o estado de s paulo

Monica De Bolle: PIB e pandemia

O descontrole da epidemia é responsável pela retração de 9,7%, assim como é o atraso do governo em enfrentar a crise

Se alguém ainda tinha dúvidas de que a economia brasileira sofreria um estado de depressão econômica em decorrência da pandemia e das respostas econômicas inadequadas do governo, se alguém ainda achava que saúde e economia eram temas separáveis, está aí a evidência em contrário. Não só a queda do PIB no primeiro trimestre – quando apenas duas semanas no fim de março foram responsáveis pelo resultado – foi maior do que havia sido divulgada, mas a retração de 9,7% no segundo trimestre foi a maior desde 1996, o início da série histórica. Tais resultados dramáticos levantam várias questões sobre o quadro à frente.

Praticamente todos os componentes do PIB, seja pelo lado da oferta ou da demanda, sofreram quedas históricas, jamais registradas. A indústria e os serviços colapsaram. O consumo das famílias sofreu queda de 12,5% comparada ao trimestre anterior, que já havia sido ruim. A retração do consumo das famílias foi especialmente alarmante pois durante o segundo trimestre estava em vigor o auxílio emergencial que, apesar de suas falhas de execução – e relatos de fraudes –, deu algum sustento à economia. Imaginem o que não teria ocorrido caso o Congresso não tivesse aprovado o auxílio em abril, quando o governo ainda se mostrava refratário à medida. Esses resultados deixam à mostra que economia e saúde estão intimamente interligadas e, não, não adianta dizer que o problema foram as medidas de saúde pública.

O Brasil jamais teve uma quarentena séria, jamais passou por um estado de lockdown como ocorreu em alguns Estados e localidades nos EUA e como fizeram vários países europeus e asiáticos. O descontrole da epidemia é responsável por esse resultado, assim como é o atraso do governo em enfrentar a crise, lembrando que no dia 16 de março o ministro Paulo Guedes ainda dizia que a economia brasileira iria crescer em 2020.

Como a epidemia continua descontrolada no Brasil, não há muito alento pela frente. É possível que o terceiro trimestre apresente alguma “melhora”, mas boa parte disso será puramente efeito estatístico dado o tamanho do tombo no início do ano. E, sempre há a possibilidade de recrudescimento da epidemia em localidades que hoje apresentam algum alívio. Segundas, terceiras, quartas ondas até são prováveis, já que o vírus é o que é: novo, imprevisível, uma fitinha de RNA com alto grau de mutabilidade. Arrisco dizer que, no momento, várias cidades e alguns Estados brasileiros estejam passando por alívio temporário. Sem medidas rígidas de controle, a epidemia voltará. É o que vemos mundo afora, afinal.

O que fazer diante disso? Apesar de toda a má gestão do governo Bolsonaro nessa crise, a prorrogação do auxílio emergencial é um alento. O benefício será agora pago até dezembro, como alguns de nós sempre defendemos, mantendo a coerência com a declaração de estado de calamidade, que vence no último dia do ano. O valor do benefício foi reduzido à metade, o que certamente removerá uma parte da sustentação econômica que diversos estudos já mostraram. Fica a dúvida sobre como as pessoas que mais necessitam do auxílio irão dar conta de suas necessidades com menos dinheiro. Contudo, é melhor ter algo do que não ter nada, possibilidade que há poucos meses era dada como a mais provável. Vi muitos argumentando que mantido o valor do auxílio emergencial, o Brasil poderia passar por tremendas dificuldades fiscais. Os mais extremados falaram em “quebra” do País.

O auxílio emergencial sempre foi uma medida cara para os cofres públicos – não à toa o caráter emergencial. No entanto, falar em crise fiscal a ele atrelada parece imenso exagero, sobretudo quando o ambiente internacional se revela cada dia menos hostil. O Fed, o banco central dos EUA, recentemente mudou o regime monetário de maneira que permitirá taxas de juros internacionais extremamente baixas por tempo ainda maior do que se supunha. Tal situação permite que o Brasil tenha mais tempo para atender às necessidades da pandemia sem deixar de lado a importância do ajuste fiscal futuro. A diferença é que há mais tempo para esse ajuste no ambiente de juros extraordinariamente baixos. PIB e pandemia são desafios que continuarão conosco por muito tempo.

A atuação mais importante do Estado continua a ser a preservação das vidas e da capacidade de sobrevivência econômica das pessoas mais vulneráveis. Críticas deveriam estar direcionadas não às propostas de renda básica e de auxílio emergencial, mas sim ao desperdício com os quais o governo flerta abertamente. Ponhamos o debate no lugar certo.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Vera Magalhães: Bolsonaro ‘antivax’?

Discurso relativizando a necessidade da vacina é exótico até para o padrão bolsonarista

Virou lugar-comum, a cada nova excrescência dita ou praticada por Jair Bolsonaro, se dizer, em análises nos jornais ou nas redes sociais, que aquilo causa surpresa em “zero pessoas”. E é verdade, geralmente. Mas a recente e disparatada declaração do presidente de que ninguém pode obrigar ninguém a se vacinar é exótica até para os padrões bastante elásticos dos absurdos bolsonaristas.

Primeiro porque, como tratou de mostrar prontamente a imprensa, não é verdade que se vacinar ou não seja uma escolha individual.

Trata-se de uma questão de saúde pública e, como tal, passível, sim, de ser definida em lei. Tanto é assim que o próprio Bolsonaro sancionou em fevereiro uma lei que permite tornar compulsória a vacinação para covid-19 como forma de enfrentamento da pandemia.

O segundo motivo pelo qual é estapafúrdia a declaração – depois repetida com orgulho servil e propagandístico pelos canais da Secom – é econômico.

O mesmo governante que passou meses boicotando o distanciamento social e demais medidas protetivas, atitude que agravou em muito o combate ao novo coronavírus, porque isso significaria parar a economia, ignora o fato de que a única maneira de retomar as atividades completamente é vacinar mais de 70% da população e garantir a tão sonhada imunidade coletiva.

Disso dependerá a retomada da economia, que no segundo trimestre teve um tombo de 9,7%, acima do vendido pelo discurso poliana do governo. Não adianta fazer a picaretagem de tentar espetar essa conta nos governadores enquanto o presidente segue omisso, quando não jogando contra.

Brasileiros só poderão voltar a viajar para fora quando imunizados, porque hoje o consenso mundial é de que somos um celeiro de proliferação de Sars-Cov-2 descontrolado. Porque é isso que ainda somos, ainda que os números mostrem um lento e gradual recuo do contágio nas últimas semanas.

Do ponto de vista de explicação dos gastos públicos a frase de Bolsonaro é um acinte. Afinal, como ele mesmo disse na mesma frase (!) o governo está investindo bilhões na pesquisa e em parcerias para a produção da vacina. A afirmação do capitão significa dizer que está jogando dinheiro pela janela?

Isso além de tudo que foi gasto em auxílio emergencial, socorro aos Estados, etc. Só uma imunização massiva, com empenho total do governo federal para viabilizar a complexa logística para sua distribuição (aí sim, quem sabe, o general Pazuello mostre a que veio), vai garantir que se possa fechar a torneira de gastos extraordinários dos já depauperados cofres públicos.

