o estado de s paulo
Marcelo Godoy: Heleno chefia contra-ataque bolsonarista no meio ambiente e na diplomacia
Depois de defender ações contra o Congresso, o ministro do GSI agora concentra seus ataques aos críticos da política ambiental do governo
Caro leitor,
Depois de dois anos de governo, Jair Bolsonaro criou uma base no Congresso. Parece ter compreendido como lidar com o Supremo Tribunal Federal, depois de integrantes do bolsonarismo terem defendido um putsch, que seus expoentes designavam como "intervenção militar", para fechar o tribunal e o Parlamento, silenciar a oposição e defender as boquinhas no governo. Se o presidente pôs cera nos ouvidos para não ouvir o canto dos blogueiros inconformados, só o tempo dirá. Só o tempo dirá se trocou a uso da força pela força da cooptação de adversários.
Bolsonaro pode obter sua détente, mas não significa que tenha abandonado sua guerra fria. Como diz Spinoza em seu Tratado Político, "a paz não consiste na ausência da guerra, mas na união das almas, isto é, na concórdia". Esta o bolsonarismo parece ser incapaz de construir. A começar dentro do próprio governo, como mostram Paulo Guedes, Rogério Marinho, Sérgio Moro, Luiz Mandetta, Santos Cruz etc. O problema é anterior à paz armada com as outras instituições da República. Ele surge não apenas quando há desorganização e ausência de etiqueta no Planalto, mas também quando não se compreende a liberdade.
Bolsonaro já esbravejou em reuniões contra a falta de unidade de princípios e atropelos de ministros. Em governos organizados, somente o presidente da República manifesta-se sobre os mais variados temas. Mas alguns dos generais do Planalto parecem desconhecer a subordinação ao presidente ou acham suas estrelas mais reluzentes do que as do capitão. Isso já foi percebido por oficiais ouvidos pela coluna. Não se trata aqui apenas daquele que não pode ser demitido, por ser o vice-presidente da República.
Para esses militares, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, como assessor do presidente não deveria expressar opiniões sobre temas que não são de sua responsabilidade no governo, como o Meio Ambiente. Ou será que Ricardo Salles – goste-se ou não dele – não é o responsável pela área, ainda que sob a vigilância de outro general, Hamilton Mourão, e seu Conselho da Amazônia? Ora, qualquer general chamaria de desleal a ação de um hipotético comandante militar da Amazônia que resolvesse dar palpites públicos sobre o Comando Militar do Sul.
Por que então Heleno se comporta de forma diferente no governo? Por que deixou os padrões militares para trás para adotar os da política? Ou será que Heleno ocupará o papel de ideólogo de seu grupo, antes reservado a Olavo de Carvalho? Foi para o canal do YouTube de Eduardo Bolsonaro, o filho do presidente que acredita que sua propaganda substitui o jornalismo independente, que ministro do GSI resolveu dizer que o governo ainda não teve tempo para executar a sua política para a Amazônia. E as pessoas de bom senso podem imaginar o que isso significa, quando o general afirma que a floresta tropical suporta "maus tratos".
"Nós sabemos exatamente o que temos de fazer na Amazônia brasileira e no Pantanal, só que não houve tempo ainda de colocar em prática, de colocar gente para fazer isso", diz Heleno. Mas o governo não mudou normas e regulamentos na área, impediu a queima de máquinas de garimpeiros, passou quase dois anos afastando fiscais e punindo quem tentava coibir a desordem e foi acusado de leniência com madeireiros ilegais, garimpeiros, grileiros, enfim, com desmatadores e incendiários de toda ordem para pôr a culpa do que acontece na floresta e no pantanal em ONGs, índios e caboclos? Quem planta ideologia colhe incêndios.
Mas não é isso o que pensa Heleno. Ele prefere pôr a culpa nos governos da Nova República, os tais 40 anos de intervalo entre o reino dos militares e a redenção bolsonarista. O sorridente Heleno se transforma no Bandarra do bolsonarismo, levando aos seus compatriotas a miragem de um Quinto Império. Em vez de d. Sebastião, oferece ao povo a figura de Jair Bolsonaro. Diz o ministro: "Nós temos 80% da cobertura florestal da Amazônia preservada. A Europa tinha 7%, hoje tem 0,1%. Mas agora ganharam a condição de nos criticar diariamente, nós somos os 'grandes vilões' do meio ambiente no mundo."
Às ameaças dos anos 1970, o Movimento Comunista Internacional e as ONGs a serviço de poderes estrangeiros, Heleno acrescenta potências europeias que cobiçam nossas riquezas. O Bandarra do governo, que já foi o tradutor-mór de Bolsonaro, adverte que a Amazônia é "o destino manifesto do Brasil" e afirma que "integrar a região é a prioridade nacional". A professora Adriana Barreto de Souza, da Universidade Federal Rural do Rio, mostra em A Defesa Militar da Amazônia, entre história e memória, como a defesa da região se articula com a batalha de Guararapes nas representações militares. E como a doutrina da resistência ao agressor externo vincula a luta contra o invasor holandês ao presente da floresta.
É o passado que não passa na floresta. Heleno ainda afirma: "Agora, gente fora do Brasil que não tem moral para nos criticar, que acabou com suas florestas, criticar com a veemência que critica, querer nos colocar como vilões do meio ambiente, não dá para aceitar". E conclui, reclamando da imprensa, pois “notícias ruins trazem prejuízo”. Ou seja: culpa o carteiro pelo aviso de cobrança. Por fim, diz que pretende convidar embaixadores estrangeiros para sobrevoar a Amazônia e, assim, pararem de "falar bobagens". Eis o que o Brasil precisaria saber...
Há duas semanas, Heleno defendeu sanções contra produtos da Alemanha e da Suécia em caso de boicote a produtos brasileiros. Depois, disse que não queria citar países, pois poderia ser injusto e até causar um problema diplomático. Ainda bem que se tratava apenas de entrevista para uma rádio e, certamente, nenhum representante desses países escuta o que o ministro diz a jornalistas. Por fim, se Salles pode ser tratorado, por que Ernesto Araújo iria reclamar sobre os pitacos de Heleno na diplomacia brasileira? Por achar que os defensores do meio ambiente eram gente mal-intencionada, o governo teve de fazer as Operações Verde Brasil 1 e 2.
Para ser justo, Heleno não é o único oficial general a pensar assim. Um importante brigadeiro consultado pela coluna sobre as declarações do ministro e suas consequências para a diplomacia e a economia brasileiras, disse: "Acho muito mimimi por parte de países, ONG’s , intelectuais e artistas estrangeiros sobre um assunto interno do Brasil. Isso é antigo e extremamente suspeito. A soberania brasileira tem que ser respeitada. Nenhum desses organismos tem que se intrometer nisso. Como brasileiro de bem, é o que penso!" Do jeito que o governo vai, alguém ainda vai sugerir a prisão de índios e caboclos para, enfim, pacificar a floresta.
O Estado de S. Paulo: Doença de Trump interrompe campanha em momento chave para o republicano
Atrás de Joe Biden nas pesquisas, campanha do atual presidente esperava reforçar aparições públicas na reta final
Por Philip Rucker, Josh Dawsey e Annie Linskey, The Washington Post, O Estado de S.Paulo
Para a campanha de reeleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, outubro deveria ser o mês da reviravolta. Depois de ficar atrás do candidato democrata Joe Biden durante todo o ano, Trump pensou que a semana passada seria o momento chave para garantir seu segundo mandato, desqualificando seu oponente durante o primeiro debate para expandir sua coalizão de eleitores, levantando mais dinheiro e organizando comícios maiores.
Não funcionou da maneira que ele imaginou.
Os últimos sete dias foram uma sequência de contratempos. A revelação no The New York Times de que Trump pagou pouco ou nenhum imposto de renda federal nos últimos anos; um desempenho beligerante no debate - que pode ter afastado muitos eleitores -; a prisão de seu gerente de campanha recentemente rebaixado na Flórida; e, finalmente, a hospitalização do presidente por covid-19 por causa de um surto do novo coronavírus na Casa Branca, depois dele ter minimizado a pandemia e zombado das diretrizes de saúde pública.
Ao mesmo tempo, a vantagem financeira de Biden permitiu que o democrata dominasse as ondas de rádio da televisão, e algumas pesquisas recentes mostram que sua vantagem sobre Trump se mantém estável ou até cresce.
Apesar dos prognósticos otimistas do médico de Trump no fim de semana, a doença do presidente paralisou sua campanha a apenas quatro semanas da eleição, e com os eleitores já votando antecipadamente em muitos Estados.
"Isso efetivamente congela a campanha em um ponto em que o presidente está em desvantagem", disse o pesquisador Neil Newhouse, que não trabalha para a campanha de Trump, mas aconselha muitos outros candidatos republicanos. "Este é o período de tempo que esperávamos preencher a lacuna e isso o torna ainda mais desafiador."
Os assessores de Trump reconhecem que a doença do presidente não ajudou porque chamou a atenção nacional para a forma como seu governo lidou com a pandemia. Eles também dizem que o fato de o presidente estar hospitalizado prejudica o que ele vê como seu principal atributo sobre Biden: sua aparência mais forte e resistente em comparação a Biden.
"Sempre que a conversa é sobre coronavírus, não é útil para nós", disse um alto funcionário do governo, que, como alguns outros entrevistados para esta matéria, falou sob a condição de anonimato.
Biden procurou chamar a atenção para a pandemia e apresentar um contraste na liderança. Por exemplo, ele se comprometeu a divulgar os resultados de todos os seus testes de coronavírus, um contraste com a falta de transparência em torno dos resultados dos testes de Trump e do histórico médico, tanto recentes quanto passados.
