o estado de s paulo

Bolívar Lamounier: Alguém sabe para onde estamos indo?

Mesmo vendo os riscos crescerem, nada faz crer que tenhamos clareza quanto ao rumo a seguir

Ao contrário da Argentina e de Portugal, o Brasil nunca viu seu passado como um período prolongado de decadência. Não tendo atrás de si nada que se assemelhe a uma idade de ouro, nunca experimentou sentimentos de declínio comparáveis aos vividos por aqueles países.

Os ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do ouro e do café não levaram ao esperado enriquecimento, mas, em cada caso, o empobrecimento foi compensado pelo surgimento de atividades importantes noutras regiões. O primeiro grande baque econômico deveu-se à crise de 1929. Assim, foi só nas três últimas décadas do século 20 e agora, com os trancos brutais causados pelo governo Dilma e pela pandemia de covid-19, que começamos a refletir seriamente sobre as agruras sociais, as desigualdades, o crime organizado, o estado calamitoso da educação, as nossas catastróficas condições sanitárias e, naturalmente, o azedume generalizado da sociedade em relação à política. Ainda assim, a verdade é que não sabemos se essa terrível coleção de tragédias vai solapar ou inverter nosso otimismo futurista de “país novo”.

Não é difícil perceber como essa identidade otimista se formou, apesar da pobreza generalizada. Durante a primeira metade do século 20, até os anos 70, conseguimos sustentar um ritmo acelerado de industrialização. Essa foi a época em que o desenvolvimentismo se firmou como mística mundial, impulsionado pelo New Deal e pela prosperidade americana no segundo pós-guerra, pela reconstrução da Europa, pelo “milagre japonês” e até pelos arroubos retóricos de Kruchev a respeito dos avanços da URSS. No Brasil, em 1958, a vitória das chuteiras nacionais na Suécia, a suavização da velha música de dor de cotovelo e o sorriso de JK contribuíram poderosamente para melhorar nossa autoestima. Víamos tudo no País por uma ótica dual. Agricultura era arcaísmo, indústria era modernidade. Interior era atraso, cidade grande era progresso. Silêncio era tristeza, barulho era alegria, a tal ponto que a aconchegante tranquilidade dos pequenos municípios hoje compartilha o ruído infernal produzido por potentes aparelhos de som.

Na esfera pública, nossos anseios de modernização política e democracia esbarraram em numerosos obstáculos. Isso não deve ser esquecido, pois, gostemos ou não, retrocessos podem acontecer na história de qualquer país, e suas consequências podem ser duradouras.

Sinais de preocupação não faltam. Na política e nas instituições, dificilmente veremos o Congresso aprovar uma reforma política digna desse nome. Dificilmente conseguiremos fazer algo contra um Supremo Tribunal Federal desnorteado ou contra as ações e omissões que empreende com o objetivo de combater o combate à corrupção. É duro constatar que temos na Presidência um homem tosco, agressivo, que não vacila em sabotar o trabalho dos agentes de saúde, ignora a liturgia do cargo que ocupa e ameaça agredir fisicamente jornalistas como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. E que as Forças Armadas, cristalinamente definidas na Constituição como “instituições nacionais”, se deixam cooptar pelo Executivo aos magotes, sem atentar para os riscos que tal comportamento implica para sua identidade histórica.

E não esqueçamos que sinais dessa ordem estão acontecendo em numerosos outros países. Na maior e mais exemplar democracia, a eleição de 2016 levou à Casa Branca ninguém menos que o sr. Donald Trump, um claro adepto do enfrentamento como forma de ação política, e cuja desídia no combate à pandemia certamente responde por muitos milhares de óbitos. Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán só não impõe uma ditadura escancarada porque não tem força para tanto. Na Turquia, na contramão da mais elementar prudência, o sr. Recep T. Erdogan insufla clivagens religiosas, regredindo nos importantes avanços históricos de seu país no sentido de um Estado laico. Na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi promove violências sem conta contra a minoria muçulmana, para só ficarmos neste exemplo. E a China, como ninguém ignora, além de manter intacta sua máquina de governo totalitária, não perde uma oportunidade de recorrer à chantagem comercial quando se sente incomodada pela liberdade de expressão do Ocidente.

Voltando ao Brasil, registremos, de saída, que os gastos (indispensáveis) com a pandemia liquidaram a perspectiva de contas públicas ajustadas nos próximos dez anos. Sabemos que tão cedo não lograremos o nível de investimento e de aumento da produtividade de que desesperadamente necessitamos. Milhões de famílias sentem o desemprego bater à sua porta e outras tantas retornam, humilhadas, da paradisíaca “classe média” para onde o governo Dilma levianamente as mandou.

Fato é que, mesmo vendo os riscos crescerem cada vez mais, nada faz crer que tenhamos alguma clareza quanto ao rumo a seguir. Não a tem o governo, não a têm as elites dos diferentes segmentos da sociedade e tampouco a tem aquela parcela irresponsável que se recusa a usar máscaras e manter o indispensável distanciamento.

  • Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

O Estado de S. Paulo: Congresso perdoa dívidas de R$ 1 bilhão de igrejas; Bolsonaro precisa sancionar

Débitos tributários e multas aplicadas pela Receita Federal foram anulados por um projeto aprovado pelo Congresso; presidente, que já se posicionou contra taxas pagas pelos templos, tem até 11 de setembro para sancionar ou vetar a medida

Idiana Tomazelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Um projeto aprovado pelo Congresso Nacional pode anular dívidas tributárias de igrejas acumuladas após fiscalizações e multas aplicadas pela Receita Federal. Segundo apurou o Estadão/Broadcast, o valor do “perdão” seria de quase R$ 1 bilhão. O texto aguarda a sanção ou veto do presidente Jair Bolsonaro, que tem na bancada evangélica um importante pilar de sustentação política de seu governo. Ele tem até 11 de setembro para decidir se mantém ou não a benesse aos templos religiosos.

Como revelou o Estadão/Broadcast no fim de abril, Bolsonaro promoveu na época uma reunião entre o deputado federal David Soares (DEM-SP), filho do missionário R. R. Soares, e o secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, para discutir os débitos das igrejas. O presidente já ordenou à equipe econômica “resolver o assunto”, mas os técnicos resistem. Bolsonaro também já defendeu publicamente a possibilidade de acabar com taxas ainda pagas pelas igrejas e “fazer justiça com os pastores, com os padres, nessa questão tributária”.

David Soares foi autor da emenda que introduziu, durante a votação na Câmara dos Deputados, o perdão que pode beneficiar inclusive a Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada pelo pai do deputado. A instituição tem R$ 37,8 milhões inscritos na Dívida Ativa da União, além de outros débitos milionários ainda em fase de cobrança administrativa pela Receita.

