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O Estado de S. Paulo: Retomada verde pode evitar metade do aquecimento global previsto até 2050
Se é preciso recuperar economias, que isso seja feito de modo a tornar as sociedades mais resilientes à mudança do clima, defendem os especialistas
Giovana Girardi, O Estado de S.Paulo
No auge da pandemia de covid-19, um meme das redes sociais fazia um alerta de que os trágicos impactos do coronavírus são só a primeira onda a nos atingir. Na ilustração, logo atrás vinha uma segunda onda maior, da recessão, e depois dela, uma maior ainda, das mudanças climáticas.
Não era uma brincadeira. Cientistas afirmam que os danos da pandemia e da crise econômica são só uma fração do que se pode esperar das mudanças climáticas que já estão em curso – essa sim considerada a mãe de todas as crises.
Mas se há alguma boa notícia nesse cenário é que as três crises podem ser enfrentadas de modo interligado. Se é preciso recuperar economias, que isso seja feito de modo a tornar as sociedades mais resilientes à mudança do clima, defendem os especialistas, o que de quebra pode torná-las também mais preparadas para eventuais novas pandemias.
Não é à toa que as mudanças climáticas são o principal motor por trás do movimento de retomada verde em todo mundo. O conceito prevê que os necessários novos investimentos sejam direcionados para setores que dialogam com as políticas de combate ao aquecimento global e para empreendimentos sustentáveis com baixo impacto socioambiental.
Um estudo publicado no início do mês na revista Nature Climate Change – que analisou como a paralisação da economia por causa das políticas de isolamento e quarentena reduziu temporariamente as emissões globais de gases de efeito e de poluentes –, projetou que incluir medidas de políticas climáticas como parte da recuperação econômica pode trazer resultados mais permanentes e de fato desacelerar o aquecimento do planeta.
O trabalho, liderado por pesquisadores da Universidade de Leeds, no Reino Unido, comparou um cenário em que a recuperação econômica seja feita com base nos mesmos níveis atuais de investimento em combustíveis fósseis com outro em que haja fortes estímulos verdes e redução de carbono.
No primeiro, calcula o grupo, o aquecimento médio do planeta provavelmente vai exceder 1,5°C já em 2050, na comparação com a temperatura pré-Revolução Industrial. Já no segundo, seria possível evitar um aquecimento de 0,3°C até aquele ano. Como o planeta já está cerca de 1°C mais quente, os cientistas indicam que há um potencial de reduzir pela metade o nível de aquecimento nos próximos 30 anos.
“As escolhas feitas agora podem nos dar uma grande chance de evitar 0,3˚C de aquecimento adicional até meados do século, reduzindo pela metade o aquecimento esperado com as políticas atuais. Isso pode significar a diferença entre o sucesso e o fracasso quando se trata de evitar mudanças climáticas perigosas”, afirmou Piers Forster, principal autor do trabalho.
O trabalho destaca medidas como incentivo a veículos de baixa emissão, transporte público e ciclovias. “A melhor qualidade do ar terá efeitos importantes na saúde – e começará a esfriar o clima imediatamente”, complementa Forster.
Não deixar o aquecimento do planeta superar 1,5°C é um marco dos esforços mundiais de combater as mudanças climáticas. Mas o plano é segurar esse aumento da temperatura até o fim do século. Este é o objetivo estabelecido pelo Acordo de Paris, compromisso estabelecido por quase 200 países, por ser considerado o mais seguro para evitar impactos mais dramáticos à vida no planeta.
Reduzir emissões e gerar empregos
Algumas pesquisas já mostram vantagens também para o Brasil. Um estudo publicado em meados de agosto pelo WRI Brasil e a aliança global New Climate Economy calculou que adotar princípios de retomada verde em ações de infraestrutura, inovação industrial e no agronegócio podem reduzir 42% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil até 2025, na comparação com o que era emitido em 2005. E ainda gerar 2 milhões de empregos, além de acrescentar R$ 2,8 trilhões ao PIB.
Essa redução de emissões é mais até do que o País prometeu fazer no Acordo de Paris, que é cortar as emissões em 37% até aquele ano.
Para chegar a isso, indica o estudo “Uma Nova Economia para uma Nova Era”, é preciso avançar na implementação de veículos elétricos ou híbridos, ter maior eficiência do setor de construção, mais energias renováveis e uso de materiais de baixo carbono e uma agropecuária de maior produtividade. Além de também investir em restauração florestal e reduzir as pressões de desmatamento ilegal.
Hoje, a devastação da Amazônia é a principal fonte no Brasil de emissões de gases que provocam o aquecimento global. Para reduzir sua contribuição ao problema, o País se comprometeu, no âmbito do Acordo de Paris, a zerar o desmatamento ilegal até 2030, além de adotar uma série de outras medidas que possam reduzir suas emissões.
Um grupo de pesquisadores ligados ao Instituto ClimaInfo, ao Observatório do Clima e ao GT Infraestrutura elaborou uma análise de como algumas das metas nacionais, assim como outras ações relacionadas com uma retomada verde inclusiva, podem ser uma resposta à crise econômica legada pela pandemia e à crise climática.
O trabalho, que será lançado em um webinar na próxima quinta-feira, 3, foi passado com exclusividade ao Estadão. O grupo calcula que medidas como restaurar 12 milhões de hectares de florestas até 2030 geraria 250 mil postos de trabalho.
Também são particularmente boas fontes de emprego as metas de aumentar a eficiência energética e a presença de fonte solar na nossa matriz energética. “Alcançar 10% de ganhos de eficiência energética no setor elétrico até 2030 exige um investimento anual da ordem de R$12 bilhões até 2030 que, por sua vez, geram 408 mil empregos nos próximos dez anos”, aponta o grupo em relatório que será divulgado junto com o webinar.
Ainda em energia, eles citam um cálculo da Absolar, que representa o setor de fonte fotovoltaica no Brasil. A entidade calcula que a cada megawatt de energia solar instalada no Brasil são gerados 30 empregos, contra 2,6 empregos de grandes hidrelétricas, como Belo Monte, e menos de 1 emprego em termelétricas a gás. Empregos verdes também tendem a ser mais bem remunerados.
Outra possibilidade nesse setor, defende o grupo, é instalar placas solares em residências. Além de ser uma fonte mais limpa, o trabalho calcula que investir R$ 1,05 milhão no período de três meses em energia solar distribuída permite instalar sistemas fotovoltaicos completos em mais de 260 mil residências de baixa renda, criando 6.300 empregos no curto prazo.
“Priorizar investimentos em alguns setores-chave gera empregos, crescimento econômico e melhora da qualidade de vida da população, além de reduzir as emissões dos gases responsáveis pela crise climática”, escrevem os autores. Eles buscaram identificar ações que podem começar a ser implementadas já no curto prazo. E que impactem a maioria.