Até tentar entender a declaração “antivax” do presidente no contexto da narrativa ideológica sem pé nem cabeça do bolsonarismo é difícil. Como alguém que faz campanha todo dia para medicamentos ineficazes para a covid-19 não conclama todos os cidadãos a se vacinarem? É consenso de médicos e pesquisadores que este é o único caminho garantido para a imunização segura contra um vírus que já ceifou mais de 120 mil vidas no País. Bolsonaro segue sua marcha da insensatez e da irresponsabilidade amparado na crença de que o respiro de popularidade obtido pelo auxílio emergencial que começa a minguar vai salvá-lo do escrutínio da História (e das urnas).

Só que a conta de algo da magnitude do que estamos vivendo chega mais cedo ou mais tarde, a despeito de qualquer estelionato narrativo. Ela já está aí, no número obsceno de mortos, na tragédia social, em traumas pessoais e geracionais, atraso educacional e recessão econômica.

Mas num país em que a população é induzida por falsários a duvidar até de registros fotográficos em nome da ideologia idiotizante, não admira que o presidente se sinta endossado para relativizar até a necessidade, sim, de todos se vacinarem.


Bernard Appy: A reforma tributária e a crise

No curto prazo nenhum setor da economia será prejudicado pela aprovação da PEC 45

Uma preocupação que surgiu no debate sobre a reforma tributária diz respeito a seus efeitos sobre as empresas, num momento em que vários setores da economia vêm sendo afetados pela crise do coronavírus. Como a reforma tende a provocar uma redistribuição da carga de tributos, alguns setores prejudicados pela crise atual temem ter sua recuperação dificultada por um aumento da tributação.

Trata-se de uma preocupação pertinente, especialmente no caso de uma mudança que afetasse a distribuição setorial da carga tributária num período curto, na saída da crise. Este não é o caso, no entanto, da proposta de reforma tributária consolidada na PEC 45/2019, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, que prevê a substituição de cinco tributos atuais – PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS – por um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Caso a PEC 45 seja aprovada neste ano ou no início de 2021, o IBS só começará a ser cobrado em 2023, em razão da necessidade de aprovação da legislação complementar e montagem da estrutura de administração do novo imposto (que será gerido conjuntamente pela União, pelos Estados e pelos municípios), inclusive dos sistemas informatizados necessários para a sua operação. Adicionalmente, nos dois primeiros anos de operação o IBS será cobrado à alíquota de apenas 1%, sendo seu custo dedutível do valor devido de Cofins, não afetando, portanto, nenhum setor da economia. Ou seja, até 2024 a aprovação da PEC 45 não resultará em aumento da tributação de nenhuma empresa, e mesmo após esse período haverá uma transição em mais oito anos.

Isso não significa, no entanto, que a aprovação da PEC 45 não tenha impactos no curto prazo. Há, sim, um efeito positivo sobre as expectativas dos agentes econômicos, que tende a se refletir numa queda dos juros de longo prazo, a qual pode ser muito importante para reativar a demanda na saída da crise. Esse efeito é consequência da perspectiva de melhoria da solvência do setor público decorrente do impacto da reforma tributária sobre o potencial de crescimento da economia no longo prazo.

Segundo estudo do economista Bráulio Borges, mantendo o teto dos gastos federais até 2036 (com uma pequena flexibilização em 2027), no cenário sem reforma a dívida pública chegaria a cerca de 100% do PIB no final do período. Já no cenário que considera a aprovação da PEC 45, supondo a mesma regra para os gastos, o maior crescimento da economia levaria a dívida pública a menos de 30% do PIB em 2036. Tais cálculos demonstram que o aumento do potencial de crescimento resultante da reforma tributária pode ser determinante para a solvência do setor público, o que tende a ser antecipado pelos agentes econômicos, contribuindo para a saída da crise.

O aumento do potencial de crescimento também é essencial para entender o impacto da reforma tributária sobre os diversos setores da economia. Mesmo setores cuja tributação tende a crescer em termos relativos serão beneficiados pelo maior crescimento da renda. No caso dos serviços prestados a pessoas físicas, por exemplo, um cálculo simplificado sugere que, para cada 1% de aumento de renda das famílias, a demanda por esses serviços cresce cerca de 1,5%. Isso significa que, se a reforma tributária elevar a renda das famílias em 20 pontos porcentuais em 15 anos – como indica o estudo citado acima –, a demanda por serviços pode crescer cerca de 30 pontos porcentuais acima do que cresceria sem a reforma.

Em suma, no curto prazo nenhum setor da economia será prejudicado pela aprovação da PEC 45. Ao contrário, o efeito positivo da reforma sobre as expectativas e os juros de longo prazo tende a beneficiar todos os setores na saída da crise.

No longo prazo há, é verdade, mudanças na distribuição da carga tributária entre setores. Mas mesmo os setores cuja participação no total da tributação tende a crescer serão beneficiados pelo maior crescimento resultante da reforma tributária.

*Diretor do Centro de Cidadania Fiscal


Paulo Hartung: A economia verde pode ter o selo ‘made in Brazil’

Com uma nova atitude em prol da preservação o produto feito no Brasil passa a valer mais

Das trágicas crises, como a que estamos atravessando por causa da pandemia da covid-19, certamente restam dores irremovíveis de nosso coração e de nossa alma. Mas, apesar de ainda estarmos em plena caminhada de travessia deste tempo crítico, já fica evidente uma lição desta quadra dramática da História: é preciso reinventar nossa interface com a natureza.

O movimento de conscientização ambiental, especialmente entre os jovens, tem ganhado corpo rapidamente. Essa é a base de uma sociedade moderna, composta por novos cidadãos e consumidores mais conscientes.

Na Europa, esse olhar foi decisivo para o New Green Deal, plano de recuperação da região com investimento de 750 bilhões de euros. A discussão ecoa pelo mundo. O candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que vai lidar com “as realidades inegáveis e as ameaças cada vez maiores das mudanças climáticas”.

Quando o tema é meio ambiente, o Brasil entra obrigatoriamente em cena, seja por seu potencial, seja pelos fatos danosos que se acumulam nos últimos meses. Enquanto os debates vão na direção da sustentabilidade, o Brasil toma rumo contrário, especialmente na Amazônia, com desmatamento, queimadas, garimpo e grilagem de terras, entre outras ilegalidades.

No agora já há impacto econômico: o anúncio de retirada de capital do mercado brasileiro de carnes feito pela finlandesa Nordea Asset Management. Para o amanhã precisamos investir nossa energia para tornar a economia verde um dos motores que farão o País ter forças de reação no pós-crise. E nem é preciso reinventar a roda.

A Região Amazônica representa 60% do território brasileiro. Lá se encontram 74% das atividades extrativistas que respeitam o meio ambiente, como as de sementes, frutos, óleos e resinas. O caso mais conhecido é o do açaí, que movimenta US$ 1 bilhão por ano. Cacau, guaraná, seringueira, castanha do Brasil são outros exemplos. Uma série de startups está investindo na região para de lá disseminar pelo mundo uma gama de produtos sustentáveis, como cosméticos, café e chocolates nativos, entre outros.

