o estado de s paulo
William Waack: Lição do debate americano
Disputa indica uma crise constitucional, já que Donald Trump só aceita um resultado: sua vitória
Não são nada boas as evidências trazidas pelo debate entre Donald Trump e Joe Biden sobre o estado geral da política americana. O debate trouxe a cara feia do que até há pouco era impensável: uma crise constitucional provocada por uma eleição de resultados contestados. Com Trump dizendo que só aceita um: o da sua vitória.
O que acontece no sistema político americano pesa de forma desproporcional no resto do mundo. Especialmente quando o país que serviu de referência – “a cidade de luzes no topo da colina”, na clássica definição – vai deixando de ser exemplo positivo.
Os Estados Unidos são um país muito grande, muito rico, muito poderoso e que exerceu grande atração como modelo de vida pública e virtudes civis (há séculos, por sinal). Mas o debate da terça feira fez saltar aos olhos como se acelerou essa “virada para dentro”, o “deixa prá lá” em relação ao que se assumia como sendo o papel dos Estados Unidos de “nação líder” (pode-se gostar ou detestar esse papel, mas não dá para ignorar).
Nota-se na falta de conteúdo substantivo do debate a presença de uma espécie de doença infecciosa espalhada de tal maneira a ponto de grandes temas de formulação de políticas domésticas e internacionais mal receberem menções – uma das poucas foi sobre desmatamento da Amazônia, provavelmente pela sensibilidade que Joe Biden julga detectar no eleitorado democrata. É como se fosse uma “amnésia” em relação ao resto do planeta, assinalam comentaristas americanos.
Um deles é Adam Garfinkle, fundador e editor da imperdível publicação “The American Interest” (que tem no seu quadro de colaboradores nomes como Francis Fukuyama, Walter Russel Mead, Robert D. Kaplan, Niall Ferguson). Ele vai ao ponto de dizer que a sociedade e política americanas vivem um “estado geral de loucura” do qual Donald Trump não foi o iniciador. Mas que ajudou a acelerar, passando a representar a “quintessencia” de um tipo de desorientação geral típico de quem se perde numa sala de espelhos.
Para Garfinkle, constatar que Trump está ativamente empenhado em solapar as instituições democráticas americanas (seu destaque favorito é a politização do Departamento de Justiça) não significa dizer que o outro lado é “bom”. “Os democratas podem parecer relativamente menos perigosos para normas e princípios americanos, mas suas divisões internas e seus julgamentos equivocados não os tornam admiráveis. Por serem meramente incompetentes em vez de imorais não os torna bons na linha do tradicional provérbio de que dois erros não compõe um acerto”, escreveu.
Já é lugar-comum afirmar que no ambiente político americano (no brasileiro também, diga-se de passagem) as pessoas não conseguem concordar em sequer quais são os fatos. Não é de hoje que a política se tornou um espetáculo de imagens rápidas, mais compatíveis a eventos de esportes brutais, nos quais o entretenimento tem total precedência. Quando tudo vai se limitando a 140 toques, e ao “joinha” no pé da postagem, esse tipo de debate acaba sendo o espelho da perda do hábito da leitura e, sobretudo, da reflexão.
É o tipo da situação na qual tanto democratas quanto republicanos colocam o “sound bite” (a “sonora”, na gíria televisiva brasileira) adiante de qualquer substância, as teorias conspiratórias na frente de qualquer abordagem racional ou de substância. De novo, não é Trump o “inventor” desse tipo de fenômeno – muito conhecido também na nossa política. Mas é ele quem se esmera em tirar todo partido possível do desrespeito às regras não escritas de convivência dentro da civilidade e do respeito à opinião alheia e, sem dúvida, da mentira descarada.
A julgar pelo que ele mesmo disse no debate, Trump terá de ser forçado para fora da Casa Branca, mas mesmo uma clara e inequívoca derrota dele não fará o relógio voltar para trás. O que pareceu perdido no espetáculo do debate de terça à noite foi o que tanto fascinou sobretudo comentaristas europeus desde o século 18: o espírito de comunidade, de virtudes civis e de dedicação ao bem comum da tal “cidade das luzes no alto da colina”.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
Rosângela Bittar: O espectador
Jair Bolsonaro é espectador do seu governo. Assiste, sem sinais de compromisso
Uma parábola: naquela noite, sem pandemia, João Carlos, o Bulha, saudoso amigo, acompanhou com o olhar a entrada acintosa de jovens penetras em sua festa de aniversário, no Lago Sul. Com a voz abafada pelo som, batizou-os, às gargalhadas. Os Dezoito do Forte. E abordou o último deles, com a piada pronta. “Isto aqui está uma droga, sabe quem é o dono da casa e onde fica a bebida?” “Não”, respondeu-lhe o invasor, “mas vou saber e te aviso”. E misturou-se, tranquilamente, aos convidados.
Um governo: Jair Bolsonaro é espectador do que se passa em seu governo. Assiste a um espetáculo de palco e picadeiro sem sinais de compromisso. Os ministros se movimentam. Ele aplaude ou critica, desqualifica ou aprova, fecha a cara para um, abre a cara para outro. Aproxima-se de quem julga capaz de modular, afasta-se de quem manifesta opinião própria.
Nada de homogeneidade. Nem de fundamentos teóricos. O governo é uma obra aberta, experimental. O presidente gosta ou não gosta. Para formar opinião, inspira-se nas redes, onde é manobrado por 50 minorias. Daí as incoerências.
Na cena de segunda-feira, viu-se uma performance clássica. A do fiasco técnico sobre como financiar um programa eleitoral de renda mínima com pedalada precatória. Bem como, no mesmo cenário, o adiamento da reforma tributária, que embutia, para ver se colava, aumento de imposto. A ameaça de calote ficou na conta do ministro da Economia; o ônus da reforma, transferido ao Congresso, a quem cabe agora, por decisão do espectador, assumir autoria das maldades fiscais. Bolsonaro, isento de tudo, celebra a popularidade crescente.