A proposta, explica o físico Shigueo Watanabe Jr., pesquisador do ClimaInfo, é que os recursos públicos que já estão sendo liberados para recuperar a economia e empregos não sejam direcionados apenas para algumas empresas e setores. “Em vez de dar dinheiro para salvar atividades econômicas que nos trouxeram à atual situação, a ideia é poder salvar as pessoas e ainda ter benefício climático”, afirma o coordenador do trabalho.
O documento cita, como exemplo, o setor de resíduos: “Menos da metade do que é gasto atualmente com a coleta de resíduos sólidos, algo entre um ou dois bilhões de reais, seriam suficientes para organizar meio milhão de catadores a mais em cooperativas. Os novos catadores representam cerca de 7% do número de desempregados no país e significam maior movimentação na economia local”.
Considerando mais uma vez a interface com a crise sanitária da pandemia de covid-19, o trabalho também recomenda investimentos em saneamento. Um dos fatores crueis que mais contribuiu para a disseminação da covid em populações de baixa renda foi a impossibilidade de elas fazerem a higienização adequada para barrar o coronavírus.
Os pesquisadores lembram as metas do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que prevê investimentos da ordem de R$ 30 bilhões por ano. “Como cada bilhão investido em saneamento gera 10 mil empregos apenas em obras, cumprir a meta do Plansab gera 300 mil empregos ainda este ano”, escrevem.
Impactos atuais e futuros
O tamanho do impacto climático está diretamente relacionado ao quanto vamos deixar o planeta aquecer ao longo dos próximos. Um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publicado há dois anos apontou que 0,5°C a mais já pode fazer uma grande diferença.
Se o planeta aquecer 1,5°C até o fim do século, os impactos já existem, mas ainda são relativamente manejáveis. Se o aumento for de 2°C, a situação já fica mais dramática. Veja infográfico que mostra diferentes cenários conforme o aquecimento.
Recuperar a economia pós-pandemia é a oportunidade para deixar a sociedade mais resiliente, tanto para ser capaz de combater as mudanças climáticas quanto para lidar com o que seja inevitável delas.
Isso porque ela pode atingir praticamente todos os aspectos da nossa vida e os vários setores da economia. Um clima mais quente, por exemplo, pode levar a secas e enchentes mais extremas, que podem afetar a produção de energia e a agricultura, a segurança hídrica e a alimentar.
São esperadas grandes migrações humanas a partir de locais que vão se tornar inadequadas para a vida. Doenças transmitidas por mosquitos podem mudar sua área de distribuição e o próprio aumento da temperatura pode levar a mortes em situações de ondas de calor.
Um estudo recente de economistas norte-americanos estimou que se não forem adotadas medidas para conter as emissões de gases que aquecem o planeta, as taxas globais de mortalidade por causa do calor poderão chegar a 73 mortes por cada 100 mil pessoas até 2100. O número supera o total anual de mortes causadas por todas as doenças infecciosas no mundo, incluindo tuberculose, HIV/Aids, malária, dengue e febre amarela.
Com o aquecimento que temos hoje, diversos efeitos já são sentidos em todo o mundo, como o aumento da ocorrência de eventos extremos. Um trabalho divulgado recentemente pelo climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), revelou que chuvas intensas concentradas em poucos dias, separadas por longos períodos de seca estão sendo cada vez mais frequentes na Região Metropolitana de São Paulo.
Analisando ocorrências dos últimos 60 anos, Marengo e equipe observaram que situações que levam a deslizamentos, inundações repentinas ou secas vêm aumentando, assim como os seus impactos socioeconômico e ambientais.
Na semana passada, a Nasa divulgou que o derretimento da Groenlândia atingiu níveis recordes em 2019. Foram 532 bilhões de toneladas de massa perdidas, o maior volume desde 1948, quando começaram os registros. “Isso é água suficiente para elevar o nível médio do mar em 1,5 mm, o que é como cobrir toda a Califórnia em mais de 1,2 m de água”, afirmou a agência espacial norte-americana.
“Os mais vulneráveis são sempre os que estão perdendo, os primeiros a morrer. Na covid, vimos esse número de mortos, que é um horror. Mas quem trabalha com clima sabe que com as mudanças climáticas o número de mortes vai ser muito maior, infelizmente”, resumiu Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade, em live realizada no Estadão na última segunda-feira.
“Vai ser com muito mais dor e quem vai estar na frente dessas mortes novamente são os negros, os que moram em periferia, os que estão mais vulneráveis em termos de pobreza. Então tanto a política de segurança pública, a de saúde, e a de clima, mostram que o tema da desigualdade é absolutamente fundamental. Promover resiliência, a adaptação nas cidades vai ser fundamental para a agenda climática brasileira”, alerta a economista e cientista política.
Vera Magalhães: Governador do Rio colapsou com a mesma rapidez que surgiu
Wilson Witzel é um fenômeno sui generis na política brasileira, que vem acumulando espécimes desta natureza desde 2018. Na campanha ao governo do Rio, era um ex-juiz desconhecido, algo caricato, de um partido nanico, figurante. Foi então que colou sua imagem à de Jair Bolsonaro, tentou surfar na então maré influente de juízes valentões, participou do gesto de rasgar a placa de Marielle Franco e enfrentou Eduardo Paes num debate.
Foi esse o “currículo” que levou o desconhecido cujo nome ninguém sabia pronunciar direito à vitória no terceiro maior Estado da Federação já encalacrado, com dois ex-governadores (Sérgio Cabral e até então também Luiz Fernando Pezão) na prisão, outros três (casal Garotinho e Moreira Franco) tendo feito escalas por lá, absolutamente quebrado do ponto de vista fiscal e econômico, fraturado socialmente, dominado pela violência, loteado entre tráfico e milícia.
Não que houvesse grandes opções. O adversário favorito era Eduardo Paes, que, embora não tenha sido engolfado pelo escândalo de Cabral diretamente, foi aliado do exgovernador o tempo todo de seus dois mandatos na prefeitura. Na capital do Rio o comandante é o bispo Marcelo Crivella, que transformou a cidade num experimento de política neopentecostal, levado adiante mesmo no enfrentamento da pandemia.
Alarmante é pouco para descrever a situação em que se encontra o Rio. A magnitude e a extensão da operação que afastou Witzel do cargo, prendeu políticos proeminentes, como Pastor Everaldo, e mostrou um esquema seriíssimo de fraude na Saúde em plena pandemia mostra um Estado carcomido por sucessivos grupos políticos que viram nele apenas uma casa a ser saqueada até não sobrarem nem as vigas.
Witzel não tinha projeto, não tinha noção de administração pública, não tinha partido e não tinha, agora vê-se, boas intenções. Desde o dia 1 no cargo se alternou entre declarações e ações midiáticas, brigas com Bolsonaro e encrencas com a Assembleia. A briga com o presidente e espelho político se mostrou seu maior erro, ocasionado pela ilusão de que poderia ser candidato a presidente.
Governador acidental, Witzel parece ter acreditado que era um ungido para voos maiores. A queda tão rápida quanto a ascensão ao menos corta na raiz uma carreira política de que Rio e Brasil não precisavam. E assim como ele está cheio de arrivista por aí, nos Executivos e Legislativos.
