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Eliane Cantanhêde: Fux, sem subterfúgio

Em vez de defender o combate à corrupção em tese, Fux citou especificamente a Lava Jato

Se o Supremo Tribunal Federal agir e decidir nos próximos dois anos como se comprometeu ontem o seu novo presidente, Luiz Fux, será um sucesso, um bom momento para a Justiça brasileira. Não custa lembrar, porém, que, entre palavras e atos, há uma enorme distância. Entre o desejo e as condições práticas, também. E é preciso combinar com os “adversários” – inclusive os demais ministros. Logo, a torcida é para Fux perseguir suas promessas e os princípios manifestados, enfrentar as naturais divisões internas e as pressões externas.

Em seu discurso, que abriu com um tributo aos quase 130 mil mortos pela covid-19, geralmente esquecidos nas falas do Executivo, ele disse que “democracia não é silêncio, é debate construtivo”, e defendeu a independência entre Poderes, mas “com altivez e vigilância e não com contemplação nem subserviência”. Ao seu lado, o presidente Jair Bolsonaro, finalmente de máscara, apesar das telas transparentes que separavam os ministros e autoridades, não mexia um músculo.

Fux também criticou a judicialização da política e o excesso de ações que o Supremo julga por ano – 115.603 em 2019. Ao dizer que o Judiciário não é “oráculo”, pregou que Executivo e Legislativo resolvam seus conflitos internos, sem que o Supremo atue verticalmente, e prometeu uma “intervenção minimalista” em matérias sensíveis: “menos é mais”, disse. Além de enaltecer a democracia e a mínima interferência em temas dos demais Poderes, ele se comprometeu veementemente com uma ação firme em favor de minorias, liberdade de expressão e de imprensa e, junto com isso, com o combate à corrupção e ao crime organizado.

O recado mais objetivo do discurso de posse, porém, foi quando Fux saiu dos princípios gerais, das frases de efeito e das citações eruditas para dizer com todas as letras, sem subterfúgio, que sua gestão será pró-Lava Jato. Além de citar diretamente a operação e o mensalão, marcos contra a corrupção no Brasil, ele fez mais: lembrou aos quatro ventos, especialmente para a cúpula do poder nacional, ali presente, que todas as operações foram realizadas com autorização judicial. Inclusive do próprio Supremo.

Essas manifestações têm enorme significado diante das múltiplas frentes de ataque à Lava Jato e da correspondente reação das forças-tarefa. A cada ataque, uma nova operação – como a que atingiu em cheio, na véspera da posse, os advogados, até agora preservados e na linha de frente do tiroteio contra a Lava Jato, por motivos óbvios.

Se o Supremo é unânime ao dizer não aos arroubos antidemocráticos, sejam do presidente Bolsonaro, de seus adeptos e robôs de internet, a Corte se divide quanto o tema é Lava Jato. Por isso a importância da manifestação de Fux. O presidente tomou partido, reafirmou já na posse os seus votos, em plenário e na Primeira Turma, a favor das duas maiores operações de combate à corrupção de que se tem notícia.

Na pauta do Supremo, destacam-se a investigação de Bolsonaro por interferência política na Polícia Federal e o julgamento, na Segunda Turma, da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Lula. E, claro, respingarão na Corte as decisões do Congresso sobre a prisão após condenação em segunda instância, que teve idas e vinda tortuosas e julgamentos apertados no plenário – em geral por um voto.

Celso de Mello sai em novembro e Marco Aurélio, no ano que vem. Ambos são contra a prisão em segunda instância. Portanto, se houver um novo julgamento, a decisão vai depender dos dois futuros ministros. Ou seja: de Jair Bolsonaro. Deste que é candidato à reeleição em 2022, não daquele de 2018. A grande interrogação, aliás, é justamente essa: como será a relação deles, Bolsonaro e Fux.


O Estado de S. Paulo: Judiciário, Ministério Público e estatais lideram os gastos com servidores

Levantamento do governo mostra que despesas com pessoal do Judiciário aumentaram 94,2% entre 2010 e 2019, enquanto os do MP avançaram 114%; nas empresas públicas, a alta da folha chegou a 265,5%

Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli, O Estado de S.Paulo

A folha de salários de servidores e integrantes do Judiciário e do Ministério Público da União, assim como de militares e empregados de empresas públicas, estão entre as que mais cresceram entre 2010 e 2019, segundo dados do governo obtidos pelo Estadão/Broadcast. No período, o gasto com o funcionalismo do Judiciário subiu 94,2%, enquanto o do MPU mais que dobrou: a alta foi de 114%.

Em valores absolutos e sem descontar a inflação, a despesa com pessoal no Judiciário federal engordou R$ 23,18 bilhões na última década e se transformou numa das principais “torneiras” abertas de gastos dentro do governo.

Os gastos englobam os servidores ativos e inativos e também os chamados membros dos Poderes, como juízes, procuradores e parlamentares, categorias que ficaram de fora da reforma administrativa enviada pelo governo ao Congresso Nacional. Os militares, cuja despesa com pessoal deu um salto de 95% em dez anos, também escaparam da reforma do RH do setor público.

Nas empresas públicas, o avanço foi de 265,5%, num movimento determinado principalmente pela maior contratação de funcionários para hospitais universitários.

Os dados apontam crescimento elevado da folha mesmo depois da aprovação do teto de gastos, regra que impede o avanço das despesas acima da inflação. Nos primeiros três anos do teto, Judiciário, Ministério Público e Legislativo tiveram um espaço extra cedido pelo Executivo para acomodar aumentos salariais já concedidos sem descumprir a regra já na largada. A compensação, no entanto, acabou abrindo espaço para ampliar ainda mais a folha e retardar o ajuste. Em 2019, o aumento dos gastos com pessoal foi de 7,1% no Judiciário e chegou a 13,6% no MPU.

Gasto total

Entre 2010 e 2019, o gasto total da União com pessoal saltou de 170,89 bilhões para R$ 319 bilhões, mas o crescimento das despesas no Executivo civil (75,4%) e no Legislativo (66,9%) ficou abaixo da inflação no período (76,3%). Nos últimos três anos, a despesa do Executivo apenas com ativos cresceu em ritmo menor e se estabilizou na faixa dos R$ 95 bilhões.

“O Judiciário é hoje a grande torneira aberta da aceleração de gastos”, diz a economista e colunista do Estadão Ana Carla Abrão. Segundo ela, a categoria conta com adicionais que não são transparentes, como os penduricalhos, auxílios, bônus e os retroativos salariais. 

Ela ressalta que o próprio Judiciário julga a adequação dos pleitos salariais para si próprio, o que acaba criando uma situação de conflito. Na sua avaliação, integrantes do Judiciário já estão fazendo mea-culpa e devem trabalhar para a sua inclusão na PEC.

Para o presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Administrativadeputado Tiago Mitraud (Novo-MG)), é importante o Congresso incluir os membros de Poder e os atuais servidores nas vedações ao recebimento desses “privilégios” que ainda existem e levam à aceleração dos gastos. Segundo ele, a bancada do Novo vai apresentar emenda para viabilizar essa inclusão. Na proposta do governo, apenas os futuros servidores, que ingressarem após a aprovação da reforma, serão atingidos pela extinção de penduricalhos.

“A reação à reforma foi bastante forte em relação a que não haja pessoas e certas classes de servidores que fiquem de fora”, ressalta Mitraud. O deputado disse ver com preocupação a retirada de pauta, nesta quarta-feira (9), do projeto de resolução para a retomada do funcionamento das comissões.  Sem isso, a PEC da reforma administrativa não consegue começar a tramitar. O texto precisa ter sua admissibilidade votada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), ainda não instalada devido à pandemia da covid-19.

Privilégios

O economista Fabio Terra, professor da Universidade Federal do ABC, criticou a ausência de um ataque mais incisivo aos privilégios na reforma enviada pelo governo. "O gasto do Judiciário em relação ao total não é tão grande. O problema são as distorções da carreira. Se comparar um juiz com professor, é um absurdo. Ele chega a ganhar três vezes mais, considerando os penduricalhos. É preciso pensar a desigualdade entre as carreiras e entre os poderes", afirma o professor.