Os atores ideológicos continuam seu show. Cenas de quinta categoria. O presidente puxa aplausos aos novos e antigos canastrões. Abraham Weintraub pode exibir contracheques em dólar do Banco Mundial, de onde envia vulgaridades às redes, enquanto o irmão, Arthur, pode acenar aos invejosos com os dois cargos que ganhou da OEA em menos de um mês.
Ficaram para trás o MEC, o quarto ministro e o enredo que salta do drama à tragédia. Descompostura política e impostura administrativa.
Na Saúde, faz-se uma releitura surpreendente da realidade. Com todos os equívocos já produzidos na pandemia, o leigo critica os profissionais ao revelar que a recomendação “fique em casa” não era apelo ao isolamento social, como parecia óbvio. Firmou o absurdo, no discurso de posse, que se tratava de campanha dos seus antecessores para o doente não procurar tratamento. O que, só agora, ele e o novo protocolo aconselham. A todos, a sua dose de cloroquina. Tudo o que o presidente quer.
A Cultura abandonou a cortina nazista do holocausto e o conformismo com a ditadura militar para desembocar num acampamento de extraterrestres aduladores. O presidente, homenageado, não se avexa.
Na penúltima de suas expedições contra a natureza, em que condena à destruição restingas e manguezais, o ministro do Meio Ambiente seguiu seu conhecido destino: um passo em falso após o outro. E, nas Relações Exteriores, prossegue-se na predação da arte do Barão do Rio Branco. Com direito a afagos presidenciais.
O espetáculo não flui, também, fora do eixo ideológico. O conflito do INSS com os peritos expõe a degradante situação dos trabalhadores. Minas e Energia sumiu. Infraestrutura está sem meios. E até o agronegócio, produtivo e eficaz, sofre os efeitos da insanidade diplomática. Nem com a reforma da Previdência, conquista única, o presidente espectador se engajou.
O problema é que não se trata de faz de conta, mas de um país e seus 210 milhões de habitantes. Com efeitos especiais e clima de apoteose, Bolsonaro, indiferente aos resultados, pensa apenas na sua razão de governar o primeiro mandato: a reeleição, para ser espectador do segundo.
Monica De Bolle: As eleições nos EUA
Uma eventual vitória dos democratas nos EUA trará imensos desafios para o trumpismo de Bolsonaro
Esse artigo será publicado no dia seguinte do primeiro debate presidencial entre Trump e Biden. Portanto, escrevo sem poder dizer quem foi melhor ou pior, sem poder discorrer sobre eventuais gafes e mentiras, sem nada poder falar sobre o comportamento de cada um. Contudo, algo me parece quase certo nesses tempos em que a polarização não mais se dá no plano político, mas no plano das realidades: o debate pouca diferença fará nos resultados de novembro.
A polarização da realidade, tema de estudo recente a ser publicado no prestigiado periódico American Economic Review (ver Alesina, Alberto, Miano, Armando, e Stefanie Stantcheva (2020) “The Polarization of Reality”), está entre nós. Não mais se trata de posicionamentos políticos e/ou ideológicos distintos e dos juízos de valor a eles associados. Esse tipo de polarização foi atropelado por outro bem mais nefasto, aquele em que cada pessoa tem o seu mundo, a sua realidade. Para alguns indivíduos, a realidade é que não existe covid-19 – trata-se de uma grande conspiração do “Estado profundo” (“deep state”) para, bem, não se sabe articular muito bem para o quê. Parte dos que não acreditam na existência do vírus condenam o uso de máscaras e identificam nos democratas o maior perigo para a estabilidade norte-americana: “vão invadir os subúrbios!”; “vão roubar nossas casas!”; “armemo-nos contra a investida dos comunistas!”. Para ser honesta, o outro lado não é muito melhor. Vivo nos EUA, em Washington DC, uma bolha democrata. Republicanos são vistos como seres inferiores, de intelecto comprometido, vis e desalmados. Exagero um pouco, mas não muito.
Quando a polarização se dá no plano das ideias, ainda é possível ter a esperança de que consensos se formem. Afinal, boa parte das ideias têm algum tipo de convergência ou algum elemento em comum. Nesses casos, tais elos servem para trazer à mesa pontos de vista aparentemente inconciliáveis. Contudo, quando a polarização se dá na realidade que cada um vê como a verdadeira, não há possibilidade de consenso, convergência, ou qualquer tipo de trégua no embate permanente. Realidades distintas necessariamente colocam “o outro” como um alienígena, ser estranho que merece ser tratado com suprema desconfiança. Assim está a sociedade norte-americana. O Brasil está chegando lá com velocidade assustadora.
A polarização da realidade não permite que eleitores cruzem fronteiras, ainda que não gostem muito do candidato que representa melhor sua visão do universo – universo mesmo, não mundo. Por essa razão, o debate entre Trump e Biden não haverá de mexer muito nos votos de certa maneira já pré-determinados. O mesmo vale para a vultosa série de reportagens administrativas sobre as manobras de Trump para não pagar seu imposto de renda nos últimos vários anos. Para os democratas, essa é mais uma prova do que já decidiram a respeito da personalidade do atual presidente dos EUA. Para os republicanos, trata-se de nada mais do que mais uma caça às bruxas dos “progressistas”, a somar-se às investigações sobre o envolvimento de Trump com os russos e ao impeachment decidido pela Câmara e rejeitado no Senado.
Resta, portanto, observar a inédita convulsão política em torno das eleições de novembro. Haverá crise constitucional? Será que Trump vencerá na noite da apuração dos votos apenas para perder dias mais tarde após serem contados os votos por correio? E os votos por correio, serão eles usados por Trump para declarar fraude eleitoral? Será a Suprema Corte – que acaba de perder a grande Ruth Bader Ginsburg, afetuosamente RBG – incumbida de dar a palavra final sobre o vencedor das eleições? E será que até lá Trump terá conseguido emplacar sua juíza indicada, provocando reviravolta ideológica na Corte?