Celso Ming: Umas e outras maldades de uma nova CPMF
Quanto mais se examinam as distorções que esse tributo pode trazer, mais ele se torna inaceitável
Dia após dia, vão aparecendo novas maldades embutidas no projeto da nova taxa sobre movimentações financeiras, cujo nome, sobrenome e sigla seriam Imposto sobre Transações Financeiras, ITF.
Na última quarta-feira, a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, confirmou que esse novo tributo não se restringiria apenas a operações digitais, como tantas vezes afirmara o ministro Paulo Guedes. Mas, como disse ela, alcançará “todas as transações da economia”.
Também não é verdade que se trata de uma alíquota baixa, de apenas 0,2%. Ela incidirá sobre as duas pontas de cada transação, tanto sobre quem paga quanto sobre quem recebe. Ou seja, a alíquota verdadeira é 0,4%, mais alta do que o 0,38% cobrado pela antiga CPMF, que atingia apenas a ponta do pagamento.
Isso significa muita coisa. Recolherá o ITF tanto quem estiver pagando pelo pãozinho com cartão de crédito como também o padeiro. Significa, também, que o contribuinte brasileiro pagará também pelo consumo no exterior. Se ele liquidar sua conta com cartão de crédito, terá de recolher automaticamente os 6% do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre câmbio (conversão da moeda estrangeira em reais), mais o 0,2% dessa nova taxa. O turista estrangeiro que quitar suas contas no Brasil com cartão de crédito não estará sujeito ao imposto, mas quem dele receber terá de recolher sua parte.
Se o que a assessora especial Vanessa Canado está dizendo for confirmado e se todas as transações financeiras estiverem sujeitas a esse tributo, então teremos uma penca de distorções no sistema financeiro do País.
A primeira delas está na Bolsa. Pagar mais 0,4% por compra e venda de ações pode comer um pedaço importante do retorno da operação. Os negócios day trade, por exemplo, poderiam ficar inviabilizados. O mercado secundário perderá liquidez, com prejuízo para todo o mercado de capitais.
E vejam a situação da caderneta de poupança. Hoje, o rendimento mensal não passa de 0,125%. Se o depósito já comerá 0,2%, porque será preciso transferir da conta corrente para a conta de poupança, e se a retirada comerá outro 0,2%, então, só esse imposto estará queimando mais de três meses de rentabilidade.
Impacto semelhante acontecerá sobre os fundos de investimento que já estão sujeitos ao Imposto de Renda e à taxa de administração – e, com o novo imposto, terão sua rentabilidade corroída por mais 0,2% no momento da aplicação e outro 0,2% no momento da retirada. Ou seja, o estrago desse imposto sobre o rendimento do mercado financeiro, num ambiente de juros reais quase negativos, será substancialmente maior do que no tempo da CPMF, quando os juros básicos eram superiores a 10% ao ano.
Se esse ITF for aprovado, outra distorção será a enorme propensão ao uso de dinheiro vivo para pagamento de contas, que seria para fugir pelo menos de uma perna do imposto. O padeiro, acima citado, por exemplo, preferirá receber em dinheiro. E o mesmo acontecerá com outros recebedores de pagamentos: o feirante, o médico, a escola, o dentista… Por aí se vê que a demanda por papel-moeda tenderá a se multiplicar a ponto de não haver lobo-guará que dê conta do serviço.
Para evitar pagamentos em moeda, o governo parece propenso a adotar os dispositivos do efeito Ives Gandra. Explicação: o tributarista Ives Gandra Martins, nesse episódio mui amigo do contribuinte, sugeriu ao governo que um grande número de “pagamentos por fora”, feitos com o objetivo de fugir ao ITF, poderia ser evitado se a PEC do novo tributo incluísse cláusula que torna inválidas transações cuja taxa não tivesse sido recolhida.
Assim, negócios com imóveis, com veículos e outras operações que exijam registro em cartório ou equivalente perderiam validade caso o interessado não apresentasse algum comprovante do devido recolhimento do tributo.
Nas últimas semanas, apareceram mais análises que diziam mais ou menos o seguinte: esse novo imposto é mesmo perverso, mas é melhor engolir essas perversidades e garantir as receitas necessárias para a recuperação da atividade econômica do que continuar no sufoco em que estamos.
Mas quanto mais se examinam as distorções que esse tributo poderá trazer, mais ele se torna inaceitável.
Elena Landau: Universo em desencanto
Vontade de apagar a História é característica de governos autoritários como este
Um amigo da família, publicitário da Kibon, era responsável por batizar os novos produtos da marca. Estava com especial dificuldade para o nome de um sorvete de frutas. Inquieto, taciturno, trancado em seu escritório, não queria ouvir um pio das crianças brincando. E nós, amedrontadas, obedecíamos. Até que um dia ele sai eufórico pela casa gritando: “Jajá de coco”, enquanto socava o ar como Pelé.
Essa lembrança me veio à cabeça logo que soube do nome do novo plano do governo, a ser lançado em um Big Bang Day. Imagino um grupo de técnicos reunidos em uma mesa na Esplanada a socar o ar, eufóricos com o grande achado.
O suposto plano é apenas um apanhado de iniciativas dispersas. Mistura assuntos emergenciais com questões estruturais. Não traz respostas de curto prazo para a saída da pandemia, nem projeto de longo prazo de crescimento. Nada de abertura comercial, redução drástica nos gastos tributários, revisão de regime especial do IR, abertura comercial, privatização ampla e reforma administrativa. E um choque educacional, nem pensar. Ainda tem a CPMF, é claro.
Mantém a aparência de um discurso de responsabilidade fiscal, ao mesmo tempo que acena com obras públicas e ampliação de programas como 0 Minha Casa, Minha Vida. Tudo com foco no Nordeste, mesmo sendo o déficit habitacional maior no Sudeste. Populismo é tudo igual. A exploração da tragédia social segue como a principal política econômica do País.
O teto se mantém como ficção. O pacote não estabelece claramente os mecanismos e gatilhos que o preservariam. Mesmo porque o presidente não está preocupado com o assunto. O teto vai morrendo por falência múltipla dos órgãos, em decorrência da doença crônica do clientelismo brasileiro.
Os saudosos do nacional desenvolvimentismo têm a romântica ideia de que gasto não importa, desde que se faça direito. Gastar bem no Brasil, isso sim, seria um novo Big Bang. O vice Mourão acaba de anunciar a compra de um satélite desnecessário. A desculpa é sempre a tal da soberania nacional, que também justifica a permanência de tantas estatais nas mãos do governo. A Valec deve atender a algum critério de soberania que me escapa.
Na reciclagem de ideias, até a capitalização da Eletrobrás, que perambula desde 2017, entrou na lista. Deverá ser modificada no Senado. E aposto que sai piorada. O Tesouro vai acabar pagando por ela em vez de receber. Nem sua privatização, nem a venda antecipada dos contratos da PPSA, vão transformar o modus operandi do Estado brasileiro.