Uma conversa: Luciano Huck & Rutger Bregman
Jovem ativista e historiador holandês defende que “preguiça” seja mais taxada do que trabalho e que pobreza seja resolvida dando dinheiro às pessoas
Texto: Luciano Huck, especial para o Estado
Sei que sou um privilegiado, sei que sou visto assim. Homem, branco e nascido numa família de classe média de professores universitários --num país em que ser mulher, negro ou pobre já impõe obstáculos às vezes intransponíveis, cresci dentro de uma redoma social, estudando em bons colégios, protegido por meus pais e rodeado pelo carinho dos meus avós.
Mas, ali mesmo, ouvia as histórias de meu avô Maurício – que não eram exatamente as de um privilegiado. Na primeira metade dos anos 1930 ele vivia, em Grajewo, uma cidadezinha da Polônia com cerca de 2 mil habitantes. Era um adolescente judeu num mundo de ameaças. Atos corriqueiros, como andar pela vizinhança, traziam grandes perigos.
Meu avô sofreu violências e humilhações inúmeras vezes nos trajetos de casa para a escola. Até o dia que abriu a janela para deixar o sol entrar e viu uma oportunidade. Dela vislumbrava todo o centro de Grajewo, um quadrilátero em que as edificações de madeira, típicas dos bairros judaicos daquela época, ficavam todas coladas umas nas outras. Ele se apoiou no parapeito e dirigiu os olhos para aquela paisagem de telhados emendados uns nos outros, como retalhos de uma colcha. Estava bem ali, na sua frente, a solução. Poderia simplesmente caminhar pelo topo das casas.
A vida na dificuldade e a solução criativa para escapar dela formam uma impressão de infância que não me larga nunca, por melhor que estejam as coisas.
Profissionalmente, tive a liberdade de trilhar meu próprio caminho, a oportunidade de encontrar cedo a minha profissão e a sorte de ter podido ganhar dinheiro com aquilo que amo fazer. Quando a pandemia nos atingiu, eu tive imenso privilégio de poder parar o trabalho, me isolar em casa e me dedicar àquilo que eu tenho de mais precioso: a minha família. Foram quatro meses vivendo da porta para dentro. Todos agradecendo a cada dia por estarmos vivos e com saúde.
Mas vinha sempre o exemplo de meu avô Maurício. Havia muita angústia com aquilo que se passava da porta para fora, no Brasil e no mundo. Por isso busquei formas de “pular a janela e caminhar sobre as casas”. Usei minhas plataformas pessoais para divulgar mensagens responsáveis sobre a gravidade da doença. Amplifiquei a voz de quem não estava sendo ouvido. Articulei muitas iniciativas do setor privado de resposta social à pandemia. Fiz a ponte com favelas e comunidades carentes para a distribuição de recursos de emergência. E sigo tentando trazer alguma luz para o debate pós-pandemia por meio do diálogo com pensadores de vanguarda que respeito e admiro. E foi assim que nasceu esta série de conversas publicadas no Estadão.
Por aqui jé tive o privilégio de ser atendido por Yuval Harari, Esther Duflo, Michael Sandel, Tom Friedman, Thomas Piketty e tantos outros iluminadores. Sempre pensando em criar um caminho, passar dos problemas para as soluções, usando meus privilégios para tentar achar uma janela para o Brasil melhorar, buscar caminhos disruptivos para problemas que às vezes podem até parecer insolúveis.
Na conversa de hoje optei por um jovem muito talentoso e com ideias provocativas e pensamentos fora da caixa. Autor e historiador holandês, Rutner Bregman faz parte de uma nova onda de ativistas, pensadores e políticos, que inclui Alexandria Ocasio-Cortez, a nova congressista democrata de 29 anos, e Greta Thunberg, a manifestante climática de 16 anos, cujas alternativas radicais têm angariariado aceitação mundo afora.
Bregman tem 32 anos. Cresceu nas décadas de ambos os lados do milênio, nas quais grandes batalhas ideológicas eram consideradas uma coisa do passado.
Li seu último livro – Utopia Para Realistas – durante meu isolamento. Uma visão idealista que muitos descartariam como pura fantasia, mas faz pensar.
VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :
- Yuval Harari
- Michael Sandel
- Nandan Nilekani
- Esther Duflo
- Thomas Friedman
- Peter Diamandis
- Scott Galloway
- Thomas Piketty
Luciano Huck: Você é parte de uma nova legião de pensadores ativistas. Tem 32 anos e já está guiando importantes tópicos do debate público ao redor do mundo. Jovens como você, Alexandria Ocasio-Cortez, do Congresso americano, e Greta Thunberg são iluminadores de uma nova utopia. O Brasil é um país em que praticamente não há mobilidade social. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), demora nove gerações para que um brasileiro que nasceu em uma família pobre alcance a média da classe média. Em outras palavras, as pessoas aqui não têm nem sequer o direito de sonhar. O que dizer a elas? Há uma utopia possível para esta geração?
Rutger Bregman: Devemos começar reconhecendo que todo marco histórico da civilização em algum momento foi uma fantasia utópica. Quando pensamos na abolição da escravidão, na ascensão da democracia, no nascimento do Estado do bem-estar social... tudo isso começou com pessoas que, no princípio, foram descartadas e consideradas loucas, irrealistas, irracionais. Com pessoas que não foram levadas a sério. No entanto, em determinado momento, a ideia da mudança conquistou a maioria. É nisso que eu me interesso como historiador. Como é possível que ideias em princípio bizarras ou mesmo ridículas se desloquem para a corrente principal e acabem mudando a história do mundo? E nós estamos vendo isso acontecer.
Luciano Huck: Seu livro mais recente se dispõe a discutir como construir um mundo melhor usando a utopia como importante ferramenta, com pensamentos arrojados e ideias inovadoras. O que mudou na sua visão depois da pandemia?
Rutger Bregman: Nos últimos 40 anos, vivemos a era neoliberal. O neoliberalismo é uma ideologia que nasceu em meados dos anos 50 com um grupo de pensadores muito importantes, incluindo os economistas Milton Friedman, americano, e Friedrich Von Hayek, austríaco. Eles acreditavam que o mercado poderia resolver tudo, que as empresas e negócios poderiam salvar tudo desde que o governo saísse da frente e nós abolíssemos todas as regras, diminuíssemos os impostos, etc. A desigualdade não seria um problema – desde que deixássemos os negócios livres, poderíamos resolver qualquer coisa. Isso teve uma influência imensa, principalmente após os anos 70 e 80, quando Ronald Reagan foi eleito nos EUA e a Margaret Thatcher foi eleita no Reino Unido. Eu nasci em 1988, um ano antes da queda do Muro de Berlim, e, especialmente depois da queda, as pessoas tinham essa ideia de que havíamos chegado ao “fim da história”, de que o comunismo tinha perdido e o capitalismo tinha vencido, de que esse modelo de capitalismo democrático era tudo o que restava e não havia mais nenhum grande problema a se resolver. Obviamente é muito difícil de acreditar nisso em 2020. Nós vimos o Brexit, a eleição de Donald Trump, vimos a ascensão de líderes autoritários pelo mundo, como Modi na Índia e Jair Bolsonaro no Brasil, vimos uma pandemia, a covid-19, mudar completamente nosso mundo.
A era neoliberal está acabando. Nós estamos caminhando para uma nova era. A era antiga girava em torno dos valores da competição e do individualismo, da noção de que as pessoas são fundamentalmente egoístas. Mas agora nós estamos caminhando para algo diferente, que pode ser muito pior, mas também pode ser muito melhor. Eu não sei se você viu, mas em abril deste ano o Financial Times, o principal jornal de negócios do mundo, um jornal para as pessoas ricas do mundo, publicou um artigo de seu conselho editorial dizendo que precisamos “reverter a direção das políticas dos últimos 40 anos” e pensar em aumentar os impostos dos ricos, dar ao governo um papel mais ativo, ter políticas mais arrojadas para estimular inovação, combater a mudança climática e erradicar a pobreza. Não estou dizendo que isso vai acontecer, mas acho que existe a esperança. Essas ideias eram antes totalmente descartadas por serem ridículas e bizarras, mas agora são as ideias principais. Acho que isso é um indício esperançoso.
“Em um país que quer se desenvolver, o combate a pobreza não é bom apenas para nossa consciência, mas também para o nosso bolso.”Luciano Huck
Luciano Huck: Nos seus trabalhos, você lembra que, nos últimos 200 anos, a população mundial tornou-se mais rica, bem nutrida e saudável. Que 84% da população mundial vivia na extrema pobreza em 1820, e que hoje essa parcela é menor do que 10%. Você pode falar um pouco sobre isso e como você enxerga o Brasil, um país com tantos pobres e miseráveis, nessa equação?
Rutger Bregman: Nós vivemos um momento muito paradoxal. Estamos na melhor de todas as épocas, mas talvez também estejamos na pior de todas. Por um lado é inegável que fizemos avanços extraordinários nos últimos 30, 40 anos. Se observarmos o mundo, a expectativa de vida aumentou, a extrema pobreza diminuiu, as pessoas são mais saudáveis, têm mais dinheiro, são mais ricas do que nunca. É um fato. Agora, você recentemente conversou com Thomas Piketty, o economista francês, certo? Ele aponta que a desigualdade também aumentou bastante, e isso também é um fato.
