o troco, não apenas com a imposição de derrotas no Congresso, mas colocando em risco o próprio mandato presidencial.

A terceira estratégia de governos minoritários é a do “bargain within the beltway”; ou seja, acordos em que os principais ganhadores seriam os próprios políticos em oposição aos interesses e prioridades da população em geral. Neste caso, tanto Executivo como Legislativo sabem que precisam negociar e chegar a um acordo. Contudo, nenhum dos dois quer dar o primeiro passo e parecer politicamente fraco.

Portanto, os acordos são adiados até o último minuto, táticas de blefe são adotadas, negociações sobre certas políticas são priorizadas em relação a outras, e assim por diante até uma posição de compromisso ser tenuamente encontrada na última hora e não necessariamente de forma republicana. O risco desta estratégia é que nenhuma aliança substancial e estável tende a ser alcançada. Mesmo quando maiorias são acertadas, tendem a ser cíclicas e episódicas não sendo garantia sólida para o governo governar e de se proteger contra potenciais ameaças de impeachment.

Nesses 20 meses de governo, é possível identificar que Bolsonaro adotou, de forma quase que sequencial, essas três estratégias. Inicialmente, preferiu governar sozinho, renegando os partidos e acusando-os de fazer parte da política tradicional. Quase como um desdobramento complementar da primeira estratégia, também se utilizou fartamente de conexões diretas com o público para pressionar e desgastar o Legislativo e suas lideranças. Ultimamente, no entanto, vem construindo alianças políticas com os partidos do chamado Centrão por meio de barganhas cujos objetivos e termos de troca, até o momento, não são claros nem seguros.

Diante das sucessivas derrotas e desgastes com o Legislativo durante esse período, fica claro que nenhuma dessas três estratégias de governar na condição de minoria está sendo bem-sucedida. Condições institucionais e políticas para a formação de uma coalizão majoritária e estável não faltam no presidencialismo multipartidário brasileiro. Além do mais, a preferência mediana do atual Congresso é muito próxima daquela do presidente. Por que então “trair” seus eleitores apenas pela metade?


José Roberto Mendonça de Barros: Encontro marcado para setembro (2)

Nunca estivemos tão perto de perder o controle da política fiscal

“O futuro do governo Bolsonaro e o comportamento da economia em 2021/2022 serão determinados pelo resultado de um grande embate que deverá ocorrer a partir de setembro, quando vários vetores relevantes tendem a se encontrar.”

Esses foram o título e o início de meu artigo de 14 de junho neste espaço. Pode-se dizer, hoje, que o embate continua marcado, mas será muito maior que o antes imaginado.

“Em primeiro lugar, por volta de agosto teremos mais clareza quanto ao tamanho da recessão, do desemprego e da insolvência de empresas.”

Hoje, podemos ver uma melhora no desempenho da indústria e do comércio, de junho em diante, mas modesta na área de serviços. Com isso, a expectativa de queda no PIB para 2020 está melhor, com a maioria das estimativas correndo na faixa de 5% a 5,5%. Ainda assim, um tombo enorme.

A pesquisa do IBGE, por outro lado, revela que 715 mil empresas quebraram, até o início de junho, o que pressiona bastante o emprego. De fato, temos um quadro bastante difícil com 12,8 milhões de desempregados, 19 milhões de pessoas que não procuraram emprego por conta da pandemia e 16,3 milhões de pessoas que assinaram acordos com redução de jornada e de salários. A volta a uma certa normalidade no mercado de trabalho será lenta.

“Também é, neste momento, que teremos uma noção mais precisa do enorme custo humano da pandemia.”

Aqui subestimamos o impacto da covid-19. Até o dia 20 de agosto, ocorreram mais de 110 mil óbitos, e não os 80 mil que havíamos indicado dois meses atrás. O número de casos e de óbitos parece estar querendo começar a cair pela primeira vez, o que significa que a pressão será grande pelo menos até outubro.

“Neste momento, a política econômica e as propostas para os próximos dois anos terão de ser repaginadas e se traduzirão no orçamento fiscal (embora não apenas aí).”

Dois meses depois do texto original, está claro que o embate será ainda mais difícil, uma vez que três movimentos se consolidaram:

  • A mudança do discurso público do presidente Bolsonaro (mas não suas convicções e práticas);
  • A percepção que o coronavoucher atingiu mais gente que o inicialmente esperado (64 milhões de pessoas), o que explica a redução da queda do PIB acima mencionada e que implicou elevação da aprovação do governo;
  • Consolidação de uma forte ala “desenvolvimentista” dentro do governo, que batalha para elevar gastos de investimento em obras públicas paralisadas, como forma de acelerar a retomada da economia.

Assim, temos uma formidável força a favor do gasto: o presidente quer consolidar sua campanha à reeleição, as Forças Armadas querem acelerar seus projetos de reequipamento, os ministros militares no Palácio, bem como aqueles ligados à infraestrutura e ao desenvolvimento regional, querem retomar obras públicas e a base política do governo adora e aplaude tudo isso.

Do outro lado, fica o Ministério da Economia, apenas com o apoio efetivo do presidente da Câmara e o suporte indireto da maioria dos agentes econômicos do setor privado.

Pergunta-se: quem vai ganhar o embate?

Desde já, é preciso que se diga que o grupo expansionista não desconhece nossa situação fiscal e, portanto, admite alguns ajustes, como transposição de verbas do abono salarial. Entretanto, o mais importante é o sinal verde para aprovação da nova CPMF (ops, imposto digital), como forma de elevar a receita e diminuir o conflito.