É impossível exagerar o grau de incerteza, de turbulência política e social, associados a essas eleições. O que dá para afirmar é que, sem sombra de dúvida, a vitória dos democratas, seja para a presidência dos Estados Unidos, seja na conquista da maioria no Congresso, seja em ambas, trará imensos desafios para o trumpismo de Jair Bolsonaro.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Bernard Appy: A não cumulatividade no IBS
Essa garantia depende de assegurar a recuperação integral e tempestiva dos créditos pelas empresas
Uma das características fundamentais de um bom Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) é a garantia plena da não cumulatividade. Essa garantia é obtida pela recuperação integral do crédito do imposto incidente nas aquisições de bens e serviços pelas empresas, bem como pela rápida devolução de eventuais saldos credores do imposto.
Na criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) previsto na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, que resultou de um trabalho desenvolvido pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), houve uma preocupação muito grande de assegurar a recuperação integral e tempestiva dos créditos pelas empresas. O CCiF entende que a recuperação dos créditos deve ser integral, sem qualquer restrição, exceto no caso de bens e serviços destinados ao uso pessoal de partes relacionadas (como sócios das empresas), para evitar fraudes decorrentes da contabilização de despesas pessoais como despesas da empresa. A regulamentação do IBS deve ser a mais objetiva possível na implementação desse dispositivo.
O CCiF também entende que é preciso dar garantia absoluta às empresas de que eventual saldo credor acumulado – no caso de um exportador ou de uma empresa que esteja realizando investimentos e não tenha débitos para compensar com os créditos acumulados – seja ressarcido em, no máximo, 60 dias (sendo possível a devolução em dias, para as empresas com um bom histórico).
A garantia de rápida devolução dos saldos credores depende de duas características do modelo que está sendo proposto pelo CCiF. A primeira é a arrecadação centralizada do IBS, por meio da Agência Tributária Nacional (ATN). Com o regime de arrecadação centralizada, não há disputa de recursos com os orçamentos dos entes da Federação, pois o montante correspondente ao saldo credor das empresas permanece na ATN, não sendo distribuído.
A segunda característica é a vinculação do crédito do IBS ao recolhimento do imposto devido na etapa anterior. Essa condição é fundamental, pois a ATN é apenas uma administradora de recursos de terceiros: assim como não pode transferir para a União, os Estados e os municípios recursos que não tenha recebido, também não tem como devolver às empresas que acumulam saldos credores um imposto que não foi recolhido. A vinculação do crédito ao recolhimento prévio do imposto tem outros efeitos positivos, como a inviabilização de fraudes via emissão de notas frias, que é um grande problema do sistema atual.
A proposta de vinculação do crédito do IBS ao recolhimento do imposto tem sido objeto de algumas críticas – a nosso ver infundadas, por não considerarem a operacionalização do modelo proposto (descrita em detalhe numa nota técnica disponível no site do CCiF). Por um lado, o modelo permite que, no caso de inadimplência do fornecedor no pagamento do IBS, o adquirente recolha o imposto devido (gerando crédito para si mesmo), recebendo um título de crédito extrajudicial contra o fornecedor, que pode ser compensado com pagamentos futuros. Cria-se, assim, uma grande flexibilidade para, pela via comercial, resolver o problema de eventual inadimplência do fornecedor.
Por outro lado, o próprio sistema irá informar aos potenciais adquirentes sobre eventuais atrasos no pagamento do imposto pelos fornecedores, permitindo que as empresas optem por não fazer negócios com fornecedores que não estejam em dia com o pagamento do IBS.
Por fim, a tendência no longo prazo é de que o sistema de cobrança do IBS convirja para um modelo de split payment, no qual, na liquidação da operação comercial, a parcela correspondente ao imposto é recolhida automaticamente à ATN. Nesse modelo, a empresa só não terá crédito se não tiver pago o seu fornecedor.
Em suma, o resultado do modelo proposto não é um aumento do risco para o adquirente, mas sim um enorme desestímulo à inadimplência por empresas que estejam no meio da cadeia produtiva. O resultado é uma alíquota mais baixa do IBS, que tende a beneficiar toda a sociedade.
*Diretor do CCiF
Adriana Fernandes: Propostas polêmicas para Renda Cidadã aumentam tensão
Governo mostrou pouca disposição para enfrentar a tarefa de passar a tesoura nos gastos para compensar despesas maiores com a transferência de renda aos mais pobres
Depois de tanto vaivém, o governo optou por duas medidas extremamente polêmicas para bancar o Renda Cidadã e pouca disposição para enfrentar a tarefa de passar a tesoura nos gastos para compensar despesas maiores com a transferência de renda aos mais pobres.
De um lado, o governo propõe criar um gasto permanente, o novo programa social, usando recursos do Fundeb, o fundo para educação que está fora do teto de gastos, a regra que proíbe que despesas cresçam em ritmo superior à inflação.
Essa tentativa já foi feita na votação do novo Fundeb e rejeitada por razões diversas: retira recursos que foram ampliados por votação estrondosa do Congresso e, na prática, “burla” o teto de gastos para arrumar recursos para a vitrine do presidente Jair Bolsonaro, o programa que vai substituir o auxílio emergencial dado na pandemia aos mais vulneráveis e o Bolsa Família.
A proposta de adiar o pagamento de parte dos precatórios é ainda mais crítica. Não à toa pouco depois do anúncio já está sendo chamada de “calote temporário”. O governo simplesmente propõe financiar um programa permanente com base em uma despesa judicial líquida e certa. A dívida não deixa de existir. Esse é o ponto que participantes do mercado financeiro já questionam.
A pergunta que foi feita à coluna: por que com tanta despesa para remanejar vão em cima de uma pagamento de uma dívida judicial líquida e certa?