Mas mesmo com toda essa riqueza em mãos e com rumos evidentes a serem seguidos, a região representa apenas 8% do produto interno bruto (PIB) nacional. Mais de 25 milhões de brasileiros estão na Amazônia, muitos deles vivendo abaixo da linha de pobreza, com dificuldades de infraestrutura, como comunicação e saneamento básico.

Não se pode encarar o desafio amazônico como pauta deste ou daquele governo, mas como uma questão de Estado. Temos a chance de envolver todos os atores interessados em discutir o melhor para o futuro do Brasil, acadêmicos, ambientalistas, setor privado, poder público e, especialmente, os moradores da região, incluindo os de pequenas e grandes cidades, ribeirinhos e povos tradicionais.

É por meio desse diálogo organizado que conheceremos as possibilidades reais de criar meios de tornar o local um polo industrial de bioprodutos, tornando viáveis as condições logísticas, os financiamentos, a capacitação, a tecnologia e a ciência para aquela porção do nosso território.

A iluminar esse caminho, além dos exemplos citados na região, temos casos muito bem-sucedidos de bioeconomia em outras localidades do Brasil, como a indústria de biocombustíveis, atualmente a segunda maior produtora de etanol do mundo. A Raízen exporta tecnologia para produção do etanol de segunda geração. Assim, a companhia mira os royalties, enquanto o meio ambiente é beneficiado.

Outro caso é a indústria de base florestal que trabalha comumente em áreas antes degradadas, cultivando árvores que dão origem a produtos fundamentais no nosso dia a dia, como papel, embalagens de papel e pisos laminados, entre outros. Mesmo consolidada, seus dois pés estão no futuro e da madeira virá uma infinidade de alternativas a materiais de origem fóssil. São fios têxteis com uso de até 90% menos água e químicos, bio-óleos e nanocristais de celulose para telas LCD, entre outros.

O País é o lar da maior floresta tropical e da maior biodiversidade do mundo. Cuidar desses ativos é do interesse dos brasileiros. Com uma nova atitude em prol da preservação, o produto feito no Brasil passa a valer mais para esse novo mundo que quer a sustentabilidade. Engrandece a marca Brasil.

A floresta já tem inúmeros benefícios para a economia brasileira, com serviços ambientais que ajudam na competitividade da agricultura, com regimes de chuvas, permitindo em muitas culturas até três safras por ano.

Que o Brasil mude de vez o rumo de sua interface com o meio ambiente. Temos um patrimônio verde incomparável. Temos oportunidades de produção inclusiva e sustentável a nos inspirar. Temos o clamor pelo respeito à natureza. Agora é preciso reinventar nossa relação com o planeta. Afinal, é da vida que se trata – da minha, da sua, de todas e todos nós, hoje e amanhã.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Eliane Cantanhêde: Que mundo é esse?

Imunidade para Flordelis e transformar vítima de estupro em ré são imorais

Em meio à pandemia, à crise econômica, às queimadas, ao esfacelamento do Rio de Janeiro, a Câmara dos Deputados não pode fugir à sua responsabilidade diante de dois temas que misturam nojo, indignação e raiva: a “imunidade parlamentar” da deputada federal Flordelis e a portaria do Ministério da Saúde que obriga os médicos a agirem como policiais diante de abortos legais. Em que mundo nós estamos?

A pastora Flordelis não é flor que se cheire, faz mal à saúde e pode matar. Farsa ambulante, ela mistura religião, política, fake news e manipulação de pessoas, na maioria pobres e ingênuas, mas não só. Tudo nela é falsificado, da benemerência às variadas perucas, da função de pastora à de deputada. E, já que não poderia ameaçar o seu mundo de ficção com um divórcio, matou o marido – que já fora filho e genro – usando como cúmplices os “filhos adotivos”, entre eles uma menina que oferecia sexualmente a pastores estrangeiros.

Do ponto de vista político, como um partido dá sigla para uma desqualificada dessas concorrer a qualquer coisa? E como ela obtém mais de 190 mil votos do eleitor do Rio de Janeiro? Do ponto de vista jurídico, como é possível mantê-la solta graças à “imunidade parlamentar”? Que os fazedores de lei se tratam muito bem, todo mundo sabe. Mas que tenham o direito de cometer assassinatos e continuar em liberdade, já é um pouco demais.

O instituto da imunidade é para proteger a opinião, as manifestações, as posições políticas que, em democracias, são saudavelmente divergentes no Congresso e entre o Congresso e o Executivo e Legislativo. Daí a estendê-lo para quem pratica crimes comuns e inclusive crimes incomuns, como assassinato, é uma excrescência que nenhuma democracia e nenhuma discussão democrática pode sustentar. Um absurdo, um escárnio.

Quanto à “portaria da tortura” do Ministério da Saúde, só pode ser coisa de fundamentalistas que prestigiam suas crenças acima da compaixão, da humanidade, da própria lei. Têm mães, mulheres, irmãs, filhas? Em resumo, a portaria exige que médicos reportem à polícia os abortos legais em caso de estupro, façam um relatório detalhado sobre as circunstâncias da violência sofrida e ofereçam ultrassom para esfregar imagens do feto na cara da vítima.

O Ministério dos Direitos Humanos nomeia para a área da Mulher uma cidadã contrária à lei do aborto, mesmo com estupro. E o Ministério da Saúde atravessa a pandemia com um ministro interino e uma cúpula sem médicos e cheia de militares que não sabem a diferença entre vírus e bactérias. Assim, não consegue sequer usar os recursos disponíveis para reduzir contaminação e mortes. Não por acaso, o Brasil é líder em mortes por cem mil habitantes.

Se não é capaz de assumir a coordenação central da pandemia, desdenhando do isolamento social e endeusando a cloroquina, o ministério assume ares de delegacia, obriga médicos a agir como policiais e transforma vítimas em rés: crianças, jovens, mulheres adultas. Já imaginaram quem foi alvo de estupro – o crime mais covarde e ignóbil – confrontada com imagens do feto? Um desestímulo para a vítima buscar ajuda. Um segundo estupro. Uma crueldade.

Com 77 deputadas, 15% do total, a Câmara tenta reagir. Há pressão para o Conselho de Ética voltar a se reunir, cassar o mandato e abrir a porta da cadeia o mais rapidamente possível para Flordelis. E há mobilização em Brasília, no Brasil e no exterior para derrubar a “portaria da tortura” e impedir a violência do governo contra quem já foi violentada. Hoje o presidente Rodrigo Maia reúne a Mesa Diretora. Ou o Congresso assume seu papel, ou o Supremo vai agir. Manter Flordelis livre e a portaria em vigor é, antes de tudo, imoral.


Felipe Salto: A ameaça do populismo fiscal

Discutindo o Renda Brasil superficialmente, pode-se pôr em risco a credibilidade do País

No prefácio do livro que acabo de publicar com Josué Pellegrini, Contas Públicas no Brasil (424 páginas, Editora Saraiva), o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega avalia que os aprimoramentos na institucionalidade fiscal do País “não foram de todo introjetados nas nossas elites, menos ainda na sociedade”. A verdade é que leis e regras ficam incompletas sem o espírito da responsabilidade fiscal. Dívida e déficit não se controlam por obra da lei apenas, mas pelo efetivo saneamento das contas públicas. Por isso a ameaça do populismo fiscal precisa ser barrada, sob pena de pormos a perder a capacidade de resposta do Estado no pós-crise.