Além disso, não haverá pedalada fiscal a seco, porque não se repetem grandes erros do passado recente (isso não se aplica ao passado antigo, como pretendido pelo novo PND do governo Geisel). Logo, o furo do teto deverá ter base legal, mesmo que necessite de uma PEC.

Por conta do apertado do calendário político e da questão central acima esboçada, três baixas podem ser anunciadas: a reforma tributária, qualquer reforma administrativa que busque elevar a eficiência do Estado e a revolução liberal tão alardeada desde a campanha de 2018. A recente saída de importantes secretários do Ministério da Economia assim sinaliza.

Considerando-se que a dívida pública chegará, na melhor das hipóteses, a 95% do PIB no fim do ano, é imperioso reconhecer que nunca estivemos tão perto de perder o controle da política fiscal.

A explosão do dólar nesta última quarta-feira mostra o que poderá acontecer.


Têm ocorrido coisas extraordinárias no Brasil desses tempos. Descobrimos que o Amapá passou a pertencer ao Vale do São Francisco. Pelo menos é o que se depreende da mudança efetuada na Codevasf, e aprovada pelo Senado, que agora inclui áreas daquele Estado entre suas atribuições (PL 4731).

*Economista e sócio da MB Associados. Escreve quinzenalmente


Rolf Kuntz: Não culpem só a pandemia. O Brasil já ia muito mal

A crise industrial começou no País bem antes de chegar a covid-19

A pandemia forçou o governo a cuidar da economia real e até dos pobres, mas falta um plano para consolidar a retomada, combiná-la com o conserto das contas públicas e, sobretudo, reconduzir o País ao desenvolvimento. Falta um governo do tipo necessário a um país emergente. O Brasil já ia muito mal antes do novo coronavírus. Com o desastre ocasionado pela covid-19, muita gente parece haver esquecido aquele quadro sombrio. O desafio imediato é sair do buraco e retomar as condições anteriores ao grande tombo. Mas o problema real é muito maior e qualquer discussão séria – sem populismo e sem jogadas eleitorais – tem de partir desse ponto. Para onde rumava o País antes da tragédia de 2020?

Sinais vitais do comércio e da indústria têm melhorado, mas em junho a produção industrial continuou abaixo do nível de fevereiro. Se tivesse voltado àquele nível, ainda estaria 16,6% abaixo do pico alcançado em maio de 2011. A partir desse topo o declínio da indústria, até a recessão de 2015-2016, é bem visível nas séries do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Houve alguma reação em 2017 e 2018, mas o impulso acabou no primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro.

Depois de três anos de queda, a produção da indústria avançou 2,5% em 2017 e 1% em 2018, mas declinou 1,1% em 2019. Bolsonaro e equipe tiveram uma estreia desastrosa – mesmo sem contar a vergonha diplomática e o vexame da política ambiental. O produto interno bruto (PIB) cresceu 1,1% – menos que em cada um dos dois anos anteriores – e o desemprego permaneceu na faixa de 12% a 13%. De novembro a fevereiro, antes, portanto, da nova crise, a produção industrial foi sempre menor que no mês correspondente do ano anterior.

Com a pandemia, a partir de março ficou menos visível a diferença entre os novos desafios econômicos e os velhos problemas estruturais, exceto pelos detalhes mais chocantes. Quando foi preciso pensar em prevenção, isolamento, contenção do contágio e, enfim, socorro aos mais vulneráveis, mais luz foi lançada sobre a pobreza extrema e as condições de saneamento e de habitação de milhões de famílias. Dados abstratos, como o coeficiente de Gini, transformaram-se de repente em cenas assustadoras ao vivo e em cores.

A desigualdade passou de mero indicador a fato escancarado. A realidade confirmou a advertência do Fundo Monetário Internacional (FMI): para executar as políticas emergenciais os governos latino-americanos precisariam chegar a segmentos sociais ainda intocados pelas políticas públicas. A experiência brasileira comprovou de forma chocante essa previsão.

Mas nem seria preciso chegar às cenas de pobreza extrema para perceber o enorme desafio. Bem antes da pandemia e da recessão no primeiro semestre de 2020, o desenvolvimento brasileiro havia sido travado. A baixa qualidade do emprego, a informalidade e os níveis escandalosos de pobreza eram os sinais mais claros da interrupção de um longo processo.

Tinha havido alguma redução da desigualdade nas últimas décadas e crescente inclusão, embora os indicadores sociais continuassem ruins. A crise da indústria, visível antes da recessão de 2015-2016, realçou problemas cada vez mais graves: baixa produtividade, formação deficiente de capital humano, pouca inovação, ampla predominância dos segmentos de baixa tecnologia e escassa competitividade.

Protecionismo excessivo e insuficiente participação nas cadeias globais foram facilmente identificados, há anos, como entraves importantes. Burocracia, insegurança jurídica, tributação disfuncional e financiamento escasso também têm sido apontados, há muito tempo, como obstáculos à eficiência e à competitividade.

No mesmo período o agronegócio brasileiro se consolidou como potência mundial. A trajetória começou há décadas. Foi essencial a ação do setor público, por meio do trabalho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e de sua cooperação com outras instituições. Também houve boas estratégias de financiamento, de logística, de zoneamento e de difusão de tecnologia. Com eficiência, em 30 anos a produção cresceu muito mais que a área ocupada. Poupando terras, o agronegócio tem garantido a segurança externa da economia brasileira.