Nas duas propostas, não há compromisso de ajuste, o que na prática é o motivo por trás da ideia da equipe econômica de insistir com a manutenção do teto.
Os líderes envolvidos chegaram a falar em medidas duras para financiar o Renda Cidadã, em conversas internas e fechadas à imprensa, promovidas por instituições financeiras. Por isso, a frustração com a proposta é o temor de agravamento da crise fiscal.
Criou-se uma expectativa de algo melhor do lado das despesas, que não chegou. A resposta é tensão. Do mercado, que quer o teto vivinho. Para quem defende mais recursos para a transferência de renda, nova constatação da perda de rumo.
Depois do anúncio de hoje, aumenta a desconfiança de que o fracasso do Renda Cidadã pode abrir as portas da flexibilização do teto e saída do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Tem gente que até desconfia que essa é uma estratégia já desenhada por líderes e não apenas resultado de falhas no desenho das medidas.
Para piorar, o governo não conseguiu acordo para emplacar o novo tributo sobre transações financeiras, a nova CPMF repaginada pela equipe econômica para desonerar a folha Até então, a tentativa do governo era fechar um acordo hoje para incluir a CPMF na proposta de reforma tributária.
Os estudos do ministro da Economia, Paulo Guedes, não convenceram os líderes dos partidos que apoiam o governo porque a rejeição é grande ao novo tributo. A espera de mais respostas do governo e dos líderes que tomaram a dianteira do anúncio.
Eliane Cantanhêde: Boiadas e boiadeiros
Onde corte no Fundeb, racismo, homofobia, queimadas e risco ao litoral vão cair? No STF
Quanto mais o presidente Jair Bolsonaro sobe nas pesquisas, mais as “boiadas” disparam e mais o Brasil anda para trás em princípios e em áreas estratégicas, sensíveis, que dizem respeito ao presente e ao futuro. O presidente e seus ministros parecem cada vez mais à vontade, desdenhando da opinião pública nacional e da perplexidade internacional.
O que dizer da Educação? Depois de tentar tirar de aposentados e pensionistas, o governo quer cortar dos precatórios e do Fundeb (que foi aprovado a duras penas, com o governo trabalhando contra) para pagar um novo Bolsa Família que Bolsonaro quer chamar de seu. Nada contra programas de distribuição de renda, mas à custa da Educação?
Bem, o Ministério da Economia descobriu que os ministros anteriores, Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub, estavam muito ocupados com ideologia, brigas internas e externas, e não sabiam o que fazer com as verbas, tanto que, apesar da pindaíba geral, sobrou dinheiro de um ano para outro. Como novo ministro, Milton Ribeiro nada mudou e o pobre MEC é um alvo apetitoso para Paulo Guedes agradar ao presidente.
Na entrevista ao Estadão, semana passada, Ribeiro admitiu sem constrangimento que o MEC continua não servindo para nada: nem para liderar a inclusão social via educação, nem para coordenar a volta às aulas com a aparente estabilidade da pandemia, nem para projetar um programa de internet e de computadores para mudar o destino de milhões de brasileirinhos das escolas públicas.
Então, para que serve? Para vigiar estudantes e professores de todos os níveis e implantar a ideologia de Bolsonaro e Ribeiro. Pastor presbiteriano, ele diz que “os jovens sem fé são zumbis existenciais” e que homossexuais são resultado de “famílias desajustadas”. Partindo de qualquer um já seria um horror, mas do ministro da Educação? Weintraub queria os ministros do Supremo na cadeia, Ribeiro quer catequizar os alunos. A Educação? Disso não se fala.
Após o questionamento na Justiça se há crime de homofobia na fala do ministro, já se emenda um outro, sobre crime de racismo num post da deputada Bia Kicis (PSL-DF), da tropa de choque bolsonarista no Congresso. Nele, ela sugere aos ex-ministros Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta, com a cara pintada de preto e cabelo afro, procurarem emprego no Magazine Luiza. Mandetta reagiu com uma profusão de adjetivos: “racista, nauseabunda, chula, pequena, inútil, abjeta, RACISTA!!!!” (assim em maiúsculas).
E as porteiras de Inpe, Ibama, ICMBio e Conama já foram escancaradas e não há governo estrangeiro, fundos internacionais, banqueiros, economistas, entidades que segurem todas as boiadas. A Secom do Planalto e o ministério de Ricardo Salles já tinham comparado – por erro? má-fé? – as queimadas de oito meses de 2020 com as de 12 meses dos anos anteriores para confirmar que a terra é plana. Ops! Desculpem. Para negar a destruição criminosa de amplas áreas de Pantanal e Amazônia. Ontem, o ataque veio do Conama.
Não à toa Bolsonaro enxugou e mudou o Conselho Nacional do Meio Ambiente, que agora tem maioria do… próprio governo. Com a mudança, foram derrubadas ontem três resoluções para, em vez de proteger o ambiente, favorecer o agronegócio e o setor imobiliário. As vítimas foram restingas e manguezais que, destruídos, jamais serão reconstruídos.
Todas essas boiadas, que definem a alma do governo, vão parar na Justiça. Partidos, entidades e cidadãos questionam o corte no Fundeb com objetivos políticos, a homofobia do ministro da Educação, o racismo da deputada, a (i)rresponsabilidade diante das queimadas, o risco de destruição do nosso lindo litoral. E a “nova CPMF” vem aí! É outra que vai cair no Supremo.
Carlos Melo: Antipolarização e novo centro para a disputa
No Brasil, os polos políticos capazes de atrair e agregar várias forças partidárias foram redefinidos em 2018. A “clássica” polarização PT/PSDB — que no país e na cidade de São Paulo, em particular, deu o tom da disputa por tanto tempo – tende a desaparecer nas eleições deste ano. Ao que tudo indica, um ciclo se encerrou dando origem a outro — que, talvez, também já esteja passando por novo processo de transmutação. A vida e a política seguem, como numa noite veloz.