Muda o governo e só muda o cliente. Empresas que interessam aos militares se mantêm intocadas e ainda recebem reforços financeiros. O expediente de capitalização de estatais é outra peneira oficial no teto. No apagar de 2019, foram R$ 10 bilhões em uma tacada. Agora, governo pede mais R$ 500 milhões ao Congresso. Mais uma vez, entre as contempladas, está a Emgepron. Corvetas e fragatas é a pauta prioritária.
O esforço de marketing não resolve. O plano está mais para a teoria do estado estacionário. De todo jeito, o dia do Big Bang foi adiado para a semana que vem ou por 13,7 bilhões de anos. Tendo o ministro da Economia como átomo primordial, talvez melhor não arriscar mesmo. Vai quê.
Bolsonaro parece que não gostou das propostas. Claro, só pensa na reeleição. O que importa é a continuidade do auxílio, o resto é perfumaria. Quer um programa assistencialista de fácil entendimento para oferecer. A diferença de R$ 30 no valor do auxílio, combinado com o fim do abono salarial, inviabilizou o anúncio do plano. Não foi o ambiente pesado no Senado, por conta de mais uma declaração desastrosa de Guedes, nem mesmo o crime de ameaça física do presidente da República a um repórter que fez a pergunta que não vai calar: “Por que sua esposa recebeu R$ 89 mil de Queiroz?”.
Quanto mais confusão na economia, melhor. Muda o foco. STF, trapalhadas dos filhos e a ameaça Queiroz o calaram, mas ele não mudou. Segue firme na agenda: militares, assistencialismo e obscurantismo. Contando com a fidelidade de todos seus ministros, inclusive Guedes, que não está sendo fritado. Apoia o projeto ideológico clientelista e só sai quando não for mais útil para o chefe. Vai taxando livros, coisa de elite, enquanto isenta a linha branca e mantém a Zona Franca.
Bolsonaro reclama da imprensa. Mas não foi cobrado pela passividade da Damares diante dos ataques de fanáticos religiosos a uma criança; pelo envio do quadro de Djanira, “Orixás”, para os porões do Palácio do Planalto nem mesmo pelo uso do avião da FAB por garimpeiros ilegais. A invasão da Cinemateca passou batida. Lá, além dos filmes nacionais, estão as imagens que carregam a memória do nosso País. Correm o risco de se perderem.
A vontade de apagar a História, o desprezo pela cultura, pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos andam juntos em governos autoritários como este. Um cidadão que pensa, imagina, cria e desenvolve senso crítico, incomoda muito. Deve dar mesmo vontade de encher a boca de cada um de porrada.
*Economista e advogada
Eliane Cantanhêde: Na frigideira com Moro
Bolsonaro tem os votos e as decisões, Guedes tem duas opções: engolir em seco ou cair fora
Desta vez, o presidente-candidato Jair Bolsonaro acertou duplamente, no conteúdo e na forma. O que resolve a questão do desenvolvimento e da renda é mesmo o emprego e foi uma bela sacada anunciar que não vai “tirar de pobres para dar a paupérrimos”. Quem há de discordar? De quebra, é bom slogan de campanha, pois atinge quem tem um mínimo de bom senso e os alvos do presidente, o Nordeste e os de baixa renda, ou seja, o eleitorado que parecia cativo do PT.
De fato, causou espanto a “mágica” do ministro Paulo Guedes para financiar os devaneios populistas e a campanha à reeleição do presidente: tirar de abono salarial, salário-família, seguro-defeso (para pescadores artesanais) e até do Farmácia Popular (remédios grátis para, por exemplo, hipertensão e diabetes). A explicação dos burocratas é que há muita fraude, muito rico tirando ‘casquinha’. Ou seja: se a água da banheira está suja, jogue-se o bebê fora.
Bolsonaro disse “não” para Paulo Guedes, que já reclamou da “debandada” do seu time e ainda tem de ouvir calado a crítica pública do presidente a quem sobrou. E foi antes de a assessora Vanessa Canado responder à pergunta que não queria calar: o “novo imposto” de Guedes é, sim, a velha CPMF. E isso balança o tripé da política econômica: Bolsonaro, Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que ora se alia a Guedes, a favor do teto de gastos, ora a Bolsonaro, contra a CPMF.
Com o técnico Guedes em baixa, Bolsonaro e Maia ficam mais à vontade em seus planos políticos. Um só pensa em 2022, o outro finge que não, mas vai tentar se reeleger à presidência da Câmara em fevereiro de 2021. E os dois podem se ajudar. Bolsonaro vai inclusive abandonando o “Jairzinho Paz e Amor”, reassumindo sua verdadeira identidade, das armas e da guerra, e encenando a mesma peça da fritura de subordinados.
Planalto e Economia dão a mesma versão: o presidente adora Guedes, Guedes adora o presidente e ninguém sai. Mas os fatos jogam o ministro na fogueira onde já arderam Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Joaquim Levy, Ricardo Galvão, Regina Duarte. Sabe-se lá por que, Bolsonaro não resolve as coisas no seu gabinete, olho no olho. Parece que a fritura só tem graça com público, claque, câmeras. O presidente dá um solavanco no sujeito numa entrevista. O mercado treme, os setores envolvidos tomam as dores e vem o deixa-disso. No fim, ou a vítima se demite, como Moro e Levy, ou é demitida, como Mandetta e Galvão.
O fato é que o presidente descobriu, aliviado, que ninguém é mesmo insubstituível. Diziam que, se Moro caísse, o governo caía junto. Moro se foi e nada aconteceu. Mito por mito, os bolsonaristas jogaram fora o ministro junto com a Lava Jato e ficaram com o capitão. Dizem agora que, se Guedes cair, o mercado abandona o barco. Que nada! Com outro Paulo Guedes, o mercado se acomoda direitinho.
A questão não é só política e econômica, é também aritmética. Nem o Guedes que aí está nem um outro Guedes qualquer tem poderes mágicos para somar dois mais dois e dar três. Nem para manter o teto de gastos e ao mesmo tempo fazer o que Bolsonaro quer. Mas Bolsonaro é quem tem voto e quem decide as prioridades para gastos e cortes. Se Guedes não gostar, tem duas alternativas: engolir em seco ou jogar a toalha. A ver.
R$ 1 bilhão
Enquanto o STF não anula a delação premiada de Joesley e Wesley Batista, a PGR analisa uma repactuação que pode custar caro aos irmãos da JBS: R$ 1 bilhão. E justamente quando o ex-presidente Temer é inocentado em primeira e segunda instâncias e surge o estranhíssimo envolvimento de quase R$ 10 milhões dos Batistas com Frederick Wassef.
José Serra: A hora do saneamento básico
Novo marco vai na direção correta. Saúde dos brasileiros e meio ambiente agradecem
Venho defendendo uma agenda de recuperação econômica pós-pandemia, por meio de novos investimentos e de aumento da produtividade. Considero o novo marco regulatório do saneamento, relatado pelo senador Tasso Jereissati, uma das principais iniciativas dessa agenda. Além dos impactos econômicos, os investimentos em saneamento básico trarão externalidades altamente positivas no campo social e na saúde pública. Entre eles se inscreve um “novo rumo para a infraestrutura na América Latina”, citado em editorial do Estado (2/8, A3), alertando não só para a infraestrutura física, mas para a incorporação de tecnologias, maior eficiência, qualidade e acessibilidade para os usuários.