Contatado por telefone e informado do conteúdo dessa reportagem, o deputado disse que não concederia entrevista.

Drible na legislação

As igrejas são alvos de autuações milionárias por driblarem a legislação e distribuírem lucros e outras remunerações a seus principais dirigentes e lideranças sem efetuar o devido recolhimento de tributos. Embora tenham imunidade no pagamento de impostos, o benefício não afasta a cobrança de contribuições (como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, a CSLL, ou a contribuição previdenciária).

Esses dois tributos são justamente os alvos da anistia aprovada pelo Congresso Nacional por meio do projeto de lei 1581/2020, que trata de descontos em pagamento de precatórios (valores devidos pela União após sentença definitiva na Justiça).

A emenda proposta pelo deputado David Soares exclui as igrejas do rol de contribuintes da CSLL, ampliando o alcance da imunidade prevista na Constituição. O texto ainda diz que “passam a ser nulas as autuações feitas” com base no dispositivo anterior à proposta recém-aprovada – ou seja, elimina a dívida.

Outro artigo declara “nulas as autuações emitidas” pela Receita Federal antes de outra lei, de 2015, que buscava frear as autuações sobre a prebenda, como é chamado o valor recebido pelo pastor ou líder do ministério religioso por seus serviços.

A prebenda é isenta de contribuições à Previdência, desde que seja um valor fixo, mas o Fisco começou a identificar pagamentos variáveis, com características de participação nos lucros ou bonificações a quem tem os maiores “rebanhos” de fiéis. Os auditores começaram então a lançar autos de infração e cobrar os tributos devidos com multas e encargos.

Cunha e R.R. Soares

Uma lei aprovada em 2015 tentou colocar um ponto final às cobranças, isentando valores pagos em forma de ajuda de custo de moradia, transporte e formação educacional. Em um vídeo publicado nas redes sociais em outubro de 2016, o missionário R. R. Soares aparece ao lado do então presidente da Câmara Eduardo Cunhaligado à bancada evangélica, agradecendo pela aprovação da lei.

A Receita, porém, reagiu exigindo a comprovação desses gastos e continuou aplicando multas nos casos em que não havia apresentação de documentos, ou ainda sobre outros tipos de parcelas pagas aos pastores. Enquanto isso, abriu-se uma verdadeira queda de braço em torno do passivo acumulado, que agora o Congresso Nacional quer perdoar.

Segundo apurou o Estadão/Broadcast, a área econômica deve recomendar veto aos trechos que anulam as dívidas das igrejas. Procurado por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério da Economia não quis comentar. A Secretaria-Geral da Presidência da República, que abriga a Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ), principal órgão de assessoramento jurídico do presidente, informou que “o projeto citado está em análise”.

Hoje as igrejas têm ao todo R$ 1,5 bilhão em débitos inscritos na Dívida Ativa. O perdão, no entanto, valeria apenas para as autuações sobre não pagamento de CSLL e contribuição previdenciária. A consulta pública da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) mostra que os templos acumulam R$ 868 milhões em dívidas previdenciárias de qualquer espécie (não necessariamente apenas sobre prebenda), mas não detalha débitos da CSLL. 


Carlos Pereira: A Justiça como arma política

A influência do Judiciário na política é fruto da escolha dos próprios políticos

Têm sido cada vez mais frequentes reclamações e críticas acerca da proeminência do Judiciário brasileiro, especialmente da sua Suprema Corte. Muitos afirmam que esta tem extrapolado a sua atuação, não apenas invadindo a seara de outros Poderes, mas também constrangendo de forma exacerbada a atuação dos políticos. Alegam também que a existência de decisões judiciais em direções opostas sobre temas semelhantes, não só proferidas pelo colegiado, mas especialmente de forma monocrática, tem supostamente acarretado insegurança jurídica.

A crescente influência do Judiciário na política não é um fenômeno brasileiro nem tampouco fruto de voluntarismos unilaterais de juízes ou mesmo de jacobinismos. Na realidade, é produto da escolha dos próprios políticos. Ou seja, o espaço que o Judiciário opera é definido politicamente.

De acordo com Ran Hirschl (The Political Origins of Judicial Empowerment Through Constitucionalization: Lessons from Four Constitutional Revolutions, 2000), essa influência é um fenômeno global. Em países cuja constituição garante direitos fundamentais e atribui ao Judiciário o poder de rever a constitucionalidade de atos de outros Poderes, verificou-se um aumento considerável da influência do Judiciário nas prerrogativas do Legislativo e do Executivo. Diante dos riscos de os interesses minoritários serem esmagados por uma maioria episódica, o empoderamento do Judiciário se tornou um imperativo.

O incremento na judicialização de políticas fez com que o jogo democrático dependesse cada vez mais da posição do Judiciário. A Justiça, na realidade, se transformou em uma espécie de arma política utilizada estrategicamente pelos próprios políticos.

José Maria Maravall (The Rule of Law as a Political Weapon, 2003) propõe três condições para que esse fenômeno ocorra. A primeira quando Executivos constitucionalmente fortes são majoritários no Legislativo ou conseguem formar coalizões. Nesse caso, o Parlamento teria poucas condições de responsabilizar e controlar o governo de plantão, tornando-se menos relevante. O confronto político seria assim transferido para o terreno do Judiciário. Haveria incentivos políticos para que a oposição minoritária embarcasse em uma estratégia de judicialização da política.

A segunda condição se daria quando a oposição aceita a derrota nas eleições na expectativa de se tornar governo no futuro próximo, mas novamente é derrotada nas eleições subsequentes. Mesmo com menores esperanças de se tornar vencedora com as regras do jogo atual, a oposição não parte para saídas autoritárias, mas utiliza o ativismo judicial como instrumento de competição política.

A última condição aconteceria quando o governo de plantão é minoritário e vulnerável no âmbito eleitoral. O governo teria assim incentivos para se valer do ativismo judicial para consolidar seu poder e enfraquecer a oposição. A expectativa do governo de ser vitorioso no futuro sob as atuais condições de competição é inferior à de ganhar após a politização do Judiciário. Evidentemente, essa estratégia depende de o governo encontrar apoio dentro do Judiciário.

No Brasil, as condições institucionais para uma maior interferência do Judiciário na política estão presentes desde a Constituição de 1988. Mas foi com a consolidação e amadurecimento de sua democracia que esse fenômeno ganhou maior intensidade e relevância. Pois, como disse Toqueville, “o poder arbitrário de magistrados em regimes democráticos é ainda maior do que a de seus colegas em regimes despóticos”.