A desigualdade é um veneno para a sociedade. Ela separa as pessoas, envenena as democracias, destrói a sociedade civil. Há alguns países ricos ou de renda média que têm um grau incrivelmente alto de desigualdade. E esse é o caso específico do Brasil. Se existe um lugar em que as pessoas deviam falar muito de impostos, esse lugar é o Brasil. É onde você precisa dessa redistribuição massiva dos bens e da renda. Não estou dizendo que devemos migrar para uma sociedade comunista, onde todos têm a mesma quantidade de bens. Isso não vai funcionar. Mas você tem que impor um limite para a desigualdade. Porque, do contrário, você não consegue ter uma democracia efetiva e saudável. Chega um ponto em que você só distancia tudo, as coisas não funcionam mais. Nesse ponto você começa a ver as pessoas mais ricas comprando eleições, elas conseguem fazer o que quiserem, surgem dinastias, isso é muito louco. Outra coisa que também é bastante preocupante é o que estamos fazendo com o meio ambiente. Tenho 32 anos. Durante a minha vida foi emitido mais da metade de toda a emissão de gases da era industrial desde 1750. Em uma geração nós criamos a pior parte do problema, e agora nós temos uma geração para resolver. Então é uma época muito estranha para se estar. Por um lado, tivemos um progresso enorme, mas, por outro. parece que estamos dançando sobre um vulcão sem a certeza de que o futuro será tão iluminado.
Luciano Huck: Mas você acha que, depois de tudo que estamos passando, o mundo vai levar mais a sério os avisos da ciência sobre as ameaças climáticas e as suas consequências para a vida na Terra?
Rutger Bregman: As crises fazem isso. As crises te fazem perceber coisas que você sempre soube, mas que, por algum motivo, esqueceu. Um dos momentos que eu achei mais interessantes na pandemia foi nas primeiras semanas, quando os governos ao redor do mundo estavam definindo as listas dos chamados trabalhadores essenciais, que não podiam parar. Eu achei isso ótimo. Porque você olha para essas listas e descobre quais são os trabalhos realmente importantes na sociedade. Nessas listas estavam enfermeiras, coletores de lixo, professores... Um momento como esse te faz perguntar quem são os verdadeiros geradores de riqueza na nossa economia. Será que é verdade que toda a riqueza é gerada no topo e goteja para baixo? Ou será que a maior parte da riqueza é gerada embaixo, pelas pessoas que realizam os trabalhos de verdade?
“Todo marco histórico da civilização começou com uma utopia, com uma ideia considerada irracional”Rutger Bregman
Luciano Huck: Você assistiu esse novo documentário na Netflix, Dilema das Redes? Ele faz importantes alertas. Mostra que são jovens que programam as redes sociais que estão intensamente influenciando e pautando o mundo. São eles também que dominam os algoritmos mais poderosos da internet. Em sua enorme maioria, porém, eles estão pouco conectados aos problemas da vida real, do debate público e político.
Rutger Bregman: Tem uma citação ótima de alguém que trabalhou muito tempo no Facebook: “As melhores cabeças da minha geração estão pensando em como fazer as pessoas clicarem em anúncios”. Você tem essas pessoas muito inteligentes que estudaram nas melhores universidades, e nós pagamos caro pela educação brilhante deles, mas então eles se formam e vão trabalhar nesses empregos estúpidos. Eles fazem isso por 20 anos, ficam muito ricos e daí têm uma crise da meia idade. Ficam completamente deprimidos porque a alma deles foi destruída. E então eles decidem que querem se tornar professores... Ué, por que não fizeram isso lá atrás? É algo muito estranho. Dentro disso que nós chamamos de economia do conhecimento, tem muito conhecimento desnecessário. Talvez precisemos voltar para a escola e pensar no que estávamos fazendo antes de alguém dizer que tínhamos que ganhar a vida.
Luciano Huck: Reduzir desigualdades, gerar oportunidades e mobilidade social sem ser um jogo de soma-zero. Quanto mais eu mergulho nas ideias mais modernas de políticas públicas, mais eu acredito que seja possível. Na minha opinião, esse devia ser o maior legado da nossa geração. O que me preocupa são os recursos humanos, as melhores sinapses se dedicando a servir a um propósito, o que não acontece hoje. Ainda prevalece o velho cada um por si. Mesmo se reunirmos todos os filantropos do Brasil, eles não seriam capaz de mover o medidor das desigualdade. Só o Estado tem esse poder. E o Estado é gerido pela política. Por isso nós precisamos de bons políticos, precisamos formar novas lideranças. Como você vê essa necessidade de novas lideranças ocuparem os espaços da política?
Rutger Bregman: Primeiro eu quero dizer algo sobre a filantropia. Eu não sou contra a filantropia. Se as pessoas são ricas e querem dar dinheiro para boas causas, isso é ótimo. O que eu sou contra é quando as pessoas ricas dizem que não precisam pagar impostos porque já estão dando dinheiro para as causas. A filantropia é usada como uma distração: as pessoas fazem um projeto qualquer para ajudar a educação, vão nos seus iates particulares para algum país africano, tiram um monte de fotos para mostrar que estão amparando as pessoas de lá e, ao mesmo tempo, evadem seus impostos. É isso que eu sou contra. Primeiro pague seus impostos, depois você me conta dos seus planos de salvar o mundo.
Sobre as lideranças e os políticos, eu, na verdade, tendo a focar em outras coisas, pois acho que os políticos estão quase sempre no fim da fila – quando todos já estão convencidos de que precisamos ir em outra direção, só aí eles percebem. Então o zeitgeist (espírito da época) tem de mudar primeiro. É só depois do trabalho do ativismo de mudar o mundo, de mudar as cabeças das pessoas, de fazer a coisa acontecer, que os políticos vão pensar “olha posso ganhar votos com isso”.
Estou animado com a ideia de dar a todos uma renda básica, erradicar completamente a pobreza, e de dar a todo mundo um pouco de capital de risco para que as pessoas possam ter as próprias escolhas na vida. Há dez anos, essa era uma ideia completamente descartada. Mas houve muita pressão de ativistas, as pessoas têm escrito sobre isso, têm pensado sobre isso, têm falado sobre isso, e só agora os políticos e os legisladores estão se interessando. Mas essas coisas nunca começam com eles; elas sempre começam nas ruas ou em lugares onde só tem café ruim e pessoas com cabelos compridos que parecem anarquistas e são meio fedidas... hahaha.
“O poder de dizer não é a liberdade mais importante que uma pessoa pode ter”Rutger Bregman
Luciano Huck: Hoje o Brasil é um país momentaneamente anabolizado, da popularidade do presidente aos números do comércio, pelo impacto do programa emergencial de transferência de renda que o Congresso aprovou durante a pandemia. Programa necessário, é importante frisar, que evitou nosso caos social. Mas um programa econômico e fiscalmente inviável em condições normais de temperatura e pressão para a realidade brasileira. A menos que seja um programa bem planejado, bem executado, bem fundamentado. Seu trabalho discute e aprofunda a questão da renda mínima. Qual sua avaliação sobre esses programas de emergência pelo mundo?
Rutger Bregman: Há esse debate antiquado entre pessoas de direita e de esquerda, no qual as pessoas de esquerda dizem “nós precisamos ajudar os pobres, dar dinheiro a eles” e as pessoas à direita dizem “não devemos fazer isso, pois isso torna as pessoas dependentes e preguiçosas e nós não podemos bancar tudo isso”. Esse é o debate-padrão que geralmente vemos na política. Acho que devemos ir além disso. A renda básica, na verdade, é um investimento que paga a si mesmo. Se você é um empreendedor, você obviamente sabe que, para ficar rico no futuro, você deve começar a fazer investimentos agora. Nós temos muitas evidências científicas de que, uma vez que você dá às pessoas os meios para tomarem as próprias decisões na vida, pouquíssimas delas desperdiçam dinheiro. A maioria dos pobres gasta seu dinheiro em moradia, educação, roupas, nas necessidades básicas. E então você vê as crianças indo melhor na escola, o custo da assistência médica diminui, o crime diminui. Se uma criança vai melhor na escola, ela vai conseguir empregos melhores; e, se ela tem um emprego melhor, ela paga mais impostos. Logo, isso é um investimento que te dá muito retorno. Se o crime diminui, você gasta menos com a polícia e com o sistema judiciário. A assistência médica é extremamente cara, imagine se o gasto com ela diminui? Você vai gastar menos com médicos e, além disso, se as pessoas são mais saudáveis, elas podem trabalhar por mais tempo e pagar impostos por mais tempo.
Se você se aprofundar nisso, você verá que a pobreza é o verdadeiro problema. Por isso, a renda básica não é algo de direita ou de esquerda, é simplesmente avançar. E, na história, temos pensadores e economistas mais identificados com a direita que são a favor de programas como esse, porque é uma ideia realista e racional com a qual todos vão se beneficiar.
Luciano Huck: Ainda no tema da erradicação da pobreza extrema, você enxerga mais eficiência nos programas de transferência direta de recursos ou nos programas de benefícios sociais? Por exemplo para a população em situação de rua, você acredita mais em dinheiro no bolso para a pessoa alugar um lugar para morar ou em albergues de acolhimento com serviços sociais?
Rutger Bregman: Se você ver uma pessoa desabrigada na rua, essa pessoa, em outro mundo, poderia ser sua advogada, poderia ser sua encanadora, poderia ser a sua professora, poderia ser a sua enfermeira. Toda pessoa desabrigada é um desperdício inacreditável de capital humano. Então, mesmo que você não tenha um coração, você ainda tem uma carteira. Nós deveríamos ser mais realistas e pragmáticos sobre todas essas coisas. O que é a pobreza? Pobreza é a falta de dinheiro. Como você resolve isso? Você dá dinheiro às pessoas. Isso funciona? Sim, temos muitas evidências disso. Podemos pagar por isso? Sim, nós podemos, porque não fazer nada a respeito da pobreza é muito mais caro. Os países com mais pobreza são prósperos, estão indo bem? Não, claro que não. Quais são os países mais inovadores, com os maiores índices de desenvolvimento humano? Olhe para a Escandinávia, por exemplo, onde todos têm direito a um forte Estado de bem-estar social e têm assistências de educação e de saúde. E isso não é só a coisa certa a se fazer, é porque te fornece uma sociedade mais eficiente e civilizada, onde todos se beneficiam, incluindo os ricos.
