o estado de s paulo
Luiz Sérgio Henriques: Duas nações, uma crise
Sinais de alarme soam diante da devastação que Trump e Bolsonaro têm promovido
Poucas vezes um evento terá tanta relevância além das fronteiras de um país quanto as iminentes eleições norte-americanas, a indicar como, acima das reivindicações exclusivistas de soberania nacional da parte de atores deliberadamente cegos ou orgulhosamente obtusos, os processos de interdependência terminam por impor sua lógica e tornar menos dessemelhantes realidades originalmente distintas. É como se – considerando Estados Unidos e Brasil – o sistema político de cada qual se destacasse das respectivas matrizes históricas, individualistas num caso, organicistas no outro, e apresentasse o mesmo problema, de tal modo que, sinalizando futuras e cada vez mais frequentes influências recíprocas, os resultados americanos de novembro viessem a condicionar vigorosamente as coisas por aqui.
Em tese, a matriz anglo-saxã asseguraria, com razoável grau de previsibilidade, a boa saúde da democracia na América, enraizando-a em indivíduos livres e acostumados à participação na vida pública. Em contrapartida, ibéricos como somos, tenderíamos à arquitetura social “barroca”, perdido o indivíduo numa totalidade que não domina e frequentemente o esmaga, pelo menos na versão pessimista tantas vezes predominante. Estruturalmente liberal-democratas, os americanos; intimamente autoritários e às voltas com autoritarismos, condenados a regar monotonamente a mirrada planta da democracia, nós, brasileiros.
O fato é que o sistema político das duas grandes nações, por artes de um mundo que parece ignorar particularismos, encontra-se desafiado por uma questão análoga. Como efeito do abrasileiramento dos EUA ou da americanização do Brasil, ambos se tornaram casos de manual dos procedimentos em curso de “morte das democracias”, com a corrosão das suas normas escritas e não escritas, das suas regras e dos seus valores. Os sinais de alarme soam diante da devastação que, quase em paralelo, Donald Trump e Jair Bolsonaro têm promovido em circunstâncias já de si muito difíceis. E como advertem os estudiosos, a obtenção de um segundo mandato por líderes desse tipo configuraria uma situação ainda mais perigosa, sem exclusão da possibilidade de crises institucionais.
Há uma coleção de ineditismos na conduta de Trump que requer algum esforço analítico maior. No plano externo, quem jamais imaginaria o afastamento entre EUA e seus aliados tradicionais, os países do Ocidente democrático, além da admiração de Trump por dirigentes autoritários, incluído o agora arquirrival Xi Jinping? Quem suporia, há alguns anos, a aliança tácita com Vladimir Putin em chave antieuropeia, minando um projeto de superação de rivalidades que conduziram, só no século 20, a uma prolongada “guerra civil continental” entre 1914 e 1945?
O lema “America first”, que sintetiza a retirada das instâncias multilaterais, a começar pela ONU, pode ter uma leitura realista de que todo governante deve cuidar antes de tudo do próprio país e estaria arruinado se não o fizesse. Mas deve-se entendê-lo mais adequadamente como sintoma de renúncia ao universalismo dos valores liberais trazidos audaciosamente ao mundo pela revolução americana – afinal de contas, uma moderna guerra de libertação nacional. Renúncia, portanto, que explicita incapacidade de direção dos processos globais e recuo para um horizonte “corporativo”, que aquele país, sob Trump, só tem abandonado de tempos em tempos em favor de ações erráticas e unilaterais.
O mesmo déficit de hegemonia ocorre internamente. Poucas vezes, como agora, ocupou a sala de comando um governante voltado apenas para o próprio gueto de fiéis, a bradar contra a diversidade social, os avanços culturais e as oposições políticas, entendidos todos eles como diferentes expressões de um “inimigo interno” que ameaça o excepcionalismo e o “manifesto destino” americano. A deslegitimação dos adversários, que está no coração do conservadorismo “revolucionário”, é uma traição aos princípios liberal-democráticos e implica, em perspectiva, a substituição da persuasão por meios autocráticos de mando – por uma ditadura, em suma. Mesmo um moderado como Joe Biden aparece como cavalo de Troia da revolução de esquerda que ameaçaria o americano comum. E já há quem monte cenários em que Trump denunciará os resultados caso lhe sejam adversos, ou se recusará a deixar o poder. Nada mais “latino-americano”, na velha conotação, que, por óbvio, mencionamos sem subscrever.
Difícil imaginar que a convergência de crises apague os sinais de batismo das duas sociedades. O mundo globalizado, ao contrário do que pensam os detratores, não é uma abstração vazia na qual sumam as combinações particulares de liberdade e igualdade, indivíduo e comunidade. Contudo, seja no mundo “ibérico”, seja no “anglo-saxão”, o requisito para despontarem a diferença e a multiplicidade é a universalidade da democracia. Sem ela, como o comprovam cotidianamente Trump e Bolsonaro – o original e o rascunho –, não equacionaremos a atual e aguda crise civilizatória. Na verdade, nem sequer a perceberemos.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Vera Magalhães: O início, o fim e o meio
Retomada desordenada tornou decisão sobre volta às aulas mais complexa
Passados seis meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil, duas são as principais questões a mobilizar a sociedade, os governantes e os especialistas. A primeira é quando e de onde virá a vacina, e com que eficácia. A segunda, anterior, é: quando voltarão as aulas presenciais?
O Brasil é um dos países do mundo a ter ficado mais tempo com as escolas fechadas, mais uma consequência da quarentena meia boca, da falta de coordenação política para o enfrentamento da covid-19 e da retomada atendendo a pressões políticas, e não prioridades sociais ou recomendações da ciência.
As escolas fecharam já em março e houve uma imensa heterogeneidade na adoção do ensino à distância. Escolas particulares, sobretudo nos grandes centros, rapidamente passaram a utilizar ferramentas da tecnologia para chegar aos alunos confinados.
A velocidade, sabemos, não foi a mesma, nem os recursos tão abundantes, nas redes públicas e nos rincões. Os resultados serão sentidos nos anos vindouros, na forma de mais desigualdade na qualidade do ensino.
Meio ano depois, a constatação de que a perda em termos educacionais e o prejuízo emocional e social para crianças, adolescentes e universitários é imensurável e a necessidade econômica e familiar de que a rotina seja retomada afligem gestores públicos, pais, professores e profissionais da área médica e sanitária.