Na eleição presidencial, a crise econômica e a Lava Jato fizeram com que o antipetismo – que nasceu junto com o partido — se expandisse. Com maior afinco e desespero, buscou força capaz de derrotar a até então forte legenda de Lula. O PSDB deixava, porém, de ser a aposta: exposto aos próprios escândalos e diluído no Centrão, os tucanos sucumbiram como alternativa. O vazio, contudo, abriu espaço para a aventura.
Favorecido por esse quadro, o bolsonarismo tomou corpo. (Era também beneficiado pela onda mundial de ressentimento e rancor contra a política e a democracia, originada nos indivíduos abandonados pela revolução tecnológica – os esquecidos, somente agora percebidos por Paulo Guedes. Como em vários cantos do planeta, aqui também o populismo se aproveitou das circunstâncias e se estabeleceu.
Nesses dois anos, o bolsonarismo vem se consolidando para parte da população, mas também se desgastando com outra. Com efeito, a demagogia populista radicaliza e fideliza seu público, mas não consegue dar resposta efetiva a problemas concretos. Por sua vez, o PT vem perdendo o viço, embora Lula mantenha forte lembrança no eleitorado.
São duas forças ainda importantes, mas a excitação constante que exigem tende à fadiga, revelando limites claros, impossíveis de se expandirem para além de suas tropas. Assim, improdutiva e cansativa, essa polarização pode, nesse período, ter-se desdobrado em duas outras forças: o antipetismo e o antibolsonarismo.
O petismo e bolsonarismo se combatem, se anulam e não somam. Já “os antis” criam intersecções, delineando espaço para “candidatos nem-nem” — que nem Bolsonaro, nem Lula. Havendo visão de futuro, programa e energia, um campo distinto do Centrão e não entendido como um centro anódino pode se apresentar como alternativa a polarização bolso-petista.
Estaria inaugurada uma antipolaridade agregadora de não petistas e não bolsonaristas? Pode ser. Sendo capaz romper a fortaleza de um dos polos, chegaria ao segundo turno contra o outro, tendendo a atrair o “voto útil” de quem ficou de fora. Mais uma vez: demandará propostas e posicionamento; ser “Centro”, por si só, não define ninguém. Mas, a lógica e as vantagens do “centro político”, assim como a racionalidade do antigo eleitor mediano, estariam assim reconstituídas. A história dirá.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Eliane Cantanhêde: Outubro efervescente
Eleição, economia, pandemia e o novo ministro terrivelmente amigo no STF
Outubro será agitado, com as campanhas eleitorais aprendendo a contornar a pandemia (que ainda mata mais de “dois Boeings” por dia), o governo e o Congresso convergindo para desoneração da folha de pagamentos compensada por um novo imposto e o presidente Jair Bolsonaro se divertindo com a aflição dos muitos candidatos à vaga de Celso de Mello no Supremo, porque ele já tem dois nomes no colete: Jorge Oliveira e André Mendonça.
Bolsonaro está no centro de toda essa efervescência, mexendo as peças sem se queimar e entrando no jogo apenas em caso, e na hora, da vitória. Só apoiará candidato para ganhar, só apoiará o novo imposto depois de Paulo Guedes e o Centrão garantirem o resultado e só vai anunciar o novo ministro do STF depois de ter sugado o possível dos candidatos frustrados.
Até aqui, ninguém deu bola para a eleição municipal e o interesse do eleitor continua caindo a cada pleito, mas a tendência é esquentar, com foco óbvio em São Paulo, pelo seu peso político e econômico, no Rio, pela chocante situação de governador e prefeito, e nos neófitos, como o próprio Wilson Witzel, que caíram de paraquedas pelo sopro do bolsonarismo. Elegerão seus candidatos?
Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos) conta com Bolsonaro para fugir da sina de sair na liderança e acabar fora até do segundo turno. O prefeito Bruno Covas (PSDB) precisa driblar a frustração pelo segundo lugar e evitar perda de votos para Márcio França (PSB). Jilmar Tatto empurra o PT para o balaio dos nanicos e para o apoio a Guilherme Boulos (PSOL), a novidade de 2020. No Rio, o prefeito Marcello Crivella (Republicanos) está inelegível. Conseguirá reverter a decisão no TSE e manter o apoio de Bolsonaro?
Na economia, Bolsonaro lavou as mãos: Paulo Guedes que se vire. Se articular apoio para a “nova CPMF”, não vai atrapalhar. Guedes recupera liderança e força, o governo comemora a troca dos novatos do PSL pelo trator Centrão e a pergunta que não quer calar é: como desonerar a folha, como Guedes quer, e encorpar o novo Bolsa Família, como Bolsonaro exige, sem furar o teto de gastos nem aumentar a carga tributária? A conta fecha?
Enquanto isso, Bolsonaro acompanha com prazer o rebuliço em torno da indicação para o Supremo, com as decisões do procurador-geral Augusto Aras sempre sob suspeita por algo que ele jura que não quer e que não vai acontecer, o juiz do Rio Marcelo Bretas repreendido por participar de atos políticos e o plenário do STJ em alvoroço, como sempre, diante de uma vaga na alta Corte.
O ministro “terrivelmente evangélico”, porém, afunila para Jorge Oliveira, advogado e policial militar sem credenciais jurídicas compatíveis com o Supremo, mas secretário-geral da Presidência e filho de grande amigo de Bolsonaro. E para André Mendonça, advogado, pastor presbiteriano, ex-advogado-geral da União e atual ministro da Justiça. Transformou a Justiça em órgão de defesa do presidente, mas ainda é bem aceito no STF.
Celso de Mello deixa a Corte em 13 de outubro, após 31 anos, à frente da investigação do presidente por intervenção na PF. Celso, decano que sai, determinou depoimento presencial para Bolsonaro. Marco Aurélio, o novo decano, jogou para o plenário virtual e defendeu depoimento por escrito. O lance seguinte pode ser tirar do virtual (votos por escrito) para o plenário real (ao vivo).