Segundo Terra, o governo tomou uma decisão política ao deixar os membros dos poderes de fora da reforma, já que uma PEC poderia dar ao Executivo a prerrogativa para mexer nas regras para juízes, parlamentares e membros do MPU. "A PEC é justamente para isso, fazer com que haja menor nível de questionamento legal possível", afirma.


Celso Ming: Inflação real e inflação percebida

Nada indica disparada dos preços que levante preocupações especiais com eventual erosão do poder aquisitivo da população

A inflação de agosto medida pelo IPCA foi de apenas 0,24%, mais baixa do que o 0,36% de julho e, no entanto, a sensação de alta de preços provocou inesperada tensão política que lembrou os velhos tempos da hiperinflação.

Os dirigentes dos supermercados pediram providências urgentes do governo para conter os preços dos produtos da cesta básica. Em resposta, o presidente Bolsonaro, às vésperas das comemorações de 7 de Setembro, fez apelos ao patriotismo dos empresários para que segurassem as remarcações.

Esses apelos sugeriram que o principal instrumento de controle dos preços teria mais a ver com o comportamento humano e com a moralidade do que com os imperativos da lei da oferta e da procura.

De todo modo, nada indica uma disparada dos preços que levante preocupações especiais com eventual erosão do poder aquisitivo da população. A alta acumulada no ano até agosto foi de apenas 0,7%, e os analistas de economia consultados pelo Banco Central para o Boletim Focus apontam, para todo o ano de 2020, uma inflação de 1,78%. Por que, afinal, a apreensão?

Por trás dela há algumas distorções. A primeira tem a ver com uma alta real de itens importantes da cesta básica. Os preços do arroz, por exemplo, acumularam avanço de 19,2% nestes primeiros oito meses do ano. E os do óleo de soja, o mais consumido pela população, alta de 18,6%.

Esse avanço dos preços do óleo de soja tem uma explicação. Trata-se de um produto cotado em dólares, porque largamente exportado, e, neste ano, as cotações da moeda americana em reais subiram mais de 30%. O aumento dos preços do arroz foi produzido pelo aumento do consumo interno. O confinamento, por si só, puxou a demanda de alimentos básicos. E há o auxílio emergencial, que pôs algum dinheiro no bolso das pessoas de baixa renda, que, por sua vez, aumentaram a procura por itens básicos.

Mas isso não é tudo. Como já comentado por esta Coluna em outras oportunidades, os índices de preços sofreram certa deformação estatística que se imagina temporária. O confinamento mudou a estrutura de consumo. Despesas com viagens, serviços pessoais (como cabeleireiro, manicure), roupas, academia, restaurantes, bares, etc., foram substancialmente reduzidas. Em compensação, aumentaram as com alimentos.

No entanto, o IBGE seguiu com as coletas de preços nos mercados e nas unidades de serviços, como se a cesta média de consumo não tivesse sofrido alterações. E calculou a variação do custo de vida levando em conta os mesmos pesos apresentados pelos itens de consumo vigentes antes da pandemia.

Quando a vacina estiver disponível e à medida que a vida se normalizar, essa distorção técnica também deve desaparecer ou, pelo menos, reduzir-se. Abaixo está um gráfico que mostra os pesos de cada uma das grandes áreas de consumo no custo de vida.

Outra distorção é meramente psicológica. As pessoas tendem a dar mais importância às variações dos preços dos alimentos do que às de outras áreas da economia, especialmente nos serviços.

Essa é a principal razão pela qual tão frequentemente se ouve a observação de que o comportamento dos preços nas feiras e nos supermercados não guarda proporção com os índices oficiais de inflação. Nessa hora, as pessoas não levam em conta que as despesas com aluguel, condomínio, condução, mensalidades escolares e outros serviços não subiram ou até caíram, embora continuem a fazer parte importante do orçamento doméstico.

Boa questão está em saber como o Banco Central vai lidar com essas novas tensões na hora de rever os juros básicos (Selic) na próxima reunião do Copom, marcada para dia 16.


Eugênio Bucci: 70 anos na semana que vem

No 70.º aniversário da TV brasileira a carranca do arbítrio ainda rosna

Falarão de Hebe Camargo. Quando foi ao ar o primeiro programa da primeira estação de televisão brasileira, a TV Tupi, na noite de 18 de setembro de 1950, Hebe estava lá, na companhia de Lima Duarte e Lolita Rodrigues. Falarão dos festivais da Record, que no final dos anos 1960 redesenharam as feições do cancioneiro popular. Falarão da estreia do Jornal Nacional, em 1969, e da Copa do Mundo de 1970.

Talvez alguns festejem (deveriam festejar) a novela Gabriela, da Rede Globo, que nos trouxe cores mais verdadeiramente intensas do que aquelas que a gente via nas calçadas, nas beiras de rio, nas tardes compridas do verão da Alta Mogiana. (A TV em cores chegou como uma luz mais que solar: realizou a façanha de empalidecer a natureza.) Encarnada por Sônia Braga, a coloridíssima Gabriela subia no telhado de vestido curtinho, azul e branco, para recuperar uma pipa (raia) e fazer despencar o queixo alheio: do Seu Nacib, de toda a cidade cenográfica e dos pais de família do Brasil de ponta a ponta.

Na semana que vem, quando a televisão brasileira comemorar seu 70.º aniversário, lembranças afetivas e afetuosas encherão as telas eletrônicas. Vai ser bom de (re)ver, desde que não abusem demais das pieguices.

Vai ser bom, mas também vai ser ruim. Dificilmente nós veremos o que nunca vimos na televisão, quer dizer, dificilmente veremos aquilo que a exuberância imagética dos monitores pátrios sempre encobriu. No correr dos primeiros anos da década de 1970, quando este jornal aqui penava sob censura estúpida, a televisão brasileira contornava diplomaticamente os contratempos com a tesoura federal e brilhava solta, via Embratel, envolvendo com seu arco-íris subserviente o bueiro moral e institucional da ditadura militar. Sobre isso não nos falarão em demasia.

A televisão brasileira deu unidade imaginária, festiva e deslumbrada a uma nação desgrenhada pela corrupção dos costumes cívicos, pelo desvio de poder, pelo enriquecimento subterrâneo dos apaniguados, pela ignorância oficializada, pela prática diuturna da tortura política, pelo assassinato de dissidentes e, finalmente, pela ocultação sistemática, disciplinada e industrializada de cadáveres. Isso não vai ser tão realçado na festa da semana que vem. Talvez um ou outro entrevistado faça menção, mas sem alarde. Quando os videoteipes de estimação cintilarem na tela, nós não assistiremos a explicações a respeito do lado triste da história. O que a TV sonegava sonegado seguirá.

Talvez alguém conte que houve um tempo nestas terras em que a telenovela falava mais da realidade que o telejornal. É necessário lembrar. Enquanto os noticiários perfilados vendiam aos telespectadores uma peça de ficção ufanista, as telenovelas traziam cada vez mais cenas de rua, tipos populares, dilemas autênticos dos brasileiros de carne e osso. Para inverter a ênfase da notícia, que era a inflação em escalada vertical, o apresentador trombeteava o “rendimento recorde na poupança”. Na sequência, a novela falava de racismo, de corrupção, até de reforma agrária.

Celebrarão o talento, mas não destacarão que a TV em rede nacional foi o projeto cultural mais caro à ditadura: a integração do País pela imagem. Pode ser que digam que o Brasil ganhou sua identidade moderna apenas com a TV, o que é fato, mas não é provável que expliquem, em rede nacional, que essa identidade imaginária acobertou o prosseguimento dos desmandos e das atrocidades no poder.

O que aconteceu no Brasil foi algo único, difícil de entender e de explicar. Logo depois da queda da ditadura, era comum jornalistas estrangeiros perguntarem aos estudiosos locais: mas como é possível que um país com tantos atrasos sociais e civilizatórios tenha erguido uma televisão tão avançada e tão bem-sucedida? A melhor resposta era: justamente por isso, tudo o que você vê de ultramoderno na televisão brasileira corresponde ao que há de mais arcaico na sociedade que a gerou.