Por maior que seja a insatisfação que a interferência do Judiciário na política gere em parte dos políticos e da sociedade, esse fenômeno tem se mostrado extremamente resiliente ou quase irreversível. Apenas em momentos de crise aberta que exigem refundação, mudanças dessa magnitude conseguem ser implementadas. Mas é preciso lembrar que um enfraquecimento do Judiciário também teria consequências negativas e, portanto, que não existe solução ótima.


José Roberto Mendonça de Barros: Implicações do PIB do segundo trimestre

Definitivamente, o País não estava “voando”

Os resultados da evolução do PIB foram muito variados, mas o pior de tudo é que o índice do produto voltou dez (isto mesmo: 10) anos atrás. É melancólico.

Outra surpresa que se observou foi que o período de janeiro a março foi revisado para baixo: ao invés de uma queda de 1,5%, o que se viu foi um encolhimento de 2,5%. Definitivamente, o País não estava “voando” no começo do ano, como tantas vezes mencionou o ministro da Economia.

Será muito difícil conseguirmos repetir uma queda de tal magnitude (-9,7%), decorrente de uma causa totalmente inesperada vinda da área da saúde, que provocou uma parada súbita no sistema econômico.

Os segmentos que mais sofreram foram aqueles dependentes de aglomerações, tais como restaurantes, viagens e serviços correlatos (a chamada cadeia da hospitalidade, que inclui os serviços criativos), que caiu mais de 40%, e, de outro lado, os segmentos industriais que foram obrigados a fechar as fábricas, como automotivo, máquinas e equipamentos.

O tombo da indústria de transformação reforça a crescente fragilidade do setor, o que torna mais longe ainda a possibilidade de que ele volte a liderar o crescimento. Chama a atenção a elevação da assimetria entre empresas, em que uma nata de companhias ajustadas e capitalizadas segue avançando e aproveitando a desvalorização cambial para reforçar sua competitividade, enquanto a maioria das empresas vê seus balanços piorarem e seus produtos envelhecerem, sem fôlego para competir com a importação, mesmo descontando-se a perda de valor da moeda brasileira.

Só os setores de recursos naturais tiveram desempenho favorável: o agronegócio e o petróleo. O agronegócio, em qualquer comparação, e o petróleo, quando comparado com o mesmo trimestre do ano anterior, uma vez que a Petrobrás suspendeu a produção em mais de 40 plataformas no início da pandemia. Além deles, apenas setores que sempre investiram bastante em tecnologia foram bem no período. Menciono aqui o setor financeiro e as empresas preparadas para venda pela internet.

Sem nenhuma surpresa, o investimento, que já vinha fraco, foi desastroso. Vai ser difícil retomar um crescimento sustentado, após a natural ocupação da capacidade de produção depois da liberação das unidades de produção.

As transferências recebidas por mais de 70 milhões de pessoas alavancaram, a partir de maio, o setor de cimento (reformas), móveis e utilidades domésticas. Isso nos levou a uma leve melhora em nossa projeção de crescimento para o ano: de -5,4 para -4,8%.

Olhando adiante, não dá para ver uma recuperação em V, uma vez que as transferências irão começar a cair nestes próximos meses e serão ainda mais reduzidas no ano que vem, quando o coronavoucher estará encerrado. Além disso, muitas empresas ainda irão sair do mercado e/ou diminuir ainda mais o contingente de seu pessoal. Com isso, a renda das famílias provavelmente será reduzida quando comparada com o auge de maio a agosto e o emprego líquido não crescerá muito. Assim, projetamos uma expansão de apenas 2,2% para o ano que vem.


A demanda internacional de alimentos está aquecida. O ponto forte decorre dos grandes volumes de transferências para as famílias, que ainda ocorre em praticamente todos os países do mundo. Com isso, a procura por alimentos se mantém forte.

Ademais, muitos países, perante a pandemia, tentaram elevar suas importações para constituir estoques de emergência. Do lado da oferta, tanto China como Estados Unidos têm tido problema nos últimos anos. Gripe suína, guerra comercial e problemas climáticos estão prejudicando a produção deste ano, pressionando a oferta e provocando uma apreciável elevação nas cotações de Chicago. Tudo isso se traduz em preços e renda bastante elevados no Brasil.

Isto sugere que os setores de recursos naturais continuarão a puxar nosso crescimento e, por conta disso, temos que levar adiante importantes avanços da bioeconomia, de sorte a contribuir para o fim das queimadas ilegais e para a criação de novos produtos, inclusive materiais, vindos do setor agropecuário.

Este caminho exige uma integração entre o setor agro, a indústria e os serviços de tecnologia. Uma consequência importantíssima é que temos que mudar a lógica da representação empresarial: de federações para coalizões em torno de projetos específicos.

Voltaremos a esses pontos num futuro próximo.

*Economista e sócio da MB Associados.


Vera Magalhães: Patriotismo de fancaria

Bolsonaro transforma discurso de amor à Pátria em culto à personalidade

“Patriotismo significa apoiar o País. Não significa apoiar o presidente.” Diferentemente de outras frases citadas com frequência e falsamente atribuídas a pensadores, esta foi de fato escrita por Theodore Roosevelt, 26º presidente norte-americano (republicano), num ensaio de 1918 em que falava sobre Abraham Lincoln e a liberdade de expressão.

Trago a citação a este texto na véspera do Sete de Setembro, feriado nacional que será desculpa para mais um show de uso de fancaria do termo por parte de Jair Bolsonaro e seus seguidores, num truque comum a regimes de corte nacional-populista e do qual o presidente brasileiro lança mão desde que deixou o Exército pela porta dos fundos para entrar na política pela mesma via.

O sequestro do patriotismo permite ao “capitão” desde desqualificar qualquer opositor como sendo inimigo do Brasil até cunhar frases absurdas como a de que donos de supermercados deveriam demonstrar seu amor à Pátria baixando o preço dos produtos.

É essa apropriação indébita que faz com que o discurso propagandista vendido pela Secom, transformada por Bolsonaro num Ministério da Propaganda, eleja aproveitadores como “heróis” e venda uma narrativa parcial como sendo a História do Brasil.

“Nosso presente está repleto de passado”, disse a historiadora e antropóloga Lília Moritz Schwarcz ao ser questionada por mim sobre o uso torpe do patriotismo como muleta por governantes durante o Roda Viva especial da Independência do Brasil que será exibido nesta segunda-feira.

O recurso a um passado falsamente idealizado não é um expediente original do bolsonarismo. Ele é uma das ferramentas básicas por meio das quais regimes e líderes políticos autoritários constroem a mística em torno de si.

