o estado de s paulo

José Serra: Renda básica com responsabilidade

Não se pode executar a despesa nova sem a aprovação de medidas de compensação

O governo federal enviou a proposta orçamentária para 2021 sem dizer como pretende financiar o novo programa anunciado pela equipe econômica: o Renda Brasil. Curiosamente, esse programa nasceu, morreu e deve ressuscitar após manifestações desencontradas de lideranças do Executivo, até mesmo do presidente da República, tornando o cenário fiscal mais incerto. Certo mesmo é que o País precisa de um programa social de renda mínima, com responsabilidade fiscal e boa governança, para os brasileiros mais afetados pela pandemia.

Hoje presenciamos a subida a todo o vapor da dívida pública em direção à relação de 100% com o produto interno bruto (PIB). Assim, o País, no final do ano, deverá ao mercado de títulos públicos o equivalente ao que produzirá em termos de bens e serviços. Na verdade, esse número estaria longe de representar algo catastrófico caso os gastos públicos no Brasil tivessem qualidade, o que não ocorre. Importa mais a trajetória de crescimento da dívida do que a sua relação com o PIB, afinal, estoque e fluxo são coisas distintas.

Claro está que não nos podemos endividar como se a injeção de gasto público na economia não tivesse custos e limites. A gestão fiscal daqui para a frente não poderá ser tocada na base do improviso e “no susto”. Qualquer programa novo deve ter como base um dos princípios mais relevantes de uma República: a responsabilidade fiscal.

A agenda social em discussão no Congresso, a fim de se criar um programa de renda mínima, deve respeitar na ponta do lápis os dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial o artigo 17, segundo o qual as despesas permanentes devem ser fiscalmente compensadas por aumentos de receita ou redução de outros gastos também permanentes. Mais: não se pode executar a despesa nova sem que sejam aprovadas medidas de compensação. É o que está na lei e é o que deve ser feito.

É importante que todas as despesas obrigatórias do orçamento federal passem por avaliações periódicas, de modo que sejam feitos ajustes que tornem os programas mais eficientes, eficazes e efetivos. Ainda que o artigo 17 seja respeitado na fase de implementação de uma nova agenda social, não se pode achar que despesa obrigatória é eterna e blindada de avaliações sistemáticas.

Até aqui podemos dizer que o novo programa almejado pela equipe econômica – o Renda Brasil – deve ser criado com transparência em relação às suas fontes de custeio, inclusive com a revisão dos gastos de programas atuais, e com um desenho institucional que dê prioridade a revisões periódicas dos seus resultados. Naturalmente, a função fiscalizatória do Congresso o atrai para esse campo de avaliação, com a devida ajuda do Tribunal de Contas da União, que tem um time de auditores altamente qualificados.

Mais ainda, o teto de gastos também deve ser observado no processo de criação do Renda Brasil. É sabido que o Parlamento aprovou a Emenda Constitucional 95/2016 com a finalidade de estabelecer limites apertados para a taxa de crescimento do gasto público, com base no IPCA. Com a queda da inflação e o crescimento das despesas da Previdência, que representam mais da metade do teto de gastos do Poder Executivo, o espaço fiscal deve nortear a criação do Renda Brasil.

Diante desse quadro, o Congresso Nacional pode assumir a iniciativa de estabelecer uma nova agenda social, caso a estratégia do Executivo seja passar a bola para o Parlamento. Assim, será melhor para o País que o Congresso aprove um programa de renda mínima delegando ao Executivo a definição dos valores dos benefícios, juntamente com as medidas de compensação. E, nesse sentido, há projetos tramitando. A razão é que o Executivo conta com melhores condições de revisar o Orçamento em busca dos recursos necessários para financiar a nova agenda social.

A lei que criar o novo programa deve também apresentar dispositivos que obriguem o governo a revisar periodicamente o programa, seguindo as boas práticas de gestão adotadas por países avançados em matéria fiscal, como o Reino Unido e a Austrália. Nestes, os programas governamentais são sempre revisados para melhorar a alocação dos recursos nos orçamentos públicos.

Essa ideia da revisão periódica dos gastos públicos parece simples, mas no Brasil ela vem sendo ignorada de forma desconcertada. Em 1998, por exemplo, participei do governo que introduziu na Lei 8.742/1993, que regulamenta os Benefícios de Prestação Continuada, um dispositivo para exigir a sua revisão a cada dois anos. Mas esse dispositivo tem sido solenemente ignorado pelos órgãos de controle e de execução das políticas públicas.

A covid-19 tem revelado a importância da responsabilidade fiscal para os próximos anos. As lideranças do Legislativo e do Executivo precisam atuar de forma conjunta para estabelecer um programa de renda básica que socorra a parcela mais vulnerável da sociedade sem perder de vista a responsabilidade fiscal e a boa governança pública. Não vejo incompatibilidade necessária entre esses dois objetivos.

*Senador (PSDB-SP)


Zeina Latif: Castelo de areia

O fim do auxílio emergencial é uma decisão correta, mas não indolor no curto prazo

É surpreendente a velocidade de recuperação da atividade econômica, ainda que não exatamente em forma de “V”. Como não existe milagre em Economia, é importante entender as causas e compreender os riscos adiante.

Vale repetir que há uma boa dose de artificialismo no aumento do consumo, puxado pelas classes populares, por conta do generoso Auxílio Emergencial. Além disso, a volta é bastante heterogênea entre os setores. O isolamento social redireciona recursos que iriam para o dispêndio com serviços para o consumo de alguns produtos associados ao maior tempo em casa.

Os dois fatores acima explicam, em boa medida, a performance das indústrias de alimentos, bebidas e bens duráveis (excluindo automóvel), que tiveram crescimento de 6%, 12% e 13%, respectivamente, em agosto na comparação anual. Na mesma toada, a produção de insumos da construção (+4%) se beneficia do “consumo formiguinha” (varejo), que subiu 23%.