Luciano Huck: Estou há mais de 20 anos rodando meu país, entrando na casa das pessoas, ouvindo, conversando e contando sua histórias na TV. O que me trouxe ao debate público é meu enorme incômodo com nossas abissais desigualdades. Na minha última conversa neste mesmo ‘Estadão’ com Thomas Piketty, ele me disse que o Brasil não se desenvolverá enquanto não endereçar suas desigualdades – e eu concordo. Em um país que quer se desenvolver, o combate à pobreza não é bom apenas para nossa consciência, mas também para o nosso bolso.
Rutger Bregman: Observando a história e o século 20, vemos que o melhor período foi dos anos 50 até os anos 70 para os países europeus e para os EUA. Na França, eles chamam de “Trente Glorieuses”, os 30 anos gloriosos, com o nível mais alto de crescimento econômico, mais inovação, invenções pioneiras, tudo estava melhorando radical e rapidamente. Além disso, se você analisar, esse foi o período com menos desigualdade, foi quando havia altos impostos para os ricos. Acho que deveríamos ter impostos baixos para os que trabalham e impostos altos para rendas como aluguel, rent-seeking, fortunas, heranças, etc. Eu costumo falar de imposto sobre a preguiça: a preguiça deveria ser taxada e o trabalho não deveria ser tão taxado. Essa é a mudança de que nós precisamos e isso é exatamente o que vimos nos anos 50 e 60. Eu acho que a história nos ensina que a sociedade poderia funcionar muito melhor assim.
Como eu disse, nos anos 70 nós entramos na era neoliberal, que foi uma era bastante decepcionante. Alguém poderá falar da evolução tecnológica, de coisas como a internet, a telefonia móvel, etc. Mas é importante lembrar que a maioria dessas inovações foi financiada com impostos, com a ajuda do governo. Tem uma economista brilhante, Mariana Mazzucato. Ela escreveu um livro chamado O Estado Empreendedor, você vai gostar dele. Ela mostra que em cada lasca de tecnologia que faz do iPhone um smartphone, em vez de um stupidphone, a tecnologia móvel, o GPS, a bateria, tudo o que faz dele um aparelho tão bom, foi inventado por pesquisadores que estavam na folha de pagamento do governo. O que a Apple fez foi pegar essas inovações e criar um belo produto com elas, o que é ótimo, mas a Apple não teria feito isso sem todas essas inovações financiadas pelo dinheiro público. E agora o que acontece? A Apple não paga tributos, está evadindo os impostos com a ajuda de paraísos fiscais, como a Holanda, onde eu moro. Isso não deveria ser assim. É claro que nós precisamos de empresas criando bons produtos, mas elas precisam pagar seus impostos para que nós possamos financiar a próxima rodada de inovações fundamentais e, com isso, criar novos bons produtos, certo?
Luciano Huck: Passei alguns dias das minhas últimas férias em um lugar chamado Preá, no Estado do Ceará, nordeste do Brasil. Um lugar paradisíaco, que está se desenvolvendo por causa das fortes correntes de vento que tornaram o local um dos melhores pontos do planeta para a prática do kite surfe. Mas hoje, se uma grande indústria petroquímica se instalasse no local, apesar de afetar muito negativamente o meio ambiente, o PIB local cresceria barbaramente. Como você enxerga as métricas modernas de aferição de riqueza e desenvolvimento?
Rutger Bregman: Quando você vê os noticiários, você escuta bastante sobre isso, sobre a importância do crescimento econômico, que o crescimento econômico é a coisa mais importante do mundo. Nós devemos ser um pouco mais críticos quando os jornalistas e os políticos dizem isso. A questão é crescimento do quê? O crescimento pode ser uma coisa maravilhosa. Se as flores crescem, isso é ótimo. Se nossos filhos crescem, isso é ótimo. Mas se um câncer cresce, isso não é tão bom. Então, pensando no PIB, porque é disso que falamos quando tratamos de crescimento econômico, ele não mede coisas muito boas. Se a poluição aumenta, empresas ganham muito dinheiro com isso e o PIB aumenta, mas toda essa poluição tem de ser limpa, alguém tem de fazer algo a respeito, isso também custa dinheiro. Também existe uma grande quantidade de trabalhos importantes, como cuidar das crianças ou dos idosos, ou trabalhos voluntários que não estão relacionados com o PIB. No setor financeiro imenso que temos hoje, algumas partes são úteis, mas muitas outras não são e algumas acabam até destruindo riquezas, mas no conjunto elas aumentam o PIB. Acho que nós devemos abandonar essa medida. Talvez nos anos 30, 40, muito tempo atrás, ela ainda era útil, especialmente durante a 2.ª Guerra, quando tínhamos de construir tanques, aviões e o quanto fosse possível de munição. Lá podia fazer sentido olhar para esses dados e dizer que a economia estava avançando. Mas a guerra acabou. Nós vivemos em um mundo muito diferente. As coisas que fazem a vida valer a pena agora são outras. São as conexões humanas, a amizade, cuidar uns dos outros, e isso é muito difícil de mensurar.
Luciano Huck: Eu gosto desse ponto de vista, me faz pensar. Eu quero falar um pouco mais sobre o Brasil, Vivemos aqui uma confusão de narrativas. Ao mesmo tempo que temos um ambiente de negócios muito moderno, potente e cheio de oportunidades, temos hospitais públicos superlotados e uma diferença abissal na qualidade da educação entre a rede pública e a privada. Somos um país rico e miserável ao mesmo tempo. Temos que pensar nesta economia 4.0, inteligência artificial, fábricas e meios de transporte autônomos, mas ainda não conseguimos nem qualificar nossos professores e médicos como eles merecem e como a população demanda. Como você enxerga esse conflito?
Rutger Bregman: Sempre penso nas vias públicas quando entro nesse assunto. As vias são financiadas pela comunidade, e a qualidade delas depende do quão saudável a comunidade é. Se nós pagamos direito nossos impostos, teremos certeza de que as vias serão boas, de que não terão buracos, etc. O que acontece em vários países desiguais, como no Brasil, é que os ricos têm essas SUVs imensas, os carros mais fantásticos, mas têm de andar em ruas péssimas. E eu acho que faz mais sentido, e também é mais eficiente, porque você consegue ir mais rápido, se coletivamente nós garantirmos vias melhores. Talvez o seu carro não vai ser tão grande, talvez as SUVs vão ser menores, mas, no final das contas, você vai dirigir com mais segurança e conforto. Eu não acho que vai ser fácil, que as pessoas no poder vão entregar o poder sem lutar. Mas não precisa ser uma situação perde-ganha. Pode ser uma situação de ganha-ganha. É muito melhor ser rico num país igualitário. As pessoas ricas na Suécia ou na Noruega são muito mais felizes que as pessoas ricas no Brasil ou nos EUA. Elas não precisam viver em condomínios fechados, não precisam temer as pessoas pobres, as pessoas das favelas ou coisas assim.
“Acompanhar o desenvolvimento infantil de maneira focalizada é uma das chaves para a emancipação das famílias da condição de pobreza”Luciano Huck
Luciano Huck: Você tem ideias sobre como nós podemos remodelar o capitalismo?
Rutger Bregman: Todo empreendedor precisa de capital, de algo para começar, para que possa investir e buscar um retorno para esse investimento. É aí que eu acho que devemos começar. Todos precisam de um capital inicial. Isso significa acesso a uma boa educação e de uma renda básica, algo em que possa se apoiar no caso de algum erro. No Vale do Silício, polo global de tecnologia e inovação, eles chamam isso de “capital do dane-se”. Você sempre precisa de dinheiro na sua conta para que você possa dizer não, para que você possa se demitir. O poder de dizer não é a liberdade mais importante que uma pessoa pode ter. Bilhões de pessoas no mundo não têm esse poder, pois elas são dependentes de seus empregos ruins, são dependentes das pessoas do topo. Eu quero viver em um mundo onde todos tenham um “capital do dane-se”, onde todos tenham o poder de dizer não e possam se mudar para outra cidade, se mudar para outra empresa ou até abrir uma empresa própria. As pessoas precisam ser capazes de correr riscos. Se você não consegue correr riscos, você não está em lugar nenhum. Todos deveriam ter essa chance de correr riscos. É claro que isso tem limites, mas eu acho que nós devemos construir uma base na nossa economia, algo em que você possa sempre confiar, que é essa renda básica. Obviamente, não é algo que te dá uma vida luxuosa, mas dá o suficiente para bancar as necessidades básicas, roupas, comida, abrigo, educação para seus filhos. Uma sociedade assim seria muito mais inovadora que qualquer outra.
Luciano Huck: No Brasil, todos os anos realizamos a Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas. Em média, 18,2 milhões de alunos participam. Em 2019, 7.500 medalhas foram distribuídas – destas, 1.288 foram dadas a jovens beneficiários do Programa Bolsa Família. Acompanhar o desenvolvimento infantil de maneira focalizada é uma das chaves para a emancipação das famílias da condição de pobreza. Ainda não chegamos a um grau ideal de eficiência por aqui. A pandemia expôs nossas desigualdades, e uma das mais complexas no Brasil é a da educação. Não me refiro ao acesso, porque hoje a maior parte das crianças e jovens vai à escola. Eu me refiro à qualidade. Nós ainda precisamos qualificar e valorizar os professores, unificar currículos e avançar para que algum dia a qualidade da escola do pobre seja equivalente à do rico. Além da desigualdade digital que também é um problema no Brasil, pois temos estudantes digitais em um sistema analógico. Você falou sobre educação e eu quero finalizar nossa conversa com isso.