No caso do atual ocupante da Presidência do Brasil, essa narrativa inventada inclui dizer que nossa ditadura militar foi um período “mal interpretado”, como o próprio Bolsonaro fez questão de dizer para um incrédulo Al Gore nos corredores do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em 2019.

Dentro dessa falsificação, criminosos sanguinários como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra são metamorfoseados em heróis.

O mau uso do patriotismo – um conceito que, em vez de ajudar a clarear, os setores “progressistas” da sociedade preferem olhar com soberba, nojinho ou enfado – faz com que mentiras como as cunhadas por Bolsonaro para se eleger, para atentar contra as instituições e para boicotar o combate à pandemia se legitimem junto a uma larga faixa do eleitorado.

Patriotismo nada tem a ver com a versão revisitada dos “fiscais do Sarney” que Bolsonaro evocou na sua última viagem de campanha antecipada sem agenda alguma. Uma visão de amor à Pátria por parte do presidente o levaria, por exemplo, a defender a vacinação em massa e obrigatória para seu povo como um direito de todos e um dever do governo, e não uma “imposição indevida”, como fez em mais uma fala criminosa em que usurpou conceitos, dessa vez o de liberalismo, que ele desconhece completamente.

Inebriado por uma circunstancial melhora de sua popularidade à custa de mais uma ilusão, a de que de repente passou a se preocupar com os pobres graças ao auxílio emergencial, Bolsonaro vestiu o figurino populista e com ele acha que poderá escapar ileso da gestão desastrosa em áreas essenciais, como o combate à pandemia e a política ambiental, e das investidas sistemáticas que fez contra a democracia.

É preciso que os verdadeiros patriotas, aqueles que não usam a Bandeira do Brasil como abadá, pensem em feriados como o de amanhã como um momento de reflexão a respeito desse presente cheio de um passado do qual a História sem narrativa não permite sentir saudades nem orgulho.


Eliane Cantanhêde: De retrocesso em retrocesso

Sem Lava Jato e com ‘fiscais do Messias’, logo chegaremos a 1980. Viva o Centrão!

Além da pandemia, que parece arrefecer, mas já matou mais de 125 mil brasileiros, o Brasil convive neste momento com ameaças a vários alvos bem definidos: Lava Jato, reforma administrativa, ministro Paulo Guedes e liberalismo do governo, vacinação em massa contra a covid-19 e preços de alimentos. Pairando sobre tudo isso, um mesmo fantasma que insiste em rondar o País: retrocesso.

O cerco à Lava Jato une a esquerda de Lula à direita de Bolsonaro, PGR, ministros do Supremo, cúpula e líderes do Congresso e parte da mídia, com tudo caminhando para um gran finale de efeitos explosivos: o julgamento sobre a suspeição do ex-ministro Sérgio Moro nas condenações do ex-presidente Lula, que passaria de réu a vítima e de preso a candidato.

O aperitivo foi quando a Segunda Turma do STF, por empate, que é pró-réu, anulou as condenações do Banestado e depois sustou ação penal contra o ministro do TCU Vital do Rêgo. A sobremesa, em cascata, será quando os advogados entrarem aos montes com recursos (que já devem estar prontos) pedindo “isonomia” para os seus presos e condenados.

“Se estava tudo tão errado assim na Lava Jato, vamos ter de soltar o Sérgio Cabral e devolver o dinheiro, mansões, lanchas, joias e diamantes do Sérgio Cabral?”, adverte um ministro do próprio Supremo, refletindo um temor que cresce na opinião pública na mesma rapidez com que caem os instrumentos e agentes da Lava Jato.

Já a reforma administrativa, que nove entre dez autoridades reconhecem como “fundamental”, mas só de boca para fora, está sem pai e sem mãe. O presidente Jair Bolsonaro, que trancou a proposta por dez meses, não quer e vai querer cada vez menos mexer com o funcionalismo – ou qualquer coisa que possa ameaçar sua reeleição em 2022. E Paulo Guedes e Rodrigo Maia, ambos fortemente a favor da reforma, romperam bem na hora decisiva.

Ex-Posto Ipiranga e ex-superministro, Guedes promete muito, entrega pouco, perdeu as graças do presidente, rompeu com a ala forte do governo e agora se mete numa briga juvenil com o homem-chave das reformas e do seu futuro no governo. E de um jeito ridículo. Proibir seus secretários de conversar com o presidente da Câmara?! Bem, Maia apresentou uma reforma da própria Câmara e foi cuidar da reforma tributária. Guedes que se vire. Com quem? Não se sabe.

E que tal ter na Presidência alguém que usa o cargo para fazer propaganda de um medicamento sem comprovação científica em nenhuma parte do mundo e para desestimular o uso obrigatório da vacina para livrar o País da maldição da covid-19? Por quê? Porque ele governa o Brasil misturando seus achismos com conselhos de terraplanistas que apostavam em no máximo 2.100 mortos. Já chegam a 125 mil, mas Bolsonaro continua firme com eles.

A última do presidente é apelar para o “patriotismo” dos donos de supermercados para segurar os preços. É evidente que a disparada dos preços já começou, em função de pandemia, dólar, estoques da China. E que o governo não tem ideia do que fazer. Além de apelar a empresários, talvez seja hora de orar. Milhões de pessoas sem emprego, com alta de preços de arroz, feijão e óleo… Boa coisa isso não dá.

Como alertou o colega José Fucs, é a volta aos anos 1980. A polícia (ou o Exército?) laçando bois no pasto, “fiscais do Messias” prendendo gerentes nos supermercados ao som do Hino Nacional. Nada com liberalismo, tudo com populismo e perfeitamente de acordo com cegueira ideológica, meio ambiente, Educação, saúde, política externa, cultura, inclusão, respeito à divergência, combate à corrupção e… censura quando se trata de Flávio Bolsonaro. De retrocesso em retrocesso, logo chegaremos a 1980. E viva o Centrão.


Fernando Henrique Cardoso: Reeleição e crises

É ingenuidade imaginar que os presidentes não farão o impossível para se reelegerem

Recordo-me da visita que André Malraux, na ocasião ministro da Cultura de De Gaulle, fez ao Brasil. Esteve na USP, na Rua Maria Antônia, onde funcionava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e expôs no “grande auditório” (que comportava não mais que umas cem pessoas) sua visão de Brasília, obra de Juscelino Kubitschek. Malraux estava extasiado, comparava o plano diretor da cidade não a um pássaro (coisa habitual na época), mas a uma cruz. Com sua verve inigualável, dizia em francês o que não estávamos acostumados a ouvir em português: fazia o elogio da obra.