Por exemplo, a Organização Mundial da Saúde estima que, para cada real investido em saneamento se economizam quatro em gastos com saúde. Também estima que diariamente 41 pessoas morrem e 958 são internadas, no Brasil, por doenças ligadas à falta do saneamento básico, o que se vem agravando com a pandemia. Mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada e quase metade da população não conta com serviços de esgotamento sanitário.
A aprovação do novo marco do saneamento básico desperta grandes esperança de enfrentamento desse drama. A nova lei rompeu com um paradigma do Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasa), implantado na década de 1970, que delegou os serviços de água e esgoto dos municípios às companhias estaduais de saneamento básico (Cesbs). Na prática, o serviço tornou-se estadual.
No período militar, essa delegação foi contratada sem licitação e sem cláusulas quanto às obrigações da concessionária. As Cesbs eram monopolistas sem nenhuma regulação.
A Constituição de 1988 determinou que todo serviço público fosse prestado diretamente pelo ente público ou por concessão, precedida de licitação. Proibiu, ainda, tratamento privilegiado para as empresas estatais.
Mas o status quo foi mantido, em 2005, com a Lei n.º 11.107, mediante o “contrato de programa”, em regime similar à concessão, com duas exceções: 1) beneficia apenas empresas estatais e 2) prescinde de licitação. Ou seja, em lugar de empresas públicas e privadas disputarem o mercado oferecendo maiores investimentos e menores tarifas, as concessões do Planasa foram renovadas via contratos de programa e nada mudou.
Um marco legal para o saneamento básico foi instituído apenas em 2007. Previa a elaboração de planos municipais de saneamento básico.
Também foram instituídas cláusulas obrigatórias dos contratos de concessão ou de programa, exigindo a individualização contábil de cada município atendido e obrigando à regulação dos serviços, a fim de coibir abusos de poder econômico.
Mais de uma década depois, o que se constata é que o modelo Planasa continua praticamente intacto. Os contratos de programa não estipulam metas de investimento ou obrigações claras para as empresas prestadoras, as receitas e despesas relativas a cada município não são segregadas e as agências reguladoras não têm autonomia para contrariar os interesses das Cesbs.
O novo marco regulatório representa uma ruptura com o modelo vigente, ao exigir que a contração das Cesbs se dê por contrato de concessão precedido de licitação, conforme o artigo 175 da Constituição de 1988. Não se trata de privatizar essas empresas, mas de acabar com seu monopólio, de modo a introduzir a concorrência em segmento fundamental da economia brasileira, a exemplo do que já se fez nas áreas de energia, transportes e telecomunicações.
Apesar da urgência na atração de investimentos para a universalização dos serviços, em nenhum momento se pretendeu interromper os contratos de programa, que expiram em datas variadas, quase todos ainda com mais de cinco anos de vigência pela frente.
O novo marco prevê a formação de blocos de municípios, para prestação regionalizada, com visando a obter economia de escala e a combinação de áreas rentáveis e deficitárias. Cada bloco deverá ter seu plano de saneamento básico atualizado, para então se preparar a modelagem das futuras licitações.
Não há por que supor que empresas privadas levem vantagem sobre empresas estatais nas futuras disputas. A rigor, prevalece o contrário. Como incumbentes, as Cesbs conhecem em profundidade a geografia da área a ser atendida e as condições da infraestrutura existente, e dispõem de recursos humanos e materiais no local, o que reduz os custos de prestação dos serviços.
Em toda a minha atuação na área de saúde sempre tive uma preocupação especial com a melhoria do saneamento básico no Brasil e estou seguro de que o novo marco vai na direção correta. Ainda podemos avançar com a aprovação de mecanismos tributários estabelecendo a possibilidade de o PIS-Cofins devido pelo setor ser utilizado para financiar investimentos. Em vez de tributos, investimentos na expansão dos serviços, incluindo aumento da produtividade das diferentes ações, como a redução do desperdício de água.
Chegou a hora do saneamento básico. A saúde dos brasileiros e o meio ambiente agradecem.
*Senador (PSDB-SP)
Eugênio Bucci: Palavrões e desrazão
Que esperar de suposto estadista que fala na língua das quadrilhas de traficantes…?
A contragosto, voltemos a isso. Voltemos porque o falastrão voltou a atacar. Nesta semana, como que regressando à ativa, o presidente da República restabeleceu sua velha forma prosódica e deu de insultar gente honesta com termos chulos. No domingo, a um repórter do jornal O Globo que lhe perguntou sobre os R$ 89 mil depositados na conta da primeira-dama, respondeu com um bodoque vocabular: “Vontade de encher sua boca de porrada”.
Tente imaginar, por alguns segundos, que tipo de ser humano se expressa nesse léxico. É chocante. Em mau português, essas palavras materializam o soco na cara do interlocutor. O simples enunciado já fere, já tira sangue da honra do outro. O ato violento é a própria fala, que nem precisa se traduzir em gesto físico para machucar. Sete palavras que ofendem e, acima disso, enxovalham um cargo público de alto a baixo. Mais uma vez. Voltemos a isso, então.
Na segunda-feira, mais barbaridades. Ao defender publicamente o emprego de substâncias exóticas para tratar a covid-19, a mesma autoridade voltou a se gabar do alegado “histórico de atleta” e se vangloriou de não ter desenvolvido sintomas graves da doença.
Aproveitou e disse que, quando o paciente é um jornalista, o quadro é pior. Mas ele não disse isso assim, com essa reles e preconceituosa falta de educação. Ele foi além. Abusou da vulgaridade. Ao se referir a um jornalista genérico – um jornalista qualquer que venha a ser acometido pelo vírus –, o autoproclamado atleta imune preferiu dizê-lo de modo mais torpe: “Quando pega num bundão de vocês a chance de sobreviver é bem menor”.
Diante de tal postulado podemos dizer que, segundo o presidencial juízo, aqui escreve um “bundão”. Todos os que exercem o ofício de jornalista acabam de ser tachados com esse qualificativo por ninguém menos que o governante do nosso país. Como reagir? Devolver o xingamento resolve? Falar na mesma frequência ajuda? Anula o dano? Difícil saber.
O que sabemos com segurança é que o palavrão foi alçado à condição de norma linguística da alta administração pública federal. A nova norma inculta alcançou o apogeu na reunião ministerial de 22 de abril – aquela que teve sua gravação em vídeo divulgada por força de decisão judicial –, quando presidente interpelou os seus subordinados aos berros, desfiando, um a um, todos os vocábulos de baixo calão disponíveis no dicionário.