Isso porque a ordem dos fatores, no caso da retomada de uma pandemia, altera, e muito, o produto. Como na letra de Gita, de Raul Seixas, começamos pelo começo (a quarentena necessária), mas aí invertemos o meio (a imprescindível redução da curva de contágio) e o fim (a retomada das atividades).
E mais: além de atropelar o meio, ainda passamos à frente na fila as atividades em que os lobbies econômicos gritaram mais alto, e a volta às aulas foi ficando para trás.
E agora se formou um nó górdio: ausência de coordenação para estabelecer protocolos seguros, falta de estrutura das redes públicas para fornecer condições de higienização e distanciamento para o escalonamento de retorno dos alunos, resistência em grande ponto justificada de professores, insegurança dos pais e o medo dos prefeitos de a conta de uma eventual explosão do número de casos estourar no seu colo bem no período eleitoral.
Como se sai de um nó desse, uma vez que a vacina ainda é uma promessa distante e os prejuízos para todos vão cobrando uma conta mais pesada? De novo, é necessária coordenação nacional. Não basta Jair Bolsonaro agir como sempre como um irresponsável de arquibancada, como se não fosse ele o presidente, e ficar cornetando que as escolas não deveriam ter fechado, e que as quer abertas juntamente com os estádios.
O MEC, que nada fez de útil na pandemia toda, e o Ministério da Saúde, cujo titular acaba de passar no estágio probatório de seis meses, precisam chamar gestores municipais e definir requisitos para abrir as escolas: qual a curva de transmissão aceitável para isso? Com que porcentual de alunos elas serão reabertas? O que as escolas têm de providenciar em termos de insumo e instalações para o retorno? Como serão conciliadas as aulas presenciais e remotas? Qual a rotina de testagens para professores? Qual a estratégia de rastreamento rápido de casos por região para fechar as escolas caso comece a haver sinais de escalada de contágio?
Sem responder a essas perguntas básicas, para as quais a própria pandemia já forneceu expertise e dados acumulados, e que já deveriam estar no horizonte muito antes de qualquer retomada, ficar estabelecendo datas aleatórias de retorno segundo a conveniência do calendário eleitoral é cinismo travestido de gestão. Os estudantes são as grandes vítimas pelo fato de os adultos terem pulado a lição de casa.
Eliane Cantanhêde: Boca fechada
STF deve decidir pelo depoimento por escrito, mas se for presencial nada muda
O presidente Jair Bolsonaro deveria depor à Polícia Federal amanhã, na terça ou na quarta no inquérito em que é investigado de interferência política na PF, uma acusação feita pelo seu ex-ministro Sérgio Moro. Mas Bolsonaro não vai depor ainda, porque ganhou dois presentões do ministro do STF Marco Aurélio Mello: a prorrogação e a possibilidade de depor por escrito. Se é que vai precisar depor.
A questão é complexa, até porque envolve um presidente da República, e dá dicas preciosas sobre o equilíbrio do Supremo com Luiz Fux na presidência e Marco Aurélio assumindo em novembro a condição de decano, hoje ocupada por Celso de Mello. Vai se desenhando uma nova polarização, agora entre Fux, pró-Lava Jato e independente em relação a Bolsonaro, e Marco Aurélio, contra a Lava Jato e cada vez mais próximo de Bolsonaro.
Foi Joaquim Barbosa contra Ricardo Lewandowski no mensalão, Gilmar Mendes contra Luís Roberto Barroso no petrolão, a divisão meio a meio na Lava Jato e a quase unanimidade (fora Dias Toffoli) diante do bolsonarismo. Mas Marco Aurélio sempre foi um caso à parte, um encrenqueiro ilustrado. E a nova polarização já tem um marco. Fux declarou à Veja que a decisão contra a prisão após condenação em segunda instância, por um voto, teve "baixa densidade jurídica". Pelo Estadão, Marco Aurélio classificou a manifestação de "desrespeitosa". Subiram no ringue.
Marco Aurélio jogou para o plenário a decisão de Celso de Mello a favor de um depoimento presencial sobre as acusações de Moro. Num depoimento escrito, o risco é mínimo. Num presencial, ainda mais de uma personalidade como Bolsonaro, há perguntas difíceis, cascas de banana, nervosismo – principalmente para quem tem culpa no cartório.
Há tempos Celso de Mello se ausenta de votações por motivos de saúde e, quanto mais perto chega sua aposentadoria, em novembro, mais confronta Bolsonaro. Gerou reação por convocar os três generais do Planalto para depor “debaixo de vara” e por comparar o atual Brasil à Alemanha de Hitler. Ao decidir pelo depoimento presencial, ele recorreu ao artigo 221 do Código de Processo Penal, que só dá direito a manifestação por escrito a presidentes dos três poderes quando são testemunhas ou vítimas, não suspeitos, investigados ou réus.
Bolsonaro é investigado, logo, a decisão tem apoio jurídico, mas Celso se referiu a uma decisão de 2016 favorecendo Renan Calheiros, então presidente do Senado, e não a uma outra de 2018 em relação a Michel Temer, então presidente da República. A PGR não teve dificuldade para cobrar "tratamento rigorosamente simétrico" em "circunstâncias absolutamente idênticas". Como Temer, Bolsonaro é presidente da República investigado. A decisão final tende a ser pró-Bolsonaro, com votos de Marco Aurélio, Barroso, que concedeu a vantagem para Temer no inquérito dos Portos, e Luiz Edson Fachin, no da JBS, além de alguns dos outros oito que já manifestaram desconforto com a "assimetria".
Mas, como Celso deu ao presidente o direito de não comparecer para depor ou, se comparecer, permanecer calado, qualquer forma favorece Bolsonaro, que assim pode se safar dele mesmo e não repetir a chocante reunião ministerial de 22 de abril e absurdos do tipo: só há "alguns focos" de queimada no Pantanal, o Brasil é "um exemplo" de preservação do ambiente e o isolamento social é "conversinha mole dos fracos".
Para alívio dele, do Planalto e dos bolsonaristas, a chance de um depoimento real, com consequências, é próxima de zero. Decida o STF por depoimento escrito ou presencial, não muda nada. Só muda o equilíbrio da corte. De um lado, Fux. De outro, Marco Aurélio agora e seu substituto "terrivelmente evangélico" daqui a pouco.