A televisão brasileira é um portento, um feito continental, uma obra que impressiona os céticos mais azedos: seus publicitários são consagrados no mundo inteiro, alguns de seus novelistas podem figurar no panteão dos maiores artistas do nosso tempo, alguns de seus animadores reluziram como gênios da raça (e tome Chacrinha!). Mas tudo isso, cada pedacinho disso, só existiu para tecer um país de mentira sobre a podridão do país de verdade. Não é por acaso que a televisão não transmite cheiro.

Sobre essas coisas tristes não falarão muito, não. Pouco falarão das chagas constitutivas do passado. Principalmente nada dirão sobre a abominável chaga do presente: a triangulação promíscua entre redes de televisão, igrejas triliardárias e partidos políticos. Nada falarão do fundamentalismo ultraconservador que abre as estradas para o galope dos fascistas supostamente liberais. A máquina luminescente que no passado integrou um país para sequestrá-lo de si mesmo agora promove fantasias mais nefastas. Na segunda-feira, em cadeia nacional, o presidente urrou que defende a democracia (então, tá) e elogiou a ditadura militar. Nos 70 anos da TV, a carranca do arbítrio ainda rosna.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


William Waack: Acomodados

Nossa sociedade se acostumou a acomodar interesses pendurando a conta nos cofres públicos

É difícil e pode causar indisposição, mas, se for possível ignorar aspectos morais quando se registra o perdão de dívidas concedido pelos deputados a igrejas, percebe-se que o ocorrido nada tem de anormal. Ao contrário: é o jeitão característico da nossa sociedade, acostumada a acomodar interesses setoriais pendurando a conta nos cofres públicos, quer dizer, em quem paga impostos.

As igrejas compõem um desses “interesses setoriais” e constituíram-se nas últimas quatro décadas num lucrativo negócio graças a uma profunda transformação cultural (associada à perda de valores tradicionais e ao recuo da Igreja Católica, mas este não é o objeto deste texto). Desenvolveram-se também como importantes fatores da política, não apenas pela capilaridade (base de seu poder econômico), mas, principalmente, por terem se tornado muito relevantes na “guerra cultural”, que é uma luta política.

É bastante óbvio que o poder político e econômico explica a maior ou menor capacidade de “interesses setoriais” de obter a acomodação que pretendem. Excelente exemplo está no debate sobre a reforma tributária, um verdadeiro tratado antropológico sobre a realidade brasileira, na qual o privado tem predominância sobre o público. Existe uma espécie de consenso social segundo o qual esse estado de coisas, do ponto de vista moral inclusive, surge como perfeitamente adequado.

A essência desse debate, em meio ao enorme sufoco fiscal, é estabelecer quais interesses setoriais terão de renunciar ao que consideram seus direitos adquiridos. A desoneração de folhas de pagamento, por exemplo, abrange pelo menos 17 setores ou segmentos da economia, que já consideram essa renúncia como uma espécie de “direito”. O mesmo ocorre com incentivos, proteções, subsídios a juros, manutenção de programas especiais de fomento. A força política de cada setor interessado criou um equilíbrio na estagnação, pois o resultado geral (entendido como capacidade de expansão da economia do País) acaba sendo medíocre, mas cada um se defende bem no seu pedaço.

Pode-se seguir adiante nesse raciocínio e ampliá-lo para a questão da reforma do Estado via reorganização do funcionalismo público, cujo peso nas contas públicas é célebre. Os “interesses setoriais” nesse caso estão na elite dos servidores do Estado, naquilo que os sociólogos da velha escola chamariam de “estamentos burocráticos” com inigualável peso nas instituições e formidável capacidade de defender o que consideram “seu”. Não há lideranças capazes no momento de compor todos os interesses ou de fazê-los convergir para qualquer coisa que se possa chamar de “bem comum”.

Não deixa de ser curioso notar que a defesa do perdão das dívidas das igrejas com a União alega que a Receita Federal teria se colocado acima da Constituição e desprezado a imunidade que essas entidades desfrutam quanto ao pagamento de impostos (mas não de contribuições como a previdenciária). Implícita está a noção de que os agentes do Estado brasileiro se comportam de forma autônoma, isto é, eles fazem as leis. Tenham ou não razão em seu pleito (é evidente quem, neste caso, não tem), os representantes das igrejas apenas engrossam um coro muito amplo.

Há mais um paralelo irônico com a mais recente fase da Operação Lava Jato, voltada contra escritórios de advocacia que, segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público, recebiam dinheiro do Sistema S (sustentado por dinheiro público) para “azeitar” decisões em várias instâncias de órgãos de controle e do Judiciário relativas a interesses setoriais. Quando se fala em corrupção sistêmica no Brasil, na verdade está se falando de uma forma de acomodação.

À qual, é triste ter de dizer isso, estamos acostumados.


Paulo Delgado: Os pobres como mercadoria

Quem olha em redor só vê o que já viu um dia. É o governo que mantém o pobre fraco

O progresso não resolve todas as angústias humanas, mas o governo deveria organizar-se melhor para ser útil, como o faz para sua autopreservação.

Poderia associar o povo às possibilidades contidas no desenvolvimento social, cultural, técnico e econômico, e não deixar a ausência de renda virar destino. Vulneráveis deveriam ser o governo e sua virtude oblíqua de converter necessidade social em dependência política, um freio no entusiasmo de progredir.

Não é fácil ajudar respeitando a personalidade de cada um. Sonhar, reunir, respeitar e prosperar são companhias essenciais do ajudar, mais comuns à boa filantropia moderna. Quando o Estado faz assistencialismo não alarga horizontes nem rompe limites. Faz corretagem política, uma prática contra a liberdade e a autoridade.

Quem só recebe usufrui sem precisar desejar. O povo põe suas mazelas em perspectiva. Seu caráter acontece, vem do cimento endurecido pela vida. Se alguém lhe oferece algo inesperado, não vê necessidade de justificação. Sabe que são passagens secretas que governos usam para acumular vícios da popularidade.

Outra vez se mudam nomes de programas. Volta a rotina dos eventos de gratificação. Como nada é novidade, para ser escolhido é preciso apagar a memória da esperança desfeita. E assim parecer um número novo, encontrar honra no costume de ser encontrado, sem ser respeitado.

Por meio do apoio do Banco Mundial, a última síntese de estudos sobre a renda básica universal (UBI, de Universal Basic Income) contém uma confissão, em linguagem às vezes inadequada, de um dos fatores do fracasso na eliminação do estigma que é selecionar quem vai receber. Como o World Bank é mais um banco pronto para usar, vamos considerar irrelevante o fato de o texto associar a entrega incondicional de dinheiro para todos a neurotransmissores ligados à vontade de comer.

Dito isso, é possível ler no estudo que a renda universal é uma oferta crocante e tangível para satisfazer o apetite por mudança e justiça social. Isto é, o hormônio monetário é o regulador da igualdade. Ou seja, o mundo, para banqueiros sociais, visto pela ótica digestiva, é prisioneiro de processos metabólicos e a influência de estímulos parecidos aos psicogastrointestinais nas decisões políticas é humana, demasiadamente humana. O coração da ideia é o remédio que prescreve: é preciso dispensar a elegibilidade para contornar erros de exclusão ou inclusão próprios de direcionamento baseado em necessidades.

Daí surge a cobertura universal, para evitar distorções de aplicação. Sintetizando: vamos dar um pouco a todos porque o Estado não consegue digerir bem o trato especial das carências dos que mais precisam.

É possível observar a relevância do tema desde os anos 1960, quando mais de mil economistas e centenas de universidades lançaram um manifesto sobre a renda anual garantida. Além de ser possível listar mais de uma dezena de Prêmios Nobel, de Economia e da Paz, tratarem da questão antes e depois de terem sido laureados.