O Brasil inteiro viu o ritual de baixezas exclamatórias na televisão e na internet. Uns ficaram aturdidos porque o chefe de governo declarou que queria armar a população (como vem armando, mas só a população que gosta de se armar). Outros se espantaram com o despudor de um ministro da Educação (parece que era isso) afirmando que os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam ser encarcerados. Mas o mais aterrador de tudo, o mais aviltante, não eram as atrocidades que aqueles seres pronunciavam, mas as palavras que eles usavam para pronunciá-las. O mais apocalíptico de tudo era a linguagem.
Que espírito de justiça, que sentimento de solidariedade, que elevação moral, que virtude humanitária, que cultura e que inteligência podem existir numa cúpula de Estado que se comunica nessa base? O que esperar de um suposto estadista que fala na língua das quadrilhas de traficantes com a desenvoltura dos capangas encapuzados em esquadrões da morte? O que ver de positivo num Ministério que se sujeita a ser tratado com o que pode haver de mais vil e de mais ultrajante no vernáculo?
O resultado é que estamos aí com essa persona investida de poder dedicada a nos xingar, e xingar de novo, todos os dias, com suas palavras e com seus silêncios. Fomos condenados a nos acostumarmos com isso aí, pois muita gente apoia isso aí. Entre outros setores, boa (má) parte da elite financeira do Brasil apoia. É inacreditável. Uns até fingem que é normal.
Tempos atrás, o endinheirado conformismo pátrio se resignava na base do “rouba, mas faz”. Agora, as mesmas forças (fracas) se rendem a coisa pior: “Xinga, mas diz que vai fazer as ‘reformas”. Essa turma deu de apoiar qualquer coisa em troca de umas promessas de “reformas” – promessas capengas, entremeadas de infâmias, não importa. Os dependentes químicos do substantivo “reformas” apoiam xingamentos, intimidações, apoiam latidos. Não cessam de incensar aquele que diz que vai fazer “as reformas” e não faz, aquele que cultiva e profere absurdos inomináveis.
Sim, absurdos inomináveis – absurdos às toneladas. Pense bem o improvável leitor: que tipo de batatada vai na cabeça de quem se jacta aos brados de não ter tido sintomas graves de uma doença que já matou 120 mil brasileiros? Na desordem mental da pessoa que diz tais coisas, a doença só derruba os mais fracos, os que não têm “histórico de atleta”, os pesos mortos. Logo, ela esnoba a enfermidade, que chama de “gripezinha” ou de “chuva”. A tal pessoa não se compadece da dor alheia, não conhece a empatia e, o que mais constrange, não alcança a razão. O palavrão estulto nos governa.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
William Waack: ‘Acabou o auxílio, volta pra miséria’
O governo está entre a alegria do momento e o pesadelo de amanhã
A dupla crise de saúde pública e econômica colocou Jair Bolsonaro diante de opções aparentemente irreconciliáveis. Ele ainda não encontrou o caminho para prosseguir naquilo que as circunstâncias o obrigam: a) continuar prestando ajuda emergencial a milhões de necessitados, um reconhecido imperativo político e humanitário e b) investir em obras públicas para retomada da economia, que precisa de estímulos para crescimento.
Note-se que não é uma escolha entre um ou outro. Não há recursos para um nem para outro dentro dos limites impostos pela crise fiscal.
Parece cansativa a repetição, mas é necessária: a questão fiscal domina totalmente nossa política. E, como assinalou o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, o problema central não é a existência do teto de gastos, mas o crescimento dos gastos obrigatórios.
Para agravar, há prazos curtos a serem respeitados (MPs que caducam, fim do período emergencial, aprovação do Orçamento, por exemplo) e números recentes compilados pela FGV escancaram a urgência imposta pela realidade social e suas temidas consequências políticas. São números de enorme crueldade, acentuada pela pandemia (aliás, os mesmos números indicam que a medida mais eficiente de confinamento foi pagar para as pessoas não terem de sair de casa).
Graças ao auxílio emergencial não se registrava desde 1986, época do Plano Cruzado (congelamento de preços), movimento tão acentuado de pessoas saindo de uma faixa socioeconômica (a dos paupérrimos) e indo para um degrau acima. O economista Marcelo Neri, que compilou os dados, foi, porém, contundente: “Acaba o auxílio, esses milhões descem de volta para onde estavam”.
É um sinal eloquente da nossa pobreza quando R$ 600 dados de mão beijada fazem tanta diferença nas estatísticas sobre faixas de renda. Ocorre que a manutenção desse auxílio não é possível com a situação fiscal presente. Bolsonaro livrou-se de um dilema inicial ao suspender a ideia de Paulo Guedes (correta em princípio) de remanejar recursos de programas sociais menos eficientes e dirigi-los a um programa de renda básica batizado como se quiser. “Seria tirar de pobres para dar a paupérrimos”, reconheceu o presidente, que, nesse ponto, demonstrou percepção política mais aguçada que a de seu principal ministro até aqui.
Livrou-se de um dilema, mas não do problema. A montagem dos programas de assistência na base da ampliação da renda além do Bolsa Família, a cada dia mais urgentes, depende do progresso em outras frentes políticas, como a negociação de reformas de altíssima complexidade. E que estão ligadas umas às outras: a tributária depende do Pacto Federativo que está sendo ligado à PEC emergencial, e tudo também depende de uma reforma do Estado via reforma administrativa, por exemplo. Sem criar impostos, sem furar o teto.
O maior perigo tem sido vocalizado também por forças políticas que apoiam o governo no Congresso e têm bom trânsito com a equipe de economia. O senador Marcio Bittar (MDB-AC), por exemplo, relator da PEC do Pacto Federativo, anda preocupado em se “tentar dar uma alegria no momento criando, em troca, um pesadelo por muitos e muitos anos”, declarou. Ou seja, continuar ajudando os 10 milhões de invisíveis às custas de qualquer responsabilidade fiscal.
É nesse contexto que ganha um significado muito maior a expressão “articulação política”. Pois não se trata de “apenas” conseguir votos para aprovação de matérias ou a manutenção de vetos (como ocorrido na Câmara recentemente). Talvez a palavra em espanhol “concertación” expresse melhor o que significa “articulação política” em época de opções irreconciliáveis: é um esforço político coletivo, coordenado, dirigido e com um foco preciso.
É óbvio que esse esforço no momento é muito acanhado. E sofre a concorrência de um comportamento típico de décadas de decisões políticas no Brasil: livrar-se de um pesadelo do momento jogando-o para o futuro.
Vera Magalhães: Perdemos o trem
Documentário ‘O Fórum’ mostra Brasil deslocado do resto do mundo
O trem que conduz ativistas, chefes de Estado, jornalistas e empresários à idílica cidade de Davos, nos Alpes suíços, funciona como uma metáfora do caminho que o documentário O Fórum, recém-lançado nas plataformas de streaming, mostra, de um mundo em lenta, mas inexorável transformação. E o Brasil que aparece na tela perdeu o trem e ficou perdido na estação.