Esse não era, contudo, o sentimento predominante, pois víamos Brasília mais como desperdício, que induzia à inflação, do que como um “sonho”, um símbolo.

A visão dominante era negativa, principalmente no Rio de Janeiro (que perderia a condição de capital da República), em São Paulo e daqui para o sul. O gasto era grande e os recursos, minguados.
Eu compartilhava esse sentimento negativo, e olha que um de meus bisavôs fizera parte, no Império, da “missão Cruls”, que demarcara o território da futura capital do Brasil… Brasília foi construída onde desde aquela época se previa fazer a capital do País.

Não é que Malraux tinha razão? Não que a obra deixasse de ser custosa ou mesmo impulsionadora da inflação. Mas um país também se constrói com projetos, sonhos e, quem sabe, alguns devaneios…

Juscelino fez muitas coisas, algumas más, mas não é por elas que é lembrado. Brasília, sim, ficou como sua marca.

Não o conheci. Vi-o pessoalmente uma vez, sentado, solitário, num banco no aeroporto de “sua” cidade. Aproximei-me e o saudei; pouca conversa, mas muita admiração. Ele já havia sido “cassado”. Passa o tempo e fica na memória das pessoas sua “obra”, Brasília.

Não estou recomendando que Bolsonaro faça algo semelhante. Não sou ingênuo para pretender que minhas palavras cheguem ao presidente e, se chegarem, sejam ouvidas… Como estive no Planalto, às vezes me ponho no lugar de quem ocupa aquela cadeira espinhosa: é normal a obsessão por fazer algo, para o povo e para o País. Como o presidente será julgado são outros quinhentos. Maquiavel já notava que os chefes de Estado (os grandes homens… na linguagem dele) dependem não só de astúcia, mas da fortuna (da sorte).

O governo atual não teve sorte. São de desanimar os fatores contrários: a pandemia, logo depois de uma crise econômica que vem de antes, com o produto interno bruto (PIB) crescendo pouco (se é que…), e uma “base política” que depende, como sempre, mais do “dá lá toma cá” do que da adesão popular a algo grandioso. Ganhou e levou; mas mais pelo negativo (o não ao PT e aos desatinos financeiros praticados) do que pelo sim a uma agenda positiva.

Agora se tem a sensação (pelo menos, eu tenho) de que o presidente não está bem acomodado na cadeira que ganhou. É difícil mesmo. De economia sabe pouco; fez o devido: transferiu as decisões para um “posto Ipiranga”. Este trombou com a crise, pela qual não é responsável. Não importa, vai pagar o preço: tudo o que era seu sonho, cortar gastos, por exemplo, vira pesadelo, terá de autorizá-los. E pior: como é economista, sabe que a dívida interna cresce depressa, e sem existir mais a alternativa da inflação, que tornava aparentemente possível fazer o que os presidentes querem – atender a todos ou à maioria e ganhar a reeleição. Só resta o falatório vazio. Este cansa e é ineficaz num Congresso que, no geral, também quer gastar e igualmente pensa nas eleições.

Cabe aqui um “mea culpa”. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição. Verdade que, ainda no primeiro mandato, fiz um discurso no Itamaraty anunciando que “as trevas” se aproximavam: pediríamos socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é desculpa. Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de quatro anos é pouco para “fazer algo”. Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade.

Eu procurei me conter. Apesar disso, fui acusado de “haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória… do Lula. Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo “plebiscitário”, seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final.

Caso contrário, volto ao tema, o ministro da Economia, por mais que queira ser racional, terá de fazer a vontade do presidente. Não há o que a faça parar, muito menos um ajuste fiscal, por mais necessário que seja. E tudo o que o presidente fizer será visto pelas mídias, como é natural, como atos preparatórios da reeleição. Sejam ou não.

Acabar com o instituto da reeleição e, quem sabe, propor uma forma mais “distritalizada” de voto são mudanças a serem feitas. Esperemos…

*Sociólogo, foi presidente da República


Miguel Reale Júnior: A mentira

Tem retidão moral quem mente e acusa injustamente terceiros para se livrar…?

É fato notório que o presidente Bolsonaro é pessoa tosca, deseducada, nada afeito a qualquer etiqueta. Ao contrário, orgulha-se de ser um atleta bronco, e não um “bundão” que morre ao contrair a covid-19. Mas além das grosserias proferidas contra jornalistas, tão ou mais graves foram as tentativas de desvirtuar a verdade.

Com efeito, ao chegar à catedral de Brasília no domingo 23/8, jornalista de O Globo indagou: “Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”. E o presidente respondeu: “Vontade de encher a sua boca de porrada”. No mesmo instante, um ambulante falava: “Vamos visitar, presidente, a nossa feirinha da catedral?”. Segundo vídeo falso de site bolsonarista, com foto de Bolsonaro abraçado à filha, o repórter teria dito: “Vamos visitar sua filha na cadeia”. Ao que, então, o presidente reagiu: “Vontade de encher sua boca de porrada”. Sites bolsonaristas difundirem inverdades para salvar a cara do seu mito já é habitual no mundo das fake news.

O grave está em o presidente, sabedor da falsidade inventada por apoiadores, ter reproduzido em seu canal no YouTube a versão mentirosa, sem legendas, com o título: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!”. O filho 02, Carluxo, compartilhou no Twitter essa versão de conteúdo falso.

Não é a primeira vez que o presidente recorre à mentira para atacar jornalista. Vera Magalhães noticiou que Bolsonaro divulgara vídeo convidando pessoas a irem a ato contra o Congresso Nacional, no dia 15 de março deste ano. Em live do Palácio do Alvorada e em sua página no Facebook, Bolsonaro acusou falsamente a jornalista de ter confundido o vídeo em que convocava para reunião contra o PT em 2015 e o chamamento para o ato de 15 de março de 2020, ambos num domingo.

Disse o presidente: “O vídeo abaixo chegou ao conhecimento da jornalista Vera Magalhães, que, na sede de furo jornalístico, publicou matéria como se eu estivesse convocando ato para as manifestações de 15/março/2020. Ela, certamente por má-fé, não atentou que o vídeo era de 2015, onde houve uma manifestação no dia 15 de março (domingo) daquele ano contra o governo do PT”. E completou o mandatário com esta ofensa: “Não sou da sua laia, esqueceu de ver a data. Trabalho porco precisa ter um pouco mais de vergonha na cara”.

A mentira do presidente era inadvertidamente por ele mesmo denunciada, pois na live disse que o vídeo contava um pouco de sua vida: a facada. Ora, a facada foi em 2018, portanto, o vídeo não poderia dizer respeito a manifestação de 2015. Além do mais, no vídeo mostrava-se a posse de Bolsonaro em 2019. Ainda por cima, o ministro José Eduardo Ramos e o deputado Alberto Fraga confirmaram ter recebido de Bolsonaro o vídeo.