Adriana Fernandes: Cansaço
O Renda Brasil não sai sem medidas duras que terão de ser aprovadas pelo Congresso
O Renda Brasil se transformou no estranho caso do programa que nem mesmo nasceu, morreu e ressuscitou no dia seguinte. O disse me disse desta semana em torno do Renda Brasil do presidente Bolsonaro revelou a dificuldade que é colocar de pé um programa social com mais dinheiro e beneficiários, sem uma afinação entre as área econômicas e social, o Palácio do Planalto, líderes partidários e os parlamentares.
O cansaço do debate está visível, como reclamou a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Simone Tebet. As semanas começam e terminam no mesmo ponto. Não há avanço concreto. Em alguns casos, retrocesso. E já estamos no final de setembro com o fim do auxílio emergencial chegando junto com o aumento da fome.
É um erro achar que agora, com o apoio do Centrão, tudo poderá ser aprovado. O Centrão vai até aonde a corda estica. O imbróglio em torno da desindexação dos benefícios previdenciários, medida já tentada no passado e sempre abortada, mostrou o deslocamento entre o desejo antigo da equipe econômica e a realidade.
Do jeito que está hoje o arranjo da política fiscal e o teto de gastos, o programa não sai sem medidas duras que terão que ser apresentadas pelo Congresso e aprovadas.
Bolsonaro quer que os parlamentares aprovem o novo programa sem patrocinar nenhuma delas: nem para tirar dos “pobres para os paupérrimos” e nem para tirar dos “ricos e privilegiados para os pobres e paupérrimos”. Não tem jogo, embora a segunda opção esteja sendo cobrada pela sociedade e a maioria dos políticos continue cega para essa demanda.
Tem muito negociador político que parece não entender esse ponto ou está de má-fé empurrando com a barriga a confusão para ver quem cai primeiro.
A sucessão no início de 2021 do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM RJ), que abraçou a pauta econômica de Guedes e do mercado, deve ser o ponto final da inflexão de política econômica que começou com a pandemia. Quando fevereiro chegar lá, veremos o time mudar de campo de vez. Essa é o cálculo político de quem está embaralhando as cartas. Se nada mudar, provavelmente ficaremos nesse rame-rame até lá.
Ganha força agora a ideia de aprovar o Renda Brasil no Orçamento com despesas condicionantes. A estratégia já foi usada na “regra de ouro” (que impede o governo de fazer dívida para pagar despesas correntes).
Funciona assim: a fonte de financiamento fica carimbada no Orçamento com a condicionante de aprovação de uma determinada medida. O gasto só pode ser feito se a medida de corte de despesa for aprovada. Ou seja, o Renda Brasil aumenta além dos recursos destinados ao Bolsa Família em 2021 – R$ 35 bilhões – se as medidas forem votadas.
Se for esse o caminho para arrumar mais dinheiro para a para a área social e os investimentos necessários à retomada, o Congresso deveria aproveitar o impasse fiscal em torno da criação do programa social para aprovar o projeto de revisão periódica de gastos. Resolveria de cara um problema recorrente: planejamento.
É bom esclarecer que revisão de gastos não é o mesmo que avaliação da eficiência dos programas governamentais.
A revisão (spending reviews, em inglês) tem como produto a obrigatoriedade de cortar os gastos, explica o economista do Senado Leonardo Ribeiro, que estuda o tema há quatro anos. Ribeiro ressalta que essa prática institucionalizada como regra passou a ser adotada por vários países depois da crise financeira internacional de 2008.
Antes da crise, alguns países da Europa, como Dinamarca, Finlândia, Reino Unido, e a Austrália, já usavam esse modelo. Mas foi depois do terremoto financeiro que a maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) passou a adotar a revisão. Historicamente, o Brasil tem dificuldade em cortar despesas e renúncias fiscais. Um ponto de partida importante foi essa semana inclusão da necessidade de uma revisão periódica de gastos no relatório da Comissão Mista do Congresso da covid-19. Pode ser um começo. Ou recomeço.
Almir Pazzianotto Pinto: O trabalhador e a covid-19
Ministro de Estado não cria, modifica ou revoga lei, menos ainda por meio de mera portaria
Aspecto de relevante importância do contrato de trabalho diz respeito à garantia do emprego. O artigo 7.º, I, da Constituição de 1988 protege-o “contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de legislação complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.
Por motivos que aqui não cabe examinar, a lei complementar permanece à espera de projeto. Enquanto não for aprovada, a proteção referida no inciso I do artigo 7º se limita “ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6.º, caput e § 1.º, da Lei n.º 5.107, de 13 de setembro de 1966” – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), artigo 10, I.
Após o advento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço são raros os casos de estabilidade. Não é possível demitir arbitrariamente e sem justa causa dirigente sindical; empregado eleito para cargo de direção de comissão interna de prevenção de acidente (Cipa); gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A Lei n.º 8.213/1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social, garante a permanência no emprego pelo período de 12 meses do empregado vítima de acidente de trabalho, de doença profissional ou doença do trabalho, constantes de portaria do Ministério do Trabalho.
Há poucos dias o setor empresarial foi surpreendido pela Portaria 2.309, de 28/8, baixada pelo então ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. S. Exa. incluiu o coronavírus Sars-CoV-2 na Lista das Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDTT), instituída pelo Ministério da Saúde, para assegurar 12 meses de estabilidade a empregado infectado.
As estatísticas referentes a mortos e infectados pela pandemia evoluem dia após dia. No Brasil o número de vítimas de morte ultrapassa os 135 mil. Nos países desenvolvidos, cientistas das melhores universidades travam intensa batalha na busca de vacina infalível e confiável. Os avanços são animadores, mas é impossível prever quando estará ao alcance da população.
A covid-19 não se encaixa nas definições legais de doença profissional ou do trabalho. Segundo a referida lei, doença profissional é “a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade”. Doença do trabalho é “a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais é realizado e com ele se relacione diretamente” (artigo 20, I e II).