Não é só isso. Há o efeito da balança comercial, ainda que menos importante. Do lado das exportações, pessoalmente, eu não esperava uma volta tão rápida das encomendas da China. O fato é que o país se defendeu bem da doença e, dentro do esperado, pisou no acelerador das políticas de estímulo, gerando aumento das importações (+11% em volume em julho na comparação anual). Enquanto isso, a volta do comércio mundial tem sido mais rápida do que na crise global de 2008-09, quando o crédito ao comércio secou.

Apesar disso, os países emergentes não têm reagido, em média, tão bem como na crise anterior, algo esperado diante da natureza da crise atual. De qualquer forma, o Brasil está melhor posicionado para se beneficiar dos ventos favoráveis do comércio exterior: a pauta exportadora é mais concentrada em commodities e pouco depende de derivados de petróleo, e a parceria com a China é grande e cresceu (destino de 50% das exportações ante 38% há um ano). Além disso, os preços de commodities agrícolas e metálicas mostraram-se resistentes, em contraste com a queda livre de preços petróleo e derivados.

Assim, as exportações brasileiras destoam positivamente (+11% em volume na média de junho a agosto), enquanto outros amargam por conta da dependência no petróleo (Colômbia), nos EUA (México) e nas manufaturas (Argentina), inclusive para o Brasil. Não é tanto a alta do dólar que explica o resultado, apesar do benefício à rentabilidade dos exportadores.

Do lado das importações, há boas notícias para a indústria. Nota-se uma reversão na tendência de aumento da participação de importados na economia dos últimos anos. O movimento não se resume à alta do dólar. A excessiva volatilidade do câmbio atrapalha bastante os importadores e ainda ocorrem problemas nas cadeias de suprimento.

Tudo somado, o resultado é que, diferentemente do que ocorreu em 2009, a produção industrial no Brasil tem exibido performance relativamente melhor do que a da média dos emergentes. Na indústria, a recuperação é em “V” e a criação de empregos no setor reage. Muitos celebram, discretamente.

Mas qual será o motor da economia daqui para frente? Aqueles de agora não estarão operando em breve. O fim do Auxílio Emergencial é uma decisão correta, mas não indolor no curto prazo. Mesmo que seja criado o Renda Cidadã, ele poderá custar em um ano o que o Auxílio custa em um mês (em torno de R$ 50 bilhões). Convém cautela em relação ao crescimento da China, que dá sinais de acomodação depois da rápida volta, em meio às conhecidas restrições estruturais. E não há espaço para estímulo fiscal e tampouco para cortes de juros, pelo contrário, diante do elevado risco fiscal. A fatura chega.

Estruturalmente, o País sai mais fraco da crise. Há recuo da taxa de investimento e do investimento direto estrangeiro (com provável queda no “market share” global) e o fechamento de empresas mais sofisticadas (com capital organizacional). Isso em meio à baixa produtividade e ao despreparo de muitas empresas e da mão de obra para as novas tecnologias que se impõem.

Alívio, sim. Visão míope, não.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Celso Ming: O País adiado

Bolsonaro já demonstrou que preserva mais os interesses da própria família

O presidente Bolsonaro já avisou que pretende deixar para depois das eleições de novembro o anúncio do programa social Renda Cidadã, novo nome da antes pretendida Renda Brasil.

Além de medida necessária para neutralizar em parte o estrago produzido pelo desemprego, a criação dessa ajuda à população mais pobre seria também um caça-votos. Como assim? Um caça-votos ficará para depois das eleições? Fica entendido que esse adiamento teria a ver com o tamanho da conta a ser repassada para a sociedade para o pagamento desse novo benefício social, motivo de grandes desencontros dentro do governo.

Mas a questão principal é a de que as decisões-chave de política econômica também vão sendo sucessivamente adiadas. Desde o início de seu governo, o presidente Bolsonaro está comprometido com as reformas da administração e do sistema tributário. Mas, para além da demissão do secretário Marcos Cintra e da ameaça de cartão vermelho ao secretário especial do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, a reforma tributária não progrediu. O projeto nessa direção que tramita na Câmara é diferente do que tramita no Senado, que, por sua vez, é diferente do que pretende o ministro Paulo Guedes.

Há pouca esperança de que a reforma tributária, sempre considerada tão urgente, seja aprovada ainda neste ano. Faltam discussões? Ora, há mais de 30 anos se discute a necessidade de uma reforma tributária. Não há tema que tenha sido mais escarafunchado do que este. Projetos e mais projetos vão sendo apresentados, debatidos e… engavetados. A coisa não anda.

Desde o início do seu governo, o presidente Bolsonaro acena com mais de 120 privatizações. Até agora só houve algum avanço no projeto da Eletrobrás, mas ainda assim é processo que está sendo adiado para o fim da pandemia. O argumento é o de que a crise desvalorizou os ativos e não convém vender empresas estatais nessas condições. Enfim, esse também é um programa adiado para quando der. Enquanto isso, as empresas estatais vão sangrando por falta de capitalização, tarefa que o Tesouro, desmilinguido, não pode cumprir.

O único avanço significativo no projeto de reformas ao longo desses quase dois anos de governo Bolsonaro foi o da Previdência. Ainda assim, o que ficou decidido se deveu mais aos esforços dos presidentes da Câmara e do Senado do que do empenho do governo.

Há quem afirme que é preciso que se crie antes um mínimo de consenso político. Falso: sempre que há interesses contrariados, o consenso é difícil. Também não havia consenso para o início da expedição de Vasco da Gama às Índias. Os Velhos do Restelo, dentro das faixas do exercício do poder, e os defensores das corporações sempre estão a postos para anunciar terríveis desastres a toda tentativa de reforma.

Na falta de consenso político, é preciso construí-lo, tarefa para estadistas ou para aqueles que elegem o interesse público como critério de atuação política. Infelizmente, não é esse o perfil do presidente Bolsonaro. Ele já demonstrou que preserva mais os interesses da própria família do que os demais.