Por que a agropecuária cresceu e ocupou espaços no mercado global, enquanto a indústria, com exceção de alguns segmentos e grupos empresariais, emperrou e até regrediu? Como programar a retomada industrial? Como ordenar as ações? Essas perguntas poderiam abrir um reexame do crescimento, da modernização e das funções das políticas públicas.

É inútil propor esse tipo de assunto ao presidente Bolsonaro. Ele repassará a questão ao seu “posto Ipiranga”, o ministro da Economia. Mas será uma surpresa se ele responder com algo diferente de seu discurso habitual. Aprovada a reforma da Previdência, ele se concentrou em duas missões, aparentemente essenciais, em sua opinião, para a prosperidade brasileira: eliminar os encargos da folha salarial e recriar com nova cara a CPMF. Para que complicar a conversa?

*Jornalista


Eliane Cantanhêde: Guedes, o mágico

Bolsonaro abre o cofre e está no seu melhor momento, mas tem muito o que explicar

Depois de calar a boca, mergulhar na campanha no Nordeste e subir nas pesquisas, o presidente-candidato Jair Bolsonaro dá aval ao ministro Paulo Guedes para assumir o governo e atuar em duas direções conflitantes: manter formalmente o teto de gastos, tão caro ao mercado, e jorrar dinheiro em alvos específicos, fundamentais para a reeleição em 2022.

Encontrar o ponto de equilíbrio entre economia e política passa por uma terceira área: a jurídica. É preciso desbravar as brechas da legislação para estourar o teto sem dar na cara e despejar recursos no Nordeste, nos desempregados, nas faixas de menos escolaridade e renda, nas pequenas e médias empresas. A atração de investimentos privados é uma das chaves nesse processo. O corte de gastos públicos é outra.

A inteligência disso tudo é ficar imune a críticas. Quem pode ir contra o auxílio a pessoas, empresas, empregos? A oposição não tem como atacar. Nem o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que é crítico de Bolsonaro, mas aliado da política liberal de Guedes. E não pode condenar investimentos justos e neste momento absolutamente essenciais.

Com isso, Guedes promete a mágica de manter o teto, mas soltando a grana, e ganha a guerra interna no governo. Lança um pacote de renda e obras nesta semana, com um anúncio de grande repercussão política na terça-feira: o Renda Brasil, confirmando que, também em política, nada se cria, tudo se transforma. Fernando Henrique lançou o Bolsa Escola, Lula atualizou para Bolsa Família e Bolsonaro rebatiza de Renda Brasil. Tem sido tiro e queda para reeleições.

Há uma avalanche de anúncios isolados que se somam: auxílio emergencial para informais e desempregados até dezembro, mais dois meses de redução de jornada e de renda para beneficiar empresas e trabalhadores da iniciativa privada, o pacote de R$ 60 bilhões para Estados e municípios durante a pandemia, o veto de Bolsonaro, devidamente mantido pela Câmara, ao aumento de salário do funcionalismo público em tempos de guerra contra o vírus. Tudo isso enquanto a vacina salvadora da Pátria não vem.

Jair Bolsonaro, portanto, está no seu melhor momento, pronto para colher manchetes positivas. Fechou a boca – em boca fechada não entra mosca –, já foi a cinco dos nove Estados do Nordeste e reabasteceu o Posto Ipiranga, mas dando gás à ala gastadora do governo. Na sexta-feira, foi ao Rio Grande do Norte com o gastador-mor, o potiguar Rogério Marinho.

O Nordeste é estratégico para Bolsonaro porque tem 27% do eleitorado do País e foi a única região onde perdeu em 2018. Todos os Estados são governados pelo PT, seus aliados e apêndices. Para combater o PT ali, as armas do próprio PT: distribuição de bolsas e vales na veia. Com excessiva dependência do Estado, a base nordestina sustentou a Arena e o PDS do regime militar, migrou para Sarney, Collor e FHC, um atrás do outro, e concentrou-se no PT. É a vez de Bolsonaro?

Se tudo parece ir tão bem, não custa lembrar que são mais de 114 mil mortos de covid, com desdém do presidente e sem coordenação federal; Amazônia, cerrado, Ibama, ICMBio e Ministério de Meio Ambiente estão em chamas; líderes e aldeias indígenas estão ameaçados; a Cultura é uma vergonha; a Educação não existe; o Centrão está com tudo e está prosa.

Mais: o Ministério da Justiça faz dossiê contra policiais e professores, as Forças Armadas atraem holofotes na hora errada, da forma errada, pelas causas erradas e a reeleição de Trump nos EUA balança. Logo, Bolsonaro melhorou sua posição, mas não está no paraíso. E tem aqueles probleminhas: fantasmas, rachadinhas, lojas de chocolate, milicianos, nuvens de dinheiro vivo. Não é só no Nordeste que Bolsonaro replica a “velha política”.


Vera Magalhães: Democracia acima de tudo

Firmeza dos democratas nos Estados Unidos deveria inspirar os brasileiros

“Este presidente e aqueles no poder estão contando com o seu cinismo. (…) E é assim que nossa democracia murcha, até não ser mais democracia. Não deixe isso acontecer. Não permita que nos tirem nossa democracia.”