Não é só a cena da conversa que mais parece uma brincadeira de telefone sem fio entre Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore, que viralizou nas redes sociais como um teaser do documentário, que mostra o quão deslocado o País está. São todos os aspectos abordados, da quarta revolução industrial às emergências climáticas. Somos párias, motivo de piada e preocupação por parte dos atores mais relevantes.
O filme tem duas partes. Uma mais otimista mostra um fórum concorrido em 2018, com Donald Trump posando de dono do mundo, Theresa May ainda não derrotada e um sorridente e galante Emmanuel Macron exalando charme pelos corredores. A edição de 2019 é mais melancólica e cercada de ceticismo, após o Brexit, com a crise comercial entre Estados Unidos e China já deflagrada e com Macron cercado pelos coletes amarelos. Nesse cenário, a presença de Bolsonaro é um constrangimento para todos.
A equipe do premiado diretor alemão Marcus Vetter teve acesso pleno a reuniões preparatórias de Klaus Schwab, fundador e figura central do Fórum, com sua equipe, empresários, ativistas para as duas edições que o filme retrata. Também acompanhou os bastidores, as conversas informais e as iniciativas que acontecem off-Davos, a partir do que é tratado ali.
Schwab tenta fugir de todas as formas do mico de ter de moderar o painel com Bolsonaro. Tenta passar o fardo para o presidente mundial da Nestlé, que declina gentilmente. Sua preocupação com a chegada do presidente brasileiro é mostrada em detalhes. Até que, já nos 15 minutos finais do filme, Bolsonaro entra em cena. Seu bizarro discurso de dois minutos na abertura do evento é mostrado na íntegra, com cenas intercaladas da plateia atônita e o filho 03, Eduardo, filmando tudo com cara de “meu paipai” na primeira fila.
A cena da conversa com Gore dá ainda mais vergonha quando mostrada sem cortes. Bolsonaro está na sala de café absolutamente deslocado, acompanhado apenas de Ernesto Araújo. Na conversa com Gore, além de tratar Alfredo Sirkis como seu “inimigo na luta armada”, uma mentira completa e desnecessária, ainda termina o breve e desastrado encontro dizendo que sabe quem o ex-vice-presidente norte-americano é, e não o tem como inimigo.
Em seguida Bolsonaro é abordado por Jennifer Morgan, diretora-executiva global do Greenpeace, que diz que ficou satisfeita em ouvir seu compromisso com a preservação da Amazônia. Bolsonaro não a olha nos olhos, não responde e diz só um “thank you” enfezado ao final. Em seguida, ela tira sarro com uma colega ativista por ter conversado com o presidente brasileiro, e a interlocutora ri de sua “coragem”.
É esta a imagem do Brasil que emerge de um filme que mostra ainda outros líderes mundiais em ação para mitigar os efeitos crise ambiental no mundo. “Pronta?”, pergunta Schwab a Angela Merkel. “Estou sempre pronta”, responde ela, sem a enorme entourage do presidente brasileiro (outro motivo de chacota dos organizadores).
O documentário deixa claro que as discussões sobre mudança de mentalidade de nações e empresas em relação ao meio ambiente não são acessórias, mas essenciais. Isso era verdade no pré-pandemia e será no pós. O Brasil não está no mesmo vagão de todos os demais tomadores de decisões, inclusive os investidores. Passamos vergonha e ficamos perdidos na estação junto com Bolsonaro.
Rosângela Bittar: Agora um voto, depois o outro
Nascerá, nas municipais, a temperatura da campanha federal de 2022
O País está a 80 dias das eleições municipais e a dois anos da eleição presidencial. E como eleição não é fetiche mas a única forma de acesso ao poder, não dá para resmungar dúvidas e dificuldades, a única saída é encará-las. Por mais que os eleitos na fornada de 2018 tenham decepcionado e deixado uma aura de desânimo no eleitorado, não se deve fugir do desafio. A excepcionalidade deste ano faz valer a pena, a realidade se impõe com seus agravantes. Entre eles, a evidência de que o pleito favorecerá reeleições, a começar pelos custos da campanha.
Quem está no cargo terá 45 dias a mais de exposição em propaganda oficial da sua administração, com dinheiro público. E um cardápio perfeito de proselitismo ilegal, incluindo as ações assistencialistas impostas pela pandemia. O financiamento próprio dos candidatos ricos é limitado, portanto seu trunfo será relativo. Outra peculiaridade:
menos de mil dos mais de cinco mil municípios têm campanha na televisão, os demais serão invadidos pelos sinais dos vizinhos. E a promessa de ampla campanha virtual exige verba considerável. Desvantagem para quem não está no cargo.
A abstenção eleitoral se acentuará pela pandemia. O adiamento da votação para 15 de novembro, porém, não teve o efeito esperado. Havia a previsão de que, em 45 dias para a frente, o País teria algum controle da doença. Expectativa frustrada. Não há sinais de que até lá será possível voltar às campanhas de rua, com aproximações, passeatas, abraços e apertos de mão. Nem se afastou, também, o risco de redução drástica do comparecimento às seções eleitorais.
Inexistem sinais de que em novembro o Brasil terá melhor diagnóstico para a covid-19, mais remédios e alguma vacina completando seu ciclo de testes. Ou que arrefeçam os riscos de contaminação. Os idosos reduzirão sua presença, seja por iniciativa própria ou por conselho dos parentes. Uma situação que afeta, bastante, a disputa em alguns municípios, caso de São Paulo, onde o eleitorado mais velho decide a disputa. A multa para quem não comparecer é irrisória, R$ 3,50. E mesmo assim, devido à pandemia, o Congresso deverá providenciar ampla anistia. Será suficiente o número de mesários dispostos a passar 12 horas expostos ao risco da contaminação frente a frente? Haja álcool em gel para 150 milhões de eleitores. O tempo da votação se prolongará, pelo uso do sistema antigo de identificação.
Os pequenos e médios municípios ainda devem apresentar alguma discussão sobre os problemas locais, especialmente da educação, da saúde, da segurança, como sempre ocorreu. Mas há o risco de a campanha municipal ser invadida pela indignação nacional que a epidemia causou.
Os temas federais, porém, estarão com certeza nas campanhas das grandes cidades: a recessão, o desemprego, a criação do novo imposto-Bolsonaro, o desprezo do presidente às mortes e à doença dos brasileiros, o obscurantismo do governo na ciência e nas artes, especialmente. Um arsenal temático que, em princípio, deve prevalecer no debate, pelo menos onde houver segundo turno. Apenas 100 dos 5550 municípios brasileiros.
Entre as incertezas que ainda cercam a eleição municipal estão suas conexões com a eleição presidencial de 2022.
O candidato a prefeito que perder a disputa, mas for bem votado, passará a ser candidato a deputado estadual ou federal, e estará, fatalmente, conforme o costume, com a cabeça na próxima disputa, a presidencial. Que tende a valorizar todo e qualquer apoio.