Enfim, o Brasil continua sendo o país do futuro sempre adiado. A construção do futuro inalcançável, como a tentativa de tocar o horizonte.


Eugênio Bucci: Livros em chamas

A intolerância mais odiosa já se alojou na intimidade dos lares brasileiros.

Circularam no Twitter no dia 29 imagens de um casal que arranca páginas de livros de Paulo Coelho para atirá-las numa churrasqueira comum, dessas domésticas, dessas bem feias. As folhas, aos maços, caem sobre as brasas e se transformam em pequeninas labaredas. O casal exulta. Enquanto cuida de seus afazeres flamejantes, desfere insultos contra o escritor, que é chamado de “lesa-pátria” por ter criticado o governo. Entre um desaforo e outro, dizem que ele precisa ir morar em Cuba, na Venezuela ou na Argentina. Alguém ri ao fundo. A treva fumega.

A Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem Paulo Coelho entre seus imortais, repudiou a cerimônia comburente. Em nota, a ABL argumentou, com razão, que a agressão nos traz memórias tenebrosas, como “a destruição das bibliotecas de Alexandria e Sarajevo, os crimes de Savonarola e as práticas do nacional-socialismo”. É isso mesmo. Talvez sem saber, os que agora fazem romances virar cinzas reeditam os pelotões nazistas que em 1933, na Alemanha, em fogueiras rituais no meio da rua, torraram exemplares de clássicos da literatura. Brincando com fogo, brincam com a História.

As mentalidades autoritárias são assim. Não desistem. A combustão não cessa. No dia 15 de dezembro de 1977 o Times-Union, jornal da cidade americana de Warsaw, Indiana, estampou uma foto de um grupo de senhores e senhoras da cidade inspecionando um ritual em que livros ardiam num grande cesto de lixo feito de tela aramada. Eram obras que, segundo o grupo, agrediam os valores da família. No ano passado, manifestantes na Etiópia queimaram cópias de um livro do primeiro-ministro (vencedor do Prêmio Nobel da Paz) Abiy Ahmed, para, com isso, dar apoio ao oposicionista Jawar Mohammed.

São fatos históricos notórios. Além deles, porém, há os episódios menos visíveis em que pessoas comuns se metamorfoseiam em incendiárias fanáticas. Isto é o mais terrível nas imagens do Twitter: quem está ali atentando contra livros não são bandos organizados de extrema direita, mas gente como a gente que, num ato instantâneo, se escancara horrorosamente desumana. Não, não é gente como a gente. A intolerância mais odiosa já se alojou na intimidade dos lares brasileiros.

Muitos dizem que o pior do fascismo é a brutalidade que ele autoriza no guarda da esquina. Estão certos. Na mesma perspectiva, podemos acrescentar que o pior do fascismo é a potência inflamável que ele acende entre os anônimos. Na impossibilidade prática de queimar as pessoas, como se fazia nos tribunais da Inquisição e no Holocausto, os novos incineradores queimam os nomes próprios dos que julgam “traidores”. Queimam biografias. Acreditam no fogo para linchar a honra alheia mais ou menos como acreditam no inferno.

É preciso olhar para essas imagens com atenção, por mais que elas nos rebaixem. É preciso escutar. Nas crepitações obscurantistas do cotidiano ouvimos o discurso em que a Pátria vira sinônimo de governo. Logo, quem ama o brasão nacional tem de baixar a cabeça para a autoridade, quem discorda é “impatriótico” e será condenado à fogueira e ao exílio e vai ter de morar na Venezuela.

É como estar dentro de uma distopia. O Brasil vira cenário da ficção científica Fahrenheit 451, de Ray Bradburry, em que o corpo de bombeiros usa lança-chamas para consumir as bibliotecas. Aqui e ali pipocam cenas distópicas na vida real e nas redes sociais. Em que tipo de monstruosidade nos estamos convertendo? Será que seremos isso, uma sociedade que queima florestas e depois queima a reputação dos que apontam as queimadas nas florestas? Enquanto demoramos a responder, a terra arde, a celulose vira fumaça e palavras são calcinadas.

A falência generalizada de livrarias faz soar o alarme, mas não percebemos nada. O desprestígio das bibliotecas nos alerta, em vão. Bibliotecas servem para as pessoas estudarem, em silêncio, concentradas nas páginas onde encontram sabedoria. Abrigam quem queira recolher-se e pensar. Bibliotecas não são acervos de livros, mas templos dedicados à postura essencial de ler, pensar e, mais ainda, de encontrar pessoas para o diálogo. Sim, bibliotecas são lugares de encontros. Como lugares de estudo, reservam salas para reuniões, onde os frequentadores podem conversar em torno de ideias.

Hoje essas duas potencialidades humanas, o recolhimento meditativo e o encontro dialógico, estão amaldiçoadas. Nada parece ser mais ameaçador para o fanatismo que aí está do que uma pessoa em silêncio com um livro diante dos olhos. Alguém que pense por sua própria conta é alguém que, uma hora ou outra, vai inventar de não obedecer. Onde é que já se viu? Mas além do pensamento, os piromaníacos violentos têm medo do encontro. Temem o diálogo, que só se realiza quando os pontos de vista não são coincidentes (só há diálogo porque há diferenças). Nada os assusta mais que o encontro entre diferentes.

Pensar é respeitar. Encontrar é desejar. Os brutos olham para isso e riscam o fósforo. “Livros, livros, à mão cheia” – para avivar a churrasqueira.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


William Waack: Política da miséria

O dilema que a direção política em Brasília não consegue resolver é simples e grave

Vamos simplificar a política brasileira. Ela cabe hoje em poucos números, que não são bonitos. Um deles: em 1,5 mil municípios brasileiros a ajuda emergencial de R$ 600 por conta da pandemia DOBROU a massa de salários do setor formal. É um retrato cruel da miséria brasileira.