Logo, Bolsonaro vai trocar um ministro ostensivamente crítico por outro terrivelmente amigo e um decano adversário por outro nem tanto e, na presidência, entrou Luiz Fux com a expectativa de maior independência em relação ao Planalto do que Dias Toffoli. O que se sabia de Supremo não se sabe mais. Exemplo: e a prisão após segunda instância, que caiu por um único voto?
Vera Magalhães: A nova política caducou
Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados
A tira que ilustra esta coluna, do talentoso quadrinista brasileiro Pietro Soldi, é a mais perfeita tradução do que a autodenominada “nova política”, que nunca teve nada de novo e em menos de dois anos se encontra em avançado estado de necrose, legou ao País.
Brasileiros de Norte a Sul elegeram para o Executivo e o Legislativo vários espécimes de jumentos vendados, achando que revolucionariam a forma de fazer política. Mas o resultado é que estamos ensopados de café quente e sem muito sinal de que vamos conseguir reerguer a mesa que tombou e colar a louça que foi feita em cacos.
Olhemos a situação do Rio de Janeiro e de Santa Catarina. O primeiro vinha de uma sucessão de larápios que só não roubaram as pedras do calçadão de Copacabana. O segundo tinha alguns dos melhores indicadores econômicos do País e saúde fiscal relativamente boa.
Mas os eleitores dos dois Estados acharam por bem eleger completos desconhecidos, que entraram na política pela porta fácil do discurso anticorrupção, atrelados ao bolsonarismo e surfando na onda lavajatista.
Resultado: menos de dois anos depois, Wilson Witzel, cujo nome 90% dos fluminenses não sabiam nem pronunciar quando nele votaram, e Carlos Moisés, cuja foto até hoje eu não saberia reconhecer, estão a caminho do impeachment.
De Bolsonaro não é preciso falar. Já mencionei seu discurso na ONU, mais uma exibição que não deixou nada a dever à tirinha do Pietro.
E nos Parlamentos e na vida partidária, qual o saldo da tal nova política? Não muito superior. Há, sim, excelentes novos parlamentares, da esquerda à direita.
Os movimentos não partidários, como Agora, Livres, Renova BR e Acredito, aliás, contribuíram de forma mais significativa para isso que os partidos, pois enfrentaram a necessidade de formação desses jovens líderes.
Quanto às siglas, seguem perdidas na geleia geral ideológica e programática, inclusive as novas. Basta ver o episódio Novo versus Filipe Sabará. O candidato passou no tal processo seletivo, mas em seguida seu currículo acadêmico foi desmentido, se descobriu uma diferença de nada menos que R$ 3.985.000 em sua declaração de bens, e o barraco começou. Diante de tantas inconsistências, Sabará recorreu à seguinte explicação: a “ala esquerdista” (!) do Novo, representada por João Amoêdo (!!), o estaria perseguindo. Seria até engraçado, se não fosse patético. Dá-lhe coice com olhos vendados!
A divisão interna do Novo é mais um sinal claro de que não se mudam as práticas políticas apenas com slogans, sapatênis e ideias naive – como a de que não usar Fundo Partidário é sinal de virtude por si só.
Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados e de que legisladores têm mais a fazer que filminhos ridículos no TikTok ou Instagram.
Que 2020 comece a corrigir 2018 e que tiremos a venda do jumento e elejamos bons políticos para fazer política. Olha só que ideia disruptiva!
Adriana Fernandes: Xadrez econômico
Muitos senadores não querem nem saber de novo imposto, mesmo que seja repaginado com a desoneração da folha
A campanha do presidente Davi Alcolumbre pela sua reeleição na Presidência do Senado deve dar um nó no xadrez da pauta econômica do governo no Congresso. Melhor dizendo: na agenda do ministro da Economia, Paulo Guedes.
O ambiente é de negociação intensa pela reeleição justamente na véspera da apresentação do parecer do senador Márcio Bittar (MDB-AC) da PEC do pacto federativo, que surgirá com muitas “maldades”, como são chamadas as medidas impopulares que mais tarde viram “bode na sala” para serem descartadas pelos parlamentares.
A divulgação do parecer, que aconteceria na última terça-feira, foi adiada para a próxima semana depois que o presidente Jair Bolsonaro deu aval a Bittar para seguir com as medidas mais duras e incluí-las no seu parecer, como quer a equipe de Guedes.
Bolsonaro foi convencido pelos seus aliados que as propostas polêmicas de corte de gastos podem ficar no parecer porque não terão o seu carimbo, mas o do relator.
Se passar, passou. Se não passar, a derrota não será dele. Ao Senado, caberá a tarefa de retirar do texto os pontos que já avisaram de antemão que não passa. Tudo combinado.
O problema é que o corte de despesas que resultará dessa desidratação muito provavelmente será insuficiente para garantir o Renda Brasil, o novo programa social do governo, dentro dos limites restritos do teto de gastos.
Como o caminho é de difícil aprovação de medidas mais impopulares, muito senadores nos bastidores já falam abertamente que, se for necessário, estão dispostos a abrir espaço para excluir o programa do teto. Com valores bem definidos. Se tudo for bem explicado ao mercado, que dá sinais de estresse com os riscos fiscais e tem cobrado mais prêmio para financiar o Tesouro Nacional.
Alcolumbre já conta com o apoio do PT para a sua reeleição e essa semana partiu para o contra-ataque público ao rebater uma avaliação da consultoria da Casa contra a possibilidade da sua reeleição no cargo, em fevereiro de 2021. Ele busca aval do Supremo Tribunal Federal para sua tentativa de reeleição e enfrenta oposição de caciques antigos da Casa.