Disseminada pelo mundo, a pandemia não revela preferência por determinada camada social, profissão, nível intelectual, conhecimento científico. Ignora limites e fronteiras. O grau de risco é aquilatado pela idade ou condição de saúde: quanto mais idosa e frágil a pessoa, maior o perigo de contaminação. Pouco importa se é médico, enfermeiro, comerciário, bancário, operário, motorista, desempregado ou aposentado. A Consolidação das Leis do Trabalho exige de todo empregador a adoção de medidas coletivas de segurança e de proteção à saúde dos empregados; e do empregado, que cuide da higiene pessoal e faça uso de equipamento de proteção individual. São providências gerais e obrigatórias que nada têm que ver com eventual epidemia de gripe, sarampo ou covid-19.
A segunda matéria submetida ao leitor diz respeito à natureza de portaria ministerial e à competência funcional de ministro de Estado. Portaria é simples instrução interna destinada à “orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência”. Destina-se a “expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos” (Constituição, artigo 87). Ministro de Estado não cria, modifica ou revoga lei. Deve obedecer-lhe e exigir dos subordinados que obedeçam a ela.
No âmbito do extinto Ministério do Trabalho encontraremos portarias com pretensões de ser geradoras de direitos e obrigações. As origens remontam ao regime militar, época em que era comum desconhecer o princípio da legalidade.
Conceder estabilidade depende de lei específica. Não basta mera portaria interna, em que a inclusão ou exclusão de determinada doença depende de decisão aleatória, tomada no recesso do gabinete por ministro de Estado, seja da Saúde, da Economia ou do Trabalho.
Em 8/9 o Estado publicou editorial com o título Portaria desumana. Ali está escrito que para se manifestar contra dispositivos do Código Penal o presidente Jair Bolsonaro, mediante portaria baixada pelo ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, “criou uma aberração jurídica”. Outras aberrações com formato de portaria existem às dezenas no âmbito do Ministério da Economia sob o título de Normas Regulamentadoras relativas à Segurança e Medicina do Trabalho.
A Portaria 2.308 foi revogada com a rapidez da aprovação. Menos mal. Espera-se que outras, tão aberrantes quanto ela e a Portaria n.º 2.208, a que se refere o editorial do Estado, tenham idêntico destino, para preservação do princípio da legalidade, essencial ao Estado Democrático de Direito.
*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, É autor de ‘A falsa República’
Rogério L. Furquim Werneck: Já não há plano de jogo
A falta de um plano de jogo claro e que faça sentido, num quadro de grave deterioração fiscal, exacerba o clima de alta incerteza do País
Em meio à colossal crise que o País enfrenta, só se pode ver com muita apreensão a forma cada vez mais confusa com que a política econômica vem sendo formulada e conduzida, em Brasília. A verdade é que está difícil de discernir algo que se assemelhe a um plano de jogo.
O que se vislumbra, com muito esforço, são pelo menos três planos distintos. Embora sejam todos eles pouco nítidos, parece mais do que claro que o que o ministro da Economia contempla já não é o que o Planalto tem em mente. Nem tampouco o que acalenta a recém-empoderada base parlamentar que o governo recrutou às pressas no Centrão.
Agastado com parlamentares, Paulo Guedes decidiu deixar a negociação da pauta econômica do governo com o Congresso por conta do ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, e das lideranças das bancadas governistas na Câmara e no Senado. “Acabou meu voluntarismo”, anunciou o ministro da Economia. O que se teme é que, junto com o voluntarismo de Paulo Guedes, tenha também acabado a garantia de que o que for negociado com o Congresso estará alinhado com o que o ministro entender que deva ser acertado.
No Planalto, o capitão e seus generais já não se pautam pelo que lhes recomenda o Posto Ipiranga. Sem ir mais longe, para assegurar “desempate”, o general Luiz Eduardo Ramos passará a integrar a Junta de Execução Orçamentária (JEO), colegiado responsável pelas principais decisões do Orçamento, do qual, antes, só faziam parte os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Casa Civil, general Walter Braga Netto.
A proposta orçamentária enviada ao Congresso é sabidamente uma peça de ficção. Não inclui itens importantes da lista de gastos prioritários do Planalto para 2021, como projetos de investimento do Plano Pró-Brasil, preconizado pela ala desenvolvimentista do governo, e o programa Renda Brasil, que turbinaria o Bolsa Família e substituiria o Auxílio Emergencial com algum sucesso político. Ou alguém acredita, mesmo, que Bolsonaro de fato desistiu do Renda Brasil? O presidente bem sabe que, se, a esta altura, desistir, não terá como evitar que o Congresso tome a iniciativa de criar programa similar, como bem entender.
Há, ainda, outras contas vultosas em aberto. Não se sabe em que medida o enorme aumento de dispêndio ensejado pela pandemia será, de fato, revertido em 2021. Ou qual será o custo fiscal da saraivada de derrubadas de vetos presidenciais engatilhadas no Congresso. Como poderá tudo isso ser acomodado sob o Teto de Gastos? Em que déficit primário o governo terá de incorrer em 2021?
Setembro está ficando para trás e o início da campanha eleitoral nos municípios, dia 27, tornará ainda mais difícil a tramitação no Congresso das medidas que supostamente abririam algum espaço fiscal. Às voltas com mais reformas do que terá condições de aprovar, o governo precisa se concentrar no que lhe é de fato essencial.
Na semana passada, parecia que o governo decidira centrar esforços na PEC do Pacto Federativo, fiando-se nas promessas um tanto róseas do seu relator, no Senado, de aprovação de avanços significativos na agenda de desvinculação de receitas e desindexação de gastos. Só que não. Correndo contra o tempo e acossado como está, o ministro da Economia não teve melhor ideia do que anunciar que o fundamental, agora, é viabilizar a aprovação de seu desajuizado projeto de recriação da CPMF.
A falta de um plano de jogo claro e que faça sentido, num quadro de grave deterioração fiscal, exacerba o clima de alta incerteza em que o País está imerso. Sem redução substancial do risco fiscal será difícil de destravar investimentos que ainda permanecem viáveis, em setores que não padecem de excesso de capacidade, como os de infraestrutura, óleo e gás e agronegócios. E, sem retomada do investimento, a reativação da economia e a recuperação da receita fiscal estarão fadadas a ser muito mais lentas do que o governo espera.
A verdade é que, por enquanto, está difícil vislumbrar redução palpável dos efeitos paralisantes do risco fiscal.