Essas localidades se espalham pelo País inteiro com notável concentração no Norte e Nordeste. Mesmo no Sul e Sudeste, porém, em mais de 1 mil municípios a massa de salários do setor formal aumentou pela metade com o auxílio emergencial. Ocorre que esse efeito tem data para acabar: dezembro, com o fim do coronavoucher.

A essência do debate político pós-pandemia concentrou-se apenas nesse aspecto: como financiar um programa social que faça a transição da “emergência” para uma “renda básica”. Foi um dos raros elogios que a revista Economist dedicou ao governo brasileiro nos últimos tempos. A melhor conduta em países pobres como o nosso, assinalou a publicação, é mesmo dar dinheiro direto nas mãos das pessoas.

Depois de esperar em vão pela fórmula mágica de onde tirar esse dinheiro – fórmula que, se presumia, existisse no Ministério da Economia –, o presidente Jair Bolsonaro trouxe a bordo de sua coordenação política mãos experientes como as do senador Renan Calheiros. De quem ganhou fortes elogios por estar desmontando o “Estado policialesco” da Lava Jato e por ter passado a praticar não a “velha” ou a “nova” política mas, sim, a “boa” política.

Ela consiste há décadas em acomodar os mais variados interesses (como subsídios, renúncias fiscais, penduricalhos de salários, supersalários, entre muitos outros componentes de gastos públicos que sempre crescem) aumentando a carga tributária. De jantar em jantar de confraternização – Brasília parece de novo tão “normal” –, a pergunta é apenas qual será a fórmula de um novo imposto – dirigido contra o “andar de cima” ou não, mas novo imposto.

Quando o noticiário político produz todas as noites a confusão entre qual reforma, qual PEC, qual pacto, qual PL ou qual voz está valendo para definir os rumos, ele está apenas refletindo a falta de plano, foco e estratégia de um governo interessado só em reeleição. Soa contundente, e é: há pouco crédito quando o ministro da Economia reitera que tem um “road map” para a recuperação da economia. O que há é uma infindável manipulação de prazos regimentais em função de calendários eleitorais, como se dependesse da eleição de prefeitos a arrumação do País e a passagem do tempo resolvesse os problemas.

É verdade que são discretos ainda, mas já não dá para se ignorar os murmúrios em setores da economia preocupados com a subida dos juros a longo prazo, a deterioração do câmbio, a velocidade e a sustentação da recuperação pós-pandemia. Que se assume que será mais lenta do que a recuperação lá fora e nem um pouco homogênea (os exemplos mais fortes estão no contraste entre construção civil, no lado que volta a sorrir, e o de serviços como turismo e gastronomia, entre outros).

Nota-se clara convergência entre os relatórios de grandes bancos, o próprio Banco Central e o FMI quando se trata da crescente preocupação que essas várias instituições manifestam frente à dívida pública e à situação fiscal. No fundo, elas se voltam de olhos cada vez mais arregalados para a política brasileira diante de seu dilema: como proteger as camadas mais vulneráveis, que ficaram ainda mais vulneráveis, sem arrebentar a credibilidade do trato das contas públicas.

O problema é, simplesmente, miséria.

*Jornalista e apresentador do jornal da CNN


Monica De Bolle: Trump e o vírus

O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições

Há uma semana estava eu escrevendo a coluna antes do primeiro debate entre Trump e Biden. Embora não soubesse que seria o show de deselegância, truculência, e falta de educação que foi, disse que o debate em si pouco mudaria o cenário eleitoral nos EUA por duas razões: muitos eleitores já estavam decididos e a eleição de fato já havia começado – em alguns Estados, é possível votar antes do dia 3 de novembro, assim como se pode enviar o voto por correio. No dia seguinte, quando a coluna foi publicada no jornal, fiz um post-mortem do debate no meu canal do YouTube. Mal sabia que tudo estava prestes a virar de ponta cabeça já que àquela altura – do pouco que se sabe sobre a linha do tempo – Trump já estava infectado. De lá para cá, soubemos que a Casa Branca se tornou um “covidário”, que no evento de nomeação da indicada para a Suprema Corte várias pessoas do círculo íntimo de Trump se infectaram, que o homem inabalável – imagem que adora projetar de si – passou três dias no hospital com o que parece ser um quadro mais grave de covid-19 do que os médicos estão dispostos a revelar.

Seguindo o script do reality show que já tem quase quatro anos de duração, Trump deu alta a si próprio no início da semana e voltou para a Casa Branca ainda no período contagioso e, nas palavras dos próprios médicos, não fora de perigo. Para projetar a imagem de homem forte que venceu o vírus, ainda que o vírus nele ainda esteja sabe-se lá fazendo o quê com o corpo frágil de um idoso com comorbidades, Trump desceu do helicóptero, subiu escadas, tirou a máscara. As imagens do vídeo capturaram com nitidez o esforço que fazia para respirar no momento em que removia a máscara e expunha fotógrafos e outros funcionários da Casa Branca às partículas virais que expelia. Por certo, seus apoiadores viram apenas a imagem intencionada, a do homem e seu vírus, do homem sem seu vírus como que por milagre. Qual o impacto desse teatro para as eleições? A resposta depende, em parte, do vírus.

Como bem sabem os especialistas, Trump ainda está no período crítico, aquele em que a doença pode se agravar a qualquer momento. Até o médico responsável por cuidar do presidente, o mesmo das ofuscações e das meias palavras para a imprensa, foi claro ao dizer que só estará mais tranquilo depois da próxima segunda-feira. Caso o quadro de Trump se agrave antes disso, a bravata terá sido em vão e a campanha do republicano estará definitivamente encerrada. Se for esse o desfecho, o mais provável é que Trump perca para o adversário democrata Joe Biden, sobretudo após as recentes falas sobre a doença e o vírus. Para quem não está acompanhando tão de perto, Trump disse que a covid-19 não é nada a temer – embora tenha matado mais de 210 mil pessoas nos EUA – e voltou a afirmar como fazia em março que a doença não passa de uma gripezinha. Para completar, disse que a população tem que aprender a conviver com o vírus, que a economia não pode parar, e que não é o momento de discutir pacotes de estímulo fiscal como fazia o Congresso antes de sua internação. Se for para dar mais recursos para a economia, enfatizou Trump, isso só ocorrerá depois das eleições.