Inverdades e acusações são marcas dos dois acontecimentos. O uso deslavado da mentira como arma de defesa, para tentar esconder seus atos que infringem a dignidade do cargo. se une à deslealdade de fazer recair sobre outros as suas próprias culpas.

A intenção de mentir está em fugir da verdade para tentar se eximir da responsabilidade pelos atos cometidos, induzindo em erro os destinatários da mensagem, sem nenhum pudor (Batistelli. A Mentira, trad. Fernando Miranda, São Paulo, 1945, pág. 81).

Nesses casos, as mentiras têm perna curta, a demonstrar que no afã de ocultar a verdade e culpar terceiro nem se fez a versão passar pelo crivo do raciocínio, parecendo ser fruto de um impulso, indicando, conforme Battistelli, ser a mentira quase patológica.

A simulação da indignação, ao rechear a mentira com ofensas aos terceiros que pretende culpar pelos próprios atos, é um truque grosseiro, um fingimento, a revelar antes pusilanimidade perante possíveis aborrecimentos do que a força que se pretende demonstrar.

A ficção visa a proteger das dificuldades, aderindo à mentira como tábua de salvação, em recurso próprio dos medrosos (Battistelli, cit., pág. 143), pois, ao contrário dos homens de coragem, não assumem os próprios atos. Mentir e acusar o outro é a reação comum dos fracos diante de uma pergunta a que não sabem responder.

Uma das hipóteses de crime de responsabilidade previstas na Lei 1.079, de 1950, está em proceder o presidente “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (artigo 9.º, 7).

Aquele que age sem ser conforme a dignidade exigível para o exercício do cargo desmoraliza a “própria imagem do Estado aos olhos do povo”, com perda da respeitabilidade. A retidão moral constitui o cerne da dignidade no exercício do cargo de primeiro mandatário da Nação.

O professor Fábio Comparato, na peça que preparou para o impeachment de Collor, ensina que a lei introduziu na definição do delito a ideia central do decoro, que vem a ser temperança, domínio das paixões, honestidade, decência, pois “o que é honesto é decente e vice-versa”.

E cabe perguntar, então: tem retidão moral aquele que mente e acusa injustamente terceiro para se livrar da assunção dos próprios atos que se revestem, por si só, da ausência do devido decoro?

É mais uma pergunta que não quer calar.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Adriana Fernandes: A boiada das reformas

O Congresso tem agora o seu próprio Big Bang para administrar até o final do ano

Em 2017, o Congresso fervia com o debate nacional em torno da reforma da Previdência. A PEC 287 tinha sido enviada pelo presidente Michel Temer no dia 5 de dezembro de 2016 no embalo da aprovação rápida da emenda do teto de gastos.

Enquanto todos os holofotes estavam voltados para as mudanças nas regras previdenciárias, apontada na época como a solução para a crise fiscal do País, a reforma trabalhista foi sendo construída e aprovada sem muitos obstáculos e debates nas duas Casas e na sociedade civil.

O relator da reforma, o ex-deputado tucano pelo Rio Grande do Norte e hoje ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, propôs mudanças em 100 pontos da septuagenária CLT.

De repente, quando se viu, a reforma já estava pronta e rapidamente a votação do projeto foi concluída em julho de 2017 pelo Senado. Já a PEC da reforma da Previdência só saiu do Congresso aprovada após três anos da primeira tentativa do governo Temer.

Mais tarde, a estratégia de negociação da reforma trabalhista – à sombra da “gritaria” que acontecia na discussão da Previdência – foi saudada pela base governista como extremamente hábil e bem-sucedida para iniciar o que as lideranças chamaram de novo ciclo de reformas estruturantes. Marinho perdeu a eleição em 2018, mas ganhou a parada ao ser alçado ao cargo de secretário do ministro Paulo Guedes e articulador principal do governo Bolsonaro para a reforma da Previdência. Hoje, é um dos ministros mais influentes do governo.

No meio desse caminho, até hoje, diversas pautas-bomba e inúmeros “jabutis” foram sendo aprovados, armados e desarmados a um custo elevado para as próprias contas públicas.

Em nome de reformas para garantir a sustentabilidade das contas públicas, uma penca de medidas com aumento de gastos foi aprovada. Maior contradição impossível.

O caso mais recente foi a votação do congelamento dos salários dos servidores públicos até dezembro 2021 e das restrições ao aumento de gastos com pessoal. Foi uma batalha longa até a manutenção do veto presidencial pela Câmara.

Na semana seguinte, a fatura já estava sendo cobrada: a Câmara aprovou a proposta que cria o Tribunal Regional Federal da 6.ª Região, com sede em Minas Gerais. Sem falar nas categorias que correram para garantir reajustes antes do congelamento com as bênçãos do presidente Bolsonaro.

Agora, se fala em parecer do próprio governo que flexibiliza as restrições impostas pela lei recém-aprovada.

A lembrança de 2017 se justifica agora porque várias propostas importantes e polêmicas estão tramitando ao mesmo tempo. A mais ruidosa delas, e que gera debates intensos nas redes sociais, a reforma administrativa que mexe com o funcionalismo público, chegou esta semana desidratada e com blindagem para a elite do funcionalismo e os altos salários.

A reforma administrativa entrou no Congresso como resposta à pressão externa, que incluiu uma mobilização bem articulada de uma frente de parlamentares e de setores da sociedade civil, mas também pela interdição branca que o setor produtivo tem feito na reforma tributária. Todo mundo diz que quer aprovar a tributária para acelerar o crescimento, porém, lá no fundo não é bem assim. Isso vale também para o governo que retirou o pedido de urgência para a votação da primeira fase da sua proposta de reforma enviada no mês passado.

Os maiores riscos desse cenário de múltiplas reformas e escolhas são: aprovar propostas como remendos sem eficácia alguma e abrir a porteira para a passagem de jabutis que minam ainda mais as contas do governo e também as instituições públicas, com o aparelhamento da máquina pública.

Depois da pressão para o envio das reformas, o Congresso tem agora o seu próprio Big Bang para administrar até o fim do ano. A reforma administrativa é só mais um item polêmico a compor a extensa agenda de propostas que estão no Senado e na Câmara sem uma definição de qual delas é de fato a prioridade número um de votação nos quatro meses que faltam para terminar 2020.

Para quem não acompanhou de perto o frenesi do noticiário econômico das últimas semanas, Big Bang foi o apelido dado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao anúncio de um pacote de medidas para a retomada da economia na fase pós-pandemia.