*Economista, doutor pela universidade harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-Rio
Eliane Cantanhêde: O preço da reeleição
Para Renda Brasil e Pró-Brasil, tem de atingir aposentados, Educação e Agricultura?
É curioso como o “novo” Renda Brasil repete a novela da “nova” CPMF. O presidente Jair Bolsonaro jura que os dois estão enterrados e não se fala mais nisso, mas, mais dia, menos dia, o ministro Paulo Guedes desenterra a CPMF e o relator do Orçamento no Congresso, senador Marcio Bittar, ressuscita o Renda Brasil, tenham lá que nome tenham as duas “novidades”. E fica tudo no ar. Ou seja: Bolsonaro confunde de propósito, para testar a opinião pública e jogar a responsabilidade no colo alheio.
Essas idas e vindas do presidente ilustram algo que está escancarado, à vista de todos: Bolsonaro parou de fingir que apoia seu Posto Ipiranga incondicionalmente, que encampou o liberalismo e que está governando o País para valer. Caiu a máscara e ele assume o seu verdadeiro eu e a sua candidatura (muito) antecipada à reeleição.
Há, assim, um embate sem solução entre política e economia, eleição e governança, populismo e pragmatismo, gastança e contas públicas, responsabilidade e inconsequência. O resultado é complexo, mas fácil de explicar pela aritmética: as contas precisam fechar. Para gerar despesas, é preciso providenciar receitas. Nunca é simples, mas fica muito mais complicado com pandemia e recessão.
É aí que a porca torce o rabo, porque Bolsonaro exige que o Ministério da Economia garanta despesas que ele considera fundamentais para sua popularidade, hoje, e sua reeleição, amanhã. E Guedes e a equipe esbarram em limitações práticas, técnicas e até políticas para arranjar receitas e sustentar a ambição política do chefe: dinheiro curto, teto de gastos, resistência de ministros e da sociedade.
As opções são questionáveis sob vários ângulos e duplamente prejudiciais às próprias pretensões de Bolsonaro. O cobertor é curto: para ganhar votos com o Renda Brasil, tem de perder com congelamento de pensões e aposentadorias? Para ganhar votos com o Pró-Brasil, tem de perder com cortes em áreas estratégicas como Educação, Cidadania e Agricultura? Para manter votos com isenção das igrejas evangélicas, tem de perder dos tantos que são contra?
Renda Brasil e Pró-Brasil são os carros-chefes da campanha de Bolsonaro. Um é dinheiro na veia do eleitor, mas a opinião pública deu um pulo e Bolsonaro ameaçou a equipe econômica de “cartão vermelho” diante da ideia de congelar por dois anos os reajustes da Previdência para financiar o programa. Tira daqui, põe dali, é soma zero para popularidade e voto.
Já o Pró-Brasil é obra, inauguração, viagem, chapéu de vaqueiro e criança no colo, particularmente no Nordeste, tão populoso quanto oposicionista. Mas, quando o Estadão informa que o dinheiro pode sair da Educação e da Agricultura, não é só a opinião pública que se espanta, são os próprios ministros.
O da Educação, Milton Ribeiro, até agora um fantasma que fala em zumbis, explica que ele não tem culpa se os antecessores – Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub, de triste memória – deixaram sobras porque não sabiam o que fazer com o dinheiro. E a da Agricultura, Tereza Cristina, avisou ontem mesmo, no Live Talks A Retomada da Economia, do Estadão, em parceria com a Tendências Consultoria: “Eu sou pequenininha, sou quietinha, mas eu brigo duro”. Bolsonaro sabe disso.
E daí? Chama o Centrão! Se for um sucesso, os louros serão do presidente, como no auxílio emergencial. Se for um desastre, a culpa será do Congresso – e do Supremo, da mídia. Assim, Bolsonaro vai ajustando sua estratégia e as contas públicas para conquistar o voto dos pobres e manter o dos ricos. Com uma carta na manga após jogar fora o liberalismo e o combate à corrupção: Lula. Se algo de 2018 sobrevive para 2022, é: “ou eu ou o PT, o que vocês preferem?”
Fernando Gabeira: As chamas da negação
As gargalhadas diante do fogo no Pantanal revelam a pobreza da mentalidade dominante
As chamas ardem na Costa Oeste dos Estados Unidos e em dois importantes biomas nacionais, Amazônia e Pantanal. Debates essenciais nascem desses incêndios. O primeiro deles subiu para o topo da agenda na campanha para a presidência dos EUA: o aquecimento global. Lá, como aqui, há os que aceitam as evidências científicas e os que as negam.
Um segundo debate decorre do próprio princípio de precaução. Se há realmente mudanças climáticas, os incêndios serão mais intensos a cada ano. Logo, é razoável nos preparamos melhor, em vez de sermos anualmente derrotados por eles.
No Pantanal já foram destruídos mais de 22 mil km2 de vegetação, uma área do tamanho de Israel. Serpentes e jacarés carbonizados estão por toda parte, o refúgio das araras azuis está ameaçado, chamas em Porto Jofre, onde se concentra uma centena de onças-pintadas.
O desastre neste ano é muitas vezes maior que o do ano passado, que tive a oportunidade de documentar. Muito possivelmente, a julgar pelas notícias, a maioria dos focos de incêndio foi provocada. Talvez por pessoas que sonham com um Pantanal transformado apenas em pastagens e campos plantados. Ignoram a riqueza que estão destruindo. São os mesmos que sonhavam em transformar a região em grandes canaviais. Não percebem que ao destruir a vegetação arruínam todo o ecossistema, os próprios peixes que se alimentam de pequenos frutos tendem a desaparecer.
Essa incompreensão básica está também no Palácio do Planalto. Bolsonaro sonha com campos de soja, muito gado, o que na cabeça dele significa aumento da produção. Deve ser por isso que todos riram no palácio quando uma jovem blogueira perguntou pelo incêndio no Pantanal.
Bolsonaro nega o aquecimento global. E pratica sua negação. As verbas para a prevenção de incêndios caíram sistematicamente de 2018 para cá. As destinadas a brigadas, que eram de R$ 23 milhões, foram reduzidas a R$ 9, 9 milhões.
Ele caminha decisivamente na contramão das tendências climáticas. Acha que seu voluntarismo pode afrontá-las com a mesma naturalidade com que muda as regras de trânsito. Em ambos os casos colheremos mortes e destruição.