O discurso, dito olhos nos olhos por um Barack Obama bem mais grisalho e com semblante muito mais grave que aquele que incendiou os Estados Unidos em 2008, já nasceu histórico.

Foi a primeira vez que um ex-presidente do país se referiu ao seu sucessor, ao presidente em exercício, com palavras tão duras e diretas. Obama chamou Donald Trump textualmente de incompetente, que encara a presidência “como outro reality show”.

No próprio discurso, o democrata deixou explícito por que resolveu romper a liturgia e chamar as coisas pelos nomes que têm: “O que nós fizermos nos próximos dias vai ecoar pelas gerações que virão”.

A mesma falta de meias-palavras esteve presente nas falas de Michelle Obama, Bill e Hillary Clinton e dos candidatos a presidente, Joe Biden, e a vice, Kamala Harris. Sim, são todos do mesmo partido, mas estão longe de ocupar as mesmas casas no tabuleiro ideológico, de ter as mesmas origens, de concordar em muitas políticas públicas.

A democracia emerge da convenção democrata como um bem inegociável. Porque ela é fundamental, e não um mero detalhe.

Corta para o Brasil. Na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal teve de dar mais uma reprimenda no Executivo por vilipendiar a democracia, desta vez produzindo dossiê contra 579 adversários, os mesmos ministros trataram de dar aquela aliviada para o ministro responsável pela excrescência, André Mendonça. E a Polícia Federal comandada por ele acaba de convocar um jornalista a depor com base na Lei de Segurança Nacional, um resquício da ditadura, por uma coluna de opinião.

Aqui a democracia é um apêndice, um adereço contra o qual o presidente investe diuturnamente sob um dar de ombros preguiçoso dos políticos, dos juízes, dos procuradores e da sociedade entre anestesiada e cúmplice da barbárie.

Adversários de Bolsonaro estão mais preocupados em criar uma narrativa para si que em se unirem na defesa incondicional de princípios inegociáveis e dizer com todas as letras que Bolsonaro é, sim, uma ameaça ao estado democrático de direito. Como Trump também é.

Em seu novo livro, O Tempo dos Governantes Incidentais, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches se debruça sobre esse novo tipo de mandatário eleito em circunstâncias excepcionais (daí por que “incidentais”) e que, recorrendo à desinformação, a um passado falsamente idealizado e ao populismo barato, além da estratégia de aniquilação dos adversários, corroem as instituições por dentro.

Os democratas perceberam que não se combate um adversário descompromissado com a ética, a verdade e as responsabilidades do cargo com palavras vazias. E foram ao ponto ao apontar também que Trump não faz o seu trabalho, não lidera o país em seu momento mais grave no século.

Bolsonaro também passou meses sem fazer o seu trabalho: comandando claques golpistas, no lombo de cavalos, mostrando cloroquina para a ema e mais preocupado em lotear os órgãos de Estado que em dirigir o País na pandemia.

E ainda assim os presidentes da Câmara e do Senado não o chamam à responsabilidade, e os postulantes a seu lugar em 2022 seguem cometendo os mesmos erros e se preparando para repetir a polarização nefasta que o elegeu.

Há tempo de os políticos brasileiros acompanharem os artifícios de que Trump vai lançar mão, de teorias da conspiração à sabotagem dos Correios, para se preparar para enfrentar um presidente que não hesitará em lançar mão de todos os expedientes para se perpetuar no cargo, sua única preocupação genuína.


Paul Krugman: As ações estão subindo. Assim como a miséria

A economia real, ao contrário dos mercados financeiros, ainda está em péssimas condições

Na terça-feira, o índice de ações S&P 500 registrou uma alta recorde. No dia seguinte, a Apple se tornou a primeira empresa americana da história a ser avaliada em mais de US $ 2 trilhões. Donald Trump está, claro, tentando nos convencer de que o desempenho do mercado de ações comprova que a economia se recuperou do coronavírus. Uma pena para os 173 mil americanos que morreram, mas, como ele diz, “essas coisas acontecem”.

Mas a economia provavelmente não está parecendo assim tão bem aos olhos dos milhões de trabalhadores que ainda não conseguiram seus empregos de volta e que acabaram de ver seu auxílio-desemprego cortado. O benefício suplementar de U$ 600 por semana promulgado em março expirou, e a substituição que Trump propôs é, em essência, uma piada de mau gosto.

Mesmo antes do corte da ajuda, a quantidade de pais de família relatando dificuldades para dar de comer aos filhos estava crescendo rapidamente. Esse número com certeza aumentará nas próximas semanas. E também estamos prestes a ver uma enorme onda de despejos, porque as famílias não estão mais recebendo o dinheiro de que precisam para pagar o aluguel e porque a proibição temporária aos despejos, assim como o auxílio suplementar ao desemprego, acabou de expirar.

Mas como pode haver essa desconexão entre a subida das ações e o crescimento da miséria? Os caras de Wall Street, que adoram letras e siglas, estão falando de uma “recuperação em forma de K”: valorização das ações e aumento da riqueza individual no topo da pirâmide, queda da renda e forte sofrimento na base. Mas isto é uma descrição, não uma explicação. O que está acontecendo de fato?

A primeira coisa a notar é que a economia real, ao contrário dos mercados financeiros, ainda está em péssimas condições. O índice econômico semanal do Federal Reserve de Nova York sugere que, embora tenha atingido seu ponto mais baixo alguns meses atrás, a economia ainda se encontra em uma depressão mais profunda do que em qualquer momento da recessão que se seguiu à crise financeira de 2008.