A questão central permanece. Dar dinheiro torna tudo mais simples e encobre a ineficácia que é querer enfrentar o comportamento manipulatório intrínseco às políticas governamentais. Continua tudo estático ao não perguntar ao necessitado sobre prazer/desprazer, tristeza/felicidade, capacidade/subjetividade. Assim suportado, sem ter como partilhar seus perigos, visto como alguém desobrigado de crescer não é dado por infeliz.

Dinheiro assim é oferta de submissão, não fator de mobilidade social. Não serve para voar além de sua fronteira, negligencia sua personalidade. Insolência paga com bajulação.

De tanto tentar contornar dificuldades e testar incentivos, surgiram inúmeras possibilidades de dar cidadania econômica aos pobres. Resumir todas num cheque serve para facilitar as coisas para quem não sabe resolver a questão da incompetência humana para a justiça social.

Alguns caminhos. Financiar por ativos públicos um fundo permanente para os necessitados, investido em ações e captado sobre recursos naturais da União, pertencentes ao povo. Parece mais adequado do que aumentar o imposto ou sacar a descoberto do Tesouro. Exigir compromisso social da inteligência artificial para estimular outras formas de trabalho, inovar no emprego. Ações de transferência real de renda incluem acesso universal a serviços essenciais, proteção integral na primeira infância, expectativa concreta de aprender, cidadania patrimonial com a segurança de ter pelo menos uma casa, acesso a alguma forma de seguro, desoneração tributária por solidariedade social, etc. São caminhos para livrar o governo do clientelismo, o conhecimento imperfeito do que é um cidadão.

O País perdeu a novidade. Quem olha em redor só vê o que já viu um dia. É o governo que mantém o pobre fraco. Ambos sem horizonte cultural, respaldo jurídico ou eficácia econômica. Tratado como simplório, e como matéria-prima do fluxo de poder individual do governante, o pobre continua mercadoria cativa da vida política e social injusta, razão de seu destino econômico precário.


O Estado de S. Paulo: Frederick Wassef e advogados de Lula e Witzel são alvo de buscas em investigação sobre desvio de R$ 355 milhões do Sesc, Senac e Fecomércio do Rio

Operação E$quema S cumpre 50 ordens de busca e apreensão no Distrito Federal e em cinco Estados para investigar suposta estrutura irregular de pagamento a escritórios de advocacia; os advogados Cristiano Zanin, Caio Rocha e César Asfor Rocha já se pronunciaram sobre as investigações do Ministério Público Federal

Pepita Ortega, Rayssa Motta e Fausto Macedo,o Estado de S. Paulo

O Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a Receita Federal deflagraram na manhã desta quarta, 9, a Operação E$quema S para cumprir 50 mandados de busca e apreensão em endereços de advogados, escritórios e empresas investigadas pelo possível desvio, entre 2012 e 2018, de cerca de R$ 355 milhões das seções fluminenses do Serviço Social do Comércio (Sesc RJ), do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac RJ) e da Federação do Comércio (Fecomércio/RJ). Entre os alvos das buscas estão o advogado Frederick Wassef, que já defendeu o senador Flávio Bolsonaro, os advogados Cristiano Zanin e Roberto Teixeira, que representam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a advogada Ana Tereza Basilio, que defende o governador afastado do Rio Wilson Witzel. As ordens são cumpridas no Distrito Federal e em cinco Estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Alagoas, Ceará e Pernambuco.

Segundo a força-tarefa da Lava Jato no Rio, a ofensiva é aberta em paralelo ao início de uma ação penal contra 26 pessoas, incluindo o ex-governador Sérgio Cabral, a ex-primeira-dama Adriana Ancelmo, advogados como Zanin, Ana Tereza, Eduardo Martins (filho do atual presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Humberto Martins) Tiago Cedraz (filho do ministro Aroldo Cedraz, do Tribunal de Contas da União) e o ex-ministro do STJ César Asfor Rocha e seu filho, Caio Rocha. O juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, recebeu a acusação referente a parte das investigações, sendo que a peça abrange 43 fatos criminosos e trata de crimes de organização criminosa, estelionato, corrupção (ativa e passiva), peculato, tráfico de influência e exploração de prestígio.

Documento

As investigações partiram da Operação Jabuti, aberta em 2018, e reuniram dados compartilhados de apurações da Receita, Tribunal de Contas da União, da Operação Zelotes, quebras de sigilos telefônico, telemático, fiscal e bancário, e também informações de Orlando Santos Diniz, ex-gestor das entidades paraestatais e delator, diz a Procuradoria.

O Ministério Público Federal informou que entre 2012 e 2018 o Sesc, o Senac e a Fecomércio do Rio teriam destinado mais de 50% do seu orçamento anual a contratos com escritórios de advocacia. A denúncia já aceita pela Justiça Federal aponta que de tal montante, ao menos R$ 151 milhões foram desviados em esquema supostamente liderado por Orlando Santos Diniz e integrado por Marcelo Almeida, Roberto Teixeira, Cristiano Zanin, Fernando Hargreaves, Vladimir Spíndola, Ana Tereza Basílio, José Roberto Sampaio, Eduardo Martins, Sérgio Cabral e Adriana Ancelmo. Os 11 foram denunciados por organização criminosa, indicou a Procuradoria.

Segundo a força-tarefa da Lava Jato, o esquema incluía ‘o uso de contratos falsos com escritórios daqueles acusados ou de terceiros por eles indicados, em que serviços advocatícios declarados não eram prestados, mas remunerados por elevados honorários’.

“As apurações comprovaram que Diniz era persuadido pelos integrantes da organização criminosa no sentido de que novos contratos (e honorários) eram necessários para ter facilidades em processos em curso no Conselho Fiscal do Sesc Nacional, no TCU e no Judiciário. Como os contratos eram feitos com a Fecomércio/RJ, entidade privada, o seu conteúdo e os seus pagamentos não eram auditados pelos conselhos fiscais do Sesc e do Senac Nacional, pelo TCU ou pela CGU, órgãos que controlam a adequação dos atos de gestão das entidades paraestatais com a sua finalidade institucional”, indicou o MPF em nota.

A força-tarefa da Lava Jato fluminense listou parte dos fatos descritos na denúncia em um infográfico:

Operação E$quema S. Foto: Reprodução/MPF

Os investigadores apontaram que as novas buscas e apreensões se referem a outros contratos advocatícios da Fecomércio do Rio sob investigação – parte com alguns dos denunciados, parte com outros escritórios. No caso de Frederick Wassef, por exemplo, que é alvo de buscas mas não da denúncia do MPF, a força-tarefa da Lava Jato fluminense identificou repasses de ao menos R$ 2,6 milhões feitos em benefício do escritório do advogado por parte de um outro escritório que teria desviado cerca de R$ 4,4 milhões do Senac e do Sesc do Rio.

O MPF, a PF e a Receita também investigam a devolução em espécie a Diniz, por alguns denunciados e outros alvos da Operação E$quema S, de parte dos valores desviados daquelas entidades, informou a Procuradoria.

“Aportes em favor dos escritórios vinculados aos denunciados foram contemporâneos às aquisições de carros e imóveis de luxo no país e no exterior, em franco prejuízo ao investimento na qualidade de vida e no aprendizado e aperfeiçoamento profissional dos trabalhadores do comércio no Estado do Rio de Janeiro, atividade finalística de relevantíssimo valor social das paraestatais”, afirmam os procuradores em nota.

COM A PALAVRA, O ADVOGADO CRISTIANO ZANIN

“1. Atentado à advocacia e retaliação. A iniciativa do Sr. Marcelo Bretas de autorizar a invasão da minha casa e do meu escritório de advocacia a pedido da Lava Jato somente pode ser entendida como mais uma clara tentativa de intimidação do Estado brasileiro pelo meu trabalho como advogado, que há tempos vem expondo as fissuras no Sistema de Justiça e do Estado Democrático de Direito. É público e notório que minha atuação na advocacia desmascarou as arbitrariedades praticadas pela Lava Jato, as relações espúrias de seus membros com entidades públicas e privadas e sobretudo com autoridades estrangeiras. Desmascarou o lawfare e suas táticas, como está exposto em processos relevantes que estão na iminência de serem julgados por Tribunais Superiores do país e pelo Comitê de Direitos Humano da ONU. O juiz Marcelo Bretas é notoriamente vinculado ao presidente Jair Bolsonaro e sua decisão no caso concreto está vinculada ao trabalho desenvolvido em favor de um delator assistido por advogados ligados ao Senador Flavio Bolsonaro. A situação fala por si só.