A crise nas finanças públicas não chegou ao Brasil com o novo coronavírus, mas ele a exacerbou. O risco, passada a tempestade da covid-19, é mergulharmos fundo no aumento indiscriminado do gasto público. Trata-se das propostas que desconsideram a restrição orçamentária do País. A abordagem do governo no chamado Renda Brasil pode ser um primeiro sintoma.

Em tese, ninguém é contrário à criação de um bom programa de transferência de renda para os mais pobres, sobretudo depois da crise, dada a situação prospectiva de fragilidade social e econômica. Há, contudo, que levar em conta o custo, a forma de financiamento, o objetivo e o desenho da política. A ação do Estado deve estar baseada em evidência empírica. Há muita gente qualificada na academia, na burocracia estatal, no setor privado e no terceiro setor para ser consultada.

Dar continuidade ao programa de auxílio a vulneráveis seria positivo desde que respeitado o compromisso com a responsabilidade fiscal. A motivação do Renda Brasil, como vem sendo chamado, é guarnecer uma parte dos que ficarão órfãos do benefício emergencial pago durante a pandemia e terão dificuldades de encontrar emprego. Mas por ora é apenas uma boa ideia. Enquanto o leitor lê este artigo, provavelmente o Executivo está enviando ao Congresso a proposta para o orçamento público de 2021. Hoje é o prazo final. Até o momento em que terminava de escrever, três dias atrás, não havia nenhuma indicação sobre o desenho do Renda Brasil.

De quanto será esse novo benefício? Quem terá direito a receber? Será um programa permanente?

Do ponto de vista do custo, a incerteza é gigantesca. Nas contas da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, o auxílio a vulneráveis custa R$ 51,5 bilhões ao mês, ou R$ 618 bilhões em termos anualizados. Para ter claro, esse montante equivale a quase todo o gasto do INSS, em 2019, de R$ 626,5 bilhões. Se o Renda Brasil corresponder a 10% disso (R$ 62 bilhões, ou quase o dobro do Bolsa Família), já será um gasto elevado e difícil de ser enquadrado no orçamento e na regra do teto de gastos em 2021.

Considere-se a seguinte hipótese de financiamento: corte de subsídios creditícios (R$ 5 bilhões), corte de gastos tributários (R$ 25 bilhões), redução temporária de jornada no serviço público (R$ 23 bilhões) e redução do abono salarial (R$ 9 bilhões). Haveria tempo hábil para articular essas medidas? A redução de jornada, por exemplo, dependeria de proposta de emenda à Constituição (PEC). As mudanças no abono salarial poderiam ser feitas por lei, mas sua extinção, apenas por PEC. Além disso, o presidente da República já disse ser contrário a mexer no abono, apesar de não ter apresentado alternativa.

E quanto ao teto de gastos? Das fontes acima listadas, a mudança nos gastos tributários não ajudaria no teto, pois essas renúncias de receitas não estão sujeitas à regra. O quadro seria de estouro do limite, lembrando que as projeções da IFI já indicam risco alto de rompimento em 2021, mesmo sem o Renda Brasil. Assim, seriam acionadas as medidas de ajuste previstas na Emenda Constitucional n.º 95, de 2016 (regra do teto).

Tais gatilhos proíbem reajustes salariais, contratações e ações, pelos três Poderes, que impliquem aumento de despesa acima da inflação. Bem aplicados, não configurariam abandono do teto, mas o seu pleno funcionamento. Espanta que o governo não tenha dado encaminhamento célere a essa questão, para que a proposta orçamentária de 2021 já nascesse em contexto de maior previsibilidade. O noticiário econômico mostra que o Ministério da Economia está correndo atrás de uma PEC para dar conta do recado. Parece descartar – não se sabe a razão – a possibilidade de construir uma saída pela própria Emenda 95.

Acionar os gatilhos daria fôlego de um a dois anos para se discutir uma reforma fiscal mais ampla, ajudando a afastar a ameaça de burla das regras fiscais por meio de contabilidade criativa. O populismo fiscal é ardiloso, porque se baseia em promessas atraentes, mas ignora os números, as estimativas e, principalmente, a indicação das fontes de financiamento.

Ao se discutir a criação do Renda Brasil de maneira superficial e sem números, pode-se pôr em risco a credibilidade das contas públicas e do País. Se prevalecer a tese de que não é preciso aumentar receitas e/ou cortar gastos para custear aumentos de novas despesas, terá vencido o populismo fiscal. É tempo de barrar essa ameaça.

*DIRETOR EXECUTIVO DA IFI


O Estado de S. Paulo: Teto salarial de militares opõe Defesa a Economia

Integrantes das Forças Armadas com cargo no governo obtêm aval da AGU para acumular remunerações acima do limite de R$ 39,3 mil; desde 2018, regra poupou R$ 518 milhões

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Uma nova benesse para militares da reserva tem colocado em lados opostos o Ministério da Defesa e o da Economia. A pasta comandada pelo general Fernando Azevedo conseguiu aval para que integrantes das Forças Armadas com cargo no governo acumulem remunerações acima do teto do funcionalismo – R$ 39,3 mil –, mas a equipe de Paulo Guedes tenta barrar. Em documento obtido pelo Estadão, a área econômica alerta para o possível impacto nas contas que a mudança na regra pode causar e aponta que, desde 2018, o desconto feito no salário de servidores poupou R$ 518 milhões aos cofres públicos.

Previsto na Constituição, o chamado “abate-teto” é um mecanismo que inibe o recebimento de “supersalários” na administração pública. Na prática, ele funciona como uma linha de corte que reduz a remuneração de servidores para limitá-la ao valor máximo permitido, que equivale aos vencimentos de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Só algumas verbas escapam, os chamados penduricalhos, como os jetons por participação em conselhos de estatais, auxílio-moradia, entre outros.

Com o argumento de que corrigiria distorções de militares da reserva que exercem cargos no governo sem receber o salário ou em troca de apenas uma parte, o Ministério da Defesa fez uma consulta à Advocacia-Geral da União (AGU) se poderia aplicar um entendimento diferente para a regra. A pasta argumenta, com apoio dos comandos de Aeronáutica, Exército e Marinha, que o abate-teto deveria limitar cada salário isoladamente. Assim, caso nenhuma das remunerações atinja o teto, o militar poderia recebê-las integralmente.

O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, por exemplo, vem tendo o salário bruto do cargo, de R$ 30,9 mil, cortado mensalmente em R$ 14,7 mil por causa do abate-teto. Isso porque ele já recebe como tenente-coronel da reserva da Força Aérea Brasileira cerca de R$ 21 mil. Se o novo entendimento estivesse em vigor, Pontes poderia acumular as duas remunerações integralmente e, ao fim do mês, passaria a receber cerca de R$ 52 mil.

E ele nem é o que mais ganha. Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, poderá acumular quase R$ 65 mil brutos apenas com as remunerações básicas. O militar ainda faz parte dos conselhos de administração da Itaipu Binacional e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) – os jetons geram, respectivamente, mais R$ 14,9 mil e R$ 3,2 mil mensais.