Rutger Bregman: A educação poderia ser o grande fator igualitário. Acho que em sociedades justas não existem escolas particulares. Todos estudam no ensino público, mesmo as crianças ricas. A própria existência das escolas particulares é a admissão dos ricos de que o ensino público não é bom o suficiente. Outra coisa importante é que, em escolas públicas, pessoas de origens diferentes podem se conhecer, ricas, pobres, de diferentes etnias, isso vira um caldeirão, que é o que a vida real deveria ser. Eu também acredito em um sistema educacional no qual as crianças tenham um pouco mais de liberdade. As escolas tradicionais ainda são esses lugares hierárquicos onde os professores sabem tudo e tentam enfiar esse conhecimento nos cérebros dos estudantes. A criatividade surge com a liberdade, com a possibilidade de as crianças decidirem por si mesmas o que elas acham interessante. Não existe nenhum pai que precisou pagar ou obrigar o seu filho a começar andar. As crianças simplesmente andam. Nós criamos um sistema educacional que, no final, tira essa curiosidade natural da gente, tira essa motivação intrínseca. E, então, entramos para essa economia do conhecimento na qual tentamos construir um currículo ou um perfil no LinkedIn, trabalhamos durante 20 anos num emprego que não nos interessa, enviamos e-mails para pessoas das que não gostamos, vamos a reuniões que não achamos necessárias, vemos um monte de apresentações de Powerpoint... A escola do futuro não deveria preparar as pessoas só para ganhar tanto dinheiro quanto possível, mas para viver uma vida bem vivida, para tentar acrescentar algo à sociedade. Tudo isso começa com um pouco mais de liberdade para as crianças.
Luciano Huck: Muito obrigado! Foi uma conversa ótima e inspiradora.
Bolívar Lamounier: Dois Bolsonaros
Um já conhecemos bem e o outro é o que me parece necessário, mas não sei se é possível
Espero que meus caros leitores e leitoras não estranhem o título deste artigo. De fato, hoje meu objetivo é contrastar dois presidentes Bolsonaro, um que já conhecemos bem e outro que me parece necessário, mas não sei se é possível.
É inegável que o presidente real, esse que conhecemos bem, teve um lance de inteligência, ou, melhor dizendo, de esperteza, no transcurso de sua já extensa carreira. Percebeu que sua figura, seu modo de ser e falar, se encaixava bem no papel que os eleitores estavam procurando: encarnar o antipetismo (vale dizer, o desastre legado por Lula e Dilma Rousseff), ante o desnorteio, a divisão, a inapetência ou que nome devam ter os chamados “partidos de centro”, que se apresentaram na eleição presidencial de 2018 como que incapacitados por um instinto suicida.
Tirante o referido lance de esperteza – e aqui me esforçarei para ser objetivo, com todo o respeito a Sua Excelência –, realmente não há muito a ressaltar na trajetória de Jair Bolsonaro. Da carreira militar foi levado a se afastar no posto de capitão. Na Câmara dos Deputados, durante 28 anos, foi uma corporificação perfeita do parlamentar do “baixo clero”, não aparecendo como autor de nenhum projeto marcante ou por algum momento de real protagonismo.
Na Presidência da República, tem-se mantido na contramão dos agentes de saúde que diariamente põem sua vida em risco, na linha de frente do combate à covid-19. Recusa-se até mesmo a observar os protocolos, fomentando aglomerações, recusando-se a usar máscaras e receitando o remédio em que acredita, peremptoriamente contestado pelos mais destacados cientistas e institutos de epidemiologia do mundo. Sou forçado a repetir esses lugares-comuns pelo que eles têm de pitoresco, pois a verdade é que a própria forma de transmissão da doença ainda não está satisfatoriamente esclarecida.
Um terceiro traço do Bolsonaro real é sua evidente incompreensão de certas engrenagens da sociedade e da política brasileiras. Por exemplo: ele prometeu erradicar a “velha política”, substituindo-a, presumivelmente, por uma nova, da qual somente participassem homens lúcidos, probos, competentes e devotados ao bem público. Nutrirá, por acaso, o presidente a crença de que a “velha política” é um fenômeno recente? De que muitos dos que nela ingressam o fazem com a evidente intenção de assaltar o erário? De que sem partidos sérios não há como haver política séria – e, convenhamos, um país ter 30 pequenos partidos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa? Desconhecerá, talvez, que mesmo com políticos e partidos razoáveis, o Brasil continuará por um bom tempo encalacrado na velha disjuntiva entre concepções econômicas “nacional-estatistas” e “neoliberais”, as primeiras sabidamente responsáveis por grandes desastres e a segunda (presumindo que saibamos o que é) nunca praticada de forma consistente entre nós?
Um Jair Bolsonaro “possível” é realmente uma possibilidade ou apenas um sonho de uma noite de verão? A primeira coisa que esse ser imaginário teria de entender é que não somos um país navegando em mar sereno, rumo ao desenvolvimento e ao bem-estar, mas, bem ao contrário, um país que corre sérios riscos de retrocesso. E que os conflitos que hoje grassam na sociedade, e nos assustam, poderão piorar muito mais, alastrando-se e tornando-se muito mais violentos, se não lograrmos aumentar substancialmente o investimento e a taxa de crescimento da renda anual per capita, com uma melhor distribuição, vigorosamente reforçada por um sistema de ensino apresentável.
Mas a tragédia que nos espreita é muito maior do que o que me empenhei em esboçar no parágrafo anterior. Mais grave é Jair Bolsonaro não ter feito uma leitura correta do estado de alma dos brasileiros, fazendo pose de violento dia sim e outro também, quando o que dele se espera é uma postura comedida, um exemplo de que precisamos dar meia volta e retomar, não direi o espírito de uma sociedade sem conflitos, mas pelo menos o de um país com instituições civilizadas, pautadas por boas maneiras. Invocar Deus e a religião é direito de qualquer um, mas um homem público precisa primeiro perceber que a sociedade brasileira tem uma ordem normativa muito frágil.
Como indiquei acima, Jair Bolsonaro convive há cerca de três décadas com a classe política e a cúpula dos três Poderes. Esse convívio deve ter-lhe ensinado muita coisa, e o ministro Paulo Guedes deve ter preenchido eventuais lacunas. Ambos sabem que os altos escalões consomem cifras astronômicas, tornando inviável o ajuste fiscal e solapando as bases da legitimidade política que precisamos urgentemente reconstruir. A receita para isso não é ameaçar jornalistas. É enfrentar de rijo o problema, propondo reformas administrativas e políticas realistas, que precisam ser trabalhadas com calma e de forma objetiva. É manter a compostura e a serenidade que se requer de um chefe de Estado, reconduzindo a sociedade à trilha que ela parece momentaneamente haver perdido.
*Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Eliane Cantanhêde: Teto? Que teto?
Sem Guedes, tem de compensar a fuga ‘de cima’ comprando a turma ‘de baixo’. E o teto?
O que está em jogo no isolamento do ministro da Economia não é apenas a queda ou não de Paulo Guedes, um nome a mais ou a menos. A questão central, que preocupa e assusta, é a sobrevivência do último pilar da campanha do presidente Jair Bolsonaro: liberalismo e pragmatismo na economia. Ou seja: o que balança não é Guedes, é a política econômica.
Do Bolsonaro de 2018, pouco sobra. A promessa de combate à corrupção amarelou com a investida nos órgãos de investigação e apagou com a queda de Sérgio Moro. O embate contra a “velha política” foi-se com o abandono do PSL e das novas bancadas do Congresso, trocados na cara dura pelo Centrão e seus ícones.
O que sobra? Sobra o compromisso com liberalismo, reformas, privatizações e desburocratização, que vai perdendo credibilidade com um Paulo Guedes claudicante, sem resultados e com os nervos à flor da pele. A sensação em Brasília e no mundo dos negócios é que, apesar do blábláblá, estourar o teto de gastos é questão de tempo.
É isso, inclusive, que o fura-teto Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional e inimigo frontal de Guedes, já diz abertamente. Depois nega, mas obriga Guedes, com ar cansado, a lembrar: “Furar o teto para fazer política e ganhar a eleição é irresponsável com as futuras gerações, é mergulhar o Brasil no passado triste de inflação alta”.
A guerra pública de Guedes é, num dia, contra o deputado Rodrigo Maia e, no outro, com Rogério Marinho, mas Guedes sabe quem é o adversário real e o recado teve um alvo certo quando ele falou em furar o teto para “ganhar eleição”. Esse alvo se chama Jair Messias Bolsonaro, seu chefe.
O presidente está em campanha, exige um Bolsa Família para chamar de seu, insufla os fura-teto, fecha os olhos para os ataques de Marinho e dá ouvidos aos militares do Planalto que, de economia, entendem zero. Logo, o risco para Guedes e a política econômica liberal que elegeu Bolsonaro é o próprio Bolsonaro, que se aproveita de um dado da realidade: Guedes fala muito, mas entrega pouco e foi pego de jeito pela pandemia e a cambalhota na prioridade fiscal.
Da campanha de 2018, sobram ainda a política externa centrada em Donald Trump, de futuro incerto; a pauta conservadora, que fez Bolsonaro refém de igrejas evangélicas multimilionárias; a visão destruidora do ambiente, que joga o mundo contra o Brasil; e a obsessão pelas armas, que derruba textos, portarias e decisões do Exército, deixando no ar a suspeita de estímulo a milícias.
Soa só ridículo, mas é perigoso, que setores evangélicos cobrem privilégios na Receita, interfiram em nomeações do governo e exijam que o futuro ministro do Supremo Kassio Marques faça uma profissão de fé no “conservadorismo”. E o que dizer do Meio Ambiente, onde as queimadas destroem e a boiada passa? Incêndios criminosos na Amazônia e Pantanal, cipoal jurídico contra a preservação de manguezais e restingas, desidratação de Ibama e ICMBio e a versão da “ganância internacional”.
Só falta recriar o MEC, já que, em quase dois anos de governo, educação e cultura andam juntos, sem rumo, prioridade e respeito. O foco do ministro Milton Ribeiro é (contra) a educação sexual, os gays e os “jovens sem fé”. Na Cultura, depois do vídeo nazista, agora a transferência da Fundação Palmares para o ex-almoxarifado da EBC, caindo aos pedaços.