Cessado o fogo, será difícil articular um projeto de replantio. Os bichos e a mata atrapalham a produção. A ajuda internacional será vista como ameaça à soberania nacional.
Apesar do negacionismo de Trump, o horizonte no Brasil é mais sombrio. Bolsonaro representa um tipo de pensamento que existe também em parte dos fazendeiros e amplamente nas Forças Armadas. Esse tipo de pensamento relaciona destruição ambiental com progresso. O próprio ministro Paulo Guedes disse que os americanos tinham destruído suas florestas e acabado com índios.
É o tipo de argumento clássico do pensamento dominante no governo brasileiro, hoje uma estranha amálgama de generais do Exército e pastores evangélicos. Não há outro caminho senão tentar convencê-los, antes que consigam destruir o País na suposição de que fortalecem a soberania terrena e nos aproximam do reino dos céus.
A produtividade de agrofloresta é um exemplo na Amazônia. Os lucros da exploração sustentável de açaí e castanha são outro. O potencial turístico do Pantanal, a própria capacidade do bioma de atrair investimentos, tudo isso tem de ser repetido à exaustão.
As gargalhadas diante das chamas que devoram um bioma como o Pantanal revelam apenas a distância entre a pobreza da mentalidade dominante e a riqueza de nossos recursos naturais. A utopia de um mundo plantado de soja, subsolo revolvido em busca de minérios, gado pastando na relva – tudo guardado por um exército vigilante, que pinta de branco as poucas árvores que restam, é, na verdade, um pesadelo. Seríamos uma nação que construiu com tenacidade um imenso deserto, teríamos transformado o mundo no espelho do nosso universo mental.
Quem acompanha o desastre do Pantanal desejaria que Bolsonaro tivesse uma ideia mínima do que está acontecendo. Com um pouco de humildade, ele se arrependeria de chamar as ONGs de um câncer que gostaria de extirpar. São as ONGs que se põem em campo, salvando grande parte dos animais feridos, sem nenhuma estrutura ou base financeira além da cooperação voluntária.
Quando cobri um desastre na Galícia constatei que o próprio governo pôs à disposição um pequeno hospital para as aves marinhas atingidas. Comparadas com a fauna do Pantanal, as aves marinhas da Galícia são só um pequeno grupo.
Aqui, no Brasil, o trabalho é feito pela sociedade. Não importam os insultos vindos do mundo oficial, a esperança de reduzir o impacto destrutivo dessa passagem do fundamentalismo pelo poder ainda se baseia em solidariedade e trabalho voluntário. E tudo isso nos alcança num momento de pandemia, em que a capacidade de reação é limitada.
Ao intenso ataque do vírus soma-se a fumaça que atinge as grandes cidades da região. Restou-nos apenas a negação da dupla negação do governo: coronavírus e aquecimento global. Em ambos os casos, resistimos. Mas é impossível deixar de sonhar com um país em que governo e sociedade enfrentem juntos os desastres naturais e sanitários. A vida seria menos difícil.
William Waack: Desentendimento ao quadrado
Sufoco fiscal está levando o governo a um notável bate-cabeça
Como indivíduo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, está provando ao mercado que resiste mais a pancadas do que inicialmente se supunha. Mas o que importa para agentes econômicos – a confiança na reputação – foi bastante danificada.
Nem tanto por um presidente errático que só pensa naquilo (reeleição) – isto estava, como se diz em economês, “precificado”. Mas, sobretudo, pela rápida e imprevisível mudança dos dados da realidade que impuseram ao governo uma radical alteração de rumo para adaptar assistencialismo (imperativo imediato político e humanitário) à catástrofe fiscal que o próprio Guedes anunciou (problema que vem de longa data).
Se é que existia anteriormente um rumo claramente definido e sendo implementado. Parece que não havia, além de um conjunto de diagnósticos sobre causas de um país estagnado aliado a frases fortes de efeito eleitoral prometendo “mudar tudo que está aí”. O que se evidencia agora, porém, é a ausência de plano para além da contingência.
Bolsonaro entrou numa armadilha nem um pouco original: obrigado a gastar o que não tem. Está, de fato, tolhido por um orçamento engessado que a falta de vontade e articulação políticas contribuíram para deixar no lugar. Sufocado por uma crise fiscal cujo tratamento depende (sim, é repetitivo) de eficaz movimentação POLÍTICA para superar obstáculos rumo a reformas essenciais, como a tributária e a administrativa.
E pressionado pelo calendário eleitoral dos deputados, já voltados para as eleições municipais, e o dele mesmo, o da reeleição. Nesse ambiente, Bolsonaro se rebela com seus característicos arroubos (“cartão vermelho para quem falar em Renda Brasil”) como quem de repente é confrontado com uma realidade profundamente desagradável: a da situação para a qual não existem saídas mágicas.
Foi essa singela constatação que o levou a esbravejar contra a própria equipe econômica, da qual ele obviamente desconfia que lhe prometeu mais do que seria capaz de entregar. Quer continuar prestando ajuda emergencial, que proporciona excelentes dividendos políticos? Então vai ter de cortar em algum outro lugar. Quer criar um benefício social permanente, para chamar de seu? Então precisa rever outros.
Não se sabe exatamente quanto Bolsonaro ouve do tanto que Guedes fala, mas até aqui o mantra tem sido repetido com ênfase: não haverá furo no teto de gastos. Pode-se chamar investidores internacionais ou detentores de títulos brasileiros de míopes ou abutres (palavra preferida por argentinos, por exemplo), mas é fato que eles estão com a atenção concentrada num só aspecto, que é a questão fiscal.
Vem daí – do acompanhamento da evolução da dívida bruta do País em relação ao PIB, e como a política trata disso – uma outra constatação relevante para a equipe econômica: o principal fiador de sua credibilidade hoje lá fora já não é tanto Paulo Guedes, mas, sim, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. É a supremacia da questão fiscal escrita com letras garrafais.
Como se sabe fartamente, não é um problema técnico, mas de natureza essencialmente política. No sentido de que o governo é obrigado a fazer escolhas, não vai conseguir agradar a todos, e essas escolhas são condicionadas por fatores políticos e acarretam consequências idem. E o principal problema de Bolsonaro parece ser o de ter de tomar decisões.