Aval

Oficiais das Forças Armadas comandam nove ministérios e são maioria no Palácio do Planalto, de onde atuam nos bastidores na articulação com o Legislativo e o Judiciário, além dos órgãos de controle.

A AGU concordou com os argumentos da Defesa em abril. Em parecer, o órgão jurídico do governo citou entendimentos do STF e do Tribunal de Contas da União sobre o abate-teto. O caso base foi o de dois servidores do Mato Grosso que acumulavam cargos e tiveram aval da Justiça para que o redutor fosse aplicado separadamente e não nos vencimentos acumulados.

Porém, a pasta da Economia diz que essas decisões não são aplicadas automaticamente a todo o funcionalismo federal. E também não serviria de base, pois os ministros julgaram casos específicos.

Por causa dos gastos com a pandemia da covid-19, que levou o presidente Jair Bolsonaro a decretar estado de calamidade pública, o aval da AGU dado em abril deste ano pelo então ministro André Mendonça, atual titular da Justiça e Segurança Pública, foi suspenso em maio pelo seu sucessor, o atual advogado-geral da União, José Levi. Mas, na prática, outros ministérios, como o da Cidadania, já formularam consultas ao órgão sobre como proceder os pagamentos. Isso porque o parecer da AGU beneficia não só os militares, mas todos os servidores do governo que recebem salários de duas fontes diferentes.

Agora, técnicos da Economia pressionam Levi para que reveja a autorização dada por Mendonça. Eles argumentam que “não se pode flexibilizar o ‘teto’ para atender uma pequena classe da sociedade brasileira”. E alertam: “O já combalido Orçamento Público Federal terá de arcar com o aumento ilegal do pagamento de remunerações provenientes de acumulação de cargos, até mesmo em casos não permitidos pela Constituição”.

Os técnicos ressaltam que não há dotação orçamentária específica bancar esse aumento na despesa Orçamento de 2020 e que ela tampouco foi prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021, dois impeditivos legais. A Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal pediu o “reexame” do parecer pela AGU. “O entendimento proposto pela Advocacia-Geral da União acarretará elevado impacto financeiro”, diz o órgão.

O governo tem até esta segunda-feira, 31, para enviar ao Congresso Nacional a proposta orçamentária do ano que vem. Como revelou o Estadão, a previsão é de o Ministério da Defesa ter mais recursos que o da Educação, o que não acontece desde 2010.

Por enquanto, o abate-teto continua a descontar o somatório das remunerações de servidores quando há acúmulo de cargos, empregos, pensões e funções.

Pastas não se pronunciam

Estadão encaminhou perguntas por escrito aos órgãos envolvidos na discussão sobre as mudanças no abate-teto. O Ministério da Economia não respondeu aos questionamentos. Tampouco o Ministério da Defesa, que alegou ser competência da AGU se pronunciar. 

A AGU, por sua vez, disse apenas que o parecer que permite a aplicação do abate-teto separadamente em cada vencimento “segue suspenso”. 

Nenhum dos três órgãos deu esclarecimentos sobre impactos financeiros, quantidade de servidores civis ou militares beneficiados, nem justificativas para a mudança de entendimento da regra constitucional que evita o pagamento de “supersalários”, a suspensão do parecer e previsão de quanto será retomado ou reavaliado.

Para lembrar: ato reajustou bonificação

Esta não é a primeira vez que o governo do presidente Jair Bolsonaro beneficia os militares em questões salariais. Como revelou o Estadão em junho, integrantes das Forças Armadas tiveram um reajuste que poderá chegar a até 73% na bonificação concedida para quem faz cursos ao longo da carreira. 

Chamado de “adicional de habilitação”, o valor a mais do “penduricalho” passou a valer a partir de julho e terá um custo de R$ 1,3 bilhão neste ano, em plena pandemia do novo coronavírus, de acordo com nota técnica do Ministério da Economia e dados do Ministério da Defesa.

Com isso, um general de quatro estrelas, topo hierárquico das três Forças, passou a somar R$ 5.600 por mês ao soldo de R$ 13.400. Até então, o adicional era de cerca de R$ 4.000 mensais. Eles ainda acumulam outros adicionais que elevam o salário para, pelo menos, R$ 29.700 – a remuneração pode subir, a depender da formação, permanência em serviço, atividades e local de trabalho.


Arminio Fraga: Fim do teto. Não se, mas como

Limite sinalizou entendimento contra o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990

A emenda constitucional nº 95 de dezembro de 2016 instituiu o teto de gastos públicos, que congelou em termos reais os gastos do governo federal. O teto sinalizou um bem-vindo entendimento quanto à necessidade de se lidar com o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990.

Foi parte de uma guinada na gestão macroeconômica do país em resposta ao colapso fiscal que ocorreu a partir de 2014. A partir da guinada, as taxas de juros entraram em trajetória de queda, chegando aos inéditos níveis que prevalecem hoje.

Parecia claro desde o primeiro momento que a manutenção do teto por mais do que alguns anos seria difícil sem que se encarasse de frente a absoluta rigidez dos gastos obrigatórios. Um exemplo pode ajudar aqui. Sob as regras da EC 95, se o PIB crescesse a 2,5% por dez anos, o gasto federal cairia de 19% para 15% do PIB. Se todos os gastos públicos ficassem congelados, em termos reais, teríamos uma queda de 35% para 27%. Não faz muito sentido.

Havia esperança de que reformas mais profundas ocorreriam, o que permitiria em algum momento uma flexibilização do teto, sem grandes estresses. Mas não foi o caso. Algo se fez, como a reforma da Previdência aprovada no ano passado, mas não foi o suficiente: o espaço para cortes nos gastos correntes discricionários praticamente se esgotou e o investimento público está próximo de zero, o que é política e economicamente insustentável.

Não surpreende, portanto, que um exame mais detalhado dos fatos sugira que não se exagere o impacto causal do teto sobre as taxas de juros: a Selic (a taxa de curto prazo fixada pelo BC) está em 2% e a taxa dos títulos do Tesouro de dez anos em torno de 7,5%.

Ambas caíram bastante desde 2016. Parece razoável atribuir parte relevante da queda na Selic à enorme recessão que nos assola há sete anos. As taxas de longo prazo embutidas na curva de juros estão em torno de 9%.

Ou seja, o prêmio de risco segue elevado, espelhando juros reais acima de 4% e ainda algum medo de inflação. E isso num período em que as taxas de juros equivalentes para as economias avançadas caíram em cerca de 1,5 p.p..

Conclusão: o futuro macroeconômico do país ainda está longe de ser confiável. Quem vai investir em um país com indicadores tão incertos? O que fazer então com o teto?

Há quem acredite que um caminho seria abandonar o teto e seguir gastando e acumulando dívida (presume-se que por mais algum tempo). Alguns cogitam prorrogar o orçamento de guerra. Outros entendem que, no limite, seria possível reduzir a taxa de juros de curto prazo a zero (se a inflação permitir) e encurtar ainda mais o perfil de vencimento da dívida (na prática, "emitir moeda").