E, desta vez, as perdas de empregos se concentram entre os trabalhadores com salários mais baixos – ou seja, precisamente os americanos sem recursos financeiros para enfrentar tempos difíceis.

Mas e as ações? A verdade é que os preços das ações nunca se ligam intimamente ao estado da economia. Como diz uma velha piada de economistas, o mercado previu nove das últimas cinco recessões.

As ações sofrem, sim, o impacto de crises financeiras, como as rupturas que se seguiram à quebra do Lehman Bros. em setembro de 2008 e o breve congelamento dos mercados de crédito em março. Fora isso, os preços das ações seguem bastante desconectados de coisas como emprego ou mesmo PIB.

E, hoje em dia, a desconexão está ainda maior do que de costume.

Pois a recente ascensão do mercado foi amplamente impulsionada por um pequeno número de gigantes da tecnologia. E os valores de mercado dessas empresas têm muito pouco a ver com seus lucros atuais, muito menos com o estado da economia em geral. Em vez disso, esses valores refletem as percepções dos investidores sobre um futuro bem distante.

Veja o exemplo da Apple, com sua avaliação de US $ 2 trilhões. A Apple tem um índice preço/lucro – a relação entre sua avaliação de mercado e seus lucros – de cerca de 33. Uma maneira de olhar para esse número é dizer que apenas 3% do valor que os investidores colocam na empresa reflete o dinheiro que eles esperam ganhar ao longo do próximo ano. Eles esperam que a Apple seja lucrativa daqui a alguns anos, mas pouco se importam com o que acontecerá na economia americana nos próximos trimestres.

Além disso, os lucros que as pessoas esperam que a Apple obtenha daqui a alguns anos estão especialmente grandes porque, afinal, onde mais elas vão botar seu dinheiro? Os rendimentos dos títulos do governo americano, por exemplo, estão bem abaixo da taxa de inflação projetada.

E a avaliação da Apple na verdade está menos exagerada do que a de outras gigantes da tecnologia, como Amazon ou Netflix.

Portanto, as ações das gigantes da tecnologia – e as pessoas que as possuem – estão em alta porque os investidores acreditam que se sairão muito bem no longo prazo. A economia em recessão pouco importa.

Infelizmente, os americanos comuns obtêm muito pouco de sua renda com ganhos de capital e não podem viver de projeções otimistas sobre suas perspectivas futuras. Não adianta muito dizer ao proprietário do apartamento que você aluga para não se preocupar com sua atual incapacidade de pagar o aluguel, porque você com certeza terá um ótimo emprego daqui a cinco anos. Esse argumento só fará com que você seja expulso do apartamento e jogado na rua.

Então, esta é a atual situação dos Estados Unidos: o desemprego ainda está extremamente alto, em grande parte porque Trump e seus aliados primeiro não quiseram levar o coronavírus a sério, depois pressionaram por uma reabertura antecipada da economia em um país que não atendia a nenhuma das condições para a retomada dos negócios – e até agora se recusam a apoiar estratégias básicas de proteção, como o uso generalizado de máscaras.

Apesar desse fracasso épico, os desempregados ficaram com a cabeça fora da água durante meses graças ao auxílio federal, que ajudou a evitar uma catástrofe humanitária e econômica. Mas agora a ajuda acabou. E Trump e aliados estão encarando o iminente desastre econômico com a mesma seriedade com que encararam o iminente desastre epidemiológico.

Tudo sugere que, mesmo que a pandemia enfraqueça – o que não é, de forma alguma, uma certeza –, estamos prestes a ver um grande aumento na miséria nacional.

Ah, mas as ações estão em alta. Então por que deveríamos nos preocupar?

* Tradução de Renato Prelorentzou.


Adriana Fernandes: A caneta Bic de cada um

Bolsonaro parece estar caindo na tentação de que sua caneta pode tudo. Não pode.

O presidente Jair Bolsonaro costuma dizer que assina os documentos da Presidência com uma caneta Bic. Foi assim no termo da sua posse no cargo em janeiro de 2010 e segue nos dias atuais.

A pandemia da covid-19 encheu de tinta a caneta presidencial com bilhões de reais para gastos. São valores tão altos que muito provavelmente Bolsonaro não teria condições de assinar até o final de um eventual segundo mandato, caso consiga a sua reeleição para qual já está trabalhado desde agora.

Passados 20 meses de governo e cada vez mais confortável com a sua Bic, o presidente parece estar caindo na tentação que acomete muitas autoridades que desembarcam em Brasil. A de que a sua caneta pode tudo.

Não pode.

Quando essa visão chega à esfera orçamentária e o bom senso vai embora, o perigo ronda e acende os sinais de alerta da burocracia estatal.

O exemplo mais recente tem sido a discussão enviesada que tomou conta do Orçamento de 2021 na Junta de Execução Orçamentária, que define as diretrizes para a destinação e depois execução das despesas aprovadas pela lei orçamentária.

Primeiro foi a tentação de usar recursos via o orçamento de guerra da pandemia da covid-19 para bancar investimentos em obras de infraestrutura e outras tentativas para poder liberar mais dinheiro até o final do ano, quando as regras fiscais estão suspensas por conta do coronavírus.

Agora, o que se vê é a estratégia de reforçar a todo custo o orçamento do Ministério da Defesa em detrimento de outros gastos em áreas mais importantes, como saúde e educação.