No espetáculo público que seguiu à decepção do presidente com a ausência de fórmulas mágicas, Bolsonaro e Guedes assumiram, contou Guedes, que um não entende de economia e outro não entende de política. É o tipo de observação engraçada numa conversa de boteco, mas que leva os agentes econômicos, que não acham graça em perder tempo ou dinheiro, a uma conclusão cínica: juntar dois maus entendedores não resulta, eventualmente, em um meio entendedor.
Acaba em desentendimento ao quadrado. Ou se chama rápido o Centrão, que é o que está acontecendo.
*Jornalista e apresentador do jornal da CNN
Vera Magalhães: Segundo cartão amarelo
Guedes diz que cartão vermelho não foi para ele, mas está ‘pendurado’
Se o governo Jair Bolsonaro fosse uma partida de futebol seria uma pelada de várzea. Dito isso, vamos explorar a metáfora futebolística (nem para isso a imaginação pobre desse presidente incidental consegue superar o lulismo que disse que iria sepultar) usada pelo presidente.
Bolsonaro mais uma vez preferiu causar nas redes a governar. Em vez de reunir Paulo Guedes e seus subordinados na equipe econômica, cobrar um posicionamento a respeito dos estudos para o Renda Brasil, dizer o que aceita e o que não permite, pedir prazos e metas, algo que seria o mínimo que qualquer gestor com noção do próprio trabalho faria, Bolsonaro resolveu gravar um vídeo, uma das poucas coisas que sabe fazer (e ainda assim com a ajuda do filho 02, Carluxo, ou algum assessor do gabinete do ódio).
Estava na versão pistola, não naquele simulacro de paz e amor que andou encenando nos últimos tempos. Disse que não aceitava tirar dinheiro dos paupérrimos para dar aos pobres, que não permitiria a crueldade de se congelar pensões e aposentadorias e que se alguém insistisse nisso levaria um cartão vermelho.
Capitão do time da equipe econômica – que Bolsonaro fez questão de escalar como uma espécie de adversário do que chamou de “governo”, e não integrantes do mesmo escrete –, Paulo Guedes fez que não era com ele para não levar o tal cartão.
Só não se deu conta de que o expediente é inútil, o enfraquece ainda mais e tira dele a aura de craque que tinha na fase de preparação do campeonato, antes de começar essa pelada de quinta categoria que é este governo. Se não levou vermelho, ainda, Guedes já acumula dois amarelos em pouco tempo do árbitro Bolsonaro, e não adianta pedir VAR (com a escusa do meu amigo Octávio Guedes para fazer menção à sua comparação de ontem na TV).
O primeiro amarelo veio quando Bolsonaro mandou Guedes refazer o projeto do natimorto Renda Brasil. O fez em público, com direito a humilhação. O ex-posto Ipiranga pediu desculpa e seguiu o jogo. Agora o presidente deu um passa-moleque no antes intocável ministro da Economia e pareceu pouco ligar se ele achasse isso intolerável e pedisse demissão.
Só que Guedes tolerou mais essa. E por ora vai ficando. Em nome de quê, ambicionando exatamente o quê e com qual expectativa é impossível dizer. Num misto de atordoamento e ingenuidade, o ministro prefere negar a realidade posta diante de seu nariz, de que está sendo submetido pelo “capitão” (aqui não do time, mas reformado e expulso do Exército) ao mesmo corredor polonês em que foram colocados nomes como Gustavo Bebianno, Osmar Terra (que vergou e continua lá, puxando o saco), Onyx Lorenzoni (idem), general Santos Cruz, Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta e até o puxa-saco mor e clown do bolsonarismo Abraham Weintraub.
Não há gratidão, empatia, modéstia de reconhecer que não entende do assunto das pastas e delegar aos especialistas, planejamento, educação, bom senso ou sequer estratégia na maneira como Bolsonaro lida com pessoas. E aqui entra qualquer pessoa que não seja do seu sangue (mulheres vêm e vão, e estão sujeitas ao mesmo pelourinho, vide o que ocorreu quando ele pôs o filho Carlos, aos 17 anos, para derrotar a mãe, Rogéria).
Guedes só era imprescindível para Bolsonaro para vencer a eleição. Foi o cavalo de Troia no qual os corporativistas, rachadeiros, milicianos, reacionários e despreparados Bolsonaro et caterva entraram para adentrar a cidadela do mercado e do eleitor com “nojinho” do PT.
Cruzado o portão, a prioridade é se manter lá dentro. Se Guedes passa a ser visto como estorvo para isso, que queime na fogueira em que já arderam as reputações dos citados acima. Cartão vermelho para ele, sem choro nem vela.
Monica De Bolle: A hipóxia da América Latina
A economia da região já estava abalada antes da pandemia; Brasil e México estavam com as contas desarranjadas
Na lista de países com o maior número de mortes diárias por milhão de habitantes, vidas ceifadas pela covid-19, os dez primeiros lugares pertencem à América Latina. Na lista de países com o maior número de casos diários por milhão de habitantes, há sete países da região entre os mais afetados. O primeiro lugar não pertence aos Estados Unidos, mas à Argentina. O segundo lugar é da Costa Rica, o quarto lugar é do Peru, o quinto do Panamá, o sexto da Colômbia, o sétimo do Brasil. Os EUA aparecem na nona posição, já que a décima pertence ao Chile.
A pandemia chegou à região em fevereiro de 2020, tendo, assim, dado dois meses para que os governos se preparassem. Poderiam ter usado esse tempo para traçar planos de resgate econômico, estratégias de saúde pública, medidas para proteger as centenas de milhões de pessoas vulneráveis da região. Do desperdício emergiram os pulmões dilacerados da América Latina.
Foram muitos os erros. Lideranças frágeis, instituições em crise permanente, presidentes como Andrés Manuel López Obrador no México e Jair Bolsonaro no Brasil que negaram com veemência a gravidade de um vírus novo e letal sobre o qual pouco se sabia. O caso mexicano surpreende bem mais do que o brasileiro já que López Obrador, apesar de algumas limitações, fez campanha como “defensor dos pobres” e prometeu uma agenda de priorização da proteção social em seu país. Até agora, pouco fez. Bolsonaro…bem, com esse já aprendemos tudo o que não devemos esperar que faça.