Ainda que essas palavras o prejudiquem, há outra possibilidade. Recebendo os melhores tratamentos que a medicina de ponta pode oferecer, não é irrazoável que Trump se recupere. Nesse caso, a bravata terá valido a pena. A imagem do homem forte que combateu o vírus e venceu se implantará no imaginário norte-americano que ainda acredita na suposta excepcionalidade do país. A presunção de uma nação imbatível personificada por Trump poderá ameaçar seriamente as chances de Biden, ainda que o comportamento do presidente tenha sido condenável e que a gestão da epidemia tenha sido um desastre. Vejam: o imaginário americano não se move por sentimentalismos ou simpatias à la “facada de Bolsonaro”. O imaginário americano se move pela ideia de heroísmo e invencibilidade. É desse mito que Trump se alimenta para mesmerizar os suscetíveis, e não são poucos os suscetíveis.

O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições. Trata-se agora da interação entre o sistema imune possivelmente turbinado por medicamentos ainda em fase de ensaio clínico e as artimanhas insidiosas do Sars-CoV-2. A política, assim como a economia, jamais dependeu tanto da medicina.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University


Vera Magalhães: Vacina em novembro

Erradicação da loucura que assola o mundo tem de começar pela eleição dos EUA

Parecia impossível que algum líder mundial fosse superar o festival de loucuras que Jair Bolsonaro protagonizou durante a pandemia do novo coronavírus, subindo em lombo de cavalo, promovendo aglomerações, indo a atos antidemocráticos, mostrando cloroquina para as emas, etc.

Mas aconteceu. Desde que foi diagnosticado com covid-19, na semana passada, Donald Trump deixou o pupilo brasileiro no chinelo em termos de impostura e inadequação não apenas ao cargo que ocupa e ao qual se agarra com unhas e dentes, mas também aos princípios básicos de civilidade e convívio público no curso de uma emergência sanitária.

O homem mais poderoso do planeta foi internado na sexta-feira com muitas dúvidas pairando quanto à data exata de seu diagnóstico, se ele promoveu eventos já sabendo que estava doente ou a gravidade do quadro antes e depois de ser hospitalizado.

À falta de transparência inimaginável para um País que se gaba de ser o berço e o guardião da democracia ocidental se somou a boçalidade desvairada.

Desesperado diante do revés da doença quando fazia questão de zombar dela, vender tratamentos mandrakes e defender e praticar comportamentos sociais irresponsáveis, Trump quis se mostrar forte.

Para isso, expôs assessores, seguranças e equipe do hospital a risco de contaminação. O carro em que ele fez o desfile patético é blindado inclusive para ataques químicos e biológicos, o que significa dizer que, se nada entra, tampouco sai. A carga viral de um presidente doente ficou toda concentrada no interior do carro, sujeitando os demais ocupantes a riscos.

A diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existem menos puxa-sacos e lambe-botas que aqui. E, quando um presidente se comporta como um moleque, há quem, mesmo entre os que o circundam, com coragem para dizer em voz alta. Foi o que fez o médico James Phillips, do hospital Walter Reed. “Eles podem ficar doentes. Eles podem morrer. Por teatro político”, atestou.

Lá como aqui este teatro que se prolonga já cobrou muito em termos de corrosão dos valores e dos marcos civilizatórios. Que um presidente decida se comportar como um bufão num debate e a comissão nacional encarregada de organizar tais eventos não deixe claro que isso não irá se repetir sob hipótese alguma é sinal de que Trump venceu mais um round e conseguiu enfraquecer mais uma estrutura que sustenta a democracia norte-americana – que, mesmo com todas as suas lacunas e falhas, é uma das mais estáveis do mundo.

Por tudo isso é vital a importância da eleição dos Estados Unidos, para o mundo e para o Brasil. A era de governantes fanfarrões calhou de coincidir com o maior flagelo humano, social e econômico que as atuais gerações – sejam as mais novas, sejam as que estão vendo antecipado seu tempo útil – irão conviver no curso de suas vidas.

A presença de figuras como Trump e Bolsonaro em postos de comando agrava exponencialmente os efeitos desse calvário. Mais de 200 mil mortos lá, quase 150 mil aqui e tanto um quanto outro seguem distraídos e distraindo os seus governados com factoides midiáticos. Lá a busca vale-tudo por uma reeleição cada vez mais difícil. Aqui a costura de terreno político com vista ao mesmo objetivo e para proteger a família presidencial, cada vez mais enredada numa trama que explicita o uso de dinheiro público de gabinetes para enriquecimento.

Não se sabe o mal que Trump ainda pode fazer, desde propagar o vírus para os que o cercam até colocar em dúvida a transição do poder caso se efetive a derrota que as pesquisas apontam. Mas é fácil analisar a importância que sua eventual saída de cena em novembro representará para começar a trazer de volta a racionalidade perdida à política brasileira. Que assim seja.


Rosângela Bittar: Arranjos de mão dupla

Um arranjo de mão dupla demonstrará o efeito do apoio de Bolsonaro a Russomanno

Que Jair Bolsonaro tem rara capacidade de transferir votos, não há dúvida. Elegeu três filhos em colégios eleitorais distintos e um sem-número de desconhecidos coronéis, capitães e majores, País afora. O outro líder nacional com essa capacidade é Lula, provisoriamente contido pelas circunstâncias.