Reforma tributária? Reforma do “RH”? PEC do pacto federativo para corte de gastos? Renda Básica? Novos gatilhos para investimentos? Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Orçamento de 2021? Plano Mansueto para salvar os Estados com as finanças em frangalhos em 2021?

Tudo isso junto e misturado com a disputa pelas presidências do Senado e Câmara, a briga pelo protagonismo e as sessões ainda afetadas pela pandemia. Prato feito para a aprovação de jabutis e propostas malfeitas para “inglês ver”. Mas como inglês não é bobo nem nada, uma hora a ficha cai.


Fernando Gabeira: Dinheiro, não, um certo rumo

Salário mínimo não tem aumento. Debate é se militares podem passar o teto do funcionalismo

Neste momento se discute muito o Orçamento. É uma discussão tediosa se nos concentramos apenas nos números.

Na verdade, o que se discute agora é basicamente a ajuda emergencial até dezembro. Não dava para pagar os R$ 600. Caiu para R$ 300. Daqui a pouco surgirá a nova discussão, agora sobre o programa Renda Brasil, que pretende ser um serviço continuado, nos moldes do Bolsa Família.

Tudo isso é estimulado pela campanha à reeleição de Bolsonaro. Esses programas foram sempre necessários, mas no passado ele se opunha a eles, chamava-os de Bolsa Farinha e os via como uma forma de comprar votos. É sempre assim: no governo dos outros é suborno, no nosso é medida necessária para atenuar as duras condições de vida da população mais pobre.

Por causa do seu apelo eleitoral, só se discute mais intensamente a ajuda aos pobres. Mas sabemos que, apesar de garantir votos, o Brasil precisa de mais: de um projeto de retomada econômica com abertura de empregos.

Ainda assim, é pouco. Em cada momento histórico é preciso definir um rumo, sobretudo depois de uma tenebrosa pandemia, com todas as suas consequências.

Ter um rumo correto faz a diferença. Os europeus optaram por uma retomada verde e também por avançar no processo de modernização digital. Isso define investimentos e repercute até nas decisões tributárias, que estimulam as atividades de baixo carbono e penalizam as mais problemáticas numa época de aquecimento global.

Não se trata de afirmar que o Brasil precisa ter o mesmo rumo, embora esteja envolvido no mesmo contexto globalizado. É um dos raros países que são uma potência ambiental, não poderia perder esse bonde, uma vez que dificilmente passará outro tão promissor nas próximas décadas.

Uma das lacunas na chamada reforma tributária, em nosso país, é ser vista apenas sob um ângulo superficial da racionalização. O único objetivo parece ser a simplificação, que já é algo importantíssimo para o crescimento. Mas crescer para onde? E como crescer?

Tradicionalmente, as questões ambientais ficam um pouco à margem do debate tributário. Às vezes o simples princípio poluidor pagador já é visto como uma grande vitória.

No entanto, a questão das atividades de baixo carbono passa a ocupar um espaço novo. O aquecimento global transformou o carbono neutralizado numa espécie de moeda. Alfredo Sirkis, amigo morto recentemente, tinha o sonho de transformar o carbono numa referência monetária, como foi o ouro até a conferência de Bretton Woods.

Existe outro ponto em que o Orçamento se poderia transformar de discussão burocrática em debate vivo. Refiro-me também ao dinheiro destinado à defesa nacional. Ele foi ampliado por Bolsonaro, embora não a ponto de suplantar educação ou saúde, como o presidente queria.

Não custava nada um debate sobre as verbas da defesa não escorado apenas em cifras, mas em rumos. Que tipo de guerra esperamos, como nos preparamos para ela, os recursos são adequados? Parece uma heresia trazer esse debate da defesa para a sociedade.

Sabemos que os militares se preocupam com a defesa da Amazônia, num momento em que o mundo está muito interessado no destino da região.

Até que ponto vão investir na Amazônia? Que concepção de defesa têm para a área?

Teoricamente, fica mais fácil tomar conta de uma região sem a floresta em pé. Mais simples ainda seria essa tarefa se os povos indígenas fossem fundidos num só povo, o brasileiro.

Mas o problema central é que a floresta terá de ser explorada sem destruição e os povos indígenas são considerados hoje também uma riqueza da humanidade. Aliás, essa já é uma visão mais antiga. Durante a conferência de 1992 no Rio, houve o encontro dos líderes mundiais e um encontro paralelo, no Aterro do Flamengo, reunindo organizações e personalidades. Neste encontro foi definido que a diversidade cultural é tão importante para o futuro comum como a biodiversidade.

É esse quadro complexo de biossociodiversidade que a defesa da Amazônia nos apresenta. Nada mais interessante antes de abordar cifras do que conhecer exatamente o tipo de escolha que o Brasil fará. Mesmo porque as notícias que surgem são muito inquietantes. Fala-se na compra de um satélite de R$ 145 milhões, quando sabemos que o Inpe monitora adequadamente a região. Por que essa redundância? No passado fizemos um investimento gigantesco para a época no Sivam, o Sistema de Vigilância da Amazônia. Fala-se muito pouco dele, mas seria um instrumento até mesmo de nossa diplomacia amazônica, por sua possibilidade de coletar e compartilhar dados.

Enfim, todas essas dúvidas são pertinentes para quem se interessa em examinar como o País gasta o seu dinheiro. Vimos que a economia é bastante severa quando se trata de salário mínimo: não há aumento real. No entanto, o debate é se os militares podem ou não ultrapassar o teto do funcionalismo público. Isso é tão desapontador que prefiro acreditar que um verdadeiro debate sobre Orçamento ainda virá, ou já existe e minhas antenas ainda não o captaram.


Eliane Cantanhêde: Guerra aos penduricalhos

A minoria usufrui dos privilégios, mas todos pagam. Inclusive você!

Que a reforma administrativa é absolutamente fundamental para reduzir gastos e garantir eficiência, qualidade e produtividade no serviço público, ninguém tem dúvida e isso fica ainda mais flagrante diante do impacto dramático da pandemia nas empresas e empregos do setor privado e nas contas da União, Estados e Municípios. Mas que reforma? Para quem? Com que abrangência? Em que prazo?

Engavetada por dez longuíssimos meses pelo presidente Jair Bolsonaro, que pensa mais na reeleição do que na Presidência, a reforma tardou, é preciso saber se não falhou. E ainda tem muito chão pela frente. Assim como Bolsonaro pressiona por cima, as poderosas corporações públicas pressionam por baixo para manter tudo como está. Quem tem de resistir é o Congresso Nacional – que é parte interessada.