Se não bastassem os gastos com a reformulação das carreiras militares, o presidente determinou um aporte ainda maior do já turbinado orçamento da Defesa. Como? Adiando o censo de 2020 previsto para 2022.

São cerca de R$ 2 bilhões a mais a custo sem precedentes para o trabalho de pesquisa do IBGE, o planejamento das políticas publicas e a transferências de recursos para Estados e municípios. A contagem populacional é determinante para a repartição. É bom lembrar que o censo, previsto para esse ano, já tinha sido adiado para 2021.

O risco de um novo adiamento, sem uma justificativa plausível, certamente pode levar a uma judicialização dos municípios que se sentirem prejudicados.

Como explicou o presidente do IBGE, distribuição do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) está congelada esperando o censo de 2020. “Isso é muito grave porque o censo de 2022 só vai ter resultado em 2023. Vai ter 13 anos sem nenhuma informação demográfica ”, disse o ex-presidente do IBGE, Roberto Olinto, ainda incrédulo com tamanha audácia do governo de fazer essa proposta, revelada em reportagem do Estadão dessa semana.

O que chamou atenção na decisão de ampliar em R$ 2,27 bilhões o orçamento para a área militar foi o comunicado da ampliação do Orçamento para os militares foi feito pelo secretário de Orçamento do Ministério da Economia, George Soares, em ofícios nos quais afirma que os pedidos foram feitos por Bolsonaro.

Quem conhece a burocracia de Brasília sabe que esse foi um ato de cautela e cuidado com assinatura da sua caneta Bic. Depois dos inúmeros processos abertos pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no rastro das manobras contábeis da ex-presidente, conhecidas como pedaladas fiscais, que atingiram servidores da elite do funcionalismo, ficaram muitas sequelas.

As carreiras que compõem o Ministério da Economia, diferentemente da maioria de outras carreiras existem há muito tempo com servidores que foram recrutados em concursos muito difíceis, com os da Receita, Tesouro e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Um técnico experiente, por exemplo, não foi condenando por que tinha registrado nos seus e-mails todas as advertências feitas ao seu superior, o ex-secretário do Tesouro, Arno Augustin. Na época, os técnicos se rebelaram numa reunião, como está relatado no livro “Perigosas Pedaladas” do jornalista João Villaverde. Muitos desses processos ainda estão em andamento. Um deles com resultado recente, cinco anos depois das pedaladas.

Com certeza é de se imaginar que outras canetas Bic estão dando alertas ao presidente.


Marco Aurélio Nogueira: Pandemia – o antes, o durante e o depois

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade

Aos poucos, sem muito critério, as coisas estão voltando ao que era vivido como normalidade. Embora haja menos agitação, as pessoas passaram a circular com intensidade. Há um cansaço solto no ar.

São superficiais as expectativas de que entraremos num “novo normal”, expressão desprovida de significado claro. Não é de repente que um modo de vida se altera. A rigor, não há um antes e um depois. A vida é continuidade, processo permanente de acúmulo e adaptação. Impossível ir de um padrão a outro só pela força da vontade. A pandemia, no entanto, já deixou suas pegadas e estamos sendo impelidos a adotar novas práticas e ideias. O convite é para que incorporemos condutas sustentáveis: menos agressivas com a natureza, a cultura, a sociedade, mais generosas, humildes e voltadas para o bem-estar comum.

Precisamos aumentar nossa capacidade de pensar em termos de complexidade, como gosta de dizer Edgar Morin. Ver o local e o global, o particular e o universal, a cultura e a natureza, partes de um único todo.

O abandono da quarentena se dá sem que a covid-19 tenha arrefecido. Na maioria dos Estados a doença se estabilizou, mas a média nacional de óbitos segue em patamar elevado. Hoje são 4 milhões de infectados, 115 mil mortes, números que continuam a crescer. É uma desgraça, para a qual o governo federal contribuiu e diante da qual a população não soube e não teve como reagir.

A briga pela quarentena foi permanente. Fiquem em casa, evitem aglomerações, pediram médicos, gestores, profissionais da saúde. O que houve de distanciamento social ajudou a reduzir o impacto do vírus, especialmente nas grandes cidades. A vida digital avançou, o teletrabalho mostrou ser factível e tão produtivo quanto o presencial. Perdeu-se o receio de comprar à distância. Mas ninguém se conformou em deixar de ver filhos, netos, amigos. Têm sido meses angustiantes.

Há uma dura estrada pela frente. O País não encontrou um eixo para combater o vírus e retomar a “normalidade”. Não sabe como voltar a crescer, reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade. Os sistemas nacionais – educação, saúde, infraestrutura, cultura, saneamento, ciência e tecnologia – estão sem coordenação e tenderão a ficar também sem recursos, pessoas e verbas, risco que aumenta quando se vê o governo brasileiro falar em diminuir o orçamento da Educação e da Saúde em benefício da Defesa.

A expectativa de que a vacina resolverá tudo no curto prazo é ingênua. A competição entre os laboratórios torna o processo sombrio. A Sputnik, russa, está sendo lançada sem testes públicos confiáveis, em nome de uma “guerra” insensata. Por mais que as vacinas saiam no início de 2021, não há como atestar preliminarmente sua qualidade, nem saber como será feita sua aplicação em massa. Serão necessários 8 bilhões de doses se a ideia for imunizar a população terrena. Além disso, o mundo superconectado, frenético e desigual em que vivemos é propício a novas ondas pandêmicas.