A disputa pela Prefeitura de São Paulo tornou-se campo ideal para efeito demonstração deste bolsonarismo por patrocínio. Será um verdadeiro recenseamento, com precisão estatística. Não importa a falta de homogeneidade, cada bolsonarista sabe precisamente o seu tipo.

Alguns são remanescentes do encantamento pelo já superado discurso de combate à corrupção; outros por serem apaixonados pelo porte e potência das armas; uns da direita sectária; outros, terrivelmente militantes religiosos. Todos pela adesão irrestrita ao seu profeta.

Celso Russomanno (Republicanos), cansado de insistir em derrotas sucessivas, precedidas por triunfais pole positions em pesquisas eleitorais, viu no apoio do presidente a chance de dar uma identidade à sua candidatura. O esquema agradou a Bolsonaro, que havia liquidado seus grupos organizados em São Paulo de quem se afastou com desdém ao chegar à Presidência.

Um arranjo de mão dupla demonstrará o efeito deste apoio. No primeiro, Russomanno é o beneficiário. Tenta empurrar Bolsonaro, em seu lugar, no ataque ao seu adversário direto, Bruno Covas (PSDB), ao mesmo tempo em que força a transformação do presidente em alvo. Nas últimas 48 horas, Russomanno insistiu mil vezes que a coligação de Covas é a frente paulista anti-Bolsonaro. O presidente, popular e fortão, segue na frente, e o candidato a prefeito fica um passo atrás, livre das escaramuças.

Outro efeito em teste é a inversão da roda da ciranda. Neste, o beneficiário é Bolsonaro. Russomanno torna-se o símbolo do eleitorado cujo voto foi a ele transferido e porta-estandarte do bolsonarismo em São Paulo. O eleitorado o acompanha, mas exige que proteja Bolsonaro e use a máquina a seu serviço. Russomanno, de patrocinado, passa a patrocinador.

Kassio com K. Sem ilusões: todos os passos amistosos do presidente Jair Bolsonaro em direção ao Supremo Tribunal Federal têm um único e fisiológico objetivo. O de proteger o primogênito Flávio Bolsonaro.

A preocupação com este filho é obsessão e determina a relação do presidente com os tribunais superiores. A indicação de Kassio Marques, negociação conduzida por 01 para a vaga do decano Celso de Mello, integra este conjunto de providências objetivas.

Desagradou a três alas de apoiadores do presidente e satisfez a outras três. Os que esperneiam são originários do lavajatismo convertidos ao bolsonarismo; são os líderes evangélicos que já saboreavam a vaga; e os radicais ligados ao inacreditável Olavo de Carvalho, que ainda teima em influenciar o governo com gritos e palavrões.

Já os três grupos que aprovaram a escolha têm outras motivações. O apoio da Ordem dos Advogados foi corporativista, sem peso político ou ideológico; o Centrão vislumbrou também proteção aos interesses amplamente conhecidos; e um terceiro grupo gostou porque se sentiu aliviado. Temia que o escolhido tivesse um perfil de lobisomem, alguém incompatível com os ritos, linguagem e notável saber jurídico.

Na história recente do Supremo cita-se muito o caso de Luiz Fux, o novo presidente. À maneira carioca, o então surfista juiz minimizou, numa conversa com o então ministro José Dirceu, os riscos judiciais a que o mensalão expunha o governo Lula. “Deixa que eu mato no peito.” Um aceno não cumprido que, por isso mesmo, pertence aos registros da memória.

Caboclo nordestino, o mínimo que os aliados do governo esperam do piauiense Kassio Marques é que, se prometeu alguma coisa, cumpra.


Ana Carla Abrão: Fraternidade

‘A tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não’

Quando escreveu o Samba da Bênção, há mais de meio século, Vinicius de Moraes, o branco mais preto do Brasil, não imaginaria um mundo tão cheio de ódio e divisão como o atual. Menos ainda uma situação como a que vivemos hoje, em que o isolamento e distanciamento físico se impõem, empurrando a alegria das noites boêmias para o campo de uma memória quase distante.

Mas de tudo, a maior das distâncias entre o Rio de Janeiro de então e o atual que agoniza, afundado em um mar de corrupção e violência, é a da desigualdade social. Mas o Brasil é o Rio de Janeiro. Entre os altos e baixos nos índices de concentração de renda e de redução da pobreza nesses tantos anos, voltamos a piorar e pioramos muito. Exclusão, marginalização e ausência de oportunidades para tantos são as características do Brasil de hoje. Temperadas por intolerância, polarização e a desinformação propagada por fake news.

É sobre tudo isso, ou melhor, sobre o combate a tudo isso que versa a nova encíclica papal. Não por coincidência, a 3.ª encíclica do papa Francisco foi tornada pública no dia em que se celebra São Francisco de Assis, o mais fraterno dos santos cristãos. Fratelli Tutti, a encíclica social recheada de conceitos econômicos, busca mobilizar não só os católicos, mas todas as pessoas do bem, em torno do que há de melhor nas nossas capacidades humanas: o encontro, a convergência, a empatia, a união, a compreensão, a inclusão e a fraternidade. Num mundo tão marcado pelo desencontro, nela o Samba da Bênção ressurge, lembrando-nos que, apesar disso, a vida é a arte do encontro – entre pessoas, entre povos, entre nações. E é desse encontro que um mundo melhor surge.

Embora cometa o erro de usar o termo neoliberalismo de forma excessivamente dogmática, o capítulo V da encíclica destaca a importância de termos políticas melhores. Políticas melhores são aquelas que permitem a geração de emprego, uma melhor distribuição de renda, a inclusão das minorias e o fim das injustiças. Contrapõem-se às ações populistas que visam à perpetuação de grupos no poder e ao interesse individual, lideranças transformadoras que pensam no bem comum e no desenvolvimento econômico e social. Aqui, segue o texto, a grande questão é o trabalho. Ser popular de verdade é dar condições para que todos possam se desenvolver e viver das suas capacidades, iniciativas e forças. Sem negar a importância das redes de proteção social nas sociedades genuinamente fraternas, seu caráter provisório e a necessidade de focalização são um destaque. Da mesma forma, o texto chama a atenção para a degeneração do termo “popular”, por líderes populistas em busca do interesse imediato. Tendo como única finalidade a garantia de votos, responde-se às exigências populares, sem que se avance na árdua tarefa de proporcionar às pessoas as oportunidades e os recursos para o seu desenvolvimento, de forma perene e sustentável.