O mesmo ocorrerá com os vereadores, inclusive os eleitos, dispensados de deixar o mandato se desejarem dar um passo à frente. São todos importantes, mesmo perdendo. O que é uma provocação também para aos atuais deputados federais e estaduais, que terão concorrentes qualificados. Nascerá, nas municipais, a temperatura da campanha federal de 22.
Almir Pazzianotto Pinto: O mercado de trabalho e a pandemia
Este ano já é perdido. O governo deve cuidar para a crise não pôr a perder a próxima década
Recebo frequentes convites para participar de reuniões virtuais com o propósito de prever como serão as relações de trabalho em 2021. Prever é profetizar. Profeta, na acepção da palavra, é “alguém por meio de quem se dá a conhecer a vontade e o propósito divinos” (Luc 1:70; At 3:18-21). O Velho Testamento foi revelado a profetas como Moisés, Samuel, Zacarias, Jeremias, Ezequiel. Para os islamitas, Maomé foi o profeta a quem Alá, o único Deus, incumbiu de escrever e difundir o Corão.
A pandemia do coronavírus não foi profetizada. Não tivemos um Moisés a quem Jeová incumbisse de nos alertar sobre a praga destinada a ficar. É impossível dimensionar o tamanho do prejuízo. Sabemos apenas que o número de mortos e de infectados supera as piores estimativas e que a quantidade de empresas quebradas, de empresários falidos, de desempregados, de desocupados e desalentados tende a aumentar.
O mundo ficou mais pobre e o Brasil retrocedeu.
Somos mais de 210 milhões de habitantes de um continente chamado Brasil. O coronavírus cumpriu duplo papel: revelar a verdade oculta por falsas estatísticas e aprofundar a crise cujos primeiros sinais foram emitidos nos anos 1980.
Como ficará o mercado de trabalho após a pandemia? A pergunta exige respostas objetivas e convincentes. Antes que se instalasse já se sabia que a carência de emprego é um dos piores flagelos da humanidade Há mais de 20 anos os dados da Organização Internacional do Trabalho já o denunciavam. Farta literatura europeia examinava o tema em tom pessimista. Não se tratava apenas de problemas de desindustrialização ou de pobreza. Países ricos acusavam elevadas taxas de desemprego atribuídas à globalização, à informatização, à robotização e, mais recentemente, à inteligência artificial.
Como poderemos reencontrar o caminho do desenvolvimento? Como gerar milhões de empregos para jovens, adultos e idosos, brancos, negros e pardos, qualificados ou não qualificados? O primeiro obstáculo é a insegurança jurídica. Não há como ignorar. O temor ao passivo oculto aterroriza o empregador brasileiro. No terreno dos industrializados não estamos entre os exportadores porque os custos finais nos impedem o acesso ao mercado externo.
Ouço falar de avalanche de reclamações ajuizadas por empregados que se sentem lesados por medidas provisórias destinadas a preservar empregos e empresas. Se a ameaça não for de pronto afastada, o projeto de recuperação econômica nascerá morto ou aleijado. Gerar empregos não é mero ato de vontade. Exige planejamento correto e elevados investimentos. Alguém já se perguntou quanto custa criar e sustentar postos de trabalho? Quem desejar saber indague ao pequeno empresário.
O esforço de reconstrução econômica exigirá esforços a que não estamos habituados. Serão indispensáveis espírito de solidariedade, disposição para o sacrifício, boa-fé nos contratos, investir e enfrentar os pesados riscos do negócio.
O economista americano James Tobin, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, escreveu: “Nossa população aspira a um padrão de vida cada vez melhor, geração após geração. Para satisfazermos essas aspirações precisamos de contínuo crescimento da produtividade e, em consequência, precisamos de mais poupança, mais investimentos, mais pesquisas e desenvolvimento, mais tecnologia nova e melhor sistema educacional”. Em síntese, tudo o que nunca tivemos.
Os profetas da Bíblia não eram economistas. Não dispunham de consultores, bibliotecas, estatísticas. Revelavam o futuro como porta-vozes de Deus. O que profetizaram continua a ser lido e respeitado, independentemente dos resultados colhidos ao longo da História da humanidade. No mundo contemporâneo não temos profetas. Foram substituídos por sociólogos, economistas, cientistas políticos, institutos de pesquisas, calculadoras, computadores e jornalistas. Ainda assim, profetizar na política e na economia quase sempre traz maus resultados.
O ano de 2020 já é perdido. Não se trata de profecia, mas da constatação da realidade. O governo deve cuidar para que a crise não ponha a perder a próxima década. Com 15 milhões de desempregados, outros tantos desocupados, 65 milhões de dependentes do auxílio emergencial, a indústria, o comércio e o turismo quase paralisados, como serão as festas do Natal e de passagem de ano? Haverá dinheiro para férias, pagamento do 13.º, presentes, reuniões familiares, almoços e reuniões de confraternização?
Algumas boas experiências, porém, ficarão. Reaprendemos como é agradável ficar com a família e ter tempo para ler. Desenvolvemos o sentido da solidariedade. Adquirimos o hábito da compra pela internet, sem idas e vindas ao shopping ou ao supermercado. Dominamos a técnica das reuniões por videoconferência. O trabalho à distância mostrou-se produtivo. Veio para ficar. Economiza espaço, dinheiro, estimula a criatividade, valoriza a independência, cria oportunidades, oferece conforto e permite minutos de lazer.
Como se diz na França, à quelque chose malheur est bon (há males que vêm por bem).
*Advogado, foi ministro do trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
Vera Magalhães: O que fez o presidente se calar o faz explodir
O mesmo assunto que fez Jair Bolsonaro se calar nos últimos meses foi responsável por sua explosão de violência com um jornalista anteontem. Trata-se do caso Fabrício Queiroz, o calcanhar de aquiles da família Bolsonaro. A pergunta feita ao presidente não foi acessória: o que explica 21 depósitos, no total de R$ 89 mil, da família de Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro?
Não era a única possível concernente ao caso que envolve rachadinha do gabinete do filho Flávio. Por que Queiroz fez depósitos regulares na conta do ex-chefe? Por que os funcionários do gabinete de Flávio depositavam a maior parte de seus salários na conta de Queiroz? Por que Queiroz pagava prestações do patrão?
Nenhuma pergunta autoriza um presidente a responder ameaçando “encher de porrada” a boca do profissional. Esse tipo de arroubo não é exceção. Trata-se do comportamento de Bolsonaro como homem público desde sempre.
Mas a prisão de Queiroz e o cheiro do impeachment o levaram a se recolher e a fingir um republicanismo que não tem nem nunca terá. E a soltura do homem-bomba e sua ligeira subida na pesquisa o deixaram à vontade para voltar a exibir as garras autoritárias.
Tanto que ontem dobrou a aposta, colocando sua milícia para falsear as circunstâncias da agressão e chamando jornalistas de “bundões” numa sinistra cerimônia para “celebrar” a “vitória” contra a covid-19.
Bolsonaro não se moderou, e não o fará a não ser que seja obrigado pelas instituições e pela sociedade. Começou anteontem com uma reação forte e uníssona contra a mais recente barbárie. Mas é preciso mais.
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