2. Comprovação dos serviços. De acordo com laudo elaborado em 2018 por auditores independentes, todos os serviços prestados à Fecomércio/RJ pelo meu escritório entre 2011 e 2018 estão devidamente documentados em sistema auditável e envolveram 77 (setenta e sete) profissionais e consumiram 12.474 (doze mil, quatrocentas e setenta e quatro) horas de trabalho. Cerca de 1.400 (mil e quatrocentas) petições estão arquivadas
em nosso sistema. Além disso, em 2018, a pedido da Fecomércio-RJ, entregamos cópia de todo o material produzido pelo nosso escritório na defesa da entidade, comprovando a efetiva realização dos serviços que foram contratados. Os pagamentos, ademais, foram processados
internamente pela Fecomércio/RJ por meio de seus órgãos de administração e fiscalização e foram todos aprovados em Assembleias da entidade — com o voto dos associados.

3. Natureza dos serviços prestados. Nosso escritório, com 50 anos e atuação reconhecida no mercado, foi contratado a partir de 2012 para prestar serviços jurídicos à Federação do Comércio do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ), que é uma entidade privada que representa os 2 milhares de empresários e comerciantes daquele Estado. A atuação do escritório em favor da Fecomércio/RJ e também de entidades por ela geridas por força de lei — o Sesc-RJ e do SenacRJ —, pode ser constatada em diversas ações judiciais que tramitaram perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, do Superior Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Federal, e também em procedimentos que tramitam no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e perante outros órgãos internos e externos à entidade. Em todos os órgãos judiciários houve atuação pessoal e diligente do nosso escritório. A atuação do nosso escritório deu-se um litígio de grandes proporções, classificado como uma “guerra jurídica” por alguns veículos de imprensa à época, entre a Fecomércio/RJ e a Confederação Nacional do Comércio (CNC), duas entidades privadas e congêneres de representação de empresários e comerciantes. Cada uma delas contratou diversos escritórios de advocacia para atuar nas mais diversas frentes em que o litígio se desenvolveu.

4. Abuso de autoridade. Além do caráter despropositado e ilegal de autorizar a invasão de um escritório de advocacia e da casa de um advogado com mais de 20 anos de profissão e que cumpre todos os seus deveres profissionais, essa decisão possui claros traços de abuso de autoridade, pois: (a) o seu prolator, o Sr. Marcelo Bretas, é juiz federal e sequer tem competência para tratar de pagamentos realizados por uma entidade privada, como é a Fecomercio/RJ, e mesmo de entidades do Sistema S por ela administrados por força de lei; a matéria é de competência da Justiça Estadual, conforme jurisprudência pacífica dos Tribunais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça; (b) foi efetivada com o mesmo espetáculo impróprio a qualquer decisão judicial dessa natureza, como venho denunciando ao longo da minha atuação profissional, sobretudo no âmbito da Operação Lava Jato; (c) foi proferida e cumprida após graves denúncias que fiz no exercício da minha atuação profissional sobre a atuação de
membros da Operação Lava Jato e na iminência do Supremo Tribunal Federal realizar alguns dos mais relevantes julgamentos, com impacto na vida jurídica e política do país. Ademais, foge de qualquer lógica jurídica a realização de uma busca e apreensão após o recebimento de uma denúncia — o que mostra a ausência de qualquer materialidade da acusação veiculada naquela peça.

Esse abuso de autoridade, aliás, não é inédito. A Lava Jato, em 2016, tentou transformar honorários sucumbenciais que nosso escritório recebeu da Odebrecht, por haver vencido uma ação contra a empresa, em valores suspeitos — e teve que admitir o erro posteriormente. No mesmo ano, a Lava Jato autorizou a interceptação do principal ramal do nosso escritório para ouvir conversas entre os advogados do nosso escritório e as conversas que eu mantinha com o ex-presidente Lula na condição de seu advogado, em grave atentado às prerrogativas profissionais e ao direito de defesa. Não bastasse, em 2018 a Lava Jato divulgou valores que o nosso escritório havia recebido a título de honorários em decorrência da prestação de serviços advocatícios.

Todas as circunstâncias aqui expostas serão levadas aos foros nacionais e internacionais adequados para os envolvidos sejam punidos e para que seja reparada a violação à minha reputação e à reputação do meu escritório, mais uma vez atacadas por pessoas que cooptaram o poder do Estado para fins ilegítimos, em clara prática do lawfare — fenômeno nefasto e que corroeu a democracia no Brasil e está corroendo em outros países.”

COM A PALAVRA, CAIO ROCHA

“Nosso escritório jamais prestou serviços nem recebeu qualquer quantia da Fecomércio-RJ. Procurados em 2016, exigimos, na contratação, que a origem do pagamento dos honorários fosse, comprovadamente, privada. Como a condição não foi aceita, o contrato não foi implementado. O que se incluiu na acusação do Ministério Público são as tratativas para o contrato que nunca se consumou”.

COM A PALAVRA, CÉSAR ASFOR ROCHA

“As suposições feitas pelo Ministério Público em relação a nosso escritório não têm conexão com a realidade. Jamais prestamos serviços nem recebemos qualquer valor da Federação do Comércio do Rio de Janeiro, tampouco de Orlando Diniz”.

COM A PALAVRA, OS CITADOS

A reportagem busca contato com os citados na denúncia do MPF e os alvos da Operação E$quema S. O espaço está aberto para manifestações.


Monica De Bolle: Vacina e economia

Fala do presidente sobre vacina para covid-19 é perda de tempo, sobretudo ante os desafios que o País terá para imunizar a população

Não pretendo perder tempo ou espaço nesse artigo argumentando a favor da obrigatoriedade das vacinas, quaisquer que sejam. A vacina é um direito do cidadão, estabelecido na Constituição.

Vacinas contra doenças infectocontagiosas são, também, obrigatórias, como em diversos países. A obrigatoriedade é uma questão óbvia de saúde pública e de higidez econômica: vacinas garantem a proteção não apenas daqueles que as “consomem”, como a de todos aqueles com quem possam entrar em contato.

Vacinas, portanto, geram o que os economistas chamam de “externalidades positivas”, isto é, efeitos que recaem não só sobre quem é vacinado, mas sobre toda a sociedade. Portanto, a recente fala presidencial a respeito da futura vacina para covid-19 como fonte de controvérsias é perda de tempo, sobretudo ante os imensos desafios que o País terá pela frente para imunizar a população quando a vacina para covid – ou as vacinas, já que há várias em estágios distintos de andamento – estiver à disposição.

É de extrema importância considerar tais desafios para que se possa pensar de forma realista sobre a recuperação da economia brasileira.

Não faltam economistas – incluindo o próprio ministro da Economia – a dizer que a retomada será rápida em 2021 já que teremos vacina. Muitos já aderiram à ideia de “recuperação em V” sem parar para analisar o que está em jogo. A impressão que se tem é que alguns economistas e analistas acreditam que uma vez que a vacina esteja disponível, a epidemia e suas consequências desaparecem quase da noite para o dia. Não é assim.

Consideremos, em primeiro lugar, as vacinas em estágio de ensaio clínico mais avançado. São essas as vacinas genéticas (Moderna, Pfizer), as vacinas que utilizam vetores virais (AstraZeneca/Oxford, CanSino Biologics), e as mais tradicionais de vírus desativado (Sinovac). As vacinas de origem genética injetam no paciente o RNA viral de um antígeno do Sars-CoV-2 – antígenos são moléculas virais como as proteínas.