Acreditam também que haveria espaço para abrir novas frentes de investimento público e privado de boa qualidade. Essa opção conta com o atraente apelo de dispensar a definição de prioridades, bem como parece não impor custos.

Seria bom, mas não para de pé. Falta combinar com os russos. Não há confiança na capacidade de o governo executar bons investimentos. Tampouco há confiança interna e externa para financiar tal caminho. E não sem razão. Nas atuais condições, nem se fala. Seria mais crise na certa. Já vimos esse filme. O Brasil não é uma economia avançada. Os reais problemas seguiriam intocados.

Restam então duas alternativas: defender a ferro e fogo o teto ou buscar uma saída mais equilibrada. Não creio que a defesa pura e simples do teto seja uma solução viável por muito mais tempo, pelas razões que expus acima. Melhor planejar o quanto antes uma saída organizada e crível. A operação é muito delicada. Flexibilizar o teto sem uma nova âncora traria consequências dramáticas.

O quadro geral é bastante complexo. O país apresenta déficits primários há sete anos. O Ministério da Economia sinaliza compromisso com o teto. O presidente da República, pensando na reeleição, aposta suas fichas políticas no Renda Brasil e se opõe a cortes em outros benefícios e aumentos de impostos.
A PEC Emergencial, que ganharia algum tempo para o teto, não parece contar com o apoio do Executivo, pela mesma razão. Claramente a conta não fecha. O que fazer?

Tenho defendido uma estratégia de ajuste estrutural que começou com as reformas do BNDES e da Previdência (3 p.p. do PIB) e que ao longo de dez anos liberaria recursos crescentes, que poderiam chegar a mais 8 p.p. do PIB no décimo ano.

Perdoem-me a repetição, mas não vejo saída para o Brasil que não passe por alguma redução simultânea do nível e das distorções de uma parcela relevante do gasto público.

A economia viria da eliminação de subsídios e brechas tributárias regressivas, de ajustes na folha de pagamentos do setor público e de mais ajustes na Previdência. Boa parte dos recursos ficaria livre para gastos e investimentos em áreas de alto retorno social como saúde, assistência social, pesquisa básica, educação e infraestrutura, sempre que possível alavancados por capital privado. Ficaria livre também para reduzir a carga tributária.

Seria fundamental que a economia com o funcionalismo fosse obtida por meio de uma reforma de recursos humanos do Estado, que promovesse um salto na qualidade nos serviços públicos, seu principal objetivo e importante alavanca para o desenvolvimento.

O lobby do funcionalismo se opõe, mas se espera que o entendimento de que há muito privilégio e desperdício a eliminar acabará prevalecendo. O Brasil é um ponto fora da curva global no que tange ao peso do funcionalismo no gasto público. É prerrogativa do Executivo federal encaminhar ao Congresso uma proposta, mas aqui também a reeleição parece atrapalhar.

Parte do resultado da estratégia acima se destinaria à obtenção de um superávit primário capaz de viabilizar uma queda gradual do endividamento público, hoje elevado pelas barbeiragens, emergências e recessões dos últimos sete anos. O ajuste do primário deveria ser gradual, atingindo cerca de 3 p.p. do PIB em três anos.

Notem que o espaço de manobra seria limitado. No curto prazo haveria um (pequeno) aumento real no gasto público e um aumento da carga tributária. Com o correr dos anos, na medida em que as reformas mostrassem resultado, seria possível aumentar os gastos em termos reais, mas reduzi-los como proporção do PIB. O mesmo vale para a carga. Seria uma decisão política.

Como o único caminho que enxergo é gradual e a nossa credibilidade, baixa, me parece de todo essencial que se aprove o quanto antes uma versão da PEC Emergencial que ofereça ao governo as ferramentas necessárias para se desenhar e executar um orçamento plurianual crível.

Esse orçamento deveria indicar com clareza as metas mencionadas acima para o gasto público e o superávit primário. Só assim seria possível uma flexibilização segura do teto.

A bem-vinda discussão em curso sobre uma renda básica universal, que ampliaria e consolidaria os programas de assistência social existentes, teria que obrigatoriamente acontecer no bojo desse orçamento plurianual. Um igualmente desejável reforço do SUS teria que fazer parte do processo, disputando espaço com outras prioridades. A discussão de temas isolados é má prática econômica e política.

O tempo é curto e o espaço de manobra, ainda menor. Mas ainda temos a oportunidade de reduzir privilégios, buscar a saúde fiscal do Estado e perseguir um crescimento inclusivo. Isso requer metas claras e factíveis e um plano integrado como esboçado aqui. Requer também liderança política com visão de longo prazo.

*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


Affonso Celso Pastore: EUA, Europa e Brasil

Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana

Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana. Ciclos econômicos nos EUA afetam a economia mundial; a guerra comercial contra a China iniciada por Trump interfere com o Brasil devido às relações comerciais que mantemos com ambos; e, acima de tudo, o mercado financeiro centrado em Nova York, interage intensamente com a economia brasileira, afetando direta e indiretamente o seu comportamento. De um modo geral, temos muito a aprender com os EUA, mas não com a sua reação à pandemia e às suas consequências na política monetária. Neste caso, ganharíamos muito mais se prestássemos a devida atenção ao que vem ocorrendo na Europa.

Enquanto o governo dos EUA optou pela negação da pandemia, os vários governos europeus impuseram desde logo um rígido lockdown, que derrubou o contágio e permitiu o início mais rápido de uma cuidadosa reabertura, que favoreceu o bem estar de suas populações.

Como o PIB é uma medida imperfeita de bem-estar, não reflete o ganho devido ao já quase pleno retorno à livre movimentação dos europeus. Porém, acima de tudo, a boa reação europeia no campo sanitário levou a uma utilização bem menos intensa de estímulos monetários. De fato, o BCE vem gerando uma expansão de seu ativo significativamente menor do que a do Fed, e a maior preocupação dos governos europeus é com o “futuro do euro”, para cuja consolidação, na última reunião do Conselho Europeu, foi aprovado um fundo de recuperação de € 750 bilhões, com € 390 bilhões na forma de subvenções e € 360 bilhões em empréstimos. Os europeus reagiram racionalmente à pandemia; foram prudentes na política monetária, e apesar da oposição dos países “frugais” procuraram exorcizar o fantasma de uma nova versão do Brexit, defendendo a moeda única e a cooperação entre os países do bloco.

Já a negação da pandemia por parte do governo dos Estados Unidos levou o país, após uma segunda onda de contágio, a amargar uma média de mil mortes por dia, e para compensar os efeitos econômicos de sua omissão no campo sanitário teve que exagerar na concessão de estímulos monetários, cuja intensidade é melhor avaliada observando seus reflexos sobre os preços dos ativos.

A compra de treasuries por parte do Federal Reserve tem sido tão intensa que derrubou todas as suas taxas de juros para próximo da taxa dos fed funds. Os governos emitem dois tipos de passivo: o que rende juros – os títulos da dívida pública – e o que não rende juros – o papel moeda, e diante de uma estrutura de taxas gravitando em torno de zero tudo se passa “como se” estivesse jogando moeda de um helicóptero. No passado, as curvas de juros já foram inclinadas e planas, mas nunca devido a este comportamento do Fed. Uma de suas consequências é acentuar a tendência de enfraquecimento do dólar, porém a mais preocupante é que o Fed vem alimentando uma bolha no mercado de ações. Há várias semanas a Nasdaq já superou em muito o pico anterior ao início da pandemia, e esse patamar também foi superado pelo S&P 500. Ao se comprometer mais com a queda do desemprego do que com a inflação, Jerome Powell tende a inflar ainda mais a bolha no mercado de ações, e sabemos que estouros de bolhas têm custos econômicos elevados.