Não, Fratelli Tutti não foi escrita para o Brasil em resposta à falta de apetite que vemos no governo atual em avançar numa agenda de reformas estruturais que nos devolva a capacidade de crescer e de gerar emprego e renda para uma população que empobrece a cada dia. Não, ela não foi escrita para colocar luz na incapacidade do governo e dos agentes públicos de atacar os privilégios e enfrentar grupos de interesse que jogam o País num impasse diário. Impasse que gera como resultado uma opção distributiva sempre cruel. Ela também não foi escrita para mostrar que a principal motivação para a ampliação do programa universal de renda básica, sem desenho e sem fonte clara de financiamento, é a eleição de 2022 e à custa de um país ainda mais pobre e capturado pelo clientelismo. Ela tampouco visa ao Brasil quando cita a importância da abertura entre os países, do acolhimento dos povos, da importância da sustentabilidade ambiental. O mesmo vale para o horror crescente que são a intolerância, o fomento ao ódio ou à agressividade que tomaram conta do debate. Não, ela não foi escrita para o Brasil, mas foi.

Fratelli Tutti clama por fraternidade e método. Fraternidade com método significa estabelecer relações pessoais, institucionais e de política pública que tenham por objetivo o bem comum e a proteção da democracia. Incluir, tolerar, reduzir as diferenças sociais, gerar oportunidades para todos e trabalhar por um mundo melhor é ser fraterno. No Brasil, infelizmente nunca estivemos tão distantes disso. Hoje somos mais intolerantes, menos fraternos e também mais desiguais. E por isso mesmo, mais tristes. Que o Samba da Bênção, que é só fraternidade, continue nos lembrando que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não”.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman


Eliane Cantanhêde: O último a saber

Na guerra do ‘desequilibrado’ com o ‘despreparado’, Bolsonaro esquece Guedes

O presidente Jair Bolsonaro desautoriza Paulo Guedes num dia e no outro também e ontem o ministro foi o último a saber do encontro do chefe e do general Luiz Eduardo Ramos com seus dois maiores inimigos, o deputado Rodrigo Maia e o ministro Rogério Marinho. Soube por uma foto em que só aparecia Maia. À vontade, íntimo da “casa”, o fotógrafo foi Marinho.

Guedes acusa Maia de boicotar as privatizações, Maia chama Guedes de “desequilibrado” e Guedes ataca Marinho como “despreparado”, por admitir publicamente furar o teto de gastos. Logo, a coisa está animada na cúpula do governo, com o presidente no meio de uma guerra entre o “desequilibrado” e o “despreparado”. Ou melhor, no centro.

O tema da reunião, informou-se, foi de onde tirar dinheiro para o Renda Cidadã, mas como assim? O ministro da Economia, dono da chave do cofre, não estava presente, não foi convidado, nem sequer foi comunicado. E chiou. Como anda com os erros à flor da pele, envolto em dúvidas e convivendo dia a dia com a insegurança da própria equipe, dá para imaginar que a chiadeira não foi lá das mais calmas e elegantes.

O Planalto e Bolsonaro tiveram um trabalhão para convencê-lo de que se tratava de um cafezinho inocente e que o presidente mantém inalterados tanto a defesa do teto de gastos quanto a confiança e apreço pelo seu Posto Ipiranga. Se o próprio Guedes tem lá suas dúvidas, certamente o mercado e a opinião pública não ficam atrás.

Quando se pergunta no governo qual a diferença entre Sérgio Moro e Paulo Guedes, a resposta é uníssona: Moro, segundo eles, com replique nas redes bolsonaristas, foi “desleal”, “mau caráter”, uma “surpresa”, enquanto Guedes não é nada disso e é praticamente indemissível.

Na verdade, o que ministros diziam de Moro às vésperas da queda dele é o que dizem agora de Guedes: um pilar do governo; o presidente sabe a importância que ele tem; aliás, gosta muito dele, pessoalmente; a chance de ele sair é zero… Era zero com Moro e é zero com Guedes, mas só até a próxima curva.

Paulo Guedes é teimoso e duro na queda, não vai engolir desaforo calado, como Moro, e depois sair atirando. Ele está guerreando pela sua posição a céu aberto, botando a boca no trombone e se esforçando para manter unida o que resta da equipe econômica, depois da “debandada” que lhe tirou os secretários da Receita, do Tesouro, das Privatizações e da Desburocratização.

Só conseguiu salvar o da Fazenda, que recebeu “cartão vermelho” do presidente, mas se manteve – com o compromisso de boca fechada. Esse compromisso Bolsonaro não vai arrancar de Guedes. Ficando ou saindo, ele vai continuar sendo Guedes, sem papas na língua.

O script continua como previsto: depois de perder uma atrás da outra no governo e passar a ser sistematicamente criticado no mercado e na mídia por falar muito e entregar pouco, Guedes sobe e desce, sobe e desce, numa montanha-russa. Como na queda de Moro, ministros e assessores penduram-se no telefone para jurar que Guedes está firme feito uma rocha, mas assim mesmo começa a bolsa de apostas para lhe suceder, que nem vale citar aqui, para não botar mais fogo no circo.

Mais do que nomes, aliás, tem-se uma certeza: não será nenhum nome óbvio. E por que essa certeza? Basta ver como foram as escolhas para Educação, Saúde e Supremo: Carlos Alberto Decotelli, Milton Ribeiro, Eduardo Pazuello e Kassio Nunes.