Esse RNA viral, ao ser injetado nas células do paciente inoculado, sintetiza o antígeno (a proteína) induzindo uma resposta imunológica. Os ensaios clínicos de Fase III em que estão algumas dessas vacinas têm por objetivo estabelecer eficácia, algo que ainda desconhecemos apesar dos estudos demonstrando boas respostas, ou um grau razoável de imunogenicidade. Um problema é que essas vacinas requerem armazenamento ultrarrefrigerado – a 80 graus Celsius negativos. Como têm ressaltado muitos especialistas, não temos no Brasil a capacidade para esse tipo de armazenamento, sobretudo em larguíssima escala, como seria o requerido para imunizar parcela relevante da população. Como o RNA é material genético de alta instabilidade, tanto o armazenamento quanto a distribuição estão sujeitos a desafios logísticos enormes, assim como a capacidade de transportar doses dessas vacinas país afora.

As vacinas que utilizam vetores virais modificados para carregar material genético do Sars-CoV-2 e induzir respostas imunológicas no paciente enfrentam obstáculos semelhantes. Elas também precisam ser ultrarrefrigeradas – algumas a 20 graus Celsius negativos – e requerem um grau de vigilância sanitária para garantir a sua qualidade que muitas partes do Brasil não possuem. Pensem nos nossos postos de saúde desassistidos financeiramente, e na falta de estratégias de saúde pública do governo desde o início da pandemia.

O que isso significa é que mesmo a vacina da AstraZeneca/Oxford, cujo ensaio de Fase III recrutou milhares de brasileiros e brasileiras, poderá não estar disponível em quantidade suficiente para frear a epidemia de modo desejável. Ou seja, é possível – pela falta de capacidade logística – que as doses disponíveis dessa vacina no País não sejam suficientes para induzir a chamada imunidade coletiva, conceito aqui corretamente aplicado já que se refere exclusivamente à existência de uma vacina. Sem contar que, em todos esses casos, sejam as vacinas de origem genética ou as que utilizam vetores virais, passaremos ainda um bom tempo sem saber ao certo qual seu grau de eficácia.

De acordo com diversos artigos científicos e opiniões de especialistas, não é realista pensar em eficácia de 100%. E, caso a eficácia fique abaixo de determinado limiar, digamos 70% ou 75% a depender da transmissibilidade natural do vírus, é possível que não alcancemos a imunidade coletiva. Nesse caso, a epidemia permaneceria entre nós, ainda que de forma mais atenuada.

Quando se compreende o que está em jogo com a vacina, difícil é acreditar nas retomadas excessivamente otimistas projetadas por alguns. Sobra ilusão, falta realismo.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Roberto DaMatta: Acabar com a esquerda?

Não se pode liquidar o dualismo e a complementaridade, pois todos entendemos que, se o esquerdismo atrasa, a esquerda – ao contrário – é essencial para a democracia

A polarização exagerada no Brasil bolsonarista, após – não se deve esquecer – a hegemonia lulista, é um desastre. Se muitos da “direita” querem acabar com a “esquerda” e vice-versa, devo lembrar que não há democracia sem os dois lados.

Os totalitarismos suprimem oposições enquanto a polaridade garante o equilíbrio instável e humano. Sem contrastes, o mundo não teria sentido. Sou um homem porque não sou um gato; descubro o calor quando encontro o frio. Só vivo numa democracia quando o debate engloba o autoritarismo que sufoca liberdades.

Estudei uma sociedade tribal onde se dizia que “tudo tem o seu contrário”. Naquele sistema, a paralisação entre Sol e Lua criou a vida coletiva, o trabalho, gente feia e defeituosa em paralelo a pessoas belas e saudáveis e, para finalizar uma longa lista, os demiurgos inventaram a morte porque sem ela o mundo transbordaria de gente.

Os antropólogos da minha tribo chamam tais sistemas de dualistas e um mestre, o famoso Lévi-Strauss, desvendou essas organizações sociais duais, presentes – como pode facilmente imaginar – em toda parte.

O nosso próprio sistema contempla vários dualismos céu/inferno, Adão/Eva, santos/pecadores, Deus/diabo, esquerda/direita… A lista é longa e, quem sabe, infindável, mas foi somente o Ocidente que encarou a dualidade com o desejo de, um dia, finalizá-la. Seja no Juízo Final, seja quando os operários do mundo conseguissem se unir, conforme reza um outro texto sacrossanto!

O nosso próprio corpo serve como exemplo vivo das dualidades, quando focalizamos o simbolismo das mãos para ver o primado da mão direita sobre a esquerda em muitos contextos. A própria noção de “direito” como correto, justo e legal, indica tal posicionamento cosmológico.

*
A resposta ao meu título é um sonoro não. Não se trata de acabar com a esquerda que – como nossas mãos – vai estar sempre presente no corpo social e político. Ademais, toda democracia vai exigir uma esquerda que critique, vigie e transforme o sistema estabelecido ou a “direita” – os costumes vigentes.

Se um corpo sem um braço é um corpo mutilado, então a questão é estabelecer quando cada lado tem precedência. Em muitos sistemas sociais e também entre nós usamos a direita nas saudações e juramentos, mas se vamos pregar um prego, ou surpreender um adversário, precisamos do nosso lado canhoto.

Seria reacionário lembrar que os dois lados são interdependentes e não inimigos?

*
Penso que o Brasil experimenta a ultrapassagem de um momento hegemonicamente esquerdista e enfrenta uma etapa na qual se quer mais uma esquerda do que o esquerdismo. Do mesmo modo e pela mesma lógica, há quem queira a direita e abomine os fascismos. Os “ismos” indicativos de inflexão e condenação ideológica são recusados, mas todo democrata deseja os lados em equilíbrio.

Não se pode liquidar o dualismo e a complementaridade, pois todos entendemos que, se o esquerdismo atrasa, a esquerda – ao contrário – é essencial para a democracia. Ela é indispensável quando se projeta liquidar privilégios, em transporte público, em saúde, segurança e saneamento. Sem um projeto de esquerda, não há educação primária e secundária de qualidade. A transformação do professor primário num agente de mudança para o igualitarismo é, ao lado de uma distribuição equitativa de renda, ativo da esquerda.

Pela moeda da interdependência, demanda-se a direita (e o Direito) para harmonizar os pontos conflituosos do jogo, sem o que a liberdade e a igualdade sucumbem. Na esquerda, não podem haver conchavos que destroem a confiança tanto no Estado quando nas empresas privadas de sucesso. Elos pessoais e hierarquias que desmoralizam leis, negócios escusos entre empresas e Estado – tudo isso que englobamos no Brasil como “corrupção” – têm que fazer parte da agenda democrática.

A “revolução” não supera, a não ser com muito esforço, os arranjos culturalmente legitimados e o protagonismo do “dar para receber”, que acabam em malas de dinheiro e na destruição dos principais partidos políticos nacionais.

Não é mais possível manter um inferno jurídico para os pobres e os comuns e um purgatório de regalias para os que estavam (e continuam estando) acima da lei. A luta hoje é como controlar o purgatório jurídico fiador da desigualdade.

Para essa revolução, é preciso uma boa cabeça, pernas firmes e as duas mãos.


Vera Magalhães: Olhando a banda passar

Pandemia segue matando, Bolsonaro se recupera, mas tema da esquerda é stalinismo

Já são mais de 127 mil os brasileiros mortos pela covid-19. Diante desse número, assim como dos que o antecederam, Jair Bolsonaro segue em sua jornada negacionista. O mais recente ataque ao bom senso se dá em declarações diárias semeando desconfiança na população quanto à necessidade e a segurança da vacinação em massa.

Enquanto isso, num planeta muito distante em que vive uma parcela da esquerda brasileira, a discussão do momento se dá entre os que defendem que o stalinismo nem foi tão nefasto assim e os que lembram o genocídio promovido por Stalin na União Soviética no século passado.

A banda de Bolsonaro passa na janela e nossa gente sofrida para tudo para discutir o passado distante.