O resultado do fracasso latino-americano está estampado nos números. Até o dia 11 de setembro contabilizavam-se quase 7 milhões de casos de covid-19 nas 5 maiores economias da região, a saber: Brasil, México, Colômbia, Argentina, e Peru. São centenas de milhares de mortos, sem contar que os números estão subestimados devido à má qualidade da coleta de informações, a falta de testagem, a ausência de protocolos para o rastreamento de contatos. As quedas registradas da atividade econômica jamais foram tão fortes, o desemprego está em alta, e a crise humanitária tem recaído, sobretudo, na população mais pobre. Tudo isso na região que é campeã da desigualdade no planeta e cujos níveis de pobreza são dramáticos.
Em conferência recente aqui em Washington – o evento anual da Confederação Andina de Fomento (CAF) – ouvi dos meus colegas de painel relatos semelhantes aos que escuto no Brasil. Descaso de governantes, políticas mal elaboradas, aberturas prematuras de locais de grande aglomeração, descontrole da pandemia. Em algumas partes da região fala-se em desordem social, igual ou pior do que aquela que testemunhamos na segunda metade de 2019 – parece uma eternidade, mas foi outro dia.
A economia da América Latina já estava abalada antes da pandemia. As duas maiores potências econômicas da região, Brasil e México, resfolegavam para crescer em meio a contas públicas desarranjadas e ausência de perspectivas para o resgate do desenvolvimento. Nesse contexto, quase todos os países da região cometeram exatamente o mesmo erro: o de tentar evitar medidas sanitárias mais drásticas – como quarentenas rigorosas – para “salvar” as economias. O resultado foi o pior possível: não houve controle da epidemia, tampouco da crise econômica.
Como já escrevi em outras ocasiões nesse espaço, não há retomada econômica na ausência de medidas para controlar as epidemias. Contudo, como muitos países voltaram à seminormalidade nos últimos meses, mantendo escolas fechadas, porém abrindo bares, restaurantes, shopping centers, medidas sanitárias restritivas não têm apoio social ou político.
Tal quadro significa que epidemias descontroladas serão a norma ao longo dos próximos meses, com consequências, evidentemente, desastrosas em termos de vidas perdidas e abalos socioeconômicos nestes países da América Latina.
Os pulmões dilacerados da América Latina continuarão a afligir a população vulnerável e a elevar os índices de desigualdade e pobreza já tão altos nessa trágica região do planeta. Roubando as palavras de Caetano e Gil, parece difícil que sejamos capazes de escapar de um destino. Desse destino: o Haiti é aqui.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Rosângela Bittar: A segunda metade
Guedes foi tragado pelo confronto do projeto liberal com o projeto populista
Sem rodeios: com a transferência do eixo de poder para a comissão técnica da reeleição, o presidente Jair Bolsonaro completa a erosão política a que vinha submetendo o outrora superministro Paulo Guedes. Ao contrário dos processos de desgaste de outros colaboradores, o do ministro da Economia foge aos costumes. Ele não cai, obrigatoriamente. Sua permanência é facultativa. Por enquanto, a decisão é ficar.
As negociações políticas passaram a ser feitas por um grupo de que fazem parte o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP), e os ministros Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Com a participação acidental de Jorge Oliveira (Secretaria-Geral), Braga Netto (Casa Civil) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura).
Alguns ministros continuarão atuando nos seus nichos temáticos: Tereza Cristina (Agricultura), Fábio Faria (Comunicações) e André Mendonça (Justiça e Polícia). Resguardada a livre intervenção de Bolsonaro nessas áreas. Exemplos, o caso recente do etanol americano e as questões domésticas de Queiroz e companhia.
Os militares continuam avançando. Chegaram à Funarte e assumiram definitivamente a Saúde. Acampam, bivacam e conquistam o terreno. As reformas da Previdência e da administração, bem como outras restrições, não os alcançam.
Tudo guarda coerência com o deslocamento das preocupações do presidente para o vale-tudo da campanha.
O governo não adota uma lógica na administração da Economia. Se for preciso alguma solução orçamentária, faz-se o que a política julgar conveniente.
Já não se falam das teses acadêmicas de Paulo Guedes. Ele não é mais o anjo da guarda (aliás, arcanjo) de um capitão-presidente ignorante em economia e finanças.
Guedes foi tragado pelo confronto do projeto liberal com o projeto populista. Nada surpreendente. O nacionalismo dos militares sempre esteve no lado oposto ao seu e não fascina mais o presidente e seu grupo próximo.
Desautorizado por Bolsonaro, vítima de rasteiras de colegas ministros, Guedes perdeu também o apoio pessoal do Congresso, ao adotar a violência verbal e a soberba no diálogo com os parlamentares, o que lhe criou antipatias profundas. Ali, a cada investida ele perde todas.
Nenhuma das suas posições sofreu golpe maior do que o pedido do presidente para ser derrotado no veto à anistia às dívidas das igrejas. Nem a troca de interlocutores na cobrança ao preço abusivo do arroz. O caso do Big Bang, trunfo de Paulo Guedes para se recuperar do Pró-Brasil, lançado à sua revelia, morreu na praia. E o dilema de furar ou não o teto foi desfeito com o presidente admitindo estudos para romper limites do orçamento.
Guedes teve recusadas, por estapafúrdias, sugestões sobre de onde tirar recursos para o Renda Brasil, programa do qual o presidente parece ter temporariamente desistido. Todas as fórmulas sugeridas avançavam no bolso ralo dos pobres. Ainda anteontem, surgiu mais uma: o congelamento das aposentadorias por dois anos. Ideia que ainda mantém sob reserva a informação fundamental, se vai ou não atingir e em que proporções os militares e os funcionários civis. E o que ocorrerá quando terminar os dois anos de prazo fixado.
Dificuldades que sugerem ser a proposta mais um bode de anedota na sala da CPMF. Todas soluções sem imaginação que não conferem com os celebrados títulos de Chicago que ornam a biografia do ministro.
Se Guedes decidir mesmo ficar, será como chefe de uma equipe técnica que trabalhará sob demanda.
Se sair, sua substituição é o que melhor explicará a natureza da segunda metade do mandato.
O populismo desbragado do momento dispensará explicações, como já aconteceu nas substituições da Educação, Saúde e Cultura. O ministro da Economia também poderá ser qualquer um. É infindável a reserva de anônimos do presidente.