Nesse ambiente em que todos pisam em ovos e compromissos vão sendo assumidos, um movimento importante precisa ser observado: a apresentação no mesmo dia pelo líder do PT, senador Rogério Carvalho (SE), de uma PEC com a defesa de novas regras para o teto de gastos. A proposta teve 31 signatários de vários partidos, inclusive aliados do presidente Bolsonaro e o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO). Para uma PEC tramitar no Senado, é preciso pelo menos 27 senadores.
A proposta petista defende gastos emergenciais em 2021 e 2022 e, a partir de 2023, revogação do teto e metas de gastos diferenciados por áreas, de quatro em quatro anos. Alcolumbre também abriu o plenário do Senado nessa sexta-feira para o debate da proposta do PT, que considera que o Brasil está desalinhado em relação ao resto do mundo com o teto de gastos.
O que tem atraído os senadores é cobrança por mais recursos emergenciais para manter os 20 mil leitos abertos no SUS durante a pandemia e para o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), a linha de crédito com garantia do Tesouro para as empresas mais afetadas pela crise.
O movimento em si é mais importante do que a própria PEC da oposição, que dessa vez mudou de estratégia e já não fala da revogação do teto de gastos sem colocar nada do lugar. Outras propostas de mudanças no teto já tramitam, entre elas, a do senador e líder do MDB, Eduardo Braga (AM), que propõe a exclusão do programa social do limite de gastos.
A assinatura de tantos senadores não significa que a proposta pode avançar. É mais um sinal de que o Senado quer debater. À coluna, senadores, que não são da oposição e assinaram a PEC, dizem que querem discutir. A porta está aberta.
Muitos deles já avisaram ao governo que não querem nem saber também de novo imposto, mesmo que repaginado com a desoneração da folha de pagamentos. O xadrez está sendo jogado.
Bolívar Lamounier: Elogio do comedimento
Salta aos olhos que Bolsonaro não assimilou os conceitos e deveres da função pública
Em 2020, quer se reeleja ou não, Jair Bolsonaro provavelmente terá ainda à sua frente um país consumido por várias devastações, umas bem visíveis, outras quase invisíveis. Comecemos pelas devastações visíveis.
Falar da Amazônia é chover no molhado. Pensemos só em nossa incapacidade de efetivar as reformas sem as quais não retomaremos o crescimento econômico em bases sustentáveis. Em nosso calamitoso sistema de ensino, sobre o qual nenhuma proposta relevante de reforma veio a público nestes quase dois anos de governo. No disparate de um país que não consegue ajustar as contas do governo, mas insiste em se desenvolver com base no investimento público, e num governo que mantém o ministro Paulo Guedes como personagem figurativo. Num país corroído até a medula pela corrupção, que alimentava a esperança de reformar essa área de forma drástica, mas, em vez disso, assistiu à defenestração do ex-juiz Sergio Moro e a um tapete vermelho estendido na rampa do Planalto para o retorno da “velha política”.
Por último, mas não menos importante, uma palavra sobre nossa medíocre taxa de investimento, que nos mantém aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”. Aprisionados até onde a vista alcança, uma vez que uma renda anual per capita crescendo 2% ao ano não será dobrada em menos de 30 anos – o que ainda seria um resultado medíocre. Em tal quadro, nutrimos a ilusão de que dentro de mais alguns anos o nosso decantado “país do futuro” será um pouco melhor ou pelo menos igual a esse de que hoje dispomos, como se a possibilidade do retrocesso não existisse, a pior hipótese sendo a de ficarmos parados no tempo, sem sair do lugar.
Dediquei o parágrafo acima a focos bem visíveis de devastação, todos eles de conhecimento geral. Entre as devastações menos visíveis, a primeira a mencionar é, sem dúvida, o abandono da reforma política. Já nem falamos nela, como se o nosso sistema político fosse um primor de funcionalidade, como se as instituições, nos três Poderes, estivessem funcionando esplendidamente e como se a máquina do Estado estivesse pronta a responder ao primeiro impulso favorável ao crescimento da economia. O que se vê, infelizmente, é bem o contrário, e aqui vou me ater a um aspecto apenas da estratégia política de Jair Bolsonaro.
Nunca em nossa História tivemos tantos militares graduados no Executivo. Não estou sugerindo que isso seja ilegal, nem quero recorrer ao termo “cooptação”, sabidamente pejorativo. Mas, inegavelmente, o recrutamento para o Executivo de tantos oficiais militares não se harmoniza com o artigo 142 da Constituição de 1988, que define as Forças Armadas como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina”. Essa definição do status das Forças Armadas é o núcleo conceitual que as diferencia de uma força suscetível de partidarização ou de eventual devoção a um governo de índole caudilhesca. É óbvio que falo em tese, sem me referir a nenhuma conduta específica das Forças Armadas no atual governo. Contudo, no momento atual, expressar tal preocupação é normal e cabível, tendo em vista o clima de desvairada radicalização que possibilitou a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência e, igualmente importante, as atitudes por vezes desnorteadas que Sua Excelência assume.
Mesmo tendo passado 29 anos na Câmara dos Deputados e obtido expressiva votação no pleito presidencial, salta aos olhos que Jair Bolsonaro não assimilou na extensão devida os conceitos e deveres inerentes a toda função pública. Bem ao contrário, ele parece desconhecer a noção de “liturgia do cargo”; contraria (para não dizer sabota) de maneira frontal o trabalho dos Estados e municípios no combate à pandemia de covid-19, fomentando aglomerações e recusando-se a usar a máscara; procura influenciar a Polícia Federal, desconhecendo, ao que parece, que também ela é uma instituição de Estado; e muda de orientação política como quem troca de camisa, por exemplo, deixando de lado a “nova” e retornando à “velha” política.