A maior crítica à proposta (inclusive no Ministério da Economia) é não atingir os atuais, só os futuros servidores. Mas a reação é favorável, por atacar privilégios incompreensíveis: promoção por tempo de serviço, licença-prêmio, acúmulo de salários, aposentadoria compulsória como punição e a principal delas, a estabilidade. Os servidores têm o “direito adquirido” de manter o emprego, o que é injusto com os péssimos, com os ótimos e com quem paga: nós todos. E um estímulo à ineficiência.

A proposta faz distinção entre “servidores” e “agentes” públicos. Atinge os servidores dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, e dos três níveis federativos, União, Estados e Municípios, mantendo a estabilidade para carreiras de Estado, como diplomatas, auditores fiscais, policiais federais e também militares, que têm regime diferenciado de trabalho, como de Previdência.

Para os futuros servidores “sem-estabilidade”, não bastará um concurso para garantir salário e renda pelo resto da vida. Será preciso mostrar trabalho desde o início, com estágio comprobatório de três anos, e quem apresentar “desempenho insuficiente” correrá risco. Neste ponto, porém, haverá intensas discussões sobre o perigo de “triagem político-ideológica” dos jovens servidores pelos governos de plantão. Vai que alguém goste de rock e o chefe ache o rock “demoníaco”. Nunca se sabe…

Já os agentes públicos, não servidores, ficam de fora: deputados, senadores, magistrados, procuradores, promotores e ministros de tribunais, já que o Executivo não pode determinar a organização e as regras para Legislativo e Judiciário, onde se concentram caríssimos “penduricalhos” que eu, tu e nós pagamos. Como férias de 60 dias.

Além disso, há muitas dúvidas quanto a estabelecer que o céu é o limite para o presidente da República criar, acabar e remanejar órgãos públicos, sem aval do Congresso. Se, com as atuais restrições, o presidente já pode fechar o Ministério da Cultura, por exemplo, imaginem com um super poder para moldar a administração federal ao seu gosto ideológico?

Todas essas questões deixam de gerar embates entre Bolsonaro e o ex-super ministro Paulo Guedes e caem no colo de deputados e senadores, que formarão uma comissão conjunta para estudar a proposta, tirar uns exageros e acrescentar outros, cobrir vácuos e criar outros. Diferentemente do governo, eles trabalharão sob intensa pressão da opinião pública, do setor privado e de corporações que têm apoio da esquerda e da direita. Sem falar nos eleitores….

Assim como Bolsonaro, parlamentares só pensam em eleição e, entre o interesse público e os seus votos, nem sempre o vitorioso é o interesse público. Tão impopular quanto necessária, a reforma administrativa depende da ampliação do debate para além das corporações e do convencimento da sociedade de que, como a da Previdência, ela é essencial para o País.


William Waack: Luta abandonada

Na prática, o governo desistiu de controlar despesas via reforma administrativa

Talvez por sentir que não tem forças políticas para uma briga difícil. Por falta de apetite para enfrentar uma corporação organizada e que sabe defender seus interesses, direitos ou privilégios adquiridos (cada um nomeia como quiser). Ou ambos. Mas o fato é que a principal luta política de Bolsonaro foi abandonada.

O governo prometeu entregar hoje ao Congresso uma reforma administrativa que trata apenas dos servidores de amanhã, e não toca no sistema de interesses, direitos ou privilégios adquiridos (nomeie como quiser) atuais. Na prática, não vai pegar de frente a questão do controle do crescimento de despesas públicas, nas quais as folhas de pagamento do funcionalismo figuram com tanto destaque.

Chega a ser fascinante observar como o atual governo, que ia reformar o Estado e mudar o Brasil, trata obstáculos formidáveis no seu caminho como se o tempo fosse resolver tudo. Nenhum governo recente se revelou capaz (e este segue do mesmo jeito) de controlar o crescimento real de gastos públicos. Nenhum conseguiu escapar (e este vai na mesma toada) de um orçamento ridiculamente engessado: 94% do Orçamento são despesas obrigatórias.

Um consenso abrangente reina entre academia, economistas, cientistas políticos, parlamentares experientes e o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes. É sobre o tamanho do imbróglio. Arrumar dinheiro para gastar depende de reforma tributária, que depende de um pacto federativo para acomodar todos os interesses contraditórios, que depende de uma reforma tributária que enfrente renúncias e isenções, que depende de uma reforma administrativa que controle despesas públicas e tudo isso depende de vontade e lideranças políticas.

É igualmente notável a ausência de uma resposta clara e direta quando se pergunta por onde e como o governo quer atacar a questão. Seu eixo estratégico – a reforma administrativa e o pacto federativo tinham sido declarados como tais há quase dois anos – se perdeu por fatores que o governo controlou ou minorou apenas parcialmente (a crise de saúde pública e a recessão) aliados ao ambiente político que colocou Bolsonaro claramente na defensiva.

É evidente que o impulso inicial por reformas, se autêntico alguma vez, substituído foi pela necessidade de sobrevivência política. Por sua vez, subordinada às questões jurídicas e policiais que afetam o clã Bolsonaro, mas, também, pela urgência trazida pela imperiosa obrigação de acudir milhões de necessitados. Não há qualquer outra prioridade: sobreviver para se reeleger.

O presidente reconhece que não tem recursos para pagar indefinidamente um coronavoucher que chegou a custar R$ 50 bilhões por mês. Que não está disposto a topar uma briga para mexer em interesses, direitos ou privilégios adquiridos, ou seja, tem graves dificuldades para reduzir aumento de gastos. E que ainda aguarda uma “fórmula”, a cargo da Economia, para compensar perda de arrecadação de um lado com necessidade de gastar por outro.

Se havia nesse governo eleito para “mudar o Brasil” uma visão de longo prazo, a crise atual a destruiu. É possível identificar no cálculo político do presidente a esperança de que a tal “recuperação em V” propalada por Guedes (que até aqui os números desmentem), impulsionada por marco do saneamento, agronegócio, lei do gás e liquidez internacional, abra o espaço fiscal para os programas de renda e de crescimento.

Mas foi jogando para frente, para o próximo mês, para a próxima semana, para o próximo dia, o enfrentamento das questões fundamentais que Bolsonaro caiu na situação atual, da qual não tem opções fáceis de saída do ponto de vista político nem econômico (como “salvar” o PIB distribuindo ajuda emergencial).

Pode-se atribuir a Bolsonaro muitas coisas, mas cinismo não figura no alto da lista. Talvez isso dificulte a ele entender que são efêmeras a lealdade política de partidos do Centrão e a popularidade compradas com emendas, cargos e ajuda emergencial.