O “depois da pandemia” somente virá à custa de cuidados e sacrifícios. Serão indispensáveis novas modalidades de políticas públicas, governos de outro tipo, outros critérios de promoção da justiça e da igualdade, que incorporem e valorizem os direitos. Teremos de aprender a levar uma vida com máscaras e higiene redobrada, com distanciamento social e mais tempo em casa. Aglomerações serão focos de irradiação e perigo.

Mas, e o transporte urbano, com sua precariedade, seus vagões e ônibus que amontoam pessoas como sardinhas em lata? E a vida escolar, com suas interações comunicativas? E os encontros, os relacionamentos, as amizades? E o caráter festivo e social do brasileiro?

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade. O que tem mais importância e valor? Como voltar a olhar para si e para os seus queridos quando na memória latejam as imagens da vida aberta, sem freios? Como controlar nossos desejos e pulsões, recompô-los e deixá-los fluir de outro modo? Teremos de experimentar de maneira distinta o prazer e os prazeres? Saberemos fazer isso?

São perguntas para as quais não há respostas cabais. Formam o enigma freudiano que acompanha a marcha da civilização naquilo que contém de “mal-estar” e de substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade. Estão sendo repostas, hoje, de modo dramático, e teremos de nos haver com elas uma vez mais, aproveitando o que temos de cultura da psicanálise, conhecimento e informação.

A vida digital joga a favor. Oferece-nos um novo campo de sensações e possibilidades, ainda que, ao mesmo tempo, crie novas postulações éticas e novas zonas de atrito com a vida no plano físico. É uma transição, difícil como qualquer outra.

A educação é o recurso de que dispomos para construir atitudes cooperativas e aprender a desenvolver hábitos coletivos que garantam um mínimo de convivência saudável. Não se trata somente de valorização da escola, mas de educação com E maiúsculo.

Resta saber se venceremos a batalha.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Eliane Cantanhêde: Bem feito!

Com prisão de Steve Bannon, lá se vai o guru internacional da direita e dos Bolsonaro

Bem feito para os idiotas que doaram mais de US$ 25 milhões para construir um muro entre os Estados Unidos e o México, ou seja, entre países, pessoas, famílias, humanidade e desumanidade. Pensavam que estavam comprando cimento e tijolos, mas estavam financiando os luxos de tipos abomináveis como Steve Bannon, ex-estrategista de campanha e de governo de Donald Trump e idolatrado pelo presidente Jair Bolsonaro, seus filhos, ministros e puxa-sacos em geral.

Num mundo tão globalizado quanto desigual, é chocante que o presidente e tantas pessoas na maior potência defendam um muro para se isolar de pessoas consideradas menos gente, menos humanas. Deveriam fazer o oposto e doar para famílias, velhos e crianças viverem com dignidade, mas, em vez de contribuir com a igualdade, os doadores incautos do muro aprofundam a desigualdade: eles lá, com sua miséria e sem horizonte; nós cá, com a nossa pujança e egoísmo. Dúvida: quem vai lavar as privadas e cuidar das crianças dos doadores? Mas essa é outra história.

Entre os que fizeram papel de bobos, pode haver americanos de diferentes origens e até imigrantes… latinos. Latinos construindo muro contra latinos. Com uma curiosidade: Donald Trump tem ojeriza a imigrantes, mas é casado com uma eslovena. Logo, a ojeriza não é ao imigrante, é ao pobre, perseguido, desvalido. Branca, bonita e capaz de se imiscuir na elite, aí pode.

Dos doadores para o mais ilustre beneficiário dessa roubalheira, Steve Bannon, que chegou aos píncaros da glória quando Trump foi alçado da condição de anticandidato ridículo e inviável à de presidente do país com mais dinheiro, armas, votos e poder do mundo. A vitória de Trump subiu à cabeça de Bannon, que decidiu expandir seus dotes políticos para o nefasto Brexit no Reino Unido, as eleições de Polônia, Hungria e países da África e… a política brasileira. Como conselheiro do presidente Jair Bolsonaro.

Fogo e Fúria – Por Dentro da Casa Branca de Trump, do jornalista Michael Wolff, editora Objetiva, traça um perfil preciso não apenas do próprio Trump, mas também dos seus principais assessores no poder e do próprio Bannon e sua expertise: manipulação. Dizem que “a esperteza, quando é demais, devora o dono”. E assim ele acabou expelido do círculo íntimo do presidente e do próprio governo. Mas não perdeu a pose.

O documentário The Great Hack, da Netflix, mostra como Bannon surfou na onda da já banida empresa Cambridge Analytica para capturar e manipular corações e almas mundo afora e instalar algo apocalíptico, a dominação do mundo pela direita. Uma extrema-direita muito particular de Steve Bannon, agora preso no seu próprio país por criar uma rede para enganar os trouxas e engordar suas contas pessoais.

Há fotos, posts e informações públicas à vontade comprovando o encanto do presidente Bolsonaro com Bannon. Dele, do ex-quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro, do chanceler trumpista Ernesto Araújo e do assessor internacional idem, Filipe Martins, com um troféu: a foto do jantar que o presidente brasileiro ofereceu em Washington, com Steve Bannon sentado à esquerda e quem à direita? Olavo de Carvalho. O guru internacional, o guru tupiniquim.