Isso não é um fenômeno isolado, um lapso de um feriado prolongado. Tem sido uma constante desde antes da eleição do capitão e segue de forma sistemática e espantosa a cada avanço do presidente contra as liberdades, a ciência, o bom senso, as instituições e o que mais ele tiver pela frente para destruir.

E agora, quando ele se recupera nas pesquisas, ou lá na frente, quando e se chegar competitivo a 2022, a “culpa” certamente terá sido da imprensa, que “normalizou” (bocejos) Bolsonaro, e não dos adversários que não entenderam absolutamente nada do modus operandi do bolsonarismo.

A imprensa sempre denunciou que Bolsonaro era misógino, machista, homofóbico, que louvava a ditadura e aplaudia a tortura. Fez isso de forma repetitiva na campanha. E as pessoas votaram em Bolsonaro apesar ou até por causa disso, a verdade é essa.

A imprensa denuncia os abusos de Bolsonaro diariamente. É vítima preferencial deles. E a banda segue, cantando coisas de amor e fazendo populismo fiscal e político.

Não existe nenhuma organização, da centro direita à esquerda, para desmontar o discurso de Bolsonaro, oferecer alternativas a ele e, principalmente, responsabilizá-lo pela forma como sabota o enfrentamento da pandemia no Brasil.

Agora são os stalinistas do Twitter, mas já tivemos dezenas de discussões igualmente estéreis, que servem para distrair as Carolinas na janela enquanto o tempo e a banda passam.

E parcela considerável da chamada intelligentsia brasileira contribui para a distração. Há algumas semanas, uma intelectual brasileira cuja obra de denúncia do racismo e de defesa da igualdade de raças é incontroversa, Lilia Schwarcz, foi submetida ao tribunal das redes sociais por ter emitido uma opinião crítica a um filme da cantora norte-americana Beyoncé.

Em que isso ajuda na discussão sobre racismo e representatividade no Brasil ou, no sentido mais amplo, na articulação das forças ditas progressistas para se contrapor a Bolsonaro e a seu desmonte das políticas de reparação, por exemplo? Em absolutamente nada. Mas consumiu horas a fio de algumas das principais vozes da oposição e levou a historiadora a ter de se retratar uma, duas, três vezes até receber um desconfiado salvo-conduto para poder voltar a falar. Isso é absolutamente irrazoável e é a chave da nossa tragédia.

O Pantanal queima há semanas, fornecendo imagens cada vez mais tristes de morte de animais e desespero de populações locais, mas estamos sendo distraídos pelo secretário de Cultura, um dublê de canastrão de seriado adolescente dos anos 1990 e bolsominion. É uma armadilha à qual todos nós, jornalistas incluídos, são atraídos diariamente.

Enquanto as opções forem escolher o genocida mais limpinho, ou entre o pronunciamento de Bolsonaro ou Lula no Sete de Setembro, não sairemos da espiral de morte, destruição civilizatória e declínio científico, educacional, cultural e econômico em que estamos enfiados. Olhando a banda passar e esquecidos da vida.


Rubens Barbosa: Defesa – uma questão de segurança nacional

PND e END respondem aos novos desafios de um mundo em rápida transformação…?

Depois de pouco mais de 30 anos, o mundo volta à era de competição entre superpotências, com o declínio da dominação dos EUA e o crescimento tecnológico, comercial e militar da China. Como evitar que a crise entre os EUA e a China seja transplantada para a América do Sul e interfira no interesse nacional? Como o Brasil deveria tomar posição, em termos de defesa, em seu entorno geográfico e área de influência? Qual seria o papel do Brasil como uma das dez maiores economias do mundo, a quinta em território e a sexta em população? Como enfrentar o déficit de inovação tecnológica em face da rápida obsolescência dos equipamentos militares e dos projetos especiais das três Forças?

Os documentos Política (PND) e Estratégia Nacional de Defesa (END) procuram responder aos desafios percebidos pelo atual governo e mostrar, em linhas gerais, o planejamento das prioridades para a defesa do País. Voltados prioritariamente para ameaças externas, eles estabelecem objetivos para o preparo e o emprego de todas as expressões do poder nacional.

Os objetivos gerais mencionados na PND são: garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade territorial; assegurar a capacidade de defesa para o cumprimento das missões constitucionais das Forças Armadas; promover a autonomia tecnológica e produtiva na área de defesa; preservar a coesão e a unidade nacionais; salvaguardar as pessoas, os bens, os recursos e os interesses nacionais situados no exterior; ampliar o envolvimento da sociedade brasileira nos assuntos de defesa nacional; contribuir para a estabilidade regional e para a paz e a segurança internacionais; incrementar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua inserção em processos decisórios internacionais.

A END, por sua vez, orienta os segmentos do Estado brasileiro quanto às estratégias e medidas que devem ser implementadas para que esses objetivos sejam alcançados. Trata das bases sobre as quais deve estar estruturada a defesa do País, assim como indica as articulações que deverão ser conduzidas, no âmbito de todas as instâncias dos três Poderes, e da interação dos diversos escalões condutores dessas ações com os segmentos não governamentais.

Os documentos apresentados ao Congresso Nacional para exame e deliberação respondem aos novos desafios de um mundo em rápida transformação e à perda de protagonismo no entorno estratégico? É importante ressaltar, de inicio, a dificuldade de examinar essa matéria, pela falta de uma cultura de defesa e pelo fato de os objetivos nacionais carecerem de uma grande estratégia, com visão de médio e longo prazos. Além disso, em tempos de paz, sem ameaça de conflito plausível e iminente, qual deveria ser a atividade principal da Defesa: preparação para operação de combate ou melhoria da logística de defesa para aumentar sua capacidade de dissuasão?

A área de influência do Brasil, como definido na PND, abrange América do Sul, Antártida e Oceano Atlântico até a costa ocidental da África. A referência à integração regional amplia o entorno por incluir a América Central e a América do Norte. Não há referência nos documentos às consequências para o Brasil do fim do Conselho de Defesa, com o desaparecimento da Unasul, nem ao status de aliado estratégico dos EUA extra-Otan, tendo em mente as restrições do Brasil à nova doutrina dessa organização, que ampliou sua atuação para o Atlântico Sul. Nem aos objetivos da designação de oficial-general para o Comando do Sul, com sede em Miami.

As rápidas transformações tecnológicas exigem um esforço para estimular a Base Industrial de Defesa a pesquisar para complementar as aquisições externas. As três áreas ressaltadas na END (cibernética, energia nuclear e espaço) deveriam merecer estímulos, como ocorre nos EUA e na Otan, para que a produção nacional supere as vulnerabilidades cada vez maiores de nossos materiais bélicos e responda aos novos desafios de inteligência artificial. A política de defesa deve nortear a política militar. As políticas de defesa e militar deveriam enquadrar-se dentro de uma política mais ampla: a política externa, que define o lugar do Brasil no mundo.

O documento menciona diversas vezes a criação de uma carreira civil, como a de analista, por exemplo, no Ministério da Defesa, mas até agora não se levou adiante essa política, que iria arejar a discussão hoje restrita ao meio militar das três Forças. Nessa mesma linha, a criação de um Centro de Defesa e Segurança, iniciativa do então ministro Raul Jungmann, anunciada recentemente, deverá trazer contribuição importante para o debate sobre os temas de defesa e de segurança nacional.

Por sua importância, a PND e a END deveriam ser elaboradas por um conselho de alto nível integrado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e por representantes da Câmara dos Deputados, do Senado e do Itamaraty. O resultado deveria ser amplamente debatido pelo Congresso Nacional – ao contrário do que vem ocorrendo desde 1996, quando foram apresentados pela primeira vez – e por think tanks da sociedade civil que examinassem as prioridades para a defesa e os meios para alcançá-las.