Logo, Bolsonaro deveria reafirmar, não só de boca para fora, seu compromisso com o liberalismo – que é o que lhe sobra. Bolsonarista raiz joga Guedes fora com a mesma ligeireza que jogou Moro, mas bolsonarista nos mercados, empresas, fundos investimentos e opinião pública pode atingir seu limite. Para compensar a fuga “de cima”, só comprando a turma “de baixo”. Teto? Que teto?
Fernando Henrique Cardoso: Dias sombrios
É melhor que chova logo, antes que as trovoadas se tornem tempestades
Governar é escolher, mas o presidente não quer arcar com esse custo. Não basta pensar que se é “mito”.
Os dias andam sombrios. A pandemia tolda o horizonte e os corações. Cansa ficar em casa, isso para quem tem casa e pode trabalhar nela. Imagine-se para os mais desafortunados: é fácil dizer “fiquem em casa”, impossível é ficar nela quando não se a tem ou quando as pessoas vivem amontoadas, crianças, velhos e adultos, todos juntos. Pior, muitos de nós nos desacostumamos de “ver” as diferenças e as tomamos como naturais. Não são.
Eu moro num bairro de classe média alta, Higienópolis. Não preciso andar muito para ver quem não tem casa: numa escadaria que liga minha rua a outra, há uma pessoa que a habita. Sei até como se chama. Sei não porque eu tenha ido falar com ela, mas porque minha mulher se comove e de vez em quando leva algo para que coma. Assim, ilusoriamente, tenho a impressão de “solidariedade cumprida”, não por mim, mas por ela, que atua…
Mesmo quando vou trabalhar, na Rua Formosa esquina com o Vale do Anhangabaú, é fácil ver quanta gente “perambula” e à noite dorme na rua. Agora, com as obras de renovação, fazem-se chafarizes, que serão coloridos. Pergunto: será que os moradores de rua vão se banhar nas águas azuladas das fontes luminosas?
Não há que desesperar, contudo. Conheci Nova York e mesmo São Francisco em épocas passadas, quando as ruas também eram habitadas por pessoas “sem teto”. Elas não aparecem mais onde antes estavam e eram vistas. Terão melhorado de vida ou foram “enxotadas” para mais longe? Também em Paris havia os clochards. Que destino tiveram: o crescimento da economia absorveu-os ou simplesmente foram “deslocados”, pelo menos da vista dos mais bem situados? Crueldade, mas corriqueira.
É certo que o vírus da covid parece começar a ser vencido no Brasil, como os jornais disseram ainda na semana passada. Mas continuamos numa zona de risco. A incerteza perdura. Comportamentos responsáveis salvam vidas. Os países europeus que tinham controlado uma primeira onde se veem às voltas com novo surto de contaminações e hospitais no ponto de saturação. Qual de nós não perdeu uma pessoa querida? Essa dor não se esquece nem se apaga.
Mas, e depois? O desemprego não desaparece de repente. Para que a situação melhore não basta haver investimentos, é preciso melhorar as escolas, a formação das pessoas. Sem falar na saúde. E os governos precisarão ser mais ativos, olhando para as necessidades dos que mais requerem apoio.
É por isso que, mesmo teimando em ser otimista, vejo o horizonte carregado. Para retomar o crescimento, criar empregos (sem falar da distribuição de rendas) e manter a estabilidade política necessária para os investidores confiarem na economia é preciso algum descortino. Os que nos lideram foram eleitos, têm legitimidade, mas nem por isso têm sempre a lucidez necessária.
Não desejo nem posso precipitar o andamento do processo político. É melhor esperar que se escoe o tempo de duração constitucional dos mandatos e, principalmente, que apareçam “bons candidatos”. Para tal não é suficiente ser “bom de voto” e de palavras. Precisamos de líderes que entendam melhor o que acontece na produção e no mercado de trabalho, daqui e do mundo. Mais ainda que sejam capazes de falar à população, passar confiança e esperança em dias melhores. Voz e mensagem movem montanhas. Mobilizam energias e vontades.
Enquanto isso… Sei que não há fórmulas mágicas e acho necessário dar meios de vida aos que precisam. Sei que foi o Congresso, mais do que o Executivo, quem cuidou de dá-los. O presidente atual vai trombetear que fez o que os parlamentares fizeram; não importa, está feito e teria de o ser. Não tenhamos dúvidas, contudo: o nível do endividamento público, que já é elevado, vai piorar.
Compreendo as aflições do governo: quer logo um plano para aliviar o sofrimento popular e não quer cortar gastos. É difícil mesmo.
Mas assim não dá: ou bem se ajusta o orçamento aos tempos bicudos que vivemos ou, pior, voltarão a inflação e o endividamento, e, quem sabe, as taxas de juros de longo prazo continuarão a subir… Melhor nem falar.
Que teremos nuvens carregadas pela frente, isso parece certo. Mas é melhor que chova logo, antes que as trovoadas se transformem em tempestades.
O presidente parece querer, ao mesmo tempo, coisas que não são compatíveis. A única saída razoável para esse dilema é apostar numa reforma administrativa que valha para os atuais servidores, acompanhada de algumas medidas de desindexação de despesas. Juntamente com a reforma, o governo poderia mexer na regra do teto, para, ao mesmo tempo, abrir espaço orçamentário para o gasto e não provocar uma reação muito negativa do mercado.
Governar é escolher. O problema é que o presidente não quer arcar com o custo das escolhas possíveis. Melhor seria arcar com a perda de popularidade no momento, desde que mais adiante se veja o céu menos carregado. Para isso é preciso ser líder, de corpo e alma. Não basta pensar que se é “mito”.
*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República
Vera Magalhães: Quando a Ciência grita
O que o recuo na propaganda do kit covid e contágio de Trump têm em comum?
A semana que passou teve dois duros golpes para aqueles que, no Brasil, usaram a pandemia de covid-19 para virarem mercadores de ideologia barata e sabotarem a resposta adequada nas áreas sanitária, médica, social e econômica. Não, ainda não se trata de responsabilização judicial, mas acredito que chegaremos lá.
As duas notícias não têm uma ligação direta, mas partem da mesma premissa: quando a Ciência grita, o negacionismo perde. A primeira é local. O Ministério da Saúde, embalado na confiança vinda da efetivação do diligente (para Bolsonaro, não para a Saúde) general Eduardo Pazuello no posto e da alta popularidade do presidente, preparou mais um desserviço à saúde pública, que deveria ter acontecido neste sábado.
Era um tal Dia D de defesa dos cuidados precoces com a covid-19, que nada mais seria que uma propaganda, pelos canais oficiais, do tal kit covid, composto por medicamentos sem eficácia comprovada, com efeitos adversos, que o restante do mundo já baniu e que aqui, sem ação nenhuma da Justiça diante de centenas de ações por crime de responsabilidade das autoridades federais, seguem sendo administrados a partir de um protocolo oficial.
A comunidade científica saiu do terreno das notas de repúdio e se organizou. Graças ao trabalho rápido do Instituto Questão de Ciência, comandado pela microbiologista Natália Pasternak, saiu do papel o Dia C de Ciência, reunindo cientistas e jornalistas na divulgação de dados e evidências sobre a covid-19, da prevenção ao tratamento, passando por vacina.
Nada menos que sete ex-ministros da Saúde, incluindo o bolsonarista Nelson Teich, participaram de um ciclo de mesas virtuais neste sábado cujo objetivo era desmascarar o obscurantismo do Ministério da Saúde.
A resposta foi tão efetiva, imediata e eloquente que a pasta de Pazuello recuou. O IQC acabou prestando um favor não só ao País, mas inclusive ao governo.
Isso porque, e aqui entramos no outro fato a que me referi no início deste texto, Donald Trump foi internado na sexta-feira com covid-19, e o rastreamento avança para mostrar um séquito de aliados, parentes e auxiliares do republicano também contaminados.
A internação de Trump veio num período bem especial: quando ele tinha acabado de criticar seu adversário, Joe Biden, no tenebroso debate de terçafeira, por usar máscara toda hora, e logo depois de ele promover um evento de campanha em que ninguém usava o equipamento de segurança e muitos caíram doentes.
Uma vez hospitalizado, vejam só, o “amigão” de Bolsonaro não está se tratando com cloroquina nem hidroxicloroquina, que desistiu de vender para os americanos e empurrou para os brasileiros.
Conclusão: quando a Ciência grita, seja na forma de eventos como o Dia C, seja na comprovação, na pele, de que desfilar sem máscara por ideologia burra é pedir para baixar o hospital, o negacionismo cai por terra.
Esta lição poderosa precisa e pode ser projetada para além do enfrentamento da pandemia e chegar às discussões sobre a tal frente ampla para combater o retrocesso bolsonarista.
O caminho é tirar o comando da mão de partidos e políticos e passálo a cientistas, acadêmicos e representantes da sociedade civil. Com ações práticas como a do IQC, dados e evidências, e coordenação com iniciativas judiciais contra os que causam prejuízos para o País.
Vale para a reação à hecatombe ambiental da dupla Bolsonaro-Ricardo Salles, para o aparelhamento do Estado e da Polícia Federal e o desvio de recursos públicos para igrejas evangélicas para fortalecer o projeto reeleitoral do presidente. Menos nota de repúdio e vetos a nomes inimigos e mais ação. Este é o caminho.
Adriana Fernandes: Encrenca geral
O que mais preocupa nessa confusão é que o desenho do Renda Cidadã está escanteado
O ambiente hoje em Brasília é o mais negativo possível e o resultado tem sido a escalada acelerada de deterioração da confiança com os rumos da economia do País.