Na reação à pandemia o Brasil seguiu os EUA; há mais de 80 dias o país amarga em torno de mil mortes/dia, e para evitar uma recessão ainda mais profunda teve de lançar mão de estímulos. Felizmente o Banco Central nunca cogitou de realizar uma operação twist que reproduzisse a curva de juros norte americana, e esperamos que o lucro da depreciação cambial transferido ao Tesouro não tenha o seu uso desvirtuado. Porém, no campo fiscal, o País desperdiçou recursos de que não dispunha. Sendo incapaz de montar um cadastro que delimitasse corretamente qual seria o “grupo alvo” beneficiado pelas transferências, destinou-as a perto de 66 milhões de brasileiros!

Chegaremos ao final de 2020 com um déficit primário e uma relação dívida/PIB bem superiores ao que ocorreria na ausência desse erro, com as consequências de que: não salvamos as vidas que poderiam ter sido salvas com uma reação correta à pandemia; e deixamos para nós mesmos e para as gerações futuras um enorme custo fiscal.

Uma proeza, maximizamos os dois custos ao adotar um modelo que busca, apenas, viabilizar a reeleição do presidente. Melhor seria termos aprendido com a história dos países de sucesso, que priorizam o bem comum, como fizeram os europeus.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


Sergio Fausto: A voz mansa de Djalma Marinho

Suspeito que ele ficaria vexado pela proximidade política do neto com um político como Bolsonaro

O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, é um político competente e estrela em ascensão no atual governo. Com dois mandatos de vereador em Natal e outros dois de deputado federal pelo Rio Grande do Norte, além de cargos importantes no Executivo estadual e federal, não lhe faltam experiência nem DNA: é neto de Djalma Marinho, político potiguar que se destacou na Câmara dos Deputados por mais de três décadas na segunda metade do século 20. O avô de Rogério Marinho não conseguiu se eleger governador de seu Estado, como agora pretende o neto, mas sua biografia revela um tipo de político cada vez mais raro no Brasil: um liberal-conservador culto e educado, que se manteve coerente com suas principais convicções ao longo de 40 anos de vida pública.

Filiado a um único partido entre 1945 e 1964, a UDN, aderiu à Arena quando da imposição do bipartidarismo. Embora membro do partido situacionista, não hesitou em levantar a sua voz mansa contra as piores arbitrariedades do regime autoritário.

Foi assim na conjuntura dramática que levaria à decretação do AI-5, em dezembro de 1968. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, não se dobrou à pressão dos militares que pretendiam processar Márcio Moreira Alves por discurso supostamente afrontoso à honra das Forças Armadas. Com críticas ao governo pela repressão a manifestações estudantis, o parlamentar fluminense conclamara os pais a não autorizarem seus filhos a desfilar no 7 de Setembro e às moças, a não dançarem com os cadetes no baile da Independência.

Em audiência com o então presidente Costa e Silva, Djalma Marinho anunciou que a comissão negaria a licença solicitada pelo Ministério da Justiça para instaurar processo contra o deputado, que gozava de imunidade parlamentar para expressar livremente a sua opinião. Buscou encontrar alternativas para o impasse. Diante da intransigência do general-presidente, fez discurso corajoso da tribuna da Câmara em que se disse um “vassalo da ordem democrática”, recusando-se a cumprir “exigências absurdas”.

A derrota do governo na comissão e no plenário serviu de pretexto para a edição do mais draconiano dos atos institucionais, que fechou o Congresso, suspendeu a imunidade parlamentar, a inamovibilidade e estabilidade de juízes e o habeas corpus, escancarando a ditadura e soltando as rédeas da repressão e da tortura. Marinho perdeu, mas não mandou às favas os escrúpulos de consciência.

Nas eleições legislativas de 1974 sofreu novo revés, dessa vez uma derrota eleitoral. No pleito daquele ano, quando o regime completou seu décimo aniversário, o partido de oposição obteve votação surpreendente para a Câmara (e também para o Senado). Sem reconquistar seu mandato nas urnas, Djalma Marinho foi à tribuna e expressou sua opinião sobre os resultados das eleições. Disse que seu “caráter plebiscitário representava o fato mais relevante dos últimos dez anos” e aconselhou o presidente Ernesto Geisel a rever conceitos e estilos, métodos e práticas, “que haviam sido impostos à nação de cima para baixo, sem debate, sem alternativa”, conforme se lê no verbete dedicado ao parlamentar no acervo do CPDOC da FGV.

De volta à Câmara em 1979, eleito deputado federal nas eleições do ano anterior, Djalma Marinho dedicou-se ao projeto de reforma da Lei Orgânica dos Partidos. Manifestou-se pela liberdade de organização partidária e admitiu a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), afirmando que, como democrata, “teria de conviver com todas as tendências”.

No ano seguinte, lançou-se à presidência da Câmara como candidato dissidente do PDS, sucessor da Arena, defendendo a independência do Congresso. Recebeu votos de alguns de seus colegas de partido e da maioria dos deputados de oposição, mas o vitorioso foi Nelson Marchezan, apoiado pelo presidente João Figueiredo.

Djalma Marinho não teve a força expressiva de Teotônio Villela, seu correligionário na UDN e na Arena, também ele proveniente de um pequeno Estado do Nordeste. Teotônio foi mais vocal e aguerrido na divergência com o regime, do qual se afastou para finalmente se filiar ao MDB, no início de 1979. Ainda no partido do governo, o Menestrel das Alagoas, como o chamaram Milton Nascimento e Fernando Brant, confrontou em andanças pelo País e discursos no Senado a legitimidade do autoritarismo e visitou presos políticos na campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita. A seu modo, porém, Djalma Marinho também deixou sua marca no reencontro do País com a democracia.

Marinho morreu em dezembro de 1981, dois anos antes de Teotônio. Não sei o que pensaria sobre a proximidade política do neto com um político como Jair Bolsonaro. Suspeito que ficaria vexado. Afinal, era um homem culto, educado, conservador, mas liberal e tolerante. Perdeu a eleição para o governo de seu Estado em 1960, derrotado por Aluísio Alves, mas deixou uma biografia digna de ser lembrada.

O neto ainda não terminou de escrever a sua. Que o avô ilumine o seu caminho.

*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


Eliane Cantanhêde: Legalidade sempre!

Afastamento de Witzel por decisão monocrática e sem ouvi-lo acende luz amarela entre governadores

O Ministério Público acertou ao investigar e descobrir maracutaias justamente na área de saúde no Rio de Janeiro, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) errou ao decidir monocraticamente o afastamento do governador Wilson Witzel por 180 dias, sem nem sequer ouvir o que ele tem a dizer sobre as acusações, feitas a partir de uma delação premiada. Combater a corrupção, sim, mas abrir um precedente perigoso contra governadores, não. Por isso, o julgamento de terça-feira no plenário do STJ é tão importante.