*Presidente do IRICE


Elias Thomé Saliba: Livros mostram como o integralismo replicou o fascismo no Brasil

Movimento criado por Plínio Salgado ainda conta com seguidores nos dias de hoje

Na história brasileira há momentos nos quais não apenas o anedótico se superpõe à realidade, mas também embaralha a memória: lembramos mais facilmente do que é divertido ou pitoresco e recalcamos o drama ou a tragédia. Nada mais humano. E sublime. O problema é que ao iluminar apenas o anedótico, a memória obscurece a história, deixando na sombra e, não raro, distorcendo ou omitindo acontecimentos. Isto ocorreu, em grande parte, com a história do integralismo brasileiro.

Foi a partir da famosa batalha da Praça da Sé, em 7 de outubro de 1934, que deixou um saldo de sete mortos e dezenas de feridos – e na qual se enfrentaram antifascistas e integralistas, que estes últimos receberam o apelido de “galinhas verdes”. Não se sabe se foi Aparício Torelly (o Barão de Itararé) que o inventou, mas o apelido pegou e chegou até a ser dicionarizado. Tal associação marcou de tal maneira o movimento que, exceto por alguns estudos acadêmicos, o tema transformou-se numa das muitas lacunas da história brasileira.

Para cobrir tais lacunas, dois lançamentos recentes revisitam o integralismo: O Fascismo em Camisas Verdes, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto (Editora da FGV) e Fascismo à Brasileira, de Pedro Doria (Editora Planeta). Apoiados em sólidas pesquisas, os dois livros esmiúçam aquele que foi um dos maiores movimentos populares de direita da história brasileira. O primeiro livro estica a cronologia, indo além da morte de Plínio Salgado em 1975, percorrendo sua carreira como deputado em vários partidos e estendendo-se até os movimentos neointegralistas dos anos recentes, com os sites na internet. Já o livro de Pedro Doria, limita-se ao exame detalhadíssimo do período áureo da Ação Integralista Brasileira, desde as suas origens, no final da década de 1920, à fracassada tentativa de tomada do poder, em 1938 – incluindo um precioso bônus de exercício comparativo ao leitor: um capítulo inteiro abordando a história do fascismo italiano.

Porque tudo começa com o encontro entre Plínio Salgado e Mussolini, em Roma, em junho de 1930 – que se transformou, afinal, numa linha divisória na trajetória ideológica do brasileiro: ali nasceu a inspiração para o intelectual modernista (é bom não esquecer) o qual, da mesma maneira que outros escritores de sua geração, ansiava por uma transformação do país, rejeitando tanto o liberalismo carcomido da “República Velha”(termo inventado naquela época) quanto o “perigo vermelho”. O Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo, assinado em 1929 por Salgado, Cassiano Ricardo e outros, já inventava até uma tradição para o nacionalismo integralista, na qual os judiados povos indígenas, através (sic) da “força centrípeta do elemento tupi” dariam o tom para o mito da mestiçagem integradora.

Daí que o movimento teve uma origem francamente intelectual: “É preciso que nós, intelectuais, tomemos conta do Brasil. Definitivamente. Temos de romper com a tradição medíocre da política. Estamos fartos de vivermos, nós, intelectuais, à sombra dos poderosos. Queremos mandar”, escreveu Salgado. O integralismo brasileiro – e nisto ele foi herdeiro do pedigree fascista – como doutrina era tosco e – como bem demonstram os dois livros –, além da obsessão conspiratória, Salgado produziu um bolo ideológico com ingredientes que contemplavam as mais variadas correntes do espectro político – e acabou atraindo toda uma geração que, afinal, mostrava-se ansiosa por encontrar algum caminho entre o comunismo e o capitalismo liberal.

Para tanto, a ideologia da AIB mal se equilibrou entre três correntes: com Salgado, um cristianismo social; com o jovem Miguel Reale, uma linha mais social e política e, finalmente, com Gustavo Barroso, uma linha francamente antissemita. Como se sabe, o tonitruante Barroso, da Academia Brasileira de Letras, traduziu em 1936 para o português Os Protocolos dos Sábios de Sião, um falso panfleto que constitui um dos capítulos mais vergonhosos de outra história – a história das mentiras fascistas. Grande parte do exército abraçou o integralismo: foi o então capitão Olímpio Mourão Filho - número dois na organização das milícias integralistas – quem perpetrou a outra grande mentira fascista: de um pastiche de um artigo sobre o Béla Kohn, escreveu o Plano Cohen, um plano mirabolante de instalação no Brasil de um regime judaico-comunista. Salgado nunca aceitou nem o antissemitismo, nem algumas ideias de Reale e nem concordou com o Plano Cohen mas, como chefe, surfou entre as duas correntes para incrementar a doutrina segundo as conveniências do momento.

Mas antes de completar 5 anos – escreve Doria – “a AIB havia se tornado uma máquina midiática”, dominando jornais e, sobretudo, o rádio. Os símbolos também importavam, eram muito mais fortes que a doutrina e toda uma estética própria foi criada: nem fascio nem uma suástica, mas a letra grega sigma – um símbolo matemático que metaforizava o projeto de um Estado único e integral na soma dos números infinitamente pequenos. Salgado sempre foi categórico quanto à simbologia e aos rituais, pois estes seriam os elementos motivadores da população brasileira, vista por ele – de forma nada generosa – como ignorante e sem condição de compreender a doutrina. Protocolos e Rituais – um documento publicado no Monitor Integralista, sintetizava e definia desde os batizados integralistas para as crianças (os “plinianos”), cerimônias de casamentos e até uniformes, louças, adereços e souvenirs diversos – além da valorização de marchas, hinos e outros rituais de saudação e comportamento.

O Anauê! – a obrigatória saudação integralista (do tupi, você é meu(parente) amigo!) significava respeito à hierarquia mas, diferentemente do tom intrinsecamente marcial do fascismo, já trazia uma conotação da ética emotiva característica da sociabilidade brasileira. (Não é à toa que aqui é o único país onde Santa Tereza de Lisieux virou “Santa Terezinha”). Os camisas verdes valorizavam hinos e canções patrióticas e entoavam o hino integralista juntamente com o Hino Nacional brasileiro – este último ligeiramente adaptado, já que a segunda parte era omitida, pois achavam o contemplativo “deitado eternamente em berço esplêndido” incompatível com a ação mobilizadora e militarizada. Os dois livros exploram em minúcias toda a história do Integralismo brasileiro, lançando novas luzes sobre uma história que sempre se reduziu ao anedótico. Doria é mais narrativo e constrói seu relato alternando brilhantemente entre close-ups e long shots, como num roteiro cinematográfico.

Talvez o episódio mais definidor do integralismo no turvo oxigênio mental daquela época, foi quando antes de falar a uma plateia em 1933, Salgado percebeu que Barroso substituiu todo o discurso escrito por folhas em branco, e teve que falar de improviso. Daí nasceu o orador vibrante, que falava com o coração, sentindo a vibração do público e o circuito elétrico que emanava do coletivo. Mas isto aconteceria com vários líderes políticos brasileiros, incluindo, na mesma época, Getúlio Vargas.

Como em todo ritual fascista, não era o orador que mobilizava multidões, eram as projeções delas sobre o líder que galvanizavam o evento público, transformando a cena política em ritualizações míticas do entusiasmo coletivo. “O homem vestia, predisposto por velhas tendências, o mito”. É certo que a frase é de Raymundo Faoro sobre Getúlio. Mas Menotti Del Picchia disse quase o mesmo do amigo Plínio, quando este discursava: “São as forças criadas pelo temperamento e depois por uma obsessão. Ele não sai do mito.” Mas este carisma que eletrizava as massas, cabia a muitos líderes políticos da época. Uma época na qual a política, que vinha do iluminismo, se rendia a um novo personagem, que não fazia parte dos seus projetos racionais: as massas, com todos os seus símbolos e rituais coletivos e cujos traços mais salientes seriam, na sempre perturbadora definição de Elias Canetti: “A densidade, o crescimento e a abertura para o infinito, a coesão surpreendente e notável, o ritmo comum e a descarga súbita”. Quaisquer semelhanças com os confrontos políticos na atualidade, com o ódio visceral e virtual que emana das redes sociais, ficam por conta dos leitores.

*Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e autor, entre outros livros, de ‘Raízes do riso’ (Companhia das Letras)