Nomes fora de qualquer lista, soprados ao ouvido sensível do presidente, que leva a sério quem toma tubaína com ele e está cada vez mais se lixando para a gritaria de robôs bolsonaristas, ou chororô de derrotados. E não se assustem com um sucessor de Guedes do Centrão, ou apadrinhado pelo grupo. Sinto informar. Guedes ainda não perdeu, mas o Centrão já venceu!


Carlos Pereira: Maldição ou virtude?

Virtude governativa emerge de instituições de controle fortes e independentes

Nos últimos anos, cinco dos ex-governadores do Rio de Janeiro (Moreira Franco, Antony Garotinho, Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão) já foram ou ainda estão presos. Por ampla maioria, o Superior Tribunal de Justiça manteve o afastamento do governador Wilson Witzel.

A Assembleia Legislativa acaba de aprovar, por 69 votos a zero, a continuidade do processo de impeachment do governador por crime de responsabilidade. O prefeito da capital, Marcelo Crivella, foi condenado pelo Tribunal Regional Eleitoral por abuso de poder político e está inelegível por 8 anos.

O que esses eventos recentes dizem do que de fato está acontecendo no Rio de Janeiro? Estaria o Rio de Janeiro condenado à maldição de maus governantes?

O sistema democrático não nasceu necessariamente para gerar eficiência ou resultados consistentes com as nossas preferências. Mas para garantir liberdade competitiva à população na escolha de seus representantes e proporcionar resolução pacífica de conflitos sociais a partir da representação/inclusão dos mais variados interesses no jogo político. Raramente a democracia seleciona os melhores governantes. E mesmo quando o faz, não demora muito para que os eleitos frustrem as expectativas dos eleitores.

A qualidade da democracia, portanto, não é produto dos atributos ou crenças particulares do eleito, mas da qualidade institucional e da capacidade das organizações de controle de fiscalizar e impor medidas repressivas a comportamentos desviantes.

Impor sanções políticas e judiciais a seis de seus governantes não é trivial nem frequente em democracias. Essa performance sugere robustez das organizações de controle estaduais e capacidade de atuação coordenada e conjunta com organizações de controle de outras esferas, principalmente a federal.

É, portanto, míope quem enxerga na situação do Rio de Janeiro apenas a maldição da corrupção, sem perceber que há também virtude institucional.

Com isso não se está ingenuamente argumentando que as instituições de controle no Rio de Janeiro seriam perfeitas. Na maioria das vezes elas agem tardiamente e de forma retrospectiva ao invés de preventiva. As punições ocorrem quando os maus governantes já não estão mais no poder e os prejuízos de suas administrações predatórias já foram consumados.

Embora as organizações de controle tenham apresentado relativa capacidade na responsabilização e punição de governantes, elas ainda não o fazem de forma tão eficiente a ponto de desencorajar o mau comportamento.

Parece que os ganhos esperados com comportamentos desviantes continuam sendo maiores que os riscos de os governantes serem pegos em práticas desonestas. Isso acontece porque as chances de se detectar corrupção são ainda relativamente muito baixas.

O fortalecimento das organizações de controle não é linear. Além do mais, o sistema político é por demais protetivo dos governantes de plantão que dispõem de várias garantias legais e procedimentais que tornam a atividade criminosa atrativa e de relativo baixo risco.

A virtude na administração pública não decorre da conversão moral ou de compromissos políticos de governantes eleitos. Bons governos surgem da existência de organizações de controle fortes e independentes.


O Estado de S. Paulo: Bolsonaro decide indicar Jorge Oliveira para ministro do TCU

Jorge Oliveira foi preterido na escolha do futuro ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), para a qual foi escolhido Kassio Nunes.

Jussara Soares, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Jorge Oliveira, deve ser o indicado do presidente Jair Bolsonaro para ministro do Tribunal de Contas da União (TCU).

Jorge Oliveira foi preterido na escolha do futuro ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Para a vaga, foi escolhido o desembargador Kassio Nunes. O presidente fará nova indicação para o STF no ano que vem, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, em julho.

No TCU, o cargo a ser ocupado por Jorge Oliveira deve ser aberto com a aposentadoria do presidente do TCU, José Múcio Monteiro. Múcio esteve na sexta-feira com Bolsonaro, quando o avisou que se aposentará no dia 31 de dezembro, mas  vai protocolar o pedido nesta semana.

O nome de Jorge Oliveira precisa ser aprovado pelo Senado. Primeiro, passa por um sabatina na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE). Em seguida, o nome é avaliado pelo plenário. O salário bruto de um ministro do TCU, cargo vitalício, é de R$ 37,3 mil mensais. Esse valor não inclui os penduricalhos, como auxílio-alimentação, ressarcimento com gastos de saúde, entre outras vantagens. 

Com a ida de Jorge Oliveira, Bolsonaro terá que indicar um novo um novo ministro da Secretaria-Geral. O mais cotado é o secretário especial de Assuntos Estratégicos,  almirante Flávio Rocha.

Relação com Bolsonaro

Filho do capitão do Exército Jorge Francisco, morto em 2018, e que por 20 anos foi chefe de gabinete de Bolsonaro na Câmara de Deputados, o ministro tem uma relação próxima com o presidente.

Advogado e major da Polícia Militar, Oliveira foi chefe de gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e também padrinho de casamento do parlamentar. Ele iniciou o governo no comando da Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ). Depois, acumulou o posto e o cargo de ministro-chefe da Secretaria-Geral.

Em abril, Oliveira era o nome preferido de Bolsonaro para substituir o ex-juiz Sérgio Moro no Ministério da Justiça e Segurança Pública. De acordo com relatos feitos ao Estadão, Oliveira recusou o cargo, alegando que a indicação dele reforçaria a acusação de Moro de que o presidente tenta interferir na Polícia Federal.