Está tudo parado ou rodando em círculo: Renda Brasil (ou Cidadã), reforma tributária, Orçamento de 2021, PECs fiscais de cortes de despesas, reforma administrativa e votação de vetos importantes, como a prorrogação da desoneração da folha para 17 setores.
A cada bate-cabeça em torno das medidas e novos sobressaltos – como o desta sexta-feira entre os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho – a piora dos indicadores do mercado se acentua.
A articulação que acontece no momento, e deve prosperar, é tirar o Renda Cidadã do teto de gastos, mesmo que temporariamente.
Se não houver algum tipo de entendimento nos mais urgentes pontos elencados acima, o Brasil vai entrar em 2021 num voo cego com os efeitos da pandemia da covid-19 ainda mostrando a sua cara.
Até aqui não há o que comemorar do novo eixo de articulação política com o Centrão montado para avançar a pauta econômica em três etapas de validação: acerto Ministério da Economia-líderes do governo; Líderes-Palácio; Bolsonaro-validação; e, por último, Palácio-líderes dos partidos aliados.
A batalha de sobrevivência de Guedes e da sua agenda pode até embaralhar esse jogo e tem servido de folclore para desviar a atenção para o fato de que todos os sinais apontam que está em curso uma inflexão da política econômica. Ela já começou apesar do uníssono grito de “vamos manter o teto de gastos”.
O deadline da mudança indicado por muitas dessas lideranças é da eleição da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em 2021.
A monumental trapalhada do anúncio do financiamento do Renda Cidadã com recursos dos precatórios e do Fundeb mostrou que essa articulação não está dando certo. Por quê? A disputa pela presidência do Senado e da Câmara se antecipou e nada, absolutamente nada, se move sem que a eleição do início do ano que vem para o comando das duas Casas esteja na conta.
A tentativa dos partidos do Centrão de tomar a presidência da Comissão Mista de Orçamento do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), é mais um capítulo do que está acontecendo. O deputado Arthur Lira (PP-AL), à frente da manobra, acirrou a tensão e adiou a sua instalação. Elmar é aliado do presidente Rodrigo Maia e Lira candidatíssimo a ficar no seu lugar. Eleição na veia.
Faltando três meses para o fim do ano, é uma irresponsabilidade que a comissão não esteja discutindo saídas para o País em 2021. A guerra na CMO pode, inclusive, levar a votação do Orçamento e do Renda Cidadã para o ano que vem, “sob nova direção”.
O mais preocupante dessa encrenca geral com o Renda Cidadã é que governo e Congresso têm deixado escanteado o desenho do próprio programa. Tanto é que o Ministério da Cidadania pouco se envolve.
O governo ainda está voltado à primeira geração das políticas de transferência de renda, quando o mundo já está na terceira ou quarta geração, alerta o economista João Marcelo Borges, especialista em políticas educacionais.
Consultor do BID na época que o organismo emprestou US$ 1 bilhão para o governo aumentar os beneficiários do Bolsa Família, no início dos anos 2000, adverte que o substituto do auxílio emergencial não pode resultar de considerações meramente fiscais ou assistenciais.
Diz Borges: “Salvo raras exceções, que apontam a necessidade de usar o Cadastro Único e incorporar o conhecimento acumulado, a discussão sobre o Renda Cidadã tem se dado apenas em torno das fontes para seu financiamento, do teto de gastos e do valor do benefício”.
Um programa da magnitude que se discute (cerca de R$ 60 bilhões) não pode se restringir a elas. Há uma década se discutia portas de saída para o Bolsa Família. Hoje, parece que o debate é apenas sobre a largura da porta e sobre sua sustentação. É um retrocesso de duas décadas.
Miguel Reale Júnior: Organizar a oposição
Não há que entregar o jogo, asfaltando o caminho do autoritarismo digital
Recente pesquisa de opinião pública atribuiu a Bolsonaro 40% de aprovação, isso na mesma semana em que o Brasil passou pela vergonha de discurso irresponsável do presidente da República na ONU, no qual disse ter a Justiça atribuído aos governadores a condução das medidas no campo da saúde pública, além de culpar “índios e caboclos” pelos incêndios na Amazônia. O resultado da pesquisa revela a consagração do embuste como expediente para enganar uma população que admira mais o histrionismo do governante do que a realidade visível.
Membros da imprensa e da sociedade civil se manifestaram contra o desplante do discurso. Mas grande parte de nosso povo não quer ler nem ouvir manifestações revestidas de racionalidade e não alimenta interesse em se informar e minimamente avaliar os fatos.
Em maio, quando 30% consideravam o governo Bolsonaro bom ou ótimo, foram lançados vários manifestos tradutores do sentimento e pensamento dos demais 70%, destacando-se o documento editado pelo movimento Estamos Juntos. Do manifesto realçam dois parágrafos. “Somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”; e “Temos ideias e opiniões diferentes, mas comungamos os mesmos princípios éticos e democráticos. Queremos combater o ódio e a apatia com afeto, informação, união e esperança”.
Outro manifesto, de cerca de 600 juristas, intitulado Basta, destacava que o País estava em crise política “quando já imerso no abismo de uma pandemia que encontra no Brasil seu ambiente mais favorável, mercê de uma ação genocida do presidente da República”. E mais adiante sinalizava: “Todos nós acreditamos que é preciso dar um BASTA… Não nos omitiremos. E temos a certeza de que os Poderes da República não se ausentarão”.
Hoje estamos quase virando minoria e, em vez de se ter dignidade do presidente nesta devastadora crise sanitária, o que há é continuada falta de solidariedade e de coragem de sua parte. Em 18 de setembro ele fez chacota das medidas de isolamento, ao dizer a agricultores: “Vocês não pararam durante a pandemia. Vocês não entraram na conversinha mole de ‘fica em casa’, ‘a economia a gente vê depois’. Isso é para os fracos”.
Exigia-se, nos manifestos, que houvesse afeto, informação, presença dos Poderes da República. O que se vê, todavia, da parte de Bolsonaro é apenas desprezo pela dor dos doentes e de seus familiares, humilhação dos receosos de contrair o vírus causador de tantas mortes, ofendendo todos os que se cuidam ao chamá-los de fracos. Elogia, assim, o ideal infantil do Superman, que munido de substância milagrosa, a cloroquina, uma anticriptonita, enfrenta o vírus de peito aberto.
Clamava-se por ação dos Poderes da República, mas há um alarmante silêncio dos principais atores políticos, a começar pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que em sua ambição de reeleição, manifestamente inconstitucional, se fazem de surdos.
Nos manifestos requeria-se informação veraz, mas o que se tem é desinformação. Na ONU o presidente disse: “Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País”.
Mentira. O voto do ministro Fachin, relator da Adin 6.341, bem esclarece ser “competência comum dos entes federativos a adoção ou manutenção de medidas restritivas durante a pandemia da covid-19. Assim, a princípio, tanto a União quanto os Estados e os municípios podem (e devem) adotar imposição de distanciamento social”. O ministro Gilmar Mendes, no seu voto, elucida: “Todas as esferas federativas que compõem o SUS (União, Estados, municípios e Distrito Federal) possuem deveres e responsabilidades com a saúde pública, e é de todas elas que devem ser cobradas atuações administrativas eficazes, preventivas e de assistência”.
A verdade deixou de ser um valor, haja vista Bolsonaro blasonar-se, com sucesso, da concessão do auxílio emergencial, quando propusera só R$ 200 e foi o Congresso a impor o triplo. No lugar de sinceridade, união e afeto, vive-se a criação artificial de inimigos e a exploração do medo, geradora de crenças salvacionistas e polarizadoras.
O que fazer diante desse quadro? Como diz Milagros Pérez Oliva no El País (27/9), não se tem antídoto certo para afrontar a teoria da conspiração do neopopulismo.
Contudo não há que entregar o jogo, asfaltando o caminho do autoritarismo digital. Cumpre fazer o debate, mesmo que com isso se venha a ser acusado de fazer parte da conspiração.
Cabem, então, novos manifestos dos grupos de maio passado e ocupar as redes sociais, denunciando com firmeza o atual descalabro político, econômico e moral. É hora de organizar a oposição sem partido, visando a preservar a racionalidade e a democracia.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Celso Ming: O capitão parece sem rumo
O presidente Jair Bolsonaro não sabe para onde quer ir ou está perdido
Basta alinhar um fato atrás do outro para concluir que o capitão Bolsonaro ou não sabe o que quer ou está perdido.
Para o dia 25 de agosto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, havia agendado o que chamou de “big bang”, aquilo que seria um ato de recriação da economia. Haveria o anúncio do Renda Brasil, um avanço sobre o Bolsa Família, que distribuiria mais renda. O ministro Paulo Guedes avisou que teria como principal fonte orçamentária a extinção de programas sociais pouco eficazes: o abono salarial, que concede um salário mínimo por ano para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos por mês; o seguro-defeso, distribuído aos pescadores artesanais nos períodos de desova dos peixes, em que teriam de permanecer inativos; e o próprio Bolsa Família, cujos recursos seriam incorporados ao novo programa.
O presidente Bolsonaro fulminou a proposta. Disse que “não tiraria dos pobres para dar aos paupérrimos”. O “big bang” não passou de um estourinho de pipoca dentro da panela.
Do “big bang” fariam parte duas outras providências: a desindexação total da economia (inexistência de reajustes), que alcançaria salários, aposentadorias e pensões; e o anúncio de um programa estimulador de empregos, a desoneração dos encargos sociais, a que estão obrigados os empregadores. A arrecadação que deixaria de ser obtida com a redução dos encargos sociais seria coberta com um novo imposto, que incidiria sobre transações financeiras, em quase nada diferente da extinta CPMF.
Às críticas a essa nova CPMF o ministro Paulo Guedes disse que seria “a troca de um imposto cruel por um feioso”. Se esse imposto cria distorções, argumenta ele, mais e maiores distorções são produzidas pelos encargos sociais, que impedem a criação de postos de trabalho, estimulam a informalidade e semeiam concorrência desleal pelas empresas que pagam salários “por fora” e não recolhem os encargos.