Desde sexta-feira, há intensa troca de telefonemas e mensagens entre governadores, para analisar a situação e a operação que pegou Witzel de jeito. Ninguém defende Witzel, até porque eles não viram o processo e não conhecem as provas, mas todos defendem ferrenhamente a legalidade. Que o MP investigue e faça o que tem de fazer e que a Justiça decida, julgue, puna. Mas um único ministro afastar um governador eleito? Sem dar a ele acesso às acusações? Sem ouvi-lo?

Se hoje é Witzel, amanhã pode ser qualquer um. Há motivos para a preocupação. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, a ministra Damares Alves disse, em bom e alto som, que estava tudo pronto para pedir a prisão de governadores e prefeitos. A deputada bolsonarista Carla Zambelli, do PSL, sabia de véspera das primeiras buscas e apreensões contra Witzel. O senador Flávio Bolsonaro avisou com antecedência que o vice-governador assumiria. Witzel lembrou que a subprocuradora-geral Lindôra Araújo é bolsonarista e amiga de Flávio. Amigo do meu inimigo é meu inimigo?

É um óbvio subterfúgio de réu que, sem resposta para os fatos, desqualifica acusadores. Mas serve de alerta para MP e Justiça serem milimetricamente rigorosos, sem abrir brechas ao acusado nem gerar desconfiança entre governadores. Uma coisa, legal, elogiável, é investigar roubalheiras e punir responsáveis. Outra é aproveitar erros de um governador para generalizar, jogar a opinião pública contra todos e criar ambiente para afastamentos, buscas e apreensões, até prisões.

Todo cuidado é pouco nessa hora, com o presidente Jair Bolsonaro em campanha e com tudo engatilhado para despejar sobre os governadores todas as culpas por 120 mil mortos, pandemia, economia, desemprego, queimadas, (falta de) educação. Bolsonaro vai posar de vítima, os governadores serão os réus. Bolsonaristas compram qualquer versão do “mito”. E os demais?

Witzel é uma das estrelas da “nova política” que invadiu governos estaduais e Congresso pelo PSL e PSC e na onda Bolsonaro. Nunca se ouvira falar num tal de Witzel e nem se sabia pronunciar o nome daquele juiz que caiu de paraquedas na eleição num dos três principais Estados do País, com direito a vídeo de apoio do general Augusto Heleno, um dos mentores da candidatura Bolsonaro.

O discurso de Witzel foi o mesmo que varou o País, com neófitos em Minas, DF, Norte, Sul, Centro-Oeste: Congresso, Supremo, política e políticos são uma porcaria, nós somos os bons, os salvadores da Pátria. Mas Witzel não é o único que sucumbe antes de completar dois anos de mandato. Aliás, como estão os processos contra Flávio Bolsonaro?

Por tudo isso e as provas que se acumulam, a repetição primária dos métodos do condenado Sérgio Cabral e a transformação de Helena Witzel na nova Adriana Ancelmo, os procuradores do Rio merecem aplausos, descortinando a corrupção, demolindo o discurso fraudulento. Mas não pode haver dúvidas quando Witzel se diz “massacrado politicamente”. Em vez de réu por corrupção, ele quer se passar por vítima do bolsonarismo. Se o STJ e o MP forem impecáveis, esse discurso não para em pé. Se não, o que é questão de justiça pode virar oportunismo político e ameaçar os governadores.


Vera Magalhães: Corrida da toga

Vale tudo em nome das cadeiras que vão vagar no Supremo Tribunal Federal

Com o protagonismo ainda maior adquirido pelo Supremo Tribunal Federal em tempos de revisão da Lava Jato e de freios nos arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, foi desencadeada uma bizarra corrida pelas duas cadeiras de ministros que vão vagar no intervalo de um ano. Vale tudo para demonstrar lealdade ao presidente e ser digno da canetada da sua Bic.

Pelo menos três atores têm sido pródigos em mostrar serviço na expectativa de serem premiados com a cobiçada toga. A briga pelos lugares dos “Mellos”, Celso e Marco Aurélio, tem produzido decisões em que o direito é torcido e retorcido, com graves consequências políticas e institucionais.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro ao arrepio da lista tríplice e à revelia dos seus pares, é um deles. A última da PGR sob seu comando foi produzida pelo seu vice, Humberto Jacques de Medeiros: o parecer favorável ao foro privilegiado retroativo para Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz.

Medeiros também tem expectativas com a “corrida da toga”: se for Aras o agraciado agora em novembro, são grandes as chances de Bolsonaro designá-lo para o seu lugar.

O fundamento para aliviar a barra de Flávio contrasta com o que o próprio Medeiros usou em outra recente decisão polêmica: a de que requisitar documentos da Lava Jato de Curitiba. Agora ele argumentou que Flávio pode ter seu caso levado para o TJ do Rio porque a decisão do STF em contrário não era vinculante. Na outra, pegou um precedente aleatório para justificar a requisição de dados, sem evocar a necessidade de “aderência”. Um direito para cada ocasião.

Aras deu parecer contrário a buscas e apreensões contra bolsonaristas no inquérito do STF. Agora, no caso Wilson Witzel, o Ministério Público Federal pediu o afastamento de um governador e ele foi acatado por um ministro do STJ de forma monocrática.

Qual a linha da PGR? Depende da circunstância e do alvo?

O próprio STJ, aliás, virou palco auxiliar da corrida pela vaga no tribunal mais prestigiado. Basta lembrar do “canto do cisne” de João Otavio de Noronha na presidência da Corte: mandar Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar por uma liminar no meio do recesso. Noronha é outro que tem a expectativa de ser agraciado por Bolsonaro.

Mais próximo do presidente está o ministro da Justiça, André Mendonça, que se transformou em tudo aquilo que Bolsonaro queria que Sérgio Moro fosse, mas o ex-juiz não quis.

A Advocacia-Geral da União, que ele chefiava antes, continua sendo uma subsidiária de sua linha de trabalho, e a pasta da Justiça virou um misto de advocacia particular do presidente e agência de espionagem de seus inimigos, em procedimento para o qual a maioria dos ministros do STF passou uma reprimenda, mas aliviou a barra do postulante a colega.

E aí há um aspecto importante: os 11 ministros do Supremo têm dado sinais ambíguos quanto à defesa da institucionalidade e aos freios necessários aos demais Poderes e a outros órgãos do sistema de Justiça.

Contêm o presidente, mas usam expedientes no mínimo duvidosos para isso. Repreendem os excessos da Lava Jato, mas seguem tomando decisões monocráticas que chocam a sociedade porque vão na contramão do esperado combate à impunidade. Defendem a liberdade de imprensa, mas abrem um precedente ao evocar a Lei de Segurança Nacional para punir ativistas – dando a senha para Mendonça fazer o mesmo com um jornalista.

O grau de degradação de todas as instâncias da vida nacional que Bolsonaro produziu com sua Presidência tóxica em um ano e 8 meses dará trabalho de corrigir. O sistema de Justiça não passará incólume a essa deliberada estratégia de destruição. Sob a complacência, quando não participação ativa, de muitos dos seus atores.