Ainda mais preocupante, a meu juízo, é o manifesto desprezo do presidente da República pelo imperativo do comedimento na vida pública. A pessoa investida numa magistratura do Estado tem de compreender que não se pertence mais. O respeito devido aos cidadãos e ao país impõe-lhe a mais estrita observação desse preceito que denominamos comedimento, moderação, temperança, senso de proporção. Em seu ensaio Os Inimigos Íntimos da Democracia, o filósofo francês Tzvetan Todorov vai direto ao ponto: descomedir-se é o caminho mais rápido para reunir num único feixe os riscos objetivos a que toda democracia vez por outra se torna vulnerável. “Na Grécia antiga”, o filósofo prossegue, “os deuses puniam o orgulho dos homens que pretendessem ascender ao lugar deles, como se fossem onipotentes; entre os cristãos, o ser humano é sujeito desde o nascimento pelo pecado original, que limita severamente suas aspirações.”
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Marco Aurélio Nogueira: Sangrar sem esmorecer
Resistir significa antes de tudo não perder a trincheira do diálogo… Para unir as forças
Estamos carentes de uma explicação abrangente da sociedade atual.
Para desafios complexos uma teoria da complexidade é indispensável. Precisamos infletir sobre o todo, abraçá-lo. Mas os paradigmas vigentes são a hiperespecialização, de um lado, e o fanatismo negacionista, de outro. Ambas as vertentes desarmam o pensamento crítico, levando a que se vejam paisagens na neblina, pedaços imprecisos do real.
Parte importante da dificuldade se deve a estarmos numa megatransição, saindo da vida apoiada em instituições estáveis e em rotinas disciplinares bem estabelecidas – na família, na escola, no trabalho – para uma a vida mais líquida, veloz, instável, sobrecarregada de riscos e incertezas, na qual “tudo o que é sólido se dissolve no ar” em questão de dias.
Achar que éramos felizes antes é uma nostalgia paralisante. Não viveremos mais como nossos pais, se é que algum dia vivemos. Continuaremos a repetir alguns de seus hábitos e atitudes, a ser influenciados por sua convivência e por sua memória, mas o futuro seguirá outros caminhos.
A megatransição subverte o modo como trabalhamos e vivemos, como nos relacionamos, nos organizamos e fazemos política, como pensamos e estudamos. Inutiliza os mapas antigos, os discursos codificados, as práticas cristalizadas. Mas no dia a dia tendemos a buscar refúgio naquilo que conhecemos e terminamos por não saber em que terreno pisamos. Fugimos da realidade que não compreendemos. O negacionismo é parte disso, impulsionado pela ignorância anticientífica.
Explicações simplistas, “analógicas”, orientadas por doutrinas congeladas, colidem com a complexidade do real, mas nem por isso são abandonadas. Funcionam como fotos em preto e branco num ambiente multicolorido.
As dificuldades inerentes a essa transição – adaptação, insegurança, assimilação – combinam-se com crises desastrosas, que se interpenetram e ampliam a crise do modo de produção capitalista. A pandemia explicitou uma crise sanitária de vastas proporções. Há a crise do emprego e do trabalho, que desestrutura, desprotege e rouba identidades, embaralhando sindicatos e movimentos associativos. A crise climática e ambiental está aí, desafiadora. Há a crise da democracia representativa e dos partidos políticos, que também é uma crise da política. Há uma crise de paradigmas, que nos tira o foco da totalização e nos deixa com mais dificuldades de pensar, de escolher, de explicar o mundo.
No Brasil, o passado lateja forte. O País modernizou-se, mas não o suficiente para se soltar das estruturas tradicionais. Perdemos uma oportunidade durante o ciclo de ouro da social-democracia à brasileira, entre 1995 e 2010. “Passado”, aqui, é uma metáfora com múltiplos significados: a desigualdade, a miséria, a falta de saneamento, o desmatamento selvagem, o sistema escolar ruim, a economia de baixa produtividade, o racismo estrutural, o autoritarismo mal disfarçado, o Estado pouco eficiente, a escassez de estadistas e lideranças democráticas. Tudo isso sustenta o reacionarismo prevalecente.
Temos um governo que fracassa em termos de gestão, mas se apresenta como um porto seguro retórico que ilude e bloqueia o entendimento da realidade. Nega todas as crises, que, se não são por ele provocadas, têm nele um fator de propulsão. Seu plano é criar confusão permanente, dentro e fora do País, intoxicando a população com palavras de ordem grotescamente nacionalistas e assustando investidores.
Desgasta-se, assim, o que há de cultura democrática nos brasileiros, que são desestimulados de participar civicamente da vida coletiva. Uma imagem de País vai pelo ralo.
Viver em redes tem significado viver com mais dispersão e menos diálogo. A sociabilidade digital não conseguiu, até agora, expandir as interações democráticas. Desloca as pessoas para guetos autossuficientes, em que vicejam superficialidades, boatos e mentiras, em que cada um fixa sua bandeira à espera de aplausos. Os manipuladores deitam e rolam. Perde-se a motivação para dialogar com os diferentes. A política sangra. Viramos prisioneiros da nossa própria individualidade.
Será preciso um enorme esforço para reerguer o movimento liberal-social-democrático.
Protagonizamos uma incompletude: nossa democratização não se estabeleceu de fato, não se concluiu, por mais que tenhamos avançado. A sociedade não a digeriu, não a incorporou ao seu DNA. Jamais nos desgarramos das bases do retrocesso. A “Constituição cidadã”, uma conquista democrática, não chegou a ser propriamente assimilada pelos diversos interesses.
Não é só o governo retrógrado que perturba, nem somente o capitalismo, o desemprego e a desigualdade. Disputas estéreis dividem os democratas. Há muitos problemas em termos de valores, ideias e atitudes. Estamos sem perspectiva.
Lutar contra essa crise passa por dar murros em pontas de faca. Sangrar sem esmorecer. Resistir, hoje, significa antes de tudo não perder a trincheira do diálogo, da argumentação serena e generosa. Para reunir as forças.
*Professor titular de teoria política da Unesp