Há três dias, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), avisou que não havia acordo político para a nova CPMF e que, por isso, o projeto não teria condições de tramitação no Congresso. A proposta vai outra vez para a gaveta e, com isso, fica para depois a desoneração pretendida.
Dia 15 de setembro, o secretário especial do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, avisou que a cobertura para o programa Renda Brasil viria do congelamento de aposentadorias e pensões, por dois anos. Não era nada do que não tivesse sido combinado anteriormente, seja porque Paulo Guedes já havia adiantado essa desindexação por ocasião do anúncio do “big bang”, seja porque Waldery não é o tipo da autoridade que fala por conta própria.
Mas o presidente Bolsonaro desconsiderou avaliações técnicas anteriores, desautorizou pelas redes sociais o secretário Waldery e advertiu que levantaria o cartão vermelho para autoridades do governo que defendessem propostas desse tipo. Waldery recolheu-se à toca, à espera do que viesse, e não se falou mais em desindexação de salários e aposentadorias.
Na última segunda-feira, o mesmo líder do governo, Ricardo Barros, fez um comunicado na presença do presidente Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes – portanto anunciava algo previamente negociado –, de que o Renda Brasil seria rebatizado de Renda Cidadã e que seria financiado com recursos do adiamento do pagamento das dívidas precatórias e com parcela do Fundeb, cujo nome e sobrenome é Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação.
Depois do caos produzido no mercado com a perspectiva da caracterização de um calote e o uso para outra finalidade de recursos liberados do teto dos gastos, nesta quarta-feira o ministro Paulo Guedes, aparentemente por ordem superior, desdisse o que defendia antes. Abateu a tiros a ideia do adiamento do pagamento dos precatórios, que já havia sido determinado pela Justiça, para lastrear o Renda Cidadã. Outra vez, o anúncio oficial já não valeu para nada.
O presidente Bolsonaro vem repetindo o princípio que aprendeu no Exército de que “pior do que uma decisão ruim é a indecisão”. Mas tem coisa pior do que isso. São decisões tomadas e, repetidamente abandonadas. Ele mesmo autoriza o piloto a mudar a rota do barco e, logo depois, volta atrás e ainda recrimina o piloto por ter obedecido a sua ordem. No Estado Maior deve haver um nome para isso.
Importa menos a direção dos ventos. Basta ajustar as velas do barco. Mas Bolsonaro não sabe para onde quer ir e os marinheiros não sabem como ajustar as velas.
Zeina Latif: Melhor não despertar a ira dos investidores
Precisamos, desde já, de um plano de contenção de despesas obrigatórias
Disciplina fiscal significa um país não gerar indefinidamente rombos orçamentários e aumento da dívida pública como proporção do PIB. Caso contrário, cedo ou tarde, vai enfrentar o revide dos credores: inicialmente demandando taxas de juros crescentes e, no limite, desistindo de financiar o governo, por medo de calote. Irão buscar investimentos mais seguros, inclusive fora do País. O resultado é o aumento da inflação.
O espaço para governos esticarem a corda depende da crença dos investidores quanto à sua capacidade e disposição de fazer o ajuste das contas públicas, em algum momento futuro. Dois fatores são chave para essa expectativa: a capacidade do país de crescer de forma sustentada, o que é um selo de qualidade da ação estatal, e a credibilidade do governo, construída pelo respeito a compromissos feitos.
Países ricos conseguem se endividar mais. A dívida pública das economias avançadas estava na média em 104% do PIB em 2018 ante 50% nos emergentes. Em 2000, essas cifras eram 83% e 45%, respectivamente.
Para ajudar na construção de credibilidade, muitos governos adotam regras fiscais para reger as contas públicas. São compromissos com a disciplina fiscal previstos em lei. É comum em países com meta de inflação, pois são regras que se reforçam mutuamente.
As regras precisam ser duradouras para cumprirem seu papel. Não podem ser facilmente contornadas ou alteradas. Já se observam no mercado financeiro as consequências do flerte com a flexibilização da regra do teto, aprovada há menos de quatro anos. A elevada volatilidade de preços de ativos, inclusive da taxa de câmbio, ameaça a recuperação da economia. Além disso, ocorre um encurtamento do perfil da dívida pública, tornando o ambiente mais propenso à saída de recursos.
As regras não podem ser frouxas, deixando de fora muitos itens de despesa, como alguns propõem – a regra do teto já exclui o Fundeb e a capitalização de estatais não dependentes do Tesouro. Por outro lado, precisam ser críveis ou factíveis. Alguns analistas apontam que, por conta da pandemia, a regra do teto tornou-se impraticável diante das demandas por gastos com saúde e socorro de pessoas e empresas, sendo necessário ajustá-la. Vejamos.
A regra já embute uma “cláusula de escape” para o período de calamidade pública, liberando as despesas associadas ao combate dos efeitos da covid-19. Seria então o caso de estendê-lo por mais alguns meses, para autorizar despesas transitórias? O cuidado aqui é haver justificativa forte o suficiente para os créditos extraordinários e a garantia de seu bom uso. Além disso, convém esgotar outras possibilidades, como criar espaço no Orçamento pela redução temporária da folha do funcionalismo, conforme proposto na PEC emergencial, abandonada.
Uma flexibilização do teto para aumentar despesas permanentes seria mais arriscado. Mesmo medidas meritórias, como a Renda Cidadã, deveriam substituir as muitas políticas públicas equivocadas. Nesse contexto, é indefensável a tímida proposta de reforma administrativa, que além de excluir importantes carreiras do funcionalismo, não afeta os atuais servidores. O mesmo vale para a contrariedade do presidente com o remanejamento de recursos de outras políticas sociais proposto pelo time econômico.
A pandemia aumentou a necessidade de reformas. O teto, mesmo se respeitado, não eliminará o rombo fiscal por muitos anos. Flexibilizá-lo significaria cutucar o investidor, já desconfiado, com vara curta. Dilma fez isso em 2015. Deu no que deu.
Na melhor das hipóteses, o governo estaria aumentando a probabilidade de um ajuste forçado das contas públicas por meio de sensível elevação da carga tributária. Um cenário “volta ao passado” penalizaria ainda mais a frágil economia.
Os investidores poderão financiar a dívida pública elevada e crescente, e será possível evitar maior carga tributária e instabilidade econômica. Mas desde que haja plano consistente de contenção de despesas obrigatórias de forma a não apagar a chama já tão fraca da disciplina fiscal.
Celso Ming: Bolsonaro quer marcar gol de mão
O programa Renda Cidadã, pretendido pelo governo Bolsonaro, é calote, é pedalada, é contabilidade criativa
Todos os qualificativos sobre o passa-pernas pretendido pelo governo Bolsonaro para criar a Renda Cidadã já foram mencionados pela imprensa: é calote, é pedalada, é contabilidade criativa.
A Renda Cidadã é o nome fantasia com que o governo Bolsonaro batizou o projeto de ampliação do Bolsa Família, que assume características de renda mínima ou de Imposto de Renda negativo.
Antes de seguir adiante, convém deixar claro que um programa social desse tipo não é apenas uma reivindicação das esquerdas ou dos populistas da hora. É uma necessidade de mercado ou do próprio sistema capitalista. Como o contrato de trabalho tal como o conhecemos está a caminho da extinção ou da irrelevância, é preciso cuidar da renda e, portanto, do mercado de consumo e da sobrevivência das próprias empresas. Nesse sentido, importa menos se sua criação tenha um viés eleitoreiro, como de fato tem. Ela passou a ser uma necessidade tanto social como econômica.
O problema é que o governo quer validar gol de mão e, como Maradona, argumenta que é da mão de Deus. Para obter a verba necessária para a Renda Cidadã, avisou que vai pegar recursos do Fundeb (destinados à Educação) e do pagamento dos precatórios. Ou seja, para o governo, haverá menos recursos para o Fundeb e o pagamento dos precatórios ficará para depois, sabe-se lá quando.
Os vícios estão claros. O Fundeb é constituído de recursos que não entram no cálculo do teto das despesas. O que o governo está dizendo é que não há nada de errado em inchar o Fundeb e, depois, transferir os recursos para cobertura de outras despesas. No caso do calote dos precatórios, ficaria validado o procedimento de adiar indefinidamente o pagamento de uma dívida, passada e julgada, seja de precatórios (em geral, consequência de desapropriações), seja outra qualquer.
Há algumas semanas, o mesmo programa social levava o nome de Renda Brasil. Mas Bolsonaro enterrou a proposta quando foi informado de que os recursos sairiam de outros programas sociais, como do próprio Bolsa Família e do seguro-defeso (ajuda aos pescadores na suspensão da pesca). A justificativa do presidente: “Não tiraria dos pobres para dar aos paupérrimos”.
Nesta quarta-feira, o ministro Paulo Guedes negou que tenha intenção de usar verbas destinadas ao pagamento de precatórios para o Renda Cidadã. Mas é apenas outra declaração. Não se entende que o guardião do Tesouro esteja disposto a defender gols de mão.
O presidente Bolsonaro ainda vem com o discurso de que, se não for assim, não se faz nada. Como passou a pedir àqueles que repudiam a volta da CPMF, pede agora que os críticos apresentem solução melhor.
Ora, presidente, todos sabemos qual é hoje o tamanho do Estado. Sabemos também que, além de privilégios como o da estabilidade no emprego, os funcionários públicos usufruem dos melhores salários do País e, além disso, boa parte conta com adicionais, com benefícios extras, com aposentadoria e mordomias com que os trabalhadores do setor privado não contam. E há os subsídios, as isenções tributárias e a ideia de congelar as aposentadorias para as categorias mais beneficiadas…
Só no handebol vale gol de mão.