A prisão de Bannon pode abortar o projeto mais grandioso dos Bolsonaros: a criação de um “Foro de São Paulo” à direita. Nem foro de direita, nem o novo partido Aliança pelo Brasil, nem a garantia de reeleição de Trump e, agora, a toxicidade de Bannon. O que o “03” vai fazer com boné “Trump 2020”? A campanha do pai vai de vento em popa no Brasil, mas o bolsonarismo corre o risco de afundar no mundo, junto com Trump, Bannon e tipos assim.


Fernando Gabeira: A escolha dos pobres

Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho a ajuda emergencial

A divulgação da pesquisa com aumento da popularidade de Bolsonaro não deveria surpreender tanto. A negação da pandemia de coronavírus, para muitos de nós, parecia um fator de desgaste. Mas nem isso colou, pois 47% dos entrevistados consideram que Bolsonaro não tem culpa pelo fracasso nacional diante da pandemia.

O ponto elementar do aumento do prestígio de Bolsonaro é a ajuda emergencial. No início queria que fosse de R$ 200, mas as negociações com o Congresso acabaram elevando-a para R$ 600. Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho essa extraordinária transferência de renda, que salvou muita gente e em alguns pontos do Nordeste melhorou as condições de vida.

Isso tudo, num momento em que discutimos a democracia e seus limites, deveria ser visto com bastante calma. Em primeiro lugar, é comum em todos os estudos da democracia apontar um apoio maior ao governo em regiões que dependem da assistência oficial. Tem sido assim no Nordeste. De modo geral, é a última região onde os governos perdem força.

Os anos em que a esquerda esteve no poder deram-lhe a sensação de que estava selada entre ela e a população mais pobre uma aliança histórica irreversível. Há muita ilusão nessa ideia. Alguns críticos da esquerda afirmam que ela errou por considerar apenas o aspecto fisiológico da aliança, sem avançar na educação política. Pessoalmente, acho que errou apenas ao enfatizar as melhorias no aumento de um tipo de consumo, deixando de lado alguns avanços que seriam vitais para os pobres, como, por exemplo, o saneamento básico.

Uma questão que se coloca para a democracia é até que ponto as limitações econômicas não transformam em fantasia a ideia de que as pessoas escolhem livremente seu caminho. Ou, em outras palavras, enquanto houver pessoas abaixo da linha de pobreza não há escolha para elas senão tentar escapar dela.

As pesquisas fora do Brasil que mostram a decadência da democracia entre gente da classe média e jovens são eloquentes nesse sentido. Em muitos lugares há uma tendência crescente a aceitar um governo autoritário e mesmo uma ditadura militar. Não é a extrema pobreza que produz esse sentimento. Em muitos casos a decadência da adesão democrática se dá apenas porque foi interrompido o processo de melhoria de vida. Em outros casos, os entrevistados dizem que estão bem de vida, mas abandonam a crença na democracia porque uma cidade vizinha ficou pobre ou porque um bairro próximo apresenta altos níveis de violência.

Em síntese, se setores da classe média orientam suas posições por um pressentimento quanto ao futuro, como questionar que pessoas em extrema dificuldade canalizem seu apoio político diante de algo mais essencial, que é a sobrevivência física?

Certamente outras políticas públicas têm peso na vida dos mais pobres. A de saúde é uma delas. Acontece que neste período de pandemia, apesar da corrupção, houve aumento de vagas em hospitais e uma sensação de que a maioria dos pacientes foi atendida. Alguns erros, como a não hospitalização mais precoce, não chegaram a ser sentidos com clareza. Muito menos a incidência maior de mortes em regiões mais pobres foi politizada, uma vez que a vimos com a habitual resignação diante de problemas estruturais.

Outra política que influencia a vida das pessoas mais pobres é a de educação. No período da pandemia o setor ficou congelado. Mesmo a educação privada sofreu o impacto e conseguiu se sair melhor com o trabalho a distância. Mas também essa diferença foi atenuada pelo fato de que nos acostumamos com o desnível estrutural entre o ensino particular e o público.

Um dos pontos que não foram articulados na análise da pesquisa é até que ponto a política assistencial de Bolsonaro será sustentável. Os dados que complementam a análise mostram que há uma previsão de queda de 11% na atividade econômica do segundo semestre. O País poderá com isso entrar em recessão.

Em que bases o governo consegue ser popular numa recessão? Precisaria de muito mais estudo para formular a saída. O único exemplo de governo que se sustenta apesar do avanço da pobreza é o da Venezuela. Ali se combinam dois fatores importantes. Uma parte da população se sente contemplada. E as Forças Armadas, sócias do chavismo e das benesses do governo, são de uma fidelidade até o momento inabalável.

A decisão de destinar mais dinheiro à Defesa do que à Educação e à Saúde revela que o caminho de se associar às Forcas Armadas Bolsonaro adotou desde o início. O que há de novidade é a ajuda assistencial, que ele sempre considerou uma forma de a esquerda comprar votos, passar a ser a principal esperança de sua sobrevivência política.

A esquerda tem dificuldade de aceitar que as massas apoiem a direita por causa da ajuda assistencial. E a direita sempre atacou o Bolsa Família como se fosse algo que entorpecia não só a escolha política, como o desejo de trabalhar e empreender.

Parece que, em certos casos, pouco importa ser de esquerda ou de direita, a história já está previamente escrita